de 9 de Abril
A elevada complexidade de muitas patologias humanas motiva a incessante procura da medicina e da indústria farmacêutica com o objectivo de se investigar ou verificar, através de um estudo sistemático, os efeitos e reacções adversos aos medicamentos, estudar a absorção de tais produtos pelo ser humano, sua distribuição, metabolismo e excreção, com a colaboração voluntária de pessoas doentes ou saudáveis, a fim de assegurar a sua eficácia e segurança.Nisto consistem, sumariamente, os ensaios clínicos onde se entrecruzam, não raro, interesses só parcialmente coincidentes.
Impõe-se a salvaguarda dos direitos dos indivíduos envolvidos nos ensaios, designadamente o direito a uma correcta informação como pressuposto de um consentimento livre e esclarecido e o direito à integridade e confidencialidade.
A fim de corrigir ou completar a informação recolhida ou, em caso de contestação séria, verificar a sua autenticidade é indispensável a organização de um processo individual, por cada participante, que contenha as informações médicas ou outras consideradas necessárias.
Importa, a todo o custo, garantir a idoneidade da investigação, evitando o recurso aos ensaios clínicos para fins promocionais ou a abusiva utilização dos doentes, pelo que se considera indispensável o parecer das comissões de ética.
A base XXII da Lei de Bases da Saúde, Lei n.° 48/90, de 24 de Agosto, estatui que os ensaios clínicos de medicamentos são sempre realizados sob direcção e responsabilidade médica, segundo regras a definir em diploma próprio.
Tratando-se de preencher uma lacuna no nosso ordenamento jurídico, urge criar o enquadramento que garanta o direito à integridade física e moral dos sujeitos objecto dos ensaios clínicos, no respeito pelas recomendações internacionais de ética de Helsínquia e Tóquio, da Organização Mundial de Saúde e da Comunidade Europeia.
Foram ouvidos o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos.
Assim:
Nos termos da alínea a) do n.° 1 do artigo 201.° da Constituição, o Governo decreta o seguinte:
Artigo 1.°
Objecto
1 - O presente diploma estabelece as normas a que devem obedecer os ensaios clínicos a realizar em seres humanos, de modo a garantir a sua integridade física e psíquica e a eficácia e segurança dos medicamentos.2 - Para efeitos do presente diploma, entende-se por ensaio clínico todo o estudo sistemático com medicamentos a realizar em seres humanos, saudáveis ou doentes, com o objectivo de investigar ou verificar os efeitos e ou identificar qualquer efeito secundário dos medicamentos e ou estudar a sua absorção, distribuição, metabolismo e excreção, a fim de determinar a sua eficácia e segurança.
Artigo 2.°
Princípio geral
O bem individual da pessoa deve prevalecer, em qualquer ensaio clínico, sobre os interesses da ciência e da comunidade.
Qualificação profissional
1 - Os ensaios clínicos só podem ser efectuados por médicos com qualificação científica adequada, com experiência em investigação, em especial na área de ensaio clínico proposto.2 - A qualificação científica a que se refere o número anterior deve ser reconhecida pela comissão ética do estabelecimento de saúde pública ou da unidade privada de saúde, atentos o tipo de ensaio a realizar e as qualificações profissionais dos médicos em causa.
Artigo 4.°
Requisitos
1 - A realização dos ensaios clínicos deve ter lugar em estrita observância dos princípios científicos reconhecidos e escrupuloso respeito pela integridade física e psíquica das pessoas envolvidas.2 - Os ensaios clínicos devem ser precedidos de ensaios em animais, só podendo ser realizados em seres humanos quando os resultados daquela experimentação permitam concluir que os riscos para a pessoa a submeter ao ensaio são proporcionais aos benefícios que para essa pessoa se apresentam como previsíveis.
3 - Os ensaios clínicos podem, ainda, ser realizados em pessoas sãs quando não existam riscos previsíveis para a sua integridade física e psíquica.
Artigo 5.°
Instituições autorizadas
1 - Os ensaios clínicos apenas podem ser realizados em estabelecimentos de saúde públicos, ou unidades privadas de saúde devidamente licenciadas, que reúnam condições materiais e humanas susceptíveis de garantir o rigor e a qualidade científica exigidos.2 - Os ensaios em cuja realização sejam utilizados medicamentos que, pela sua natureza ou pelas características da doença, possam originar risco grave para a vida ou saúde do paciente devem ser realizados em unidades de saúde com internamento que disponham de condições técnicas, materiais e humanas adequadas ao controlo permanente do ensaio e à realização das intervenções que vierem a revelar-se necessárias.
Artigo 6.°
Protocolo
1 - Os termos da realização de cada ensaio clínico constam de um protocolo, no qual se estabelecem os respectivos objectivos, condições de efectivação e faseamento.2 - Do protocolo constam, ainda, os seguintes elementos:
a) Nome e morada do promotor, do investigador responsável pelo ensaio e seus colaboradores, acompanhados dos respectivos currículos;
b) Montante da remuneração a atribuir ao investigador, bem como as prestações pecuniárias ou em espécie a atribuir pelo promotor aos estabelecimentos em que se efectuem os ensaios como contrapartida da sua realização;
c) Denominação genérica do medicamento, sua composição e identificação da entidade que preparou as amostras;
d) Nome do director técnico responsável pela qualidade dos medicamentos a ensaiar;
e) Tipo e definição do ensaio clínico, técnica seleccionada e seus objectivos;
f) Local e serviço onde se pretende realizar o ensaio clínico e respectiva duração;
g) Previsão do perfil, critérios de admissibilidade, número de participantes e especificação dos seus diagnósticos;
h) Precauções a observar na realização do ensaio e reacções adversas previsíveis;
3 - O protocolo é datado e assinado pelo promotor e pelo investigador responsável pelo ensaio.
4 - Ao protocolo são anexadas a identificação dos sujeitos dos ensaios clínicos e a prova do respectivo consentimento.
Artigo 7.°
Autorização
1 - A realização de ensaios clínicos carece de autorização prévia, a conceder pelo órgão de administração da instituição em que se realize, a requerimento do promotor, observadas as seguintes condições:a) Nas instituições e serviços de saúde públicos, mediante parecer favorável da comissão de ética e do director do serviço onde se pretende realizar o ensaio;
b) Nas unidades privadas de saúde, mediante parecer favorável da comissão de ética;
2 - Nos estabelecimentos ou unidades de saúde onde não exista comissão de ética não pode ser autorizada a realização de ensaios clínicos.
3 - O pedido de autorização é instruído com o protocolo e demais documentação que fundamente os objectivos do ensaio clínico.
4 - Não pode ser concedida a autorização quando do protocolo não constem os elementos a que se refere o artigo anterior.
5 - A autorização concedida, bem como o início do ensaio, devem ser comunicados pelo promotor ao Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento, sendo a comunicação acompanhada de cópia do protocolo.
Artigo 8.°
Comissões de ética
1 - À comissão de ética cabe pronunciar-se sobre os pedidos de autorização para a realização de ensaios clínicos e fiscalizar a respectiva execução, em especial no que respeita aos aspectos éticos e à segurança e integridade dos sujeitos do ensaio clínico.2 - No exercício das competências a que se refere o número anterior, devem as entidades referidas avaliar, designadamente:
a) As qualificações e experiência do investigador e seus colaboradores, tendo em vista a realização do ensaio proposto;
b) As condições técnicas e assistenciais em que decorre o ensaio;
c) A adequação do protocolo aos objectivos do ensaio, ponderando especialmente os possíveis benefícios e os riscos previsíveis;
d) A observância dos compromissos éticos assumidos no protocolo ou resultantes das normas, nacionais ou internacionais, por que se rege a realização dos ensaios clínicos;
e) A ocorrência de razões que justifiquem suspensão ou revogação da autorização concedida para a realização de ensaios clínicos;
3 - A composição, a competência e o modo de funcionamento das comissões de ética são definidos em diploma próprio.
Artigo 9.°
Informação
1 - O investigador está obrigado a informar de modo simples, inteligível e leal o sujeito do ensaio clínico dos riscos, das consequências e dos benefícios previsíveis, bem como dos métodos e objectivos prosseguidos.2 - O investigador deve, ainda, facultar ao sujeito do ensaio clínico, por escrito, os seguintes elementos:
a) Nome e morada do promotor, do investigador responsável pelo ensaio e seus colaboradores;
b) Denominação do medicamento;
c) Nome do técnico responsável pela qualidade dos medicamentos a ensaiar;
d) Características do ensaio clínico, sua duração e objectivos;
e) Precauções a observar na realização do ensaio clínico e reacções previsíveis;
3 - O sujeito do ensaio clínico deve, também, ser esclarecido quanto ao regime de responsabilidade civil aplicável.
Artigo 10.°
Consentimento
1 - O consentimento para a participação em ensaios clínicos deve ser livre, esclarecido, expresso e dado por escrito.2 - É ineficaz o consentimento obtido sem observância do disposto no n.° 1 e no artigo anterior.
3 - O consentimento é livremente revogável a todo o tempo, não incorrendo o sujeito na obrigação de indemnizar os prejuízos daí decorrentes.
4 - No caso de menores ou incapazes, só é permitida a realização do ensaio clínico quando resultar benefício clínico directo para o sujeito.
5 - Tratando-se de sujeitos menores ou incapazes, o consentimento deve ser prestado pelos seus representantes legais, sem prejuízo da necessidade do consentimento dos menores que disponham de capacidade de entendimento e manifestação de vontade.
Artigo 11.°
Confidencialidade
Todos aqueles que participarem em ensaios clínicos ou por qualquer forma tiverem conhecimento da sua realização ficam obrigados a não revelar quaisquer dados pessoais a que tenham tido acesso.
Artigo 12.°
Remuneração do investigador
1 - É permitida a remuneração do investigador, a qual deve constar do protocolo, sem prejuízo do disposto no número seguinte.2 - Quando o investigador for funcionário ou agente do serviço nacional de saúde aplica-se o regime geral da função pública.
Artigo 13.°
Compensações
1 - A participação dos sujeitos em ensaios clínicos não pode, em nenhuma circunstância, ser remunerada.2 - O disposto no número anterior não prejudica o reembolso das despesas ou prejuízos que o sujeito haja suportado pela sua participação nos ensaios.
3 - Quando tenha lugar, nos termos do número anterior, a compensação de despesas ou prejuízos, os respectivos montantes e a sua justificação devem ser comunicados, periodicamente, por escrito, à entidade competente para conceder a autorização e à comissão de ética.
Artigo 14.°
Seguro
1 - O sujeito do ensaio clínico tem direito a ser indemnizado pelos danos sofridos, independentemente da culpa.2 - Para efeitos do disposto no número anterior, deve ser criado um seguro obrigatório, suportado pelo promotor.
1 - O promotor é a pessoa responsável pela promoção e financiamento do ensaio clínico.
2 - Cabe ao promotor, designadamente:
a) Solicitar ao órgão de administração do estabelecimento de saúde autorização para realizar os ensaios clínicos;
b) Propor o investigador, cuja qualificação científica e experiência profissional deve comprovar documentalmente;
c) Facultar ao investigador todos os dados químico-farmacêuticos, toxicológicos, farmacológicos e clínicos relevantes que garantam a segurança do medicamento e todas as informações necessárias à boa condução dos ensaios;
d) Financiar e colocar à disposição do investigador os meios necessários à boa realização dos ensaios, em especial medicamentos e equipamentos;
e) Assegurar a vigilância do ensaio mediante uma monitorização efectuada sob responsabilidade médica;
f) Assegurar o cumprimento dos deveres de comunicação e de informação previstos no presente diploma;
g) Apresentar o relatório final ao órgão de administração do estabelecimento de saúde, bem como ao Instituto da Farmácia e do Medicamento.
Artigo 16.°
Investigador
1 - O investigador é um perito médico responsável pela condução e realização do ensaio clínico.2 - Ao investigador cabe, designadamente:
a) Responsabilizar-se pela realização dos ensaios, em conformidade com o protocolo subscrito conjuntamente com o promotor, nos termos da autorização concedida;
b) Informar e esclarecer os sujeitos dos ensaios clínicos, nos termos do artigo 9.°;
c) Propor aos órgãos de administração da instituição de saúde, obtida a autorização do director do serviço e do promotor e ouvida a comissão de ética, as alterações ao protocolo eventualmente decorrentes dos dados parciais dos ensaios clínicos e, bem assim, promover a modificação e a suspensão dos ensaios, sempre que ocorram razões justificativas;
d) Assegurar o registo rigoroso das fichas clínicas, bem como o tratamento de todas as informações recolhidas durante os ensaios e elaborar o relatório final contendo a apreciação dos resultados obtidos;
3 - Ao investigador cabe, ainda:
a) Tomar as medidas adequadas no caso de reacções adversas graves ou inesperadas e delas dar conhecimento imediato ao promotor, à comissão de ética, à Direcção-Geral da Saúde, ao Instituto da Farmácia e do Medicamento e ao órgão de administração do estabelecimento de saúde respectivo;
b) Disponibilizar os resultados dos ensaios, sempre que requeridos, ao Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento, ao órgão de administração da instituição de saúde, ao promotor e ao monitor, de modo a possibilitar o tratamento dos mesmos, ou a verificação dos objectivos;
c) Assegurar a confidencialidade dos aspectos da preparação, condução e finalização do ensaio, bem como da informação respeitante aos sujeitos nele envolvidos;
d) Responsabilizar-se pelo acompanhamento médico dos sujeitos dos ensaios durante e após a sua realização e manter o director do respectivo serviço informado do andamento dos ensaios;
4 - O investigador pode promover a realização de ensaios clínicos desde que assuma simultaneamente as responsabilidades de promotor.
Artigo 17.°
Monitor
1 - O monitor é o indivíduo designado pelo promotor para acompanhar o ensaio clínico, relatando a sua evolução e verificando as informações coligidas, e para o manter permanentemente informado.2 - As informações a prestar ao promotor compreendem, designadamente, a verificação das condições indispensáveis à realização do ensaio, a informação prestada a toda a equipa de investigação, o cumprimento do protocolo e o modo de recolha e registo dos dados do ensaio clínico.
Artigo 18.°
Suspensão ou revogação da autorização concedida
1 - A autorização concedida deve ser suspensa ou revogada, consoante a gravidade do caso, ouvida a comissão de ética:
a) Quando falte ou se encontre viciado o consentimento dos sujeitos do ensaio;
b) No caso de incumprimento do protocolo;
c) Quando a continuação do ensaio clínico possa revelar-se perigosa para a saúde dos participantes e, em especial, sempre que ocorram reacções adversas graves;
2 - A suspensão ou revogação de autorização concedida deve ser devidamente fundamentada e comunicada ao Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento, ao director do serviço e ao promotor.
Artigo 19.°
Contra-ordenações
1 - Sem prejuízo da responsabilidade civil, penal ou disciplinar pelos factos em causa, a violação do disposto no presente diploma constitui contra-ordenação punível nos termos dos números seguintes.2 - É punível com coima de 150 000$ a 500 000$:
a) A violação do dever de confidencialidade a que estão obrigados os intervenientes nos ensaios clínicos;
b) A autorização para a realização de ensaios clínicos sem que do processo conste o protocolo, quando estes não contenham todos os elementos que dele devem constar ou quando falte a demais documentação que fundamente os objectivos dos ensaios clínicos;
c) A falta da comunicação a que se refere o n.° 3 do artigo 13.° 3 - É punível com coima de 250 000$ a 500 000$:
a) A realização de ensaios clínicos por médicos sem qualificação científica adequada ou com desrespeito pela integridade física e psíquica das pessoas envolvidas;
b) A concessão de autorização para a realização de ensaios nos termos da alínea anterior;
c) A realização de ensaios clínicos sem que o sujeito tenha sido previamente informado dos seus objectivos, métodos e potenciais riscos ou incómodos e prestado o seu consentimento livre e esclarecido;
d) A atribuição aos sujeitos de qualquer compensação patrimonial não prevista no n.° 2 do artigo 13.° 4 - É punível com coima de 400 000$ a 500 000$:
a) A realização de ensaios clínicos em unidades que não se encontrem devidamente licenciadas ou que não disponham de condições técnicas, materiais e humanas adequadas ao controlo permanente do ensaio e à realização das intervenções que vierem a revelar-se necessárias;
b) A realização de ensaios clínicos sem autorização do órgão de administração da instituição e parecer favorável da comissão de ética;
c) A não suspensão ou revogação de autorização concedida quando falte ou se encontre viciado o consentimento dos sujeitos de ensaio, haja incumprimento do protocolo ou a continuação do ensaio se tenha revelado perigosa para a saúde dos participantes ou tenham ocorrido reacções adversas graves;
d) A falta de comunicação ao Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento do início do ensaio ou a omissão do envio do protocolo;
5 - Sendo o infractor pessoa colectiva, os montantes mínimos e máximos das coimas previstos nos números anteriores são elevados para o dobro.
6 - A negligência é punível.
Artigo 20.°
Aplicação e destino das coimas
1 - A aplicação das coimas previstas no artigo anterior compete ao presidente do conselho de administração do Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento.2 - O produto das coimas reverte em 60% para o Estado e em 40% para o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento.
Artigo 21.°
Legislação aplicável
1 - Sem prejuízo do disposto no presente diploma, a realização dos ensaios clínicos deve pautar-se, com as necessárias adaptações, pelo disposto na legislação que regula os ensaios analíticos, toxicofarmacológicos e clínicos dos medicamentos de uso humano.2 - As regras de boa prática clínica de ensaios clínicos são aprovadas por portaria do Ministro da Saúde.
Visto e aprovado em Conselho de Ministros de 10 de Fevereiro de 1994. - Aníbal António Cavaco Silva - Álvaro José Brilhante Laborinho Lúcio - Adalberto Paulo da Fonseca Mendo.
Promulgado em 16 de Março de 1994.
Publique-se.O Presidente da República, MÁRIO SOARES.
Referendado em 18 de Março de 1994.
O Primeiro-Ministro, Aníbal António Cavaco Silva