Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 3489/17.5 T8STR.E1-A
Acorda o Pleno dos Juízes das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça
I - Relatório
1 - Zurich Insurance Plc - Sucursal em Portugal, S. A., com sede na Rua..., em ..., instaurou contra AA, residente na Rua ..., em ..., a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a condenação do R. no pagamento da quantia de € 84.413,07, acrescida de juros vencidos desde ...12.2016 e dos vincendos até integral pagamento.
Para tanto, alegou, em síntese, que:
i) No dia ... ... 2015, ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-ED-…, conduzido pelo R., e o tractor agrícola de matrícula ...-...-ZI, conduzido por BB;
ii) Por força do acidente a passageira que seguia dentro do veículo conduzido pelo R. faleceu;
iii) O R. foi submetido a análises toxicológicas, acusando a presença de canabinóides no sangue, que influenciou a sua condução e que foi determinante para a ocorrência do acidente e para as respectivas consequências;
iv) O embate ficou a dever-se a culpa exclusiva do R.;
v) Na sequência do acidente a autora indemnizou a sucessora da falecida no valor de € 63 285,00, tendo, ainda, suportado despesas no valor de e indemnizado o proprietário do tractor no valor de € 20.893,00, e despesas no valor de € 235,07 com peritagens e averiguação do sinistro.
2 - Citado, o R. apresentou contestação, alegando não ter sido o único responsável pela produção do acidente e graves consequências que dele resultaram, uma vez que o tractor se encontrava equipado com um carregador frontal de garfos de grande dimensão, colocado na dianteira, à altura do vidro e tejadilho do veículo conduzido pelo contestante, o que não é permitido, tendo sido este equipamento a atingir a passageira e a provocar-lhe a morte.
Alegou ainda que apresentava um valor canabinoides mais de dez vezes inferior ao limite legal permitido, em medida não susceptível de influenciar a sua capacidade de condução, não se verificando por isso os pressupostos do direito de regresso.
3 - Realizou-se audiência prévia, tendo os autos prosseguido com a delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamação das partes.
4 - Realizou-se audiência de discussão e julgamento, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção procedente, condenando o R. a pagar à Autora a quantia de € 84.413,07, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4 %, desde ...03.2018 até efectivo e integral pagamento.
5 - Inconformado, o Réu veio apelar para o Tribunal da Relação de Évora, reclamando da decisão da matéria de facto e da decisão de direito, oferecendo alegações e formulando as seguintes conclusões:
A - Cumprindo o ónus a seu cargo, o recorrente especifica que os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados são os seguintes: (factos 11, 12, 15, 16, 17, 24 e 25);
B - Não existem no processo meios probatórios, nem foram produzidas provas em sede de audiência de julgamento, que permitissem julgar provados tais factos;
C - Relativamente a estes pontos da matéria de facto que se entende terem sido erradamente julgados, temos que todos se reconduzem à presença de canabinoides no sangue e à sua suposta influência na condução do recorrente, isto é, o alegado nexo causal entre a condução sob influência de canabinoides e a ocorrência do acidente;
D - Quer a decisão tomada acerca dos aludidos pontos da matéria de facto, quer a motivação que conduziu à decisão, estão francamente erradas, padecendo de um erro de base que determina a necessidade de alterar radicalmente a decisão proferida sobre a matéria de facto (o que, ao abrigo do artigo 662.º do CPC), se requer;
E - O erro de base consiste na pura e simples omissão e desconsideração da taxa de concentração de canabinoides apresentada pelo recorrente;
F - Em ponto algum da matéria de facto ou da respectiva motivação é referida a taxa ou concentração de canabinoides que o ora recorrente apresentava;
G - No caso em apreço a quantidade apresentada foi de 4,3 ng/ml) (relatório doc. junto à PI), a qual é manifestamente inferior ao limite permitido, que é de 50 ng/ml, medida a partir da qual se impõe a realização de exame de confirmação;
H - Se o ora recorrente tivesse sido submetido a rastreio prévio, nem sequer seria sujeito a exame de confirmação;
I - Apurou-se que a quantidade apresentada pelo R. era mais de 10 vezes inferior ao nível de concentração permitido de 50 ng/ml, pelo que, não se pode concluir pela efectiva susceptibilidade de influenciar a capacidade de condução do arguido;
J - Neste sentido, atente-se no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03/05/2018, proferido nos autos com o n.º 7907/16.1 T8SNT.L1-2:
Sumário: Para efeitos de direito de regresso da seguradora (artigo 27 - c do DL 291/2007), não é suficiente que um condutor que deu causa a um acidente acuse a presença no sangue de 2 ng/ml de canabinoides [ou seja, o Δ9-tetrahidrocanabinol (THC)] e 0,7 ng/ml do seu metabolito activo [que é o 11-hidroxi-Δ9-tetrahidrocanabinol (11-OH-THC)]…”.
K - A posição tomada pela sentença sob recurso é a de que seja qual for a quantidade de estupefaciente no organismo do condutor, tanto basta para que este tenha de reembolsar a seguradora daquilo que ela pagou ao lesado;
L - Da sentença sob recurso não consta uma única referência à quantidade de canabinoides que o ora recorrente apresentava - bastando-se com afirmações genéricas;
M - Só uma quantidade de estupefaciente que ultrapasse um limite legal pode ser relevante para que se possa considerar que um condutor acusou estupefacientes. - Também neste sentido o ac. do TRE de 07/01/2016, proc. 1050/13.2GCFAR.E1;
N - De tudo quanto vem exposto, importa extrair a necessária conclusão de que a decisão tomada na sentença recorrida relativamente aos aludidos pontos da matéria de facto provados (pontos 11, 12, 15, 16, 17, 24 e 25), relativos à condução sob influência de estupefacientes, está errada;
O - Impõem a sua alteração, a total ausência de prova relativamente à referida condução sob influência de estupefacientes - pois, como se viu, a sentença recorrida nem sequer refere qual a concentração de tais produtos que o recorrido apresentava e o facto constante dos autos, da taxa apresentada pelo ora recorrente ser de 4,3 ng/ml; conforme relatório do serviço de química e toxicologia forenses junto à PI. a fls. 21;
P - Manifestamente inferior ao limite permitido, o qual é de 50 ng/ml;
Q - Pelo que não era lícito à sentença recorrida dar por provados tais factos, donde decorre a necessidade dos mesmos serem considerados não provados;
R - Não se apurou pois qualquer nexo de causalidade entre a reduzidíssima quantidade de canabinoides apresentada pelo recorrente e a produção do acidente;
S - Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o artigo 81.º, n.º 5 do CE, norma esta que tem de ser conjugada com as normas que regulam os procedimentos a seguir em ordem a detectar o estado de influenciado por canabinoides e que determina que os resultados só podem ser considerados positivos quando os valores obtidos forem iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo V (artigo 16 da Portaria 902-B/2007 de 13/8), ou seja, de 50 ng/ml para o grupo dos canabinoides;
T - Pelo que foi feita uma errada interpretação e aplicação do mencionado n.º 5 do artigo 81.º do CE;
U - Para efeitos de direito de regresso da seguradora (artigo 27, alínea c) do DL 291/2007), não é suficiente que o condutor que deu causa a um acidente acuse a presença no sangue de 4,3 ng/ml de canabinoides, impõe-se, pelo contrário, que o valor obtido seja igual ou superior às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo V (artigo 16 da Portaria 902-B/2007 de 13/8), ou seja, de 50 ng/ml para o grupo dos canabinoides;
V - No caso em apreço, tal não sucedia, pelo que também o artigo 27.º, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei 291/2007 foi violado, na medida que que não se verificava o alegado pressuposto do direito de regresso - o consumo de estupefacientes, em valores iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo V (artigo 16 da Portaria 902-B/2007 de 13/8), ou seja, de 50 ng/ml para o grupo dos canabinoides.
Concluiu o R. pela procedência do recurso e, em consequência, pela sua absolvição do pedido.
6 - A Autora apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
7 - Foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora que teve o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, e na procedência do recurso, acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em revogar a sentença recorrida, absolvendo o R. AA do pedido contra ele formulado pela A. Zurich Insurance Plc - Sucursal em Portugal, S. A. [...]”.
8 - Inconformada, veio a Autora interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, vindo a ser proferido acórdão que decidiu conceder a revista, revogando o acórdão recorrido e repristinando a sentença da 1.ª instância.
9 - Inconformado com esta decisão, dela veio o R. interpor recurso para uniformização de jurisprudência, invocando contradição entre o acórdão proferido nos presentes autos e o acórdão do S.T.J. de 25-03-2021 - Processo 313/17.2T8AVR.P1.S1 (1.ª secção), transitado em julgado - disponível para consulta em www.dgsi.pt. 1
Propondo que o segmento uniformizador seja conforme ao acórdão fundamento.
10 - Foram a seguintes as conclusões das alegações de recurso:
a) O presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência vem interposto do Douto Acórdão do STJ datado de 13/09/2022 e transitado em julgado em 29/09/2022, proferido nos autos de Recurso de Revista supra identificados (acórdão a que infra de fará referência como ACORDÃO RECORRIDO ou IMPUGNADO), o qual revogou o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora e repristinou a sentença da 1.ª instância, que julgou procedente a acção.
b) O ACORDÃO RECORRIDO é impugnado por estar em contradição com outro Acórdão (ACÓRDÃO FUNDAMENTO) desse mesmo Tribunal, proferido no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
c) O ACÓRDÃO FUNDAMENTO do presente recurso para uniformização de jurisprudência é o Acórdão do STJ datado de 25-03-2021 - Processo: 313/17.2T8AVR.P1.S1 - 1.ª SECÇÃO - transitado em julgado - disponível para consulta em http://www.dgsi.pt - Doc. 1 e se dá por integralmente reproduzido.
d) Os acórdãos (FUNDAMENTO e RECORRIDO/IMPUGNADO) foram proferidos no âmbito da mesma legislação, designadamente: al. c), última parte, do n.º 1 do art. 27.º do DL n.º 291/2007, de 21-08, n.º 5 do art. 81.º e alínea m) do artigo 146.º do CE e legislação complementar, Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei 18/2007, de 17-05, e Portaria 902-A/2007, de 13-08;
e) A questão fundamental de direito a resolver (sobre a qual existe uma patente contradição entre Ac. Recorrido e Ac. Fundamento), consiste em saber se da factualidade provada resulta a verificação do pressuposto do direito de regresso peticionado previsto no artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec. Lei 291/2007, de 21-08, no respeitante ao facto de o condutor segurado ter acusado, aquando do acidente de viação em referência, consumo de estupefacientes bem como, qual das interpretações deve prevalecer relativamente à natureza da presunção do nexo de causalidade, ao estado de influenciado e ao limiar de relevância do consumo.
f) Pelo que, de harmonia com o disposto no artigo 688.º do CPC é admissível o Recurso para Uniformização de Jurisprudência, estando o recorrente em prazo para o efeito.
g) O ACÓRDÃO IMPUGNADO pronunciou-se no sentido de o “exame de confirmação ser feito em amostra de sangue e é positivo sempre que revele qualquer das substâncias referidas no quadro n.º 1 do anexo V (designadamente as do grupo de canabinoides, como é o caso) independentemente dos valores registados. Não se exige um qualquer valor mínimo, mínimo que também não consta do DL n.º 291/2007 nem do Código da Estrada. Não se estabelece, assim, para a responsabilização do condutor, qualquer “limiar de relevância” relativamente à quantidade de estupefacientes consumidos nem se exige a prova de que a quantidade apresentada pelo condutor seja susceptível de influenciar, efectivamente, a sua capacidade de condução. E se é assim, não pode o juiz fazer um juízo valorativo sobre a necessidade de qualquer mínimo relevante para que o condutor possa ser responsabilizado e a seguradora possa exercer o seu direito de regresso.”.
h) O ACÓRDÃO IMPUGNADO sumariou:
“1. Para efeitos do art. 27.º, n.º 1, alínea c) do RJORCA, à Seguradora cabe alegar e provar que, para além de ter dado culposamente causa ao acidente, o condutor acusava consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, independentemente das suas quantidades (ou valores registados);
2 - O condutor acusou o consumo de estupefacientes (canabinoides) se, após a ocorrência do acidente, em amostra de sangue que lhe foi colhida e enviada para exame pelo INML, acusou 0,8 ng/ml de TCH e ainda o THC-COOH de 4,3 ng/ml.”
i) Já o ACÓRDÃO FUNDAMENTO assume uma posição diametralmente oposta e que se corrobora na íntegra - consagrando a natureza da presunção do nexo de causalidade como sendo uma presunção iuris tantum, a necessidade de um limiar de relevância do resultado do teste ao consumo de estupefacientes, a necessidade de concluir pelo estado de influenciado.
j) Existe assim uma patente contradição sobre a mesma questão fundamental de direito, que importa dirimir no presente Recurso, tendo em vista a definição da controvérsia jurisprudencial em apreço.
k) A matéria julgada provada e não provada (tal como fixada no Douto Ac. da Relação de Évora), relevante para a apreciação do presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência é a seguinte:
Factos provados:
“…15. Após a ocorrência do acidente foi colhida amostra de sangue do R e enviada para a Delegação...do INML para a realização de exame para identificação de substâncias psicotrópicas no sangue e seus metabolitos, tendo acusado 4.3 ng/ml de THC-COOH, metabolito sem acção farmacológica cujo período de concentração se pode prolongar por vários dias após o consumo de canábis, e 0.8 ng/ml de THC.
16 - O R. conduzia desatento e alheado às características e condições da via na qual circulava e ao trânsito que se processava ao seu redor.
24 - O R. sabia que o consumo de canábis pode influenciar o exercício da condução.
26 - É do conhecimento comum que o consumo de Canábis importa a diminuição da aptidão para conduzir, com um substancial agravamento do risco de acidente (artigo 33.º da petição inicial).”
Factos não provados: “…
d) O R. conduzia com os reflexos e sentidos tolhidos pelo consumo de estupefacientes.
e) Em consequência da canábis os reflexos e discernimento do R encontravam-se diminuídos e afectados.
f) A canábis influenciou a condução do R.
g) O R. agiu de forma deliberada, livre e consciente, com acentuada falta de cautela, sabendo que ao iniciar a condução, nas circunstâncias em que o fez, punha em causa a segurança rodoviária, fazendo perigar a integridade física e a vida da pessoa que circulavam consigo e de todos os restantes utentes da via em que seguia.”
l) No ACÓRDÃO FUNDAMENTO, tendo por referência um caso idêntico ao dos Autos, entendeu-se que, “diferentemente do que sucede nos casos de alcoolemia em que se encontram legalmente estabelecidos quantitativos em função dos quais se considera verificada a condução sob a influência do álcool (art. 81.º, n.º 2, do CE), no caso de substâncias psicotrópicas a sua influência deverá ser determinada especificamente mediante relatório médico ou pericial, nos termos preconizados no n.º 5 do art. 81.º do CE e estabelecidos em legislação complementar, nomeadamente nos arts. 13.º, n.os 1 e 3, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei 18/2007, de 17-05, e conforme os procedimentos prescritos na Portaria 902-A/2007, de 13-08.”
E que:
“XI - Quando a decisão condenatória proferida na ação principal não contenha um juízo de imputação concretamente determinável do nexo de causalidade entre a evidência do consumo de substância psicotrópica e o ato de condução do segurado que originou o acidente, não permitindo saber em que termos se deve ter por verificado, objetivamente, aquele nexo de causalidade …”.
m) O Ac. Fundamento defende assim que “do artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 291/2007, de 21-08, decorre uma presunção iuris tantum do nexo de causalidade em referência, incumbindo ao condutor segurado, quando demandado em ação de regresso, o ónus da sua ilisão, ainda que não se mostre exigível que a influência da alcoolemia ou do consumo de substância psicotrópica seja a causa exclusiva da conduta causadora do acidente, devendo essa influência ser ponderada, para tais efeitos, à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação, como judiciosamente se equaciona no acórdão do STJ, de 06/04/2017, proferido no processo 1658/14.9 TBVLG.P1.S1…
n) O facto de constar dos factos provados que o condutor estava a conduzir sob a influência de estupefacientes quer apenas dizer, depois de 15/08/2007 (com a entrada em vigor da nova regulação da fiscalização da condução sob a influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas), que ele tinha estupefaciente no organismo.
o) Desde então (15/08/20207), a prova de que foi consumido estupefaciente em medida suficiente para não permitir a condução em condições de segurança, terá que ser feita ou por um exame médico que tenha procurado apurar um estado de influência e não a simples presença de estupefacientes, ou por um exame de confirmação que terá de revelar a presença de estupefaciente (activo: não servindo pois para o efeito o THC-COOH no caso do canábis) em quantidade suficiente para convencer o juiz, em conjunto com uma série de outros elementos que logica e necessariamente terão de ser também os que seriam obtidos pelo exame médico que fosse feito ao condutor nos termos do n.º 25 da Portaria 902-B/2007, de que tem uma suficiente base probatória para concluir que o condutor estava com efectivas condições diminuídas para o exercício da condução.
p) Importa ter presente que a Revista de que emanou o ACÓRDÃO IMPUGNADO, tinha por base uma matéria de facto julgada não provada, da qual se conclui que o R. não conduzia com os reflexos e sentido tolhidos pelo consumo de estupefacientes e que em consequência da canábis os reflexos e discernimento do R. não se encontravam diminuídos e afectados e que a canábis não influenciou a condução do R.
q) Decidir em sentido contrário ao que aponta esta matéria de facto não provada, põe em causa as necessidades de unidade, harmonia, simplicidade e coerência do sistema jurídico, que, sendo dirigido a cidadãos comuns, deve evitar contradições susceptíveis de o tornar incompreensível.
r) Para além de, ignorar de forma ostensiva e inadmissível, princípios estruturantes do nosso sistema jurídico, como sejam o da culpa e da proporcionalidade.
s) Ou seja, não está provado que o recorrido conduzisse sob influência de estupefacientes, que os seus reflexos estivessem diminuídos por tal consumo e que a canábis tivesse influenciado a condução.
t) Perante isto, desnecessário se torna abordar questões atinentes ao nexo causal entre acidente e estupefaciente.
u) A interpretação que o ACÓRDÃO IMPUGNADO faz do art. 27.º alínea c) do D.L 291/2007, é a de que, se exige apenas que o condutor acuse a presença de substâncias estupefacientes ou drogas, não importando a quantidade.
v) Com o devido respeito, é inaceitável esta pretensão - que, de resto, não encontra paralelo em qualquer jurisprudência, seja ela de Tribunais da Relação, seja desse Supremo Tribunal.
x) Supremo Tribunal onde a corrente prevalecente é precisamente a perfilhada pelo ACORDÃO FUNDAMENTO: Só uma quantidade de estupefaciente que ultrapasse um limite legal pode ser relevante para que se possa considerar que o réu acusou estupefacientes.
z) Foi o que bem decidiu o douto acórdão da RE revogado, onde a fls. 17 se refere: “…impõem os critérios de interpretação do artigo 9.º do CC, … que a seguradora faça prova de que se está perante condução ilícita, por se encontrar o condutor sob influência de substâncias proibidas, o que pressupõe que a presença dessas mesmas substâncias no organismo atinjam um limiar de relevância.”.
aa) Face ao actual quadro legal, se o ora recorrente tivesse sido sujeito a rastreio prévio, nem sequer seria sujeito a exame de confirmação.
bb) A verdade é que, os valores apresentados pelo arguido não seriam suficientes à luz dos valores indicados na Portaria 902-B/2007, de 13/04, para concluir pela existência de resultado positivo ao exame de rastreio.
cc) O estado de influenciado por substâncias psicotrópicas é o que é previsto no artigo 25.º da Portaria 902-B/2007, não bastando para o efeito o mero exame de confirmação da presença de substâncias psicotrópicas no sangue.
dd) Tendo em conta as normas que regem esta matéria - que revelam um juízo de valor normativo sobre o que é necessário para se considerar alguém sob a influência de estupefaciente, sem dúvida com base em conhecimentos científicos sobre essa influência - e a evolução verificada, pode dizer-se que aquele que acusa a presença de 0,8 nanogramas de canabinoides e seu metabolito positivo por mililitro de sangue não pode ser considerado num estado de influencia desse produto minimamente suficiente para se poder concluir que um acidente de viação ocorrido quando ele se encontrava a guiar se desenrolou e ficou a dever ao consumo da respectivo substância.
ee) Ao mesmo resultado se chegou no caso do ac. do TRC de 21/02/2018, proc. 1685/15.9T8CBR.C1, em que se dá como provado o seguinte: “XXIX - O falecido circulava apresentando substâncias canabinoides - Delta-9-tetrahidrocanabinol (taxa no sangue de 5 ng/ml) e 11-nor-9-carboxi delta-9-tetracanabinol (uma taxa no sangue de 12 ng/ml), indicando, respectivamente exposição num período variável entre 3 a 30 dias e uma concentração vestigial muito abaixo daquelas consideradas terapêuticas e não tóxicas, e muito inferior aquelas que podem também ser detectadas em caso de inalação passiva de marijuana - não sendo tal concentração de substâncias compatível com a produção de qualquer tipo de alterações psicoactivas”.
ff) A interpretação seguida pelos Acórdãos que se têm vindo a citar e principalmente pelo ACÓRDÃO FUNDAMENTO é que, tal como para o álcool, também quanto ao consumo de canabinoides, ele tem de ultrapassar um limiar de relevância.
gg) O douto acórdão da RE revogado pela Revista que deu origem ao ACÓRDÃO IMPUGNADO, deixa claro que “…quando os valores de canabinoides ultrapassem os 50 ng/ml previstos no quadro do anexo V, pois só a partir deste nível de concentração o resultado é considerado positivo…”.
hh) O ACÓRDÃO RECORRIDO violou as seguintes disposições legais:
- al. c), última parte, do n.º 1 do art. 27.º do DL n.º 291/2007, de 21-08, - n.º 5 do art. 81.º do CE e legislação complementar:
- arts. 10.º, 11.º, 12 e 13.º, n.os 1 e 3, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei 18/2007, de 17-05, - artigos 22.º, 23 e 25.º da Portaria 902-A/2007, de 13-04;
- alínea m) do artigo 146.º do CE.
ii) Que interpretou e aplicou segundo a tese de que não se estabelece, assim, para a responsabilização do condutor, qualquer “limiar de relevância” relativamente à quantidade de estupefacientes consumidos nem se exige a prova de que a quantidade apresentada pelo condutor seja susceptível de influenciar, efectivamente, a sua capacidade de condução.
jj) Face ao exposto, não pode senão concluir-se que o ACÓRDÃO RECORRIDO, não aplicou devidamente tais normas, tendo feito uma interpretação superficial e antiquada das mesmas, ao seguir uma posição que não é acolhida pela Jurisprudência maioritária, sem ter em consideração a ratio legis das normas e dos institutos jurídicos em causa, com claro prejuízo dos princípios da culpa e da proporcionalidade e ferindo as necessidades de unidade, harmonia, simplicidade e coerência do sistema jurídico, que o tornem inteligível ao cidadão médio.
kk) Em sentido diverso, deve prevalecer a tese oposta e sufragada pelo ACÓRDÃO FUNDAMENTO, no qual tais normas são interpretadas e aplicadas nos termos já citados, mas, que importa recordar:
“…VIII - Na ação de regresso instaurada pela seguradora contra o condutor segurado, fundada em condução sob influência de substâncias psicotrópicas, nos termos definidos na al. c), última parte, do n.º 1 do art. 27.º do DL n.º 291/2007, de 21-08, incumbe à autora alegar e provar que o réu, na qualidade de condutor segurado causador do acidente, acusou consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.
IX - Para tal importa ter presente que, nos termos do atual n.º 5 do art. 81.º do CE, se considera sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do mesmo código e de legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial.
X - Assim, diferentemente do que sucede nos casos de alcoolemia em que se encontram legalmente estabelecidos quantitativos em função dos quais se considera verificada a condução sob a influência do álcool (art. 81.º, n.º 2, do CE), no caso de substâncias psicotrópicas a sua influência deverá ser determinada especificamente mediante relatório médico ou pericial, nos termos preconizados no n.º 5 do art. 81.º do CE e estabelecidos em legislação complementar, nomeadamente nos arts. 13.º, n.os 1 e 3, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei 18/2007, de 17-05, e conforme os procedimentos prescritos na Portaria 902-B/2007, de 13-04.
XI - Quando a decisão condenatória proferida na ação principal não contenha um juízo de imputação concretamente determinável do nexo de causalidade entre a evidência do consumo de substância psicotrópica e o ato de condução do segurado que originou o acidente, não permitindo saber em que termos se deve ter por verificado, objetivamente, aquele nexo de causalidade, não se afigura lícito concluir que o ali decidido, sobre esse segmento, possa valer com autoridade de caso julgado como decisão indiscutível em relação ao objeto da ulterior ação de regresso.”.
ll) O mesmo é dizer que: sem um juízo de imputação concretamente determinável do nexo de causalidade entre a evidência do consumo de substância psicotrópica e o acto de condução do segurado que originou o acidente, não permitindo saber em que termos se deve ter por verificado, objetivamente, aquele nexo de causalidade, não é lícito julgar procedente o direito de regresso invocado.
mm) Trata-se uma vez mais da questão fundamental do LIMIAR DE RELEVÂNCIA ou do ESTADO DE INFLUENCIADO - tese que o ACÓRDÃO FUNDAMENTO acolhe - em correcta interpretação e aplicação das normas jurídicas em causa.
nn) Face à legislação supra citada e que se entende ter sido violada pelo ACÓRDÃO IMPUGNADO, se ora recorrido tivesse sido submetido a rastreio prévio, nem sequer seria sujeito a exame de confirmação.
oo) Só uma quantidade de estupefaciente que ultrapasse um limite legal pode ser relevante para que se possa considerar que um condutor acusou estupefacientes;
pp) Não se apurou, pois, qualquer nexo de causalidade entre a reduzidíssima quantidade de canabinoides apresentada pelo recorrente e a produção do acidente (factos não provados);
qq) Pelo que, não se poderia concluir, como não se concluiu, pelo estado de influenciado e sem este, inexiste assim qualquer nexo de causalidade entre a reduzidíssima quantidade de canabinoides apresentada pelo ora R. e a produção do acidente.
11 - A recorrente juntou acórdão fundamento, proferido em 25-03-2021 - Processo: 313/17.2T8AVR.P1.S1 - 1.ª SECÇÃO - transitado em julgado - disponível para consulta em www.dgsi.pt.
12 - A Autora recorrida não contra-alegou.
13 - Foi proferido despacho liminar pelo Relator, que concluiu “pelo preenchimento dos requisitos da admissibilidade do recurso, circunscrito apenas à questão de saber se, para efeitos do art. 27.º, n.º 1, alínea c) do DL n.º 291/2007 (RJORCA), se do exame pericial em amostra de sangue, efectuado ao abrigo do art. 81.º, n.º 5 do Código da Estrada e legislação complementar, e que identifique as substâncias psicotrópicas que figuram no quadro 1 do Anexo V da Portaria 902-B/2007 de 13.4, deve constar, ainda, a expressa consideração de que o condutor conduzia, no caso em apreço, sob o efeito de substâncias psicotrópicas que influenciavam negativamente a sua capacidade de condução”, admitindo, nos termos e para os efeitos dos art. 688.º, n.º 1 e 692.º, n.º 1 do CPC, o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, circunscrito, porém, à questão enunciada.
14 - O Digno Magistrado do Ministério Público, junto do Supremo Tribunal de Justiça, cumprido que foi o disposto no n.º 1 do art. 687.º ex vi artigo 695.º, do CPC, emitiu parecer no sentido da revogação do acórdão recorrido, sugerindo a seguinte formulação para o acórdão uniformizador de jurisprudência: “Para efeitos do direito de regresso estabelecido no artigo 27.º, n.º 1, alínea c) do DL n.º 291/2007 (RJORCA), do exame pericial em amostra de sangue, efetuado ao abrigo do artigo 81.º, n.º 5 do Código da Estrada e legislação complementar, que identifique as substâncias psicotrópicas que figuram no quadro 1 do Anexo V da Portaria 902-A/2007 de 13/04, deve constar, ainda, a expressa consideração de que o condutor conduzia, sob o efeito de substâncias psicotrópicas que influenciavam negativamente a sua capacidade de condução, exigindo-se a prova do nexo causal entre o acidente e a condução sob o efeito daquelas substâncias.”.
15 - Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II - Questões a decidir
As questões a decidir são as seguintes:
A - Da admissibilidade e objecto do presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência;
B - Dos pressupostos para o exercício do direito de regresso por seguradora automóvel quando fundado no consumo de substâncias psicotrópicas.
III - Fundamentação
A - Da admissibilidade e objecto do presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.
Sabido que o despacho do Relator não vincula o Pleno das Secções Cíveis, (cf. art. 692.º, n.º 4, do CPC) 2, cumpre desde já apreciar da admissibilidade do presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência:
Como escreve Abrantes Geraldes “a natureza extraordinária do recurso e o facto de visar a impugnação de um acórdão do Supremo impõe, naturalmente, que se deva ser rigoroso tanto no cumprimento dos requisitos materiais e formais, como na verificação desse cumprimento. A natureza “extraordinária” do recurso justifica que seja reservado para situação que inequivocamente preencham os pressupostos legais, com especial destaque para a verificação de uma verdadeira contradição jurídica essencial e para a demonstração do acórdão fundamento.” 3.
Dito isto, dispõe o art. 688.º, n.º 1, do CPC, que “as partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.”.
Da leitura deste dispositivo legal decorre que a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência depende da verificação dos seguintes requisitos:
a) Contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão do Supremo relativamente à mesma questão fundamental de direito;
b) Carácter essencial ou fundamental da questão de direito no tocante à qual se manifesta a divergência;
c) Identidade substantiva do quadro normativo em que se insere a questão;
d) Trânsito em julgado tanto do acórdão anterior como do acórdão recorrido, presumindo-se o trânsito do primeiro; e
e) O acórdão recorrido não estar em harmonia com jurisprudência anteriormente uniformizada pelo Supremo.
No que diz respeito às condições gerais de admissibilidade de recurso, cumpre assinalar que não se mostram verificados quaisquer obstáculos à admissibilidade do presente recurso (cf. art. 692.º do CPC), mostrando-se, ainda, verificados os requisitos mencionados nas als. d) e e) supra.
Quanto aos demais pressupostos, importa tecer os seguintes considerandos:
Como tem sido entendido de forma uniforme pelo STJ, a divergência de entendimento sobre a questão fundamental de direito deve assumir-se como essencial para a solução do caso concreto, configurando a ratio decidendi de ambos os acórdãos em confronto, não sendo de relevar a apreciação dispensada a questões meramente conexas, nem considerações que se assumam, na economia da decisão, como laterais (obiter dictum).
A este propósito o STJ tem vindo a entender, igualmente, que a admissibilidade do recurso extraordinário em análise pressupõe sempre a identidade do núcleo factual essencial4 considerado em ambas as decisões em confronto, exigindo-se, outrossim, que as decisões em confronto assumam posições diametralmente opostas.
Neste sentido, a mero título de exemplo, pronunciaram-se os Acórdãos do STJ de 06-10-2021 (Recurso para uniformização de jurisprudência 2622/19.7T8VNF-B.G1.S1-A), de 06-10-2020 (Recurso para uniformização de jurisprudência 765/16.8T8AVR.P1.S1-A), de 14-01-2020, (Recurso para Uniformização de Jurisprudência 5633/11.7TBVNG.P2-A.S1-A), de 28-03-2019 (Recurso para uniformização de jurisprudência 60/13.4TBCUB.E1.S1-A), de 29-01-2019 (Recurso para uniformização de jurisprudência 2303/01.8TVLSB.L2.S1-A) e de 10-01-2019 (Recurso para uniformização de jurisprudência 1522/13.9TBGMR.G1.S2-A).
Feito este breve enquadramento, cumpre transcrever os quadros fáctico considerados no âmbito dos arestos em confronto:
No acórdão recorrido foram julgados provados os seguintes factos:
“1. A Autora exerce devidamente autorizada a indústria de seguros em diversos ramos (artigo 1.º da petição inicial).
2 - No exercício da sua actividade, a Autora contratou com CC um contrato de seguro do ramo automóvel através do qual transferiu para si a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ...-ED-..., titulado pela Apólice n.º ...34 (artigo 2.º da petição inicial).
3 - No dia ... de ... de 2015, pelas 06:00 horas, ocorreu um acidente de viação na Rua de ..., em ..., frente ao n.º 15, que teve como intervenientes: o veículo seguro, ligeiro de passageiro, de matrícula ...-ED-..., conduzido pelo ora Réu, e o veículo tractor agrícola de matrícula ...-...-ZI, conduzido por BB (artºs 3.º e 4.º da petição inicial).
4 - No local onde ocorreu o acidente a via possui dois sentidos de trânsito, com uma faixa de rodagem em cada sentido (artigo 5.º da petição inicial).
5 - A via desenvolve-se em traçado recto e é ladeada de habitações e lojas de comércio (artigo 6.º da petição inicial).
6 - Sendo a velocidade limitada a 50 km/hora (artigo 7.º da petição inicial).
7 - No momento em que ocorreu o acidente o sol já estava a nascer e o tempo encontrava-se bom, existindo boas condições de visibilidade (artigo 8.º da petição inicial).
8 - Nestas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o ora Réu conduzia o veículo seguro de matrícula ED na Rua de..., no sentido Al.../A... (artigo 9.º da petição inicial).
9 - A uma velocidade de 60 km/H (artigo 10.º da petição inicial).
10 - O R. circulava desatento e alheado à circulação da via (artigo 11.º da petição inicial).
11 - Eliminado.
12 - O R. saiu da sua faixa de rodagem e invadiu a faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário ao seu.
13 - Indo embater no veículo tractor de matrícula ...-...-ZI, sob a sua frente e lateral direita (artigo 14.º da petição inicial).
14 - Dentro do veículo seguro circulava como passageira DD, que acabou por falecer na sequência das graves lesões que lhe advieram no acidente (artigo 15.º da petição inicial).
15 - Após a ocorrência do acidente foi colhida amostra de sangue do R. e enviada para a Delegação ... do INML para a realização de exame para identificação de substâncias psicotrópicas no sangue e seus metabolitos, tendo acusado 4.3 ng/ml de THC-COOH, metabolito sem acção farmacológica cujo período de concentração se pode prolongar por vários dias após o consumo de canábis, e 0.8 ng/ml de THC.
16 - O R. conduzia desatento e alheado às características e condições da via na qual circulava e ao trânsito que se processava ao seu redor.
17 - Eliminado.
18 - O R. agiu com manifesta falta de cuidado, zelo, precaução e prudência a que estava obrigado, não prestando a devida atenção às condições da via onde se deu o acidente em apreço nos autos e aos utentes da mesma (artigos 28.º e 29.º da petição inicial).
19 - Tendo em conta a existência do contrato de seguro subscrito com o veículo de matrícula ...-ED-..., referido no artigo 2.º desta petição, a ora A. estava obrigada a proceder ao pagamento dos danos originados em sequência do acidente supra descrito (artigo 20.º da petição inicial).
20 - No que respeita ao veículo tractor de matrícula ...-...-ZI a sua reparação foi orçada em cerca de 18.567,55€, pelo que foi considerado uma perda total (artigo 21.º da petição inicial).
21 - A A. liquidou a quantia de 14.683,00€ a título de perda total, a quantia de 5.841,00€ a título de imobilização e a quantia de 369,00€ a título de reembolso com despesas de reboque ao proprietário do veículo de matrícula ZI (artigo 22.º da petição inicial).
22 - Em relação à vítima mortal, a ora A. chegou a um entendimento com a sua mãe, única e universal herdeira, tendo liquidado a quantia de 9.000,00€ a título de danos morais, 1.285,00€ de reembolso de despesas de funeral e 53.000,00€ a título de direito à vida (artigo 23.º da petição inicial).
23 - A título de peritagens e despesas de averiguação, a A. pagou as quantias de €235,07 (54,77€ + 20,40€ + 159,90€) (artigo 24.º da petição inicial).
24 - O R. sabia que o consumo de canábis pode influenciar o exercício da condução.
25 - Eliminado.
26 - É do conhecimento comum que o consumo de Canábis importa a diminuição da aptidão para conduzir, com um substancial agravamento do risco de acidente (artigo 33.º da petição inicial).
27 - O veículo tractor agrícola de matrícula ...-...-ZI, conduzido por BB, encontrava-se equipado com um carregador frontal de garfos, de grande dimensão, que estava colocado na dianteira do veículo e aquando do embate estava posicionado à altura do vidro e tejadilho do carro conduzido pelo ora R (artigo 19.º da contestação).
Foram dados como não provados os seguintes factos:
“a) A Ré interpelou o Réu para pagamento em .../12/2016 e o mesmo não apresentou qualquer resposta, conforme missiva junta como doc. 17.
b) A velocidade a que o R. seguia não era excessiva para o local.
c) Pelo contrário, o R. seguia aproximadamente à velocidade máxima permitida para o local de 50 km/h.; tendo sido a essa velocidade que o velocímetro da viatura por si conduzida ficou imobilizado.
d) O R. conduzia com os reflexos e sentidos tolhidos pelo consumo de estupefacientes.
e) Em consequência da canábis os reflexos e discernimento do R encontravam-se diminuídos e afectados.
f) A canábis influenciou a condução do R.
g) O R. agiu de forma deliberada, livre e consciente, com acentuada falta de cautela, sabendo que ao iniciar a condução, nas circunstâncias em que o fez, punha em causa a segurança rodoviária, fazendo perigar a integridade física e a vida da pessoa que circulavam consigo e de todos os restantes utentes da via em que seguia.
h) Foi o garfo direito (atento o sentido de marcha do tractor), do referido carregador frontal, que, aquando do embate, entrou pelo vidro e tejadilho do lado direito do veículo conduzido pelo ora R. e atingiu a vítima DD, provocando as lesões crânio-meningoencefálicas e torácicas, que determinaram a sua morte (artigo 20.º da contestação).
i) O referido carregador frontal é uma ferramenta de grande perigosidade, como facilmente se compreende e pode constatar.
j) Não é permitida a circulação na via pública de um veículo equipado com tal ferramenta, muito menos quando aquela estava (como era o caso), colocada a uma altura susceptível de, em caso de colisão, embater directamente em qualquer outro veículo.
k) No caso em apreço, foi precisamente o que sucedeu, isto é, foi o garfo do carregador que perfurou o veículo conduzido pelo R. e foi atingir a passageira (vítima do acidente), provocando-lhe lesões que causaram a morte (artigo 23.º da contestação).
l) Quer isto dizer que, não fora o referido carregador e a posição do garfo relativamente ao solo e ao outro veículo e as consequências do acidente seriam outras - certamente menos graves.
m) Donde se impõe concluir que, a contribuição do R. para a produção do acidente (que existiu), não foi causa adequada das consequências do mesmo, no que diz respeito às lesões corporais sofridas pela vítima DD e que causaram morte desta.”
No acórdão fundamento foram considerados provados os seguintes factos:
1.1 - A Generali - Companhia de Seguros, S.P.A., sucursal em Portugal da Assicurazioni Generali, S.P.A., procedeu ao destaque dos bens afetos ao exercício da atividade seguradora por si exercida, incluindo todos os ativos e passivos e as posições contratuais da Sucursal relacionadas com o exercício da sua atividade em Portugal, designadamente a transferência da totalidade da carteira de seguros da Sucursal para a sociedade GENERALI - COMPANHIA DE SEGUROS, S. A., com sede na Rua ..., ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de …, sob o número único de matrícula e Pessoa Coletiva ...60, conforme escritura pública outorgada no dia 02 de Janeiro de 2015, lavrada a fls. cento e treze e ss. do livro de notas para escrituras diversas número trinta e dois-A, do Cartório Notarial da Dra. BB, cuja cópia parcial consta de fls. 15 a 21;
1.2 - Foi já promovido o pedido de inscrição a registo comercial dos factos titulados pela escritura pública identificada no ponto precedente e foi também promovido o pedido de inscrição a registo comercial, por forma on-line, do encerramento de representação permanente da Generali - Companhia de Seguros, S.P.A. - Sucursal em Portugal (fls. 23 a 30);
1.3 - Por efeito da cessão, a GENERALI - COMPANHIA DE SEGUROS, S. A., sucedeu, na totalidade, nos respetivos direitos e obrigações da Generali Companhia de Seguros, S.P.A.
1.4 - No exercício da sua atividade, a A. celebrou um contrato de seguro automóvel com o ora R., titulado pela Apólice n.º ...16, através do qual a responsabilidade civil emergente de sinistros ocorridos com o veículo seguro - veículo de marca..., modelo..., com a matrícula ...-...-MX, se encontrava transferida para a A. (fls. 31 a 33);
1.5 - No dia... de... de 2008, pelas 18h00, ocorreu um acidente de viação na Estrada Nacional n.º …(EN …), ao Km …, em ..., no concelho de ... e envolveu o veículo MX, conduzido pelo aqui R., e os peões CC e DD;
1.6 - Junto ao Km ... existe um cruzamento com a estrada que liga ... a ... e que, à data do sinistro, não tinha semáforos nem passagem assinalada para peões.
1.7 - Na zona onde ocorreu o acidente, a estrada apresenta uma reta e a faixa de rodagem tem 10,30 metros de largura, com duas vias de trânsito em cada sentido.
1.8 - No referido cruzamento e para o lado direito, atenta a posição dos peões, a reta tem um cumprimento superior a 150 metros.
1.9 - A velocidade máxima permitida no local era de 70 km/hora.
1.10 - O piso encontrava-se seco e em boas condições de conservação.
1.11 - Naquele dia e hora, o MX circulava na EN …no sentido .../....
1.12 - No dito cruzamento, caminhavam os peões CC e DD, a atravessar a EN ... da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do MX, puxando à mão um atrelado carregado com palha.
1.13 - Quando os peões estavam a terminar a travessia da estrada, encontrando-se já em cima da linha delimitadora da faixa de rodagem, do lado direito, atento o sentido de marcha do MX, surge o dito veículo.
1.14 - O qual circulava a uma velocidade não inferior a 116,04 km/hora.
1.15 - Ao avistar os peões, o condutor do MX travou, com o intuito de tentar evitar o embate,
1.16 - E ao ver que seria impossível imobilizar o veículo antes de chocar com aqueles, desviou o veículo para a direita, de forma a evitar colhê-los.
1.17 - Contudo, os dois peões, ao invés de pararem, aumentaram o passo em direção à berma da EN...,
1.18 - Razão pela qual o condutor do MX acabou por colhê-los.
1.19 - Tendo embatido com a frente lateral esquerda contra os peões e o atrelado puxado pelos mesmos, levando-os na sua frente.
1.20 - O R. iniciou a travagem cerca de 10 metros antes do local do acidente, quando avistou os peões, prolongando-se a mesma por uma extensão de 40 metros, com rastos deixados no pavimento, após o que o veículo galgou o talude da estrada e capotou,
1.21 - Imobilizando-se 11,5 metros depois, na hemifaixa de rodagem por onde seguia, junto à berma direita, depois de percorrer 50,30 metros.
1.22 - O R. conduzia o MX sob influência de substâncias psicotrópicas, designadamente sob o efeito de canabinoides, que havia consumido em momento anterior a ter iniciado a condução;
1.23 - No âmbito do processo que correu seus termos sob o n.º 465/11…, Juízo de Grande Instância Cível de... - J..., da Comarca do..., foi proferida sentença, transitada em julgado, onde foram considerados como provados (de entre outros) os factos constantes dos artigos 5.º a 22.º e se conclui que a causa do sinistro foi imputável ao R.: “[...] a causa deste fatídico e violento acidente foi a conduta negligente e até temerária do condutor do veículo MX, que imprimiu ao seu veículo uma velocidade superior a 116 km/h, conduzindo com os seus reflexos, visão e perceção de distâncias, necessariamente diminuídos em face das substâncias psicotrópicas que havia consumido antes de iniciar a condução, sendo este o único culpado na sua produção” (sentença cuja certidão consta de fls. 132 a 161);
1.24 - No âmbito do processo mencionado no artigo anterior, eram autores EE, CC e mulher, FF, herdeiros dos peões intervenientes do acidente e que faleceram em sua consequência, era ré a ora A. e interveniente acessório, AA, aqui R.;
1.25 - Por força do mesmo sinistro correu termos um processo-crime comum (tribunal coletivo) sob o n.º 319/08…, Juiz …da Instância Criminal... - Comarca..., tendo sido proferido acórdão em 13/04/2010, já transitado em julgado, o qual condenou o condutor do veículo ... pela prática de dois crimes de homicídio por negligente, p. e p. artigo 137.º, n.º 1 do C.P.P., na pena de 2 anos e 2 meses de prisão por cada um deles e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos de prisão, com pena suspensa. (facto n.º 119 da sentença constante de fls. 132 a 161).
1.26 - Da sentença mencionada em 23.º foram, ainda, dados como provados os seguintes factos:
“120. O segurado da ré conduzia sob a influência de substâncias psicotrópicas, designadamente sob o efeito de canabinóides, que havia consumido em momento anterior a ter iniciado a condução. (considerado facto conclusivo e, como tal, desconsiderado - vide infra)
121 - A presença de substâncias psicotrópicas no organismo do chamado influenciou a sua condução.”
1.27 - Da fundamentação da sentença, consta, para além do mais, o seguinte:
“[...] Resultou provado que o condutor do veículo conduzia sob a influência de substância psicotrópicas, designadamente sob o efeito de canabinóides, que havia consumido em momento anterior a ter iniciado a condução, substâncias que influenciaram a sua condução.
Conjugando todos o factos provados (e não provados), resulta evidente que a causa primária deste acidente, o facto que foi causal na sua produção, foi a velocidade manifestamente excessiva que o condutor do veículo MX imprimia ao seu veículo, que não lhe permitiu parar no espaço livre e visível à sua frente, vindo a embater nos peões já em cima da linha delimitadora da faixa de rodagem, do lado direito, atento o seu sentido de marcha, conjugado com o facto de só tardiamente [...] ter visto os peões, eventualmente em consequência do estado em que se encontrava derivado do consumo prévio de substâncias canabinóides que, de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade, afectam a visão, a percepção das distâncias e os reflexos. [...].
Em face destes factos, conclui-se que a causa deste fatídico e violento acidente foi a conduta negligente e até temerária do condutor do veículo MX, que imprimiu ao seu veículo uma velocidade superior a 116 km/h, conduzindo com os seus reflexos, visão e percepção de distâncias, necessariamente diminuídos em face de substâncias psicotrópicas que havia consumido antes de iniciar a condução, sendo este o único culpado na sua produção. [...]”
1.28 - Em consequência do sinistro dos autos e da sentença mencionada em 23.º, foi a A. condenada a liquidar quantias num total de € 234.932,15, conforme infra se discrimina:
a) A EE, a quantia de € 112.500,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora em dobro da taxa legal, contados desde a notificação da decisão até pagamento; e, ainda, a quantia de € 3.271,85, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora em dobro da taxa legal, contados desde a citação até pagamento;
b) A CC, a quantia de € 112.500,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora em dobro da taxa legal, contados desde a notificação da presente decisão até pagamento;
c) A EE e a CC, a quantia de € 6.660,30, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora em dobro da taxa legal, contados desde a citação até pagamento;
1.29 - Quantias que a R. pagou.
1.30 - O valor de canabinoides apresentada pelo R., no dia do acidente, foi de 14 ng/ml (fls. 39);
1.31 - A substância detetada corresponde ao “THC-COOH” (fls. 39);
1.32 - A substância detetada e referida no artigo anterior é um “metabolismo” [rectius metabolito] inativo do “THC” cujo período de eliminação pode-se prolongar por vários dias após a exposição/consumo da canábis. Considerando que se trata de um “metabolismo [rectius metabolito] farmacologicamente inativo, ou seja, sem efeito farmacológico, embora presente no sangue, não deve ser associado a alterações da aptidão física ou psíquica que perturbem a capacidade para a condução (fls. 222).”
*
Nos acórdãos em confronto discutiu-se a questão de direito relativa ao preenchimento da alínea c) do n.º 1 do art. 27.º do DL 291/2007, de 21-08, isto é, a questão de saber o que deve ser considerado como consumo de estupefacientes relevante para efeitos de direito de regresso.
No acórdão recorrido, considerou-se que “é irrelevante que a Relação tenha dado como não provado que “o réu conduzia com os reflexos e sentidos tolhidos pelo consumo de estupefacientes” (e que tal estivesse na origem da invasão da faixa de rodagem contrária ou da desatenção do condutor), que, “em consequência da canábis os reflexos e o discernimento do R. encontravam-se diminuídos e afectados” e que “a canábis influenciou a condução do réu”. Basta agora que a autora alegue e prove que o réu na qualidade de condutor segurado causador do acidente, acusou consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos. O que, no caso, logrou fazer, como resulta da matéria de facto: [...] o exame efectuado pelo IML não exige limites mínimos: os resultados são positivos desde que identifique a existência de substâncias psicotrópicas, como foi o caso: TCH de 0,8 ng/l, e ainda o THC-COOH de 4,3 ng/ml de THC-COOH. E, como é óbvio, a existência de substâncias psicotrópicas no sangue é sinónimo de que, à data do acidente, o réu acusava o consumo de estupefacientes.” (pp. 10-11 e 15-16 do acórdão recorrido).
No acórdão fundamento, considerou-se, ao invés, que “diferentemente do que sucede nos casos de alcoolemia em que se encontram legalmente estabelecidos quantitativos em função dos quais se considera verificada a condução sob a influência do álcool (artigo 81.º, n.º 2, do CE), no caso de substâncias psicotrópicas a sua influência deverá ser determinada especificamente mediante relatório médico ou pericial, nos termos preconizados no n.º 4 (atual n.º 5) do CE e estabelecidos em legislação complementar, nomeadamente no artigo 13.º, n.os 1 e 3, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei 18/2007, de 17-05, e conforme os procedimentos prescritos na Portaria 902-B/2007, de 13-04, acima transcritos.
Confrontam-se, assim, as seguintes posições:
- a do acórdão recorrido, nos termos da qual o direito de regresso pela seguradora com fundamento no consumo de substâncias estupefacientes depende apenas da demonstração de que, no momento do acidente, o condutor segurado acusava - no exame de sangue - a presença de substâncias estupefacientes; e
- a do acórdão-fundamento, nos termos da qual o exercício de tal direito depende da demonstração de um estado de influenciação que apenas pode ser realizada através da realização de exame médico e/ou pericial, realizado nos termos previstos no n.º 5 do art. 81.º do CE e estabelecidos em legislação complementar, nomeadamente nos arts. 13.º, n.os 1 e 3, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei 18/2007, de 17-05, e conforme os procedimentos prescritos na Portaria 902-B/2007, de 13-04.
Por outro lado, a resposta dada à questão de direito em análise nos arestos em confronto foi determinante para o resultado num e noutro caso alcançado, não restando dúvidas quanto à identidade do quadro normativo em que ambos os pleitos se instalam e em que a discussão se inscreve. De facto, em ambas as situações se encontrava em vigor o mesmo regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo DL 291/2007, de 21-08, sendo idêntica a questão de direito sujeita à apreciação deste Supremo Tribunal.
É também idêntico o quadro fáctico que esteve subjacente às decisões em confronto, já que em ambas as situações está em causa um acidente de viação após o qual foi realizado exame toxicológico ao condutor, que acusou o consumo de substâncias psicotrópicas, sem que do exame constasse a existência de um “estado de influenciação” suscetível de diminuir as capacidades do condutor para encetar o ato da condução.
Neste particular, cumpre chamar a atenção para o seguinte: analisada a factualidade considerada provada nos arestos em confronto, resulta que no âmbito do acórdão recorrido resultou não provado que o segurado conduzia sob a influência de substâncias psicotrópicas e que a sua condução foi influenciada pelo consumo (factos não provados d) a f)), tendo tal factualidade resultado provada no âmbito do acórdão fundamento (facto provado 120).
Tal diferença poderia levar à conclusão de que inexiste, in casu, a necessária identidade fáctica entre os acórdãos em confronto. Sucede que, tal identidade continua a verificar-se pelo simples motivo de que, no âmbito do acórdão fundamento, aquele facto n.º 120 foi desconsiderado por se ter entendido que o mesmo assumia uma natureza conclusiva. Ora, a total desconsideração de tal facto importa a conclusão de que o quadro factual efetivamente tido em consideração no âmbito do acórdão fundamento, coincide com a factualidade considerada no âmbito do acórdão recorrido, razão pela qual se verifica a indicada identidade.
Assim, no que especificamente diz respeito à questão de direito em relação à qual se verifica oposição e tendo por referência os factos convocados para a sua resolução, verifica-se o pressuposto da identidade do quadro fáctico-normativa subjacente às decisões em confronto.
Por fim, cumpre apenas assinalar que inexiste jurisprudência uniformizada de acordo com a qual o acórdão recorrido pudesse estar de acordo (cf. artigo 688.º, n.º 3, do CPC).
Nestes termos, é manifesta a contradição do acórdão recorrido, já transitado em julgado, com o acórdão do STJ anteriormente proferido no processo 313/17.2T8AVR.P1.S1, também já transitado em julgado, sobre a seguinte questão fundamental de direito:
Saber se, para efeitos do art. 27.º, n.º 1, alínea c) do DL n.º 291/2007 (RJORCA - REGIME JURÍDICO DO SISTEMA DE SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL), o direito de regresso pela seguradora com fundamento no consumo de substâncias estupefacientes depende apenas da demonstração de que, no momento do acidente, o condutor segurado acusava - no exame de sangue - a presença de substâncias estupefacientes, ou se, pelo contrário, o exercício de tal direito depende da demonstração de um estado de influenciação que apenas pode ser realizada através da realização de exame médico e/ou pericial, nos termos previstos no n.º 5 do art. 81.º do CE e estabelecidos em legislação complementar, nomeadamente nos arts. 13.º, n.os 1 e 3, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei 18/2007, de 17-05, e conforme os procedimentos prescritos na Portaria 902-B/2007, de 13-04.
B - Dos pressupostos para o exercício do direito de regresso por seguradora automóvel quando fundado no consumo de substâncias psicotrópicas:
O direito de regresso da seguradora: quadro legal e doutrinário relevante
Como ensina Antunes Varela (Obrigações em Geral, Vol. II, Reimpressão da 7.ª edição, Almedina, 1997, pp. 345-346) “o direito de regresso é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta”. Vaz Serra (RLJ, ano 110.º, pp. 339-340) defende, no mesmo sentido, que “o direito de regresso é um direito resultante de uma relação especial existente entre o seu titular e o devedor, não operando, portanto, ao contrário daquela (sub-rogação) uma transmissão do direito do credor para o autor da prestação”.
O direito de regresso da seguradora surge com a extinção da obrigação do lesante/segurado face ao lesado, gerando na esfera jurídica da seguradora um direito de crédito sobre o segurado e que se justifica sempre que se verifique um dos fundamentos previstos no art. 27.º, n.º 1, al. c), do DL 291/20007, de 21-08. Sobre esta matéria pronunciou-se, entre outros, Afonso Moreira Correia, Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil automóvel - Direito de Regresso da Seguradora, In II Congresso Nacional de Direito dos Seguros, Almedina, pp. 203 e ss.
Vigora, assim, actualmente, a este respeito, aplicável ao caso vertente, o art. 27.º, n.º 1, al. c), do DL 291/20007, de 21-08, que estabelece, sob a epígrafe “direito de regresso da empresa de seguros”, que “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: c) contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.”.
Esta opção legislativa justifica-se pelo entendimento de que, nas situações taxativas previstas no art. 27.º do DL 291/2007, de 21-08, existe um efetivo aumento do risco normal associado à circulação de veículos automóveis não contemplado no risco assumido pela seguradora e que foi determinante para a fixação do prémio a suportar pelo segurado.
Como explica Pedro Ribeiro e Silva (in “Regresso e Condução sob influência de Álcool na Actividade Seguradora”, III Congresso Nacional de Direitos dos Seguros, Almedina, p. 211), por referência à condução sob influência de álcool em termos que nos parecem transponíveis para o caso que nos ocupa, “porque se trata de um risco não abrangido pelo contrato de seguro, é justo que ele venha a ser suportado pelo condutor etilizado e não pela seguradora.”.
A relevância social do seguro de responsabilidade civil automóvel que assenta, sobretudo, na primazia do interesse dos lesados, justifica a secundarização dos interesses das seguradoras que, por força da norma acabada de citar, correm o risco da assunção de riscos acrescidos pelos segurados. É este risco acrescido que o direito de regresso visa atenuar, como uma forma de recuperar o equilíbrio contratual convencionado pelas partes e que assenta, tudo visto, numa proporção entre o risco normal assumido e o prémio estipulado entre as partes.
O direito de regresso resulta, assim, do compromisso entre o princípio da primazia dos interesses dos lesados e a necessária salvaguarda do equilíbrio contratual subjacente ao contrato de seguro.
Sobre o direito de regresso da seguradora, pronunciou-se Marisa Almeida Araújo (in O Direito de Regresso da Seguradora. Análise Crítica do Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça n.º 11/2015, In Lusíada Revista de Direita, Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2015, p. 159), afirmando que “o seguro obrigatório, como é o caso, tem sumariamente a função de socialização do risco, assegurando um ressarcimento efetivo da indemnização devida por acidente de viação, suportando a seguradora a indemnização devida à vítima e assegurando, que dentro dos limites normais do risco resultante de condução de veículo automóvel, o segurado não vê repercutir na sua esfera jurídica o esforço da significativa ablação patrimonial resultante da indemnização. De facto, o legislador assegurou-se que qualquer eventual direito de regresso, da seguradora sobre o seu segurado, se assumiria em situação taxativas legalmente previstas, in casu, no art. 19.º do aludido diploma. Da análise das diversas alíneas estamos em crer que o legislador ponderou situações que constituem causas de, pelo menos, potenciar o aumento de risco de acidentes de viação.”
Sobre esta temática, vejam-se ainda os escritos de Brandão Proença (Direito de regresso no caso de seguro automóvel obrigatório: a taxa de alcoolémia superior ao legalmente permitido e o problema de ‘causalidade’) e Mafalda Miranda Barbosa (Direito de regresso no caso de seguro automóvel obrigatório: a taxa de alcoolémia superior ao legalmente permitido e o problema da “causalidade”), ambos em Cadernos de direito privado, n.º 50, Abril/Junho de 2015.
É, assim, evidente que é o mencionado risco acrescido que justifica e fundamenta que “se o direito de regresso da seguradora não existe em relação a todo e qualquer condutor que provoque por culpa sua o acidente, e porque o direito de regresso se situa dentro do campo das sanções civis reparadoras, a lógica jurídica e o equilíbrio do sistema jurídico importam a adopção da conclusão segundo a qual não deve aquele direito ser estendido a consequências que não têm que ver com as circunstâncias especiais que o motivam. Isto quer dizer que o direito de regresso apenas deverá abranger os prejuízos que a seguradora suportou e que têm nexo causal com aquelas circunstâncias; não basta que resultem da condução” - realce nosso - acórdão do STJ, de 14-01-1997, proc. n.º 96A035.
Vejamos agora o direito de regresso no álcool e, em particular, no que aqui mais interessa, nas substâncias psicotrópicas:
No que diz respeito à condução com uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente admissível, o nosso legislador fixou com clareza os limites a partir dos quais se considera que o condutor conduz sob influência de álcool (art. 81.º do CE), assentando tal quantificação nos conhecimento científicos disponíveis, dos quais resulta que “quando o álcool atinge o cérebro, órgão abundantemente irrigado de sangue, afeta, progressivamente, as capacidades sensoriais, percetivas, cognitivas e motoras, incluindo o controlo muscular e o equilíbrio do corpo. O álcool interfere, assim, negativamente em todas as fases em que, academicamente, se divide a tarefa da condução. [...] O risco de envolvimento em acidente mortal aumenta rapidamente à medida que a concentração de álcool no sangue se torna mais elevada.
- 0,50g/l - o risco aumenta 2 vezes
- 0,80g/l - o risco aumenta 4 vezes
- 0,90g/l - o risco aumenta 5 vezes
- 1,20g/l - o risco aumenta 16 vezes” - Panfleto “O Álcool e a Condução” 5.
Estes conhecimentos científicos suportam a presunção que emerge do disposto no art. 81.º n.º 2 do CE, no sentido de que se considera que o condutor está sob a influência do álcool sempre que apresente uma taxa de álcool no sangue superior a 0,5 g/l.
Já no caso da condução sob influência das substâncias psicotrópicas, dispõe o art. 81.º n.º 5 do CE que “considera-se sob influência de substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou perícia”. (sublinhado nosso)
No que especificamente diz respeito aos critérios a observar quanto ao resultado dos exames de sangue a que se reporta a disposição acabada de citar, rege a Portaria 902-B/2007, de 13-04, cujos arts. 14.º a 24.º determinam quais os resultados que devem considerar-se positivos para efeitos da avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas.
Esta Portaria 902-B/2007, de 13-04, revogou a Portaria 1006/98, de 30-11, que determinava, no seu art. 32.º, que “são considerados influenciados por estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, para efeitos do disposto no artigo 147.º, alínea j), do Código da Estrada, os examinandos que no exame toxicológico efectuado pelo instituto de medicina legal apresentem concentrações de valor igual ou superior a qualquer dos constantes do quadro n.º 2 do anexo V”.
De facto, de acordo com o quadro n.º 2 do anexo V desta mesma portaria 1006/98 (entretanto revogada), consideravam-se sob influência de substâncias psicotrópicas os condutores que acusassem mais de 80 ng/ml de estupefacientes no sangue, por se entender, por apelo a critérios científicos, que esse nível de concentração estupefacientes no sangue permitia presumir - à semelhança do que ocorre nos casos de condução sob influência do álcool - uma capacidade diminuída para assumir o ato da condução automóvel.
Sucede que esse limite mínimo de estupefacientes no sangue deixou de estar de previsto com a aprovação da Portaria 902-B/2007, de 13-04, atualmente em vigor, que dispõe, tão simplesmente, sob a epígrafe “avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas” (Secção 1, Exame de Rastreio), que:
Art. 14.º:
“Nos exames de rastreio a efectuar, pelas entidades fiscalizadoras, em amostras de saliva, suor ou urina, o agente de autoridade deve utilizar os equipamentos aprovados e usar os procedimentos constantes do despacho de aprovação para cada equipamento.
Art. 15.º
Nos exames de rastreio na urina, realizado em estabelecimentos da rede pública de saúde, são utilizados imunoensaios apropriados, tendo em conta as substâncias e concentrações previstas no quadro n.º 2 do anexo v, devendo o agente de autoridade que conduzir o examinando entregar ao médico daquele estabelecimento um impresso do modelo do anexo iv.
Art. 16.º
Os exames previstos no número anterior devem ser executados, de acordo com os procedimentos do fabricante ou de validação interna, numa amostra de urina com o volume mínimo de 30 ml, sendo os resultados considerados positivos quando os valores obtidos forem iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo v.
[...]
22.º O exame de confirmação da presença de substâncias psicotrópicas no sangue destina-se a identificar a substância ou substâncias e ou seus metabolitos que, em exame de rastreio, apresentaram resultados positivos.
23.º Considera-se que o exame de confirmação é positivo sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas no quadro n.º 1 do anexo V ou de outra substância ou produto, com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor com segurança.” - realce nosso.
O quadro 2 do anexo v, que é o seguinte:
VALORES DE CONCENTRAÇÃO PARA EXAME DE RASTREIO NA URINA
Ora, tal como resulta do art. 15.º da Portaria 902-B/2007, de 13-04 (que revogou a Portaria 1006/98, de 30 de Novembro), os valores consignados no Quadro 2 para exames de rastreio são valores reportados apenas para a urina, estando na Portaria também fixados, no art. 16.º supra transcrito, os requisitos a que devem obedecer os analisadores quantitativos, o modo como se deve proceder à recolha, acondicionamento e expedição das amostras biológicas destinadas às análises laboratoriais, os procedimentos a aplicar na realização das referidas análises e os tipos de exames médicos a efectuar para detecção dos estados de influenciado por álcool ou por substâncias psicotrópicas.
Já quanto aos exames de rastreio no sangue, determina o art. 17.º da Portaria vigente, que o mesmo é “realizado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P., são utilizados imunoensaios apropriados, tendo em conta as substâncias previstas no quadro n.º 1 do anexo v”, que se expõe:
[...]
A relevância do que acaba de se expor prende-se com a circunstância de que o rastreio de urina positivo não é sinónimo de confirmação positiva, como tal não traduzindo necessariamente estado de influenciação, impondo-se sempre para que se alcance um resultado positivo e para que se possa concluir existir tal estado de influenciação a realização de exames de confirmação (de sangue).
Nos termos do art. 22.º da Portaria 902-B/2007, de 13-04, “o exame de confirmação da presença de substâncias psicotrópicas no sangue destina-se a identificar a substância ou substâncias e ou seus metabolitos que, em exame de rastreio, apresentaram resultados positivos”, prescrevendo o art. 23.º que “Considera-se que o exame de confirmação é positivo sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas no quadro n.º 1 do anexo V ou de outra substância ou produto, com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor com segurança.”.
Tenha-se presente que o exame médico de confirmação se reveste de manifesta complexidade, tal como resulta do art. 25.º da Portaria 902-B/2007, abrangendo diversos pontos dentro de cada um dos parâmetros de análise previstos, desde a observação geral, estado mensal, provas de equilíbrio, coordenação dos movimentos, provas oculares, reflexos, sensibilidade, quaisquer outros dados que possam ter interesse para comprovar o estado do observado, e declarações do observado.
Um exame complexo, a realizar numa delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P., que após a respectiva conclusão, deverá preencher o relatório do modelo do anexo VI e enviar o original à entidade fiscalizadora requisitante, no prazo máximo de 30 dias a contar da data da recepção da adequada e efectiva solicitação dos exames, o duplicado à ANSR e arquivar o triplicado (art. 24.º).
Ao que acresce que, concluído o exame de confirmação realizado em tais termos, o médico deve preencher, em triplicado, o relatório do exame do modelo do anexo VII, colocar a sua vinheta de identificação profissional e mandar proceder de acordo com o disposto no n.º 13.º (“O original do impresso referido no número anterior, com carimbo do estabelecimento de saúde, deve ser enviado ao departamento da autoridade fiscalizadora que solicitou o exame, o duplicado é entregue ao examinado e o triplicado é arquivado naquele estabelecimento”).
Este procedimento pressupõe, como é cristalino, conhecimentos médicos não acessíveis à generalidade dos cidadãos e ao dispor apenas de pessoas com formação específica nesta matéria, sempre no domínio da medicina.
Enfim, um regime ou sistema que muitas vezes, em face da urgência da realização do exame médico, não se mostra exequível, bastando, para tanto, pensar em localidades mais remotas em que o acidente possa ocorrer, desprovidas de serviços de socorros de proximidade e de estruturas médicas e/ou hospitalares que permitam a realização do exame de confirmação, nos termos previstos pelo legislador, os quais, como vimos, assumem especial complexidade.
Assim, à luz das normas atualmente em vigor, encontra-se apenas previsto o limite a partir do qual o exame de urina deve considerar-se positivo, deixando de existir qualquer menção ao valor mínimo de concentração de substâncias psicotrópicas exigível para que se considere o exame de sangue positivo, sendo este o único relevante como exame de confirmação, a realizar nos termos do já mencionado art. 81.º, n.º 5, do CE.
Vejamos ainda como é tratada esta questão nos ordenamentos dos outros Estados-Membros da União Europeia.
A Directiva 2011/82/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25-10-2011, que visa facilitar o intercâmbio transfronteiriço de informações sobre infrações às regras de trânsito relacionadas com a segurança rodoviária, definiu “Condução sob a influência de substâncias psicotrópicas”, a condução sob efeito de substâncias psicotrópicas ou de outras substâncias de efeito semelhante, tal como definida na legislação do Estado-Membro da infração.” - realce nosso.
Neste contexto, as soluções encontradas pelos diversos Estados-Membros são díspares, alguns optando pela não fixação de limite mínimo (Áustria, Croácia, Chipre, Estónia, Finlândia, França, Hungria, Itália, Letónia, Lituânia, Malta, Holanda, Polónia, Portugal, Roménia, Eslováquia, Espanha e Suécia) e outros estabelecendo limites mínimos a partir dos quais a condução de veículos é considerada ilícita (Bélgica, República Checa, Dinamarca, Alemanha, Irlanda, Luxemburgo, Noruega e Reino Unido) 6.
Na nota explicativa à informação disponibilizada pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA), consta que “em geral, os países podem operar políticas de “tolerância zero”, nas quais qualquer vestígio de droga encontrado é penalizado, independentemente do efeito sobre o motorista; ou “influenciação”, quando os motoristas serão punidos apenas se suas habilidades de direção forem obviamente afetadas. Tal se deve à falta de acordo científico até agora verificado, sobre quais níveis de concentração da droga no corpo podem apresentar comprometimento, e à falta de equipamento adequado para testes na estrada. À medida que a ciência começou a convergir para níveis aproximados de influenciação, as leis começaram a especificar os níveis de drogas no sangue acima dos quais um motorista será considerado culpado, mas estes ainda podem se encaixar na tipologia existente; um limite baixo pode ser considerado “tolerância zero”, enquanto um limite mais alto pode ser considerado “influenciado”.” - realce nosso. (tradução livre)
Como explica o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência “Os legisladores nacionais consideram vários fatores ao abordar a direção de drogas, como a disponibilidade de testes de drogas práticos e confiáveis, o impacto das drogas e da direção na segurança pública e as atitudes dos países em relação ao consumo de drogas ilícitas. No entanto, a lei deve ser aplicável e credível. Não é fácil provar cientificamente que uma pessoa estava sob influência no momento da condução, ou seja, que suas habilidades foram afetadas. Deixar um motorista impune após a deteção de um baixo nível de drogas ilícitas pode parecer tolerar o uso dessas drogas. Mas penalizar um motorista independentemente do nível de drogas detetadas (a abordagem de “tolerância zero”) significa que pode não haver ameaça à segurança pública, pois alguns metabolitos podem ser detetados na urina por dias ou até semanas após a ingestão da droga.
Isso resultou em abordagens bastante diferentes em toda a Europa, segundo as quais a legislação nacional pode separar ou combinar os objetivos de segurança no trânsito e controle de drogas ilícitas. Por exemplo, em alguns países, como a Finlândia, motoristas encontrados com vestígios de drogas ilícitas nos seus fluidos corporais podem ser processados por consumo de drogas ilícitas. Noutros países, como a Bélgica e o Reino Unido, os resultados dos testes de drogas realizados de acordo com as leis de trânsito não podem ser usados para nenhuma outra acusação criminal. Além disso, há a questão da interpretação; embora uma lei possa definir a ofensa como um motorista sob influência, isso pode ser interpretado como qualquer vestígio de uma substância no sangue ou mesmo na urina. Finalmente, algumas leis preveem que um motorista seja prejudicado, enquanto outras podem simplesmente mencionar estar sob a influência - esta última cláusula poderia teoricamente justificar a punição de uma pessoa que tomou uma substância controlada, como um anticonvulsivante, para ficar bem suficiente para conduzir um veículo. [...]
A maioria dos países proíbe a condução sob a influência de qualquer substância. No entanto, alguns países referem uma lista de substâncias que os motoristas não podem usar, o que pode excluir algumas substâncias psicoativas, como medicamentos ou novas substâncias psicoativas que ainda não estão sob controlo. Um número crescente de países tem um sistema de dois níveis, proibindo o comprometimento por qualquer droga, mas também estabelecendo limites máximos no sangue para certas substâncias, que podem ser definidos próximos aos níveis de detecção ou perto dos níveis de comprometimento. As leis que controlam os limites de medicamentos no sangue são algumas vezes conhecidas como leis “per se”; um motorista que tiver um nível de droga no sangue acima do permitido estará automaticamente a infringir a lei, sem exigir qualquer prova de embriaguez. Na Noruega, dois limites podem ser especificados, reconhecendo níveis mais baixos e mais altos de intoxicação equivalentes aos limites nacionais de álcool no sangue.”.
Veja-se que, por exemplo, no REINO UNIDO, foram legalmente definidos esses limites mínimos de THC, com suporte na literatura científica, abrangendo muito maior amplitude de substâncias psicotrópicas7 do que a Lei portuguesa, sendo certo que, por cá, as mesmas se encontram de alguma forma camufladas no art. 23.º da Portaria 902-B/2007, de 13-04 (…ou de outra substância ou produto, com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para exercício da condução de veículo a motor com segurança”).
Em face do exposto, parece-nos correcto afirmar que, à medida que os conhecimentos científicos se vão desenvolvendo, os regimes legais vão adoptando o sistema de parametrização dos níveis de estupefacientes no sangue, especificando as quantidades mínimas que, resultantes de exames laboratoriais, possam evidenciar, como elevado grau de probabilidade, que o condutor conduzia sob a influência de substâncias psicotrópicas.
No caso de Portugal, não foi, ou ainda não foi, essa a solução propugnada, tendo o legislador optado por não fixar qualquer limite mínimo, fazendo depender a demonstração de um quadro de “influenciação” da realização de exame de sangue e de relatório médico e/ou pericial que ateste o tal estado de influenciação, tal como determina o art. 81.º, n.º 5, do CE e legislação complementar acima descrita.
O caso especial do ∆9-Tetrahidrocanabinol (THC)
Às dificuldades resultantes da não fixação de um limite mínimo a partir do qual se pode afirmar um “estado de influenciação”, acresce a circunstância, relatada pela doutrina científica especializada na matéria, de algumas substâncias psicotrópicas detectáveis não terem qualquer influência no comportamento humano.
Referimo-nos, em particular, ao caso do ∆9-Tetrahidrocanabinol (THC), substância cuja capacidade de influenciar o comportamento humano assume importância central no caso dos autos, porquanto fora detectada em ambos os casos.
Como se explica no estudo intitulado “Driving Under the Influence of Drugs, Alcohol and Medicines in Europe - findings from the DRUID project” 8, relativamente à substância THC: “…algumas substâncias são encontradas em concentrações muito mais altas no fluido oral do que no sangue, considerando que no caso de outros compostos o oposto é verdadeiro. Por exemplo, um dos principais metabolitos da cannabis, THC-COOH, não é detetável no fluido oral quando é detetável no sangue, porque as suas concentrações no fluido oral são extremamente baixas (pg/ml); assim, um resultado de teste de fluido oral seria registado como negativo, quando um exame de sangue do mesmo motorista seria registado como positivo. Por esse motivo em particular, o THC-COOH foi excluído da lista final de testes recomendados substâncias.”. (realce nosso/tradução livre).
A esta conclusão chegou, igualmente, o estudo intitulado “Drug use, impaired driving and traffic accidents” 9, onde é referido que “Ao estudar os riscos associados ao uso de cannabis, os resultados podem ser enganosos se as amostras forem analisadas para THC-COOH, pois este é um metabolito inativo da cannabis que pode estar presente no sangue ou na urina, mesmo que o sujeito não se encontre influenciado. Melhor correlação com comprometimento pode ser alcançado testando o THC, o princípio ativo da cannabis (Verstraete, 2004).”. (tradução livre)
Como resulta do estudo “Canábis e Condução: perguntas e respostas para a elaboração de políticas, elaborado pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência” 10, as variáveis a considerar na interpretação do exame de sangue são múltiplas; assim, “Condutor com teste de canábis positivo: alguém que conduz um veículo a motor com níveis detetáveis de THC no sangue, na saliva ou na urina (dependendo da jurisdição). A sua condução pode não ser necessariamente prejudicada pela canábis, por exemplo, se o nível de THC refletir um consumo de canábis que ocorreu no passado mas ainda é detetável. [...]
A avaliação dos riscos inerentes à condução com capacidade diminuída por consumo de canábis é ainda dificultada pelo facto de vários fatores poderem determinar se um dado nível de consumo de canábis está associado a uma diminuição da capacidade de condução. Entre esses fatores inclui-se o método de consumo (inalação ou ingestão) …, a circunstância de o consumidor ser ou não um consumidor habitual e o facto de a canábis ser consumida em conjunto com outras substâncias, como o álcool (Wolff & Johnston, 2014) [...]
No entanto, um grande desafio na interpretação dos estudos de caso-controlo e de culpabilidade é o de que a presença de THC no sangue ou na urina (medida algumas horas após um acidente) não significa necessariamente que o condutor apresentasse capacidade diminuída devido ao efeito de canábis no momento do acidente (Beirness, 2017; Compton, 2017a) (ver perguntas "Qual a utilidade dos testes biológicos de THC à saliva e ao sangue?" e "Que níveis de THC no sangue indicam uma diminuição das capacidades?" nas páginas 9 e 10). Apenas indica que houve um consumo de canábis no passado recente por alguém que consome canábis ocasionalmente, ou há mais tempo, se a pessoa consumir canábis regularmente. [...]
O risco acrescido de acidente é menor para quem conduz com capacidade diminuída devido ao efeito de canábis do que para quem conduz com capacidade diminuída devido ao efeito do álcool (Beirness, 2017; Compton, 2017a). Uma taxa de álcool no sangue (TAS) entre 0,08 % e 0,12 %, por exemplo, aumenta o risco de acidente 5 a 30 vezes (EMCDDA, 2012). [...]
No entanto, os resultados da investigação sobre os riscos associados à canábis e à condução devem ser interpretados com cautela, pelas seguintes razões: 1. Os efeitos pouco significativos do consumo de canábis no comportamento e na coordenação em laboratório podem não ser relevantes para a condução na estrada. 2. Os testes realizados em condutores feridos e mortos podem subestimar o risco, uma vez que detetam concentrações de THC no sangue no momento do teste e não no momento do acidente, que pode ter ocorrido 1 a 2 horas antes. 3. A presença de baixas concentrações de THC no sangue não implica automaticamente o consumo recente de canábis, podendo também ser resultado de um consumo no passado para alguém que consome canábis regularmente e que, assim, pode não ter sofrido diminuição das capacidades. 4. Geralmente, não é possível saber com certeza se a presença de THC indica ter sido esse o principal motivo do acidente.”
Ainda a propósito da interpretação de exames de sangue, Ricardo Dinis Oliveira (in Procedimentos Técnicos, Éticos e Legais da Competência do Médico No Cumprimento da Lei da Fiscalização da Condução Rodoviária sob Influência do Álcool e Substâncias Psicotrópicas, p. 106811), explicou que “Relativamente aos canabinoides a Lei define que se deva procurar o ∆9-Tetrahidrocanabinol (THC) e os seus metabolitos 11-hidroxi-∆9-Tetrahidrocanabinol (THC-OH) e 11-nor-9-carboxy-∆9-Tetrahidrocanabinol (THC-COOH). Enquanto o THC e o THC-OH são activos do ponto de vista farmacológico, o THC-COOH não é”. - realce nosso,
De facto, está cientificamente demonstrado que a substância THC-COOH não é um activo do ponto de vista farmacológico, podendo considerar-se um mero “placebo”, o que quer dizer que da sua detecção operada em exames de urina ou de sangue, seja em que quantidade for, não pode retirar-se que a condução automóvel era feita sob influência de estupefacientes.
Ricardo Dinis continua a sua exposição referindo que “No entanto, o metabolito carboxilado é o que apresenta maior tempo de semi-vida, ou seja, é o que pode ser mais frequentemente detectado. Isto significa que a sua detecção, apesar de frequente e perfeitamente consagrada na Lei, não deverá ser tida em conta para avaliação do estado de influência, pela simples razão que não tem afinidade para os receptores dos canabinóides.” (realce nosso) - (Ob. Cit. p. 1068).
A este respeito, no trabalho científico Driving under the Influence of Psychotropic Substances: A Technical Interpretation, Ricardo Jorge Dinis-Oliveira é ainda mais claro, ensinando o seguinte: “Os canabinoides são as substâncias ilícitas mais prevalentes entre os condutores influenciados, e seu efeito é dependente da dose. Em particular, os canabinoides aumentam o risco de acidentes, causam sonolência, euforia ou disforia, alterações na memória, percepção, estabilidade, capacidade de tomada de decisão, tempo de raciocínio e reação, sinestesia, pensamentos desorganizados, confusão, paranoia, agitação, entre outros efeitos no sistema nervoso central [...]”.12
Prossegue o referido autor, afirmando que “A lei define ∆ 9 -tetrahidrocanabinol (∆ 9-THC) e seus metabolitos 11-hidroxi-∆ 9 -tetrahidrocanabinol (THC-OH) e 11-nor-9-carboxi-∆ 9 -tetrahidrocanabinol (THC-COOH) como substâncias ilícitas.
Enquanto ∆ 9-THC e THC-OH são farmacologicamente ativos (ou seja, podem influenciar as habilidades cognitivas para dirigir na estrada), o THC-COOH não é, e, como tal, não influencia a função.
THC-COOH tem uma semi-vida longa (t1/2) e uma grande janela de detecção, muito além da manifestação de efeitos agudos [Grotenhermen, F. Pharmacokinetics and Pharmacodynamics of Cannabinoids. Clin. Pharmacokinet. 2003, 42, 327-360].
Na verdade, em fumadores ocasionais de cannabis, o THC-COOH foi encontrado até 7 dias após a último uso [...] Portanto, o THC-COOH é o composto deste grupo que é mais frequentemente detectado.
No entanto, embora possa ser detectado, a sua presença não deve ser utilizada para a avaliação do estado de influência, porque não tem afinidade para os receptores dos canabinoides e, portanto, não tem efeito psicoativo reconhecido [Dinis-Oliveira, R.J. Metabolomics of ∆9-tetrahydrocannabinol: Implications in toxicity. Drug Metab. Rev. 2016, 48, 80-87].
Por outras palavras, pode-se dizer que um controlo tem concentrações de 18 ng/mLTHC-COOH ou 18 ng/mL ∆ 9-THC no sangue.
No entanto, deve ser esclarecido que a positividade do THC-COOH, sem dúvida significa que o condutor consumiu ∆9-THC.
Tolerância a ∆9-THC pode ser desenvolvido, o que significa que para concentrações iguais de ∆9-THC, os consumidores regulares podem ser menos influenciados do que os consumidores ocasionais [...]
A influência pode ocorrer 1 hora após fumar ou dentro de 1 a 2 horas após a administração oral [...]
Alguns estudos propuseram interpretações baseadas em concentrações sanguíneas abaixo listadas, porque o estado de influência depende em grande parte das concentrações biológicas [...]
Nos consumidores ocasionais e no caso de consumo recente, concentrações de THC de 2-5 ng/mL geralmente estão associados a estados de influência [...]
Concentrações superiores a 5 ng/mL são equivalentes a um risco de acidente aproximadamente igual à taxa de álcool de 1,5 g/L [...]
Concentrações de 7-10 ng/mL ∆9-THC no soro (3,5-5 ng/mL no sangue total) causa um estado de influência semelhante ao BAC de 0,5 g/L [...]
O estado de influência aumenta 2,4, 2,5 e 3,2 para concentrações de ∆9-THC no sangue de 3,0-4,8, 4,9-10,1 e >10,2 ng/mL, respectivamente [...]
Valores abaixo de 2 ng/mL indicam ausência de influência [...]
Para concentrações superiores a 2 ng/mL, foi observado prejuízo no desempenho de alguns, mas não todas as tarefas relacionadas com a condução [ibidem].
Para concentrações de 2-5 ng/mL ∆9-THC, 71 % dos indivíduos influenciados; para 5-10 ng/mL, 75-90 % dos indivíduos são influenciados e para concentrações superiores a 30 ng/mL, 100 % são influenciados [14].
Em alguns países, como o Reino Unido, foram definidos limites de 2 ng/L para ∆9-THC, de forma a não penalizar acidentalmente os condutores expostos ao consumo passivo e devido às dificuldades analíticas inerentes associadas à aplicação de um limite de 0,0000 µg/L.”
Ricardo Dinis esclarece, assim, que “Do ponto de vista legal e em geral suportado por questões de natureza técnico-científica, o rastreio não atesta estados de influência…”.
Adiantando também que “do ponto de vista científico não existe uma explicação cabal para incluir esta substância (THC-COOH) nas análises. Na verdade, até acarreta confusão. A única utilidade é saber que a pessoa é à partida consumidora de substâncias ilícitas, apesar de não estar a conduzir sob influência quando só esta substância está presente. A Lei tenta punir estados de influência, mas depois solicita a análise de substâncias inativas que não influenciam à luz dos conhecimentos atuais” - realce e sublinhado nosso.
Entende este cientista e professor que “em geral o sangue dá-nos com elevado grau de certeza estados de influência, mas apenas para substâncias ativas”. A esta conclusão chegou, igualmente, o estudo intitulado “Drug use, impaired driving and traffic accidents” 13, “Ao estudar os riscos associados ao uso de cannabis, os resultados podem ser enganosos se as amostras forem analisadas para THC-COOH, pois este é um metabólito inativo da cannabis que pode estar presente no sangue ou na urina, mesmo que o sujeito não se encontre influenciado. Melhor correlação com comprometimento pode ser alcançado testando o THC, o princípio ativo da cannabis (Verstraete, 2004).”
Maria Teixeira refere, também14, a este propósito, que “A presença de Δ9-THC ou de Δ9-THC-OH em sangue serão determinantes para a afirmação de consumo recente e de estado de influenciado, uma vez que estes são os compostos activos.” - realce e sublinhado nosso,
Sobre a existência científica de algum limiar mensurável (mínimo) de canabinóide para o exame de sangue, de onde possa extrair-se o estado de influenciação, Ricardo Dinis pronunciou-se no sentido de que “com certeza não, mas em geral tudo aponta para que 2 ng/mL seja um valor mais ou menos consensual para THC. Ou seja, será uma boa linha de corte para distinguir e a literatura suporta esta ideia e o que tenho vindo a estudar. Nesta área temos cada vez mais certezas quando começamos a ter experiência e percebemos que caso após caso tudo se vai confirmando.”.
Resulta, assim, que, no específico caso do THC, a interpretação do exame científico de sangue se mostra essencial, sendo manifesto que nem todas as substâncias relacionadas com a referida substância estupefaciente se mostram passíveis, independentemente do valor detectado, de criar um “estado de influenciação”, havendo que proceder a uma interpretação do exame de sangue de acordo com o conhecimento científico existente nesta matéria.
Aqui chegados, permitimo-nos concluir, em face dos elementos supra referenciados, que inexiste, ainda, na nossa comunidade científica e, por consequência, na nossa Ordem Jurídica, consenso quanto ao valor ou quantidade de substâncias psicotrópicas no sangue a partir do qual é possível afirmar ou presumir a verificação de um “estado de influenciação”, sendo que, como vimos, à luz dos conhecimentos científicos disponíveis nesta matéria, nem sempre a presença de tais substâncias psicotrópicas no sangue do condutor quer significar um consumo recente de produtos estupefacientes ou sequer um consumo relevante para efeitos de criação do mencionado estado de influenciação.
Ora, se é certo que da Portaria em vigor (Portaria 902-B/2007, de 13-08) resulta o limite a partir do qual o exame de urina deve considerar-se positivo, menos certo não é que dela não resulta qualquer menção ao valor mínimo de concentração de substâncias psicotrópicas exigível para que se considere o exame de sangue positivo (exame de confirmação).
Dito de uma forma mais clara e mais directa, o legislador português não estabeleceu (ainda) limites mínimos no sangue para as substâncias psicotrópicas, não adoptou a regra do “limiar mínimo” de onde se possa extrair que o condutor conduzia sob influência daquelas, em “estado de influenciação”, acabando esta patente indefinição por impedir, como é evidente, repetindo e enfatizando, a determinação concreta de um limite mínimo (como se verifica na condução sob o efeito do álcool) a partir do qual seja possível presumir uma diminuição da capacidade para o exercício da condução, ficando esta determinação dependente da avaliação casuística, médica ou pericial, a realizar caso a caso.
Ora, sabendo nós que o direito de regresso pressupõe um juízo acerca do risco acrescido de uma determinada conduta imputada ao lesante, resulta evidente que a mera detecção de substâncias psicotrópicas não é suficiente para permitir concluir no sentido da existência de um acréscimo ao risco normal de circulação de veículos, até porque, como vimos, nem todas as substâncias psicotrópicas presentes no organismo humano implicam alterações na aptidão física e mental do condutor para o exercício do acto da condução.
Entendimento contrário equivaleria a consagrar um regime “cego” ou de “tolerância zero” (adoptado por Espanha) e a possibilidade de exercício do direito de regresso ao mínimo vestígio de substância estupefaciente, que pode suceder com consumidores passivos, só pelo simples facto de os condutores terem frequentado um local onde outros consumiam substâncias psicotrópicas, sem que tal consumo passivo de tais substâncias pudesse ter qualquer influência na atividade da condução, porque não houve consumo no sentido activo que se exige.
Um regime de “tolerância zero” que o legislador, manifestamente, não pretendeu adoptar, sendo certo que o propósito do legislador não assenta em critérios de ordem moral.
O importante e decisivo é que da realização do exame de sangue (de confirmação) possa resultar a sua positividade, mercê da revelação de que a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas no quadro n.º 1 do anexo V ou de outra substância ou produto, com efeito análogo, tenha sido determinantemente perturbadora da capacidade física, mental ou psicológica do examinado condutor e para o exercício da condução de veículo a motor com segurança.
Como é evidente, na falta de fixação do tal limiar mínimo pelo legislador e tratando-se tal “estado de influenciação”, ao fim de contas, de um juízo científico, apenas podendo ser formulado por quem tenha, neste particular, competências técnico-científicas para o efeito, bem se compreende a exigência de realização de exame médico e/ou perícia (cf. art. 25.º da Portaria 902-B/2007, de 13-04).
Só assim será possível garantir que a condução foi levada a cabo sob influência de substâncias psicotrópicas e que, por esse motivo, comportou um risco acrescido não previsto aquando da contração do seguro, justificando o exercício do direito de regresso.
Entendimento contrário equivaleria à criação de um desequilíbrio contratual, agora em benefício da seguradora, pelo que, apenas a demonstração do “estado de influenciação” poderá convencer quanto à “falta de causa para a cobertura do dano pelo seguro”, este sim o verdadeiro e único fundamento para a acção de regresso (Brandão Proença, Direito de regresso das Seguradoras e Sub-Rogação do Fundo de Garantia Automóvel: Pontos de Vista Parcelares, Julgar n.º 46, 2022; À volta da natureza subsidiária da obrigação de restituir fundada em enriquecimento sem causa, Cadernos de direito privado, n.º 50, Abril/Junho de 2015 p. 110).
Esta temática tem vindo a ser objeto de tratamento, em especial, pelos diversos tribunais a Relação, sendo que o STJ apenas se pronunciou sobre esta matéria no âmbito dos acórdãos cuja contradição fundamenta o presente recurso para uniformização de jurisprudência.
Pese embora a contradição decisória seja in casu entre dois Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, afigura-se adequado, no esforço do maior enriquecimento da presente peça decisória, e tendo em vista o maior esclarecimento, deixar referenciado, no que especificamente concerne à jurisprudência dos tribunais da Relação, pela sua particular clareza, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-09-2022 (proc.º n.º 5424/20.4T8SNT.L1-2), que deixou expresso o entendimento de que “Tal como não basta o consumo do álcool para a seguradora ter direito de regresso contra o condutor, pois que se exige uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida (art. 27/1-c do DL 291/2007), também não basta o consumo de estupefacientes (acusado pela sua presença no organismo do condutor) para se verificar esse direito de regresso, sendo necessário que se prove que esse consumo teve uma influência negativa na capacidade para o exercício da condução, isto é, que é um consumo de estupefaciente em medida suficiente para não permitir a condução em condições de segurança. [...] O facto de constar dos factos provados que o condutor estava a conduzir sob a influência de estupefacientes quer apenas dizer, depois de 15/08/2007 (com a entrada em vigor da nova regulação da fiscalização da condução sob a influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas), que ele tinha estupefaciente no organismo. Desde então (15/08/20207), a prova de que foi consumido estupefaciente em medida suficiente para não permitir a condução em condições de segurança, terá que ser feita ou por um exame médico que tenha procurado apurar um estado de influência e não a simples presença de estupefacientes, ou por um exame de confirmação que terá de revelar a presença de estupefaciente (activo: não servindo pois para o efeito o THC-COOH no caso do canábis) em quantidade suficiente para convencer o juiz, em conjunto com uma série de outros elementos que logica e necessariamente terão de ser também os que seriam obtidos pelo exame médico que fosse feito ao condutor nos termos do n.º 25 da Portaria 902-B/2007, de que tem uma suficiente base probatória para concluir que o condutor estava com efectivas condições diminuídas para o exercício da condução.”
Também o Tribunal da Relação de Évora, se pronunciou sobre a matéria em acórdãos de 07-11-2019 (proc. n.º 2489/17.5T8STR.E1, afirmando que “para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do RJSORCA, à seguradora cabe alegar e provar que, para além de ter dado culposamente causa ao acidente, o condutor se encontrava sob influência de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, nos termos previstos nos artigos 81.º, n.os 1 e 5 e 157.º do CE.” - sublinhado nossos - e de 07-01-2016 (proc. n.º 1050/13.2GCFAR.E1), asseverando que “Não obstante o n.º 5 do art. 81.º do Código da Estrada se limite a dispor que “É proibido conduzir sob influência de [...] substâncias psicotrópicas”, sem prever um valor mínimo a partir do qual a condução sob o efeito dessas substâncias constitua contraordenação, essa norma não pode deixar de ser conjugada com as normas que regulam os procedimentos a seguir em ordem a detetar o estado de influenciado por tais substâncias, o que logo inculca a ideia de que o consumo das mesmas tenha sido em quantidade tal que ainda esteja, no momento, a causar alterações na perceção do mundo exterior, com os reflexos que esse estado de consciência alterado possa ter no comportamento estradal. [...]. Só no caso de o exame de rastreio acusar um resultado superior a este valor é que haverá lugar ao exame de confirmação, que se destina “a identificar a substância ou substâncias e ou seus metabolitos que, em exame de rastreio, apresentarem resultados positivos” (art. 22.º da aludida Portaria), só podendo ser - excepção feita ao caso especial, previsto no art. 13.º da Lei 18/2007, de impossibilidade de colheita de amostra de sangue após repetidas tentativas - declarado influenciado por tais substâncias “o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação” (n.º 5 do art. 12.º da referida Lei), considerando-se que este exame “é positivo sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas no quadro n.º 1 do anexo V ou outra substância ou produto, com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor com segurança” (art. 23.º da Portaria acima aludida). Não se considera como exercendo a condução sob influência de substâncias psicotrópicas aquele que, sem ser submetido a prévio exame de rastreio, revelou no exame realizado uma concentração estimada de THC-COOH de 22 ng/ml”.
Por fim, o Acórdão da Relação de Guimarães de 14-10-2019 (proc. n.º 3/18.9PTBRG.G1), segundo o qual, “não obstante decorra da Lei 18/2007 de 17.05 e da Portaria 902-B/2007 de 13.08 que a deteção de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas se deva iniciar com um exame de rastreio (em urina, suor, saliva ou sangue) - destinado a obter a informação sobre a existência de substâncias psicotrópicas - ao qual, em caso de resultado positivo, se seguirá um exame de confirmação em amostra de sangue - destinado a obter a identificação e quantificação das mesmas substâncias -, a inexistência de exame de rastreio não impede a validade do exame sanguíneo efetuado. Impede, contudo, que se use como referência de positividade os valores que constam do quadro 2 do anexo V da portaria 902-B/2007 de 13.08. Não é indiferente dizer-se que um arguido conduz sob o efeito de 5,2 ng/ml de THC-COOH-Canabinoides ou de 5,2 ng/ml HC - Canabinoides.”.
A jurisprudência dos nossos tribunais superiores acompanha, assim, as reservas suscitadas pelos elementos científicos a que se fez referência supra, dos quais decorre, em suma, que apenas um exame médico e/ou pericial permite aferir, em concreto, se, em face do valor e natureza da substância psicotrópica detectada, um condutor conduzia, na data e hora do acidente, influenciado pelo consumo daquela substância.
Resulta, assim, evidente, no respeito pelos estudos científicos referenciados, que a mera deteção de estupefacientes no exame de sangue não é suficiente para fundar o direito de regresso da seguradora, sendo, antes, necessário que esta demonstre, através de exame médico e/ou pericial, tal como determina o art. 81.º, n.º 5, do Código da Estrada, que os níveis de concentração de substâncias psicotrópicas são, face às variáveis presentes no caso concreto, susceptíveis de diminuir a capacidade de condução.
Isto porque, como se compreenderá, apenas através de um exame de sangue e correspondente relatório médico e/ou pericial, elaborado à luz dos conhecimentos científicos existentes sobre a matéria e com consideração às especiais características do condutor concreto, é possível demonstrar essa diminuição da capacidade para levar a cabo o ato da condução.
Pelas razões enunciadas, em concordância com a posição de princípio assumida pelo Acórdão fundamento, haverá que concluir que, nos termos do artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto, para que seja reconhecido o direito de regresso à seguradora que satisfez a indemnização ao lesado, terá a mesma de alegar e provar que a condução fora exercida sob influência de substâncias psicotrópicas, diminuindo a aptidão física e mental do condutor para exercer a atividade da condução em condições de segurança, devendo tal “estado de influenciação” ser demonstrado através de exame médico e/ou pericial.
O caso concreto
No caso dos autos, demonstrou-se que “após a ocorrência do acidente foi colhida amostra de sangue do R. e enviada para a Delegação Sul do INML para a realização de exame para identificação de substâncias psicotrópicas no sangue e seus metabolitos, tendo acusado 4.3 ng/ml de THC-COOH, metabolito sem acção farmacológica cujo período de concentração se pode prolongar por vários dias após o consumo de canábis, e 0.8 ng/ml de THC.” (facto n.º 15 provado).
Resultou, ainda, não provado que:
- d) O R. conduzia com os reflexos e sentidos tolhidos pelo consumo de estupefacientes
- e) Em consequência da canábis os reflexos e discernimento do R encontravam-se diminuídos e afectados.
- f) A canábis influenciou a condução do R.
Ora, excluindo imediatamente a análise de eventual estado de influenciação pela detecção de 4.3 ng/ml de THC-COOH no exame de sangue, pois que este não é uma substância activa do ponto de vista farmacológico, seja em que quantidade for, não podendo concluir-se que a condução automóvel era feita sob influência de canabinoides, ainda que tenha sido detectada a presença de 0,8 ng/ml de THC (substância activa) no sangue do condutor, a verdade é que não consta dos autos a realização de exame médico e/ou pericial do qual resulte demonstrado que aquele mesmo réu conduzia, na data e local do acidente, sob influência de substâncias psicotrópicas ou que o valor detetado no exame de sangue era capaz, à luz dos conhecimentos científicos existentes na matéria, diminuir a capacidade física e psíquica do réu para o exercício da condução, o que seria determinante para o exercício do direito de regresso à luz do art. 27.º, n.º 1, alínea c), do DL n.º 291/2007, de 21-08.
Como resulta do que acima se deixou escrito, a demonstração de tal “estado de influenciação” era essencial ao sucesso da presente ação de regresso, competindo à seguradora a demonstração de que o condutor segurado deu causa ao acidente e que acusava, à data do acidente, consumo de substância estupefaciente com características, propriedades e em quantidade suscetíveis de influir na sua capacidade e aptidão física ou psíquica, o que, nos termos da legislação em vigor, apenas poderia ser feito através de exame e médico e/ou pericial e subsequente demonstração médica e/ou pericial nesse sentido.
De facto, por força da indeterminabilidade que ainda marca o nosso regime legal supra descrito, a mera detecção de substâncias estupefacientes em exame de sangue não é suficiente para que se possa concluir pela diminuição efetiva da capacidade e aptidão física ou psíquica, o que apenas é viável com recurso a relatório médico e/ou pericial.
Essa prova não foi feita, não bastando para tanto a mera demonstração da presença de substâncias psicotrópicas no exame de sangue, como foi defendido no Acórdão recorrido.
Assim, pese embora tenha sido detectada a substância psicotrópica THC no exame de sangue do condutor, na quantidade de 0.8 ng/ml, o certo é que não resultou demonstrado que o condutor conduzia em “estado de influenciação” pelo consumo daquela substância psicotrópica (recordando aqui em especial que a ciência afirma que “valores abaixo de 2 ng/mL indicam ausência de influência [...] Para concentrações superiores a 2 ng/mL, foi observado prejuízo no desempenho de alguns, mas não todas as tarefas relacionadas com a condução”), o que, recorde-se mais uma vez, apenas seria possível demonstrar através de exame médico e/ou pericial.
Há, assim, que concluir no sentido da não aplicação do art. 27.º, n.º 1, al. c), do DL n.º 291/2007, de 21-08, ou seja, que à seguradora não assiste o direito de regresso que a mesma pretende exercer na presente acção, impondo-se, assim, a sua improcedência.
DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos invocados, acorda-se no Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça:
A. Uniformizar a Jurisprudência nos seguintes termos:
Nos termos do artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto, para que seja reconhecido o direito de regresso à seguradora que satisfez a indemnização ao lesado, terá a mesma de alegar e provar que o condutor conduzia sob influência de substâncias psicotrópicas, diminuindo a aptidão física e mental do condutor para exercer a atividade da condução em condições de segurança, devendo tal “estado de influenciação” ser demonstrado através de exame médico e/ou pericial.
B. Julgar procedente o presente recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência, revogando o acórdão recorrido e repristinando o acórdão do tribunal da Relação proferido nos autos.
Custas pela recorrida.
1 http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6f9c47388c6522ca802586d3003ea7ee?OpenDocument
2 Neste sentido, veja-se, entre outros, o acórdão deste STJ, de 10-05-2018, no âmbito do recurso para uniformização de jurisprudência 2643/12.0TBPVZ.P1.S1-A, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/991cb9816ba34def80258330004ad01f?OpenDocument;
3 In Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição Atualizada, Almedina, 2020, p. 549, em anexo;
4 Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ de 20-11-2019, Recurso para uniformização de jurisprudência 433/11.7TVPRT.P1.S2-A, onde se afirma o STJ tem vindo a entender, “de forma pacífica e reiterada, que a contradição relevante, neste âmbito, pressupõe ainda a identidade do núcleo essencial das concernentes situações fácticas.” - em anexo;
5 http://www.ansr.pt/SegurancaRodoviaria/Informacao/Documents/Documentos/O%20 %C3 %81LCOOL%20E%20A%20CONDU%C3 %87 %C3 %83O.pdf.
6 https://www.emcdda.europa.eu/publications/topic-overviews/legal-approaches-to-drugs-and-driving/html_en#panel2
7:
Illegal’ drug driving limits (‘accidental exposure’ - zero tolerance approach) | Threshold limit in microgrammes per litre of blood (µg/L) |
---|---|
Benzoylecgonine | 50µg/L |
Cocaine | 10µg/L |
Delta-9-tetrahydrocannabinol (cannabis) | 2µg/L |
Ketamine | 20µg/L |
lysergic acid diethylamide | 1µg/L |
Methylamphetamine | 10µg/L |
Methylenedioxymethamphetamine (MDMA) | 10µg/L |
6-monoacetylmorphine (heroin) | 5µg/L |
8 Disponível em https://www.emcdda.europa.eu/system/files/media/publications/documents/743/TDXA12006ENN_402402.pdf:
9 Disponível em https://www.emcdda.europa.eu/system/files/media/publications/documents/849/TDXD14016ENN_474631.pdf:
10 (disponível em https://www.emcdda.europa.eu/system/files/publications/8805/20181120_TD0418132PTN_PDF.pdf)
11 Em texto disponível em https://www.actamedicaportuguesa.com/revista/index.php/amp/article/viewFile/743/420).
12 Disponível em https://www.mdpi.com/2813-1851/1/1/2.
13 Disponível em https://www.emcdda.europa.eu/system/files/media/publications/documents/849/TDXD14016ENN_474631.pdf:
14 Em texto disponível em https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/7505?mode=full.
Lisboa, 23 de Maio de 2024. - Nuno Ataíde das Neves (relator) - Afonso Henrique C. Ferreira - Isabel Maria Manso Salgado - Luís Fernando dos Santos Correia de Mendonça - Leonel Serôdio - Maria do Rosário Gonçalves - Paula A. Carvalho - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Maria Clara Sottomayor - Maria da Graça Trigo - Pedro de Lima Gonçalves - José Sousa Lameira - Fátima Gomes - Graça Amaral (com declaração de voto) - Maria Olinda Garcia - Catarina Serra - António Oliveira Abreu - José Maria Ferreira Lopes - João Cura Mariano - António Barateiro Martins, com declaração de voto em anexo - Manuel José Aguiar Pereira, votei vencido de acordo com a declaração anexa - Jorge Leal (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmº Conselheiro Manuel Aguiar Pereira) - Maria Amélia Ribeiro (vencida, de acordo com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Aguiar Pereira) - Emidio Francisco Santos - vencido conforme declaração que junto - Nelson Borges Carneiro (vencido, nos termos do voto vencido do Exmo. Conselheiro Manuel Aguiar Pereira) - António de Moura Magalhães (vencido, nos termos da declaração do Exmo. Conselheiro Aguiar Pereira) - Ricardo Costa (votei vencido, subscrevendo a declaração de voto do Conselheiro Aguiar Pereira) - Luís Filipe Castelo Branco do Espírito Santo (vencido pelas razões constantes do voto de vencido do Conselheiro Aguiar Pereira, nas quais me louvo) - Jorge Manuel Arcanjo (voto vencido nos termos da declaração do Senhor Conselheiro Manuel Aguiar Pereira).
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Em face do objecto do recurso, optaria por extrair o seguinte segmento uniformizador: “O direito de regresso da seguradora nos termos do artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, com fundamento em consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, depende da alegação e prova de que o condutor segurado conduzia sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, o que apenas pode ser demonstrado por exame médico ou pericial realizado nos termos do artigo 81.º, n.º 5, do Código da Estrada, e em legislação complementar.”
Graça Amaral
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Declaração de voto
Concordo, face aos contributos da ciência referidos no Acórdão, que a seguradora, para exercer o direito de regresso com fundamento em o condutor acusar consumo de estupefacientes, tem de alegar e provar o “estado de influenciação”, porém, não circunscreveria a prova de tal “estado” ao exame médico e/ou pericial referido nos arts. 12.º e 13.º da Lei 18/2007, até porque, quanto ao exame de confirmação do art. 12.º, não parece que o mesmo se pronuncie sequer sobre o “estado de influenciação”.
L., 23/05/2024.
António Barateiro Martins
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Declaração de voto:
Considerando a letra e os antecedentes legislativos do artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, concretamente o artigo 15.º, alínea b), do Decreto-Lei 165/75, de 28 de Março, o artigo 19.º, alínea c) do Decreto-Lei 408/79, de 25 de Setembro, e o artigo 19.º, alínea c) do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, interpreto o artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 291/2007, no sentido de que a seguradora tem direito de regresso de regresso se provar: 1) que o condutor causou o acidente; 2) que o condutor acusou o consumo de estupefacientes ou drogas ou outros produtos tóxicos.
O condutor terá, no entanto, a faculdade de provar que os estupefacientes ou drogas ou outros produtos tóxicos não tiveram influência negativa na sua capacidade para a condução.
Em consequência, uniformizaria a jurisprudência no seguinte sentido: Ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o condutor se provar que este causou o acidente e acusou o consumo de estupefacientes ou drogas ou outros produtos tóxicos, salvo se se provar que as mencionadas substâncias não tiveram influência negativa na sua capacidade de condução.
Aplicando ao caso esta uniformização, manteria o acórdão recorrido porque se provou que o exame realizado ao réu acusou 4,3 ng/ml de THC-COOH e 0,8ng/ml de THC. Se, em relação ao THC-COOH, ficou assente que se tratava de metabolito sem acção farmacológica, cujo período de concentração se pode prolongar por vários dias após o consumo de canábis (ponto n.º 15 dos factos provados), já o mesmo não se demonstrou em relação aos 0,8ng/ml de THC.
Emídio Francisco Santos
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VOTO VENCIDO
Votei vencido.
Teria fixado jurisprudência no sentido de não ser exigível para a procedência da acção que a seguradora instaure contra o seu segurado condutor causador do acidente a alegação e prova de que ele exercia a condução “sob influência” ou em “estado de influenciação” do consumo de substâncias psicotrópicas.
Para além da alegação e prova do nexo causal entre a condução concretamente apurada e a ocorrência do acidente é bastante para a procedência da acção a prova da presença de substâncias psicotrópicas no sangue através de exame médico pericial de confirmação do exame de rastreio positivo, a realizar nos termos previstos na legislação do Código da estrada sobre a matéria, sem embargo de o condutor poder demonstrar que, em concreto, a presença de substâncias psicotrópicas no sangue no momento do acidente não contribuiu para a ocorrência do acidente nem agravou o risco assumido pela seguradora.
Pelas razões que sumariamente se passam a indicar.
1) A questão central do Acórdão para Uniformização de Jurisprudência em apreciação é a dos pressupostos para a procedência do direito de regresso da seguradora contra o condutor causador do acidente de viação que acuse o consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, previsto no artigo 27.º n.º 1 alínea c) do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto.
Foi proposta pelo Juiz Conselheiro relator a uniformização de jurisprudência nos seguintes termos:
“Nos termos do artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto, para que seja reconhecido o direito de regresso à seguradora que satisfez a indemnização ao lesado, terá a mesma de alegar e provar que a condução fora exercida sob influência de substâncias psicotrópicas, diminuindo a aptidão física e mental do condutor para exercer a atividade da condução em condições de segurança, devendo tal “estado de influenciação” ser demonstrado através de exame médico e/ou pericial.
2) A referência à “influência de substâncias psicotrópicas” utilizada no segmento uniformizador proposto está associada ao que se encontra disposto no artigo 81.º n.º 1 e 5 do Código da Estrada.
“Artigo 81.º - Condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas
1 - É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas.
2 - Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.
[...]
5 - Considera-se sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial.”
3) O artigo 81.º n.º 5 do Código da Estrada não se reporta ao direito de regresso da seguradora sobre o condutor causador do acidente que acuse no momento do acidente a presença de substâncias psicotrópicas no sangue.
O que tal norma estabelece é um pressuposto do sancionamento do ilícito de mera ordenação social consistente na violação da proibição de condução sob influência de substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas, remetendo para o resultado de um relatório médico ou pericial.
4) A remissão para o resultado do relatório médico ou pericial e para as respectivas conclusões justifica-se pelo facto de o legislador não ter previsto - diferentemente do que sucede para a condução sob efeito do álcool com teores de álcool no sangue superiores a 0,5g/l - um valor mínimo a partir do qual se deva considerar que o consumo de substâncias psicotrópicas é relevante por ser potencialmente gerador de risco acrescido para a segurança da circulação rodoviária no exercício da condução automóvel.
A tal opção legislativa não terá sido estranha a dificuldade em determinar com um mínimo de rigor, objectividade e abrangência, quais os níveis mínimos de presença de substâncias psicotrópicas no sangue susceptíveis de causar, e em que medida, alterações comportamentais no exercício da condução automóvel.
5) Sendo, como parece pacífico, o simples exame de rastreio positivo insuficiente para esse efeito, só através de exame de confirmação da presença de substâncias psicotrópicas no sangue, se poderá determinar qual é a substância detectada, se ela está incluída na lista de substâncias ilícitas taxativamente previstas na legislação complementar ao Código da Estrada ou se se trata de outra substância com efeito análogo, em todo o caso, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do condutor para o exercício da condução de veículo em motor com segurança.
6) É essa afectação das capacidades físicas, mentais ou psicológicas do condutor no exercício da condução por parte do causador do acidente, traduzida no agravamento do risco assumido pela seguradora, que constitui o fundamento axiológico do direito de regresso da seguradora contra o responsável pelo acidente cujos lesados ela teve que indemnizar, como bem se salientou no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência 6/2002, a propósito do direito de regresso da seguradora contra o condutor causador de acidente que acuse um teor criminalmente relevante de álcool no sangue.
7) A redação introduzida em 2001 no artigo 81.º do Código da Estrada articulava-se de forma harmoniosa com os casos em que a lei assumia os factos subjacentes ao ilícito de mera ordenação social ali tipificado como relevantes nos casos em que a lei tinha por necessária a condução “sob o efeito de substâncias psicotrópicas”.
Assim sucedia à data com a possibilidade do exercício do direito de regresso da seguradora contra o condutor causador do acidente de viação prevista no artigo 19.º do Decreto-Lei 522/85 de 31 de dezembro, então vigente sobre a matéria.
8) De facto, este preceito fazia depender o direito de regresso da seguradora do facto de o condutor causador do acidente ter agido “sob a influência [...] de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos …”.
O Acórdão para Uniformização de Jurisprudência 6/2002 veio demonstrar à saciedade que não era suficiente à procedência do direito de regresso que o condutor estivesse sob influência do álcool, “sendo necessário que esse facto seja a causa ou uma das causas do acidente.”
9) A alteração operada pelo artigo 27.º n.º 1 c) do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto, refletiu essa orientação do Acórdão para Uniformização de Jurisprudência 6/2002 ao deixar de exigir que a acção do condutor tivesse tido lugar sob influência de álcool ou de produtos estupefacientes.
A norma em causa passou então, salvo melhor opinião, a condicionar a procedência do direito de regresso da seguradora apenas à circunstância de o condutor causador do acidente “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos”, abstraindo de qualquer relação entre a presença de álcool ou substâncias psicotrópicas no sangue e o modo com a condução era exercida no momento do acidente - que presume existir - mas mantendo a exigência de demonstração do nexo causal entre a condução automóvel concretamente apurada e a ocorrência do acidente.
10) A solução normativa encontrada através da alteração do regime anterior não pode deixar de ser interpretada senão no sentido da abolição da necessidade de alegação e prova pela seguradora de qualquer relação causal entre o consumo de álcool ou de substâncias psicotrópicas detectado no momento do acidente, e o modo como, em concreto, foi praticada a condução de que veio a resultar o acidente de viação.
Na realidade o artigo 27.º n.º 1 c) do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto omite qualquer referência à “influência” que o consumo de substâncias psicotrópicas possa ter tido, em concreto, para efeito da procedência do direito de regresso da seguradora contra o condutor que dê causa ao acidente.
11) Uma vez provado que o condutor que acuse a presença de substâncias psicotrópicas no sangue, deu causa ao acidente que originou para a seguradora a obrigação de indemnizar, o artigo 27.º n.º 1 c) do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto reconhece-lhe o direito de regresso contra o condutor responsável.
12) Adaptando a jurisprudência uniformizada anterior versando sobre hipótese paralela e face à supressão da alegação e prova do “estado de influência” operada pelo artigo 27.º n.º 1 c) do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto, dir-se-á então que a procedência do direito de regresso da seguradora contra o condutor causador do acidente depende da alegação e prova, a cargo da seguradora, e nos termos gerais dos artigos 342.º n.º 1 do Código Civil:
- da existência de um exame positivo de confirmação da presença de substâncias psicotrópicas no sangue no momento do acidente, a realizar nos termos legalmente estabelecidos;
- do estabelecimento de um nexo de causalidade adequada entre o exercício da condução automóvel levada a cabo pelo condutor demandado e a ocorrência do acidente.
13) Nesse contexto, no caso de o exame de confirmação ser positivo, caberá ao condutor causador do acidente, ainda nos termos gerais, o ónus da alegação e prova de que a presença de substâncias psicotrópicas no sangue foi indiferente à ocorrência do acidente e não apresenta com ele, em concreto, qualquer relação causal, nem agravou o risco assumido pela seguradora.
14) Daí que, em conclusão, no segmento uniformizador, propusesse:
A eliminação de qualquer referência à condução “sob influência” de substâncias psicotrópicas e ao “estado de influenciação” cuja alegação e prova competiria à autora seguradora;
A clarificação de que a procedência do direito de regresso por parte da seguradora depende da alegação e prova pela autora da presença de substâncias psicotrópicas no sangue do causador do acidente, a fazer através do exame médico/pericial de confirmação positivo, e do nexo de causalidade adequada entre o exercício da condução por parte do condutor examinado e a ocorrência do acidente.
Uniformizaria jurisprudência nos termos seguintes:
“Na acção de regresso instaurada pela seguradora contra o condutor segurado, nos termos definidos na alínea c), última parte, do n.º 1 do artigo 27.º do Decreto-Lei 291/2007, de 21-08, incumbe à primeira alegar e provar que o réu, na qualidade de condutor segurado causador do acidente, acusou consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, após exame realizado nos termos do Código da Estrada e de legislação complementar, e ao condutor o ónus de alegar e provar que tal resultado, assim apurado, foi no caso concreto irrelevante para a produção do evento lesivo”.
15) Quanto ao mérito do acórdão recorrido, consideraria a sua manutenção e o reconhecimento do direito de regresso da seguradora uma vez que foi, no caso, realizado o exame pelo Instituto Nacional de Medicina Legal que identificou as substâncias psicotrópicas em causa e seus valores confirmando a presença de substâncias psicotrópicas no sangue do condutor causador do acidente no momento do acidente, não tendo este logrado provar que o facto de ser portador de substâncias psicotrópicas foi indiferente à ocorrência do acidente.
Manuel José Aguiar Pereira
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