Assento
Acordam, em sessão plenário, no Supremo Tribunal de Justiça:
Bernard Alexander Moxey recorre, nos termos do artigo 763.º do Código de Processo Civil, do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Junho de 1981, certificado a folhas 7 e seguintes e publicado no Boletim, 309-329, com fundamento em que, no domínio da mesma legislação, deu esse acórdão solução oposta à que fora adoptada pelo de 9 de Maio de 1972 (Boletim, 217-92) relativamente à mesma questão fundamental de direito: a de saber se o prazo de caducidade estabelecido no artigo 1094.º do Código Civil deverá contar-se, quando o fundamento de resolução do contrato de arrendamento seja um facto de carácter permanente, contínuo ou duradouro, a partir do conhecimento que dele tenha o senhorio ou do momento da sua cessação.
Decidindo a questão preliminar a que alude o artigo 666.º, n.º 1, do citado Código, pronunciou-se a secção, maioritariamente, pela existência da oposição que serve de fundamento ao recurso (acórdão a fl. 25).
No prosseguimento do recurso apresentaram as partes as suas alegações, tendo o ministério público oferecido o parecer a fl. 44, em que, sustentando, tal como o recorrido Manuel Nascimento Vilar, não haver oposição entre os 2 referidos acórdãos, sugere, todavia, para a hipótese de assim se não entender, a formulação do seguinte assento:
O prazo de caducidade previsto no artigo 1094.º do Código Civil, quando se trate de facto continuado ou duradouro, conta-se a partir da data em que o facto tiver cessado.
Idêntica sugestão faz o recorrente.
As razões que, ao sustentarem a inexistência de oposição, invocam o recorrido e o ministério público são essencialmente as mesmas que serviram de base aos votos de vencido no acórdão preliminar a fl. 25: embora em ambos os casos se tratasse de causas de resolução de carácter permanente, duradouro ou continuado, não eram idênticos os factos nem as mesmas as disposições legais a interpretar, pois que, enquanto que no Acórdão de 1972 estava em causa a falta de residência permanente [n.º 1, alínea i), do artigo 1093.º do Código Civil], discutia-se no de 1981 a aplicação do arrendamento a fim diverso do convencionado.
A argumentação não procede.
Referia-se o artigo 763.º do Código de 1939 a «dois acórdãos sobre a mesma questão de direito».
Já então ensinava Alberto dos Reis (anotado, II, 247 e 250) não ser necessário, para legitimar o recurso para o tribunal pleno, que a oposição entre os acórdãos se manifestasse na questão final a resolver:
Há oposição susceptível de sentir de fundamento a recurso para o tribunal pleno, mesmo quando a decisão final decidida nos autos seja diversa, se, para a decidirem, os acórdãos tiverem de se pronunciar primeiro sobre a mesma questão de direito e se pronunciarem sobre ela em sentidos opostos; há oposição que justifica o recurso do artigo 763.º, embora os casos concretos apresentem contornos e particularidades diferentes, se tais diferenças não obstarem a que a questão de direito seja fundamentalmente a mesma e se a esta foi dada solução oposta nos acórdãos citados.
Era esse, com efeito, o pensamento do legislador de 1939. E foi para o tornar bem claro (porque o Supremo recusava a admissão do recurso «em casos em que se julga manifesta a oposição dos acórdãos sobre a mesma questão essencial de direito») que o artigo 763.º passou a falar, a partir da reforma de 1961, na «mesma questão fundamental de direito», o que quer dizer que «para apreciar a oposição invocada pelo recorrente, o tribunal tem de separar, nas questões decididas pelos acórdãos, aquilo que é o núcleo essencial do problema jurídico solucionado do que não passa de mero acidente ou pormenor sem relevância para a solução firmada num e noutro» (observações ao artigo 766.º - actual artigo 763.º -, resultante da primeira revisão ministerial do Código de 1961, no Boletim, 123-192).
O acórdão recorrido pronunciou-se unicamente, porque a isso se restringia o objecto do recurso, sobre o problema de caducidade; o de 1972 confirmou a decisão que ordenara o despejo imediato dos réus, depois de previamente ter resolvido também a questão de caducidade.
Foi a divergência de soluções - no tocante, claro, ao problema da caducidade - que ocasionou o recurso para este Tribunal. E se bem que da resolução de tal problema dependesse a sorte de cada uma das acções, nada tinha a ver com ele a circunstância de uma delas ter sido baseada na falta de residência permanente no arrendado e outra na aplicação deste a fim diverso do convencionado.
Em ambos os casos se defendiam os réus com a alegação de que os autores tinham tido conhecimento do facto violador do contrato mais de 1 ano antes da propositura da acção. E isso era exacto: no caso do acórdão recorrido, a acção foi proposta em 26 de Maio de 1976 e o autor teve conhecimento do facto em Agosto de 1974; no do acórdão anterior, a acção foi proposta em 2 de Dezembro de 1969 e logo no início do contrato, celebrado em 1 de Abril de 1966, tomou a autora conhecimento de que os réus não tinham no arrendado a sua residência permanente.
O acórdão recorrido decidiu que, embora a aplicação do prédio a fim diverso do convencionado devesse ter-se como facto contínuo, duradouro ou permanente, não poderia o prazo de caducidade deixar de contar-se a partir do conhecimento que desse facto tivera o senhorio. Por isso julgou procedente a excepção de caducidade.
No Acórdão de 1972 entendeu-se que «a negligência ou tolerância do senhorio com situação infractora do contrato vale como renúncia a accionar com base nos factos ou omissões ocorridos há mais de 1 ano, mas não contesta ou legítima essa situação para o futuro, pelo que poderá o senhorio accionar por factos ou omissões análogos ocorridos no ano anterior à propositura da acção. E como nesse ano os réus não tivessem tido a sua residência permanente no arrendado (foi «manifestamente a título provisório» que durante esse tempo aí passaram algumas temporadas), julgou improcedente a excepção de caducidade.
Ao contrário do que fez o acórdão recorrido, não deu qualquer relevo à circunstância de o senhorio ter tido conhecimento do facto anticontratual logo no início do contrato (1 de Abril de 1966). Admitiu o faccionamento desse facto, que era um só, em vários outros e que a acção tinha sido atempada por sobre o último deles não ter decorrido ainda 1 ano - o que equivale, ao fim e ao cabo, a consentir o exercício do direito enquanto subsistir, assim fraccionada, a situação anticontratual. De tudo isto resulta terem os acórdãos em causa assentado, relativamente à mesma questão fundamental de direito, em soluções opostas.
Vejamos, pois, como deve ser entendido o artigo 1094.º do Código Civil: se o prazo de caducidade aí previsto deverá contar-se sempre - seja simples ou duradouro o facto violador do contrato - a partir do conhecimento desse facto pelo senhorio.
Já o § 8.º do artigo 5.º da Lei 1662, de 4 de Setembro de 1924 (depois revogado pelo artigo 68.º da Lei 2030, de 22 de Junho de 1948), estabelecia que, em certos casos (aplicação do prédio arrendado para habitação a fins ilícitos ou desonestos ou ao exercício de qualquer comércio ou indústria; aplicação do prédio arrendado para comércio ou indústria a fins ilícitos ou desonestos ou a ramo de comércio ou indústria diverso do expressamente estipulado no contrato), o direito do senhorio a intentar a acção de despejo prescrevia no prazo de 6 meses, contados da data em que o senhorio tivesse, por qualquer meio, notícia da transgressão.
E essa regra sempre se aplicou, durante a longa vigência daquele preceito, tanto aos factos simples ou instantâneos como aos factos duradouros ou continuados.
Reconhecia-se a necessidade de um tal prazo para evitar que se prolongassem no tempo situações duvidosas e incertas. E se o sistema mereceu críticas e veio a ser banido, não foi porque o seu defeito estivesse no modo de contagem desse prazo. Foi porque «quando ao senhorio comece a constar que o inquilino transgrido o contrato, a transgressão é ainda de tal modo cautelosa e discreta que o senhorio não pode fazer prova, e por isso não tem outro remédio sendo abster-se de exercer a acção de despejo; quando a transgressão se torna ostensiva e grave e já a prova seria fácil de produzir, está o inquilino a coberto de ser eficazmente accionado, porque sem dificuldade mostra que o senhorio conheceu o facto há mais de 6 meses. Isto sem contar com os riscos de fabulação da prova do conhecimento por meio de testemunhas» (Tito Arantes, Inquilinato, Avaliações; 1.º Parecer da Câmara Corporativa, citado pelo Prof. Antunes Varela, na R. D. E. S., IV, 339 e 340, e pelo Dr. J. G. S. Carneiro, na R. T., 92-208 e 209).
A isso se acrescentava que as situações resultantes da aplicação do referido § 8.º não comportavam, porque ilícitas, «a forte protecção que dos prazos de caducidade deriva» (R. T., loc. cit.).
Por tais razões se propôs a revogação do preceito ou o alargamento para 2 anos do prazo de 6 meses aí estabelecido.
O legislador de 1966 não se deixou impressionar por todas aquelas críticas: regressou ao regime de caducidade sem qualquer restrição nos meios de prova e, tendo embora ampliado o respectivo prazo, tornou-a extensiva a todas as causas de resolução do contrato.
E não parece que, ao referir-se, no artigo 1094.º do Código Civil, ao «conhecimento do facto», expressão equivalente à utilizada na lei de 1924 - «notícia da transgressão» -, tenha tido o propósito de sancionar entendimento diverso do que mereceu essa lei. De outro modo se expressaria, por certo, dados os aludidos antecedentes, se porventura tivesse querido significar que, relativamente a todos ou a alguns dos factos previstos no artigo 1093.º, n.º 1, como susceptíveis de autorizar a resolução do contrato, seria o prazo de caducidade contado não do conhecimento, mas da cessação dos mesmos.
Com efeito, os prazos de caducidade, normalmente de curta duração, são ditados por «razões objectivas de segurança jurídica, sem atenção à negligência ou inércia» do titular do direito e apenas com o propósito de garantir que dentro deles fique «inalteravelmente definida a situação jurídica das partes» (vide Profs. Vaz Serra, no Boletim, 107-191, e M. Andrade, Teoria Geral, II, p. 464). Extinto o prazo, extingue-se também, e só por isso, o direito a que respeitava e que deixou de ser exercido dentro dele. Não há aí renúncia antecipada (o contrato foi já violado) e nem ela constitui pressuposto da caducidade: se bem que desta colha benefícios uma das partes (neste caso o inquilino), o direito extingue-se pelas razões indicadas, independentemente do sentido que possa atribuir-se à passividade do seu titular.
Contar o prazo de caducidade da acção de resolução do contrato de arrendamento, apesar dos termos em que se acha redigido o artigo 1094.º do Código Civil, a partir da cessação do facto violador (ou do momento em que a cessação foi conhecida do senhorio) seria permitir, muitas vezes, que não mais se definisse (ou só ao fim de longo tempo se definisse) uma situação que por vontade da lei deveria tornar-se certa ao fim de curto prazo; seria deixar a sorte de relação jurídica de locação ao inteiro arbítrio do senhorio; seria negar, além do sentido e valor das palavras, o próprio fundamento da caducidade; seria, enfim, acolher, contra o disposto no artigo 9.º do Código Civil, uma ideia que não encontra qualquer correspondência verbal na letra da lei.
Daí que deva contar-se o prazo da caducidade a partir do conhecimento da infracção contratual pelo senhorio, consista ela num facto simples ou instantâneo ou num facto continuado ou duradouro, o que, para além de tudo o mais, implicará um menor desvio à regra estabelecida no artigo 329.º do Código Civil: a de que o prazo de caducidade começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido.
Não é exacto dizer-se que a solução proposta conduza, no caso de falta reiterada do pagamento de rendas, à impossibilidade de o senhorio resolver o contrato se deixar passar mais de 1 ano sobre a primeira falta. Esse entendimento está posto de lado. A falta de pagamento da renda constitui um facto simples e qualquer delas, portanto, integra, como qualquer outro facto da mesma natureza, um fundamento autónomo de resolução.
Mas diz-se também que a doutrina do acórdão recorrido da origem, em certos casos, em especial nos do n.º 1, alíneas c), h) e i), do artigo 1093.º, a situações indesejáveis, absurdas e contrárias aos objectivos sociais da ocupação efectiva de fogos.
Não se negam, nesses e porventura noutros casos, os males apontados. Eles são evidentes. Mas só o legislador poderá remediá-los, dando ao artigo 1094.º, quando não opte por outra via, formulação idêntica à do artigo 1786.º Não pode fazê-lo o intérprete através de um entendimento que equivaleria, em última análise, a substituir a referência ao «conhecimento do facto», utilizada no artigo 1094.º, pela referência à «cessação (ou conhecimento da cessação) do facto»; ou a ver nesse preceito, além da primeira das citadas expressões, a afirmação de que, tratando-se de factos duradouros ou continuados, se a partir da sua cessação (ou do conhecimento desta) começaria a contar-se o prazo da caducidade.
Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e formula-se o assento seguinte:
Seja instantâneo ou continuado o facto violador do contrato de arrendamento, é a partir do seu conhecimento inicial pelo senhorio que se conta o prazo de caducidade estabelecido no artigo 1094.º do Código Civil.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 3 de Maio de 1984. - Amaral Aguiar - Licurgo dos Santos - Santos Silveira - Dias do Fonseca - Lima Cluny - Lopes Neves - Pereira Leitão - Flamino Martins - Silvino Villa Nova - Miguei Caeiro - Costa Ferreira - Octávio Garcia - Corte-Real - Moreira da Silva - Melo Franco - Quesada Pastor - Licínio Caseiro - Santos Carvalho (vencido conforme declaração que junto) - Magalhães Baião (vencido em concordância com o voto do Exmo. Colega Santos Carvalho) - Abel de Campos (vencido nos mesmos termos) - Alves Peixoto (vencido pelas razões que apontou o Sr. Conselheiro Santos Carvalho) - Solano Viana (vencido pelas razões constantes de declaração do Exmo. Conselheiro Santos Carvalho) - Joaquim Figueiredo (vencido nos termos da declaração que junto) - Vasconcelos de Carvalho (vencido pelas razões invocadas pelos Exmos. Colegas Santos Carvalho e Roseira de Figueiredo) - Campos Costa (vencido pelas razões indicadas pelos Exmos. Colegas Santos Carvalho e Roseira de Figueiredo) - Leite de Campos (vencido pelas razões invocadas pelos Exmos. Colegas Santos Carvalho e Roseira de Figueiredo) - Almeida Ribeiro (vencido pelas razões invocadas nas declarações de voto dos Exmos. Conselheiros Santos Carvalho e Roseira de Figueiredo) - Alves Cortez (vencido pelas razões constantes das declarações de voto dos Exmos. Conselheiros Santos Carvalho e Roseira de Figueiredo).
Declaração de voto
Revogaria o acórdão recorrido para ser julgada improcedente a excepção de caducidade do direito de exercício da acção de resolução do contrato de arrendamento proposta pelo recorrente, com a consequente formulação de assento no sentido de que «o prazo de caducidade prescrito no artigo 1094.º do Código Civil, quando se trate de facto continuado, permanente ou duradouro, só corre a partir da data em que o mesmo facto tiver cessado».
Basear-me-ia, essencialmente, nas razões aduzidas pelo Exmo. Colega Campos Costa na declaração de voto de vencido anexa ao acórdão recorrido e nas demais que têm sido invocadas na generalidade das decisões que se seguiram à do acórdão indicado em oposição, e, designadamente, em que, embora a letra daquele preceito possa consentir a interpretação que fez vencimento, não deixa, todavia, de admitir também a preconizada pelos sequazes da corrente jurisprudencial e doutrinária que se rejeitou: a de que o prazo de caducidade, quando se trate de facto continuado, permanente ou duradouro, só deverá correr a partir da sua cessação, quer ele se considere como facto uno e, portanto, só completo quando cessa, quer como último dos factos constitutivos de uma série, idênticos e sucessivamente repetidos.
E é esta a interpretação literal que melhor se ajusta ao pensamento legislativo obediente aos princípios que dominam o instituto da caducidade e, de resto, Já adoptada autenticamente pela reforma do Código Civil de 1977 relativamente ao direito de pedir o divórcio e que parece dever impor-se para a caducidade de quaisquer outros direitos.
O instituto da caducidade adoptado na lei, menos por consideração de razões de justiça, do que de segurança, estabilidade e certeza de certas situações de facto criadas normalmente à margem da lei ou dos contratos, fundado na inércia do titular do direito e no esquecimento da infracção, não deve traduzir-se em incentivo e protecção a violações permanentes e actuais da lei ou dos contratos.
O pensamento legislativo jamais o podia pretender, por se não justificar a caducidade quanto àquelas violações, quando ainda persistem à data da propositura da acção ou quando tenham terminado dentro do prazo de caducidade estabelecido.
Lisboa, 3 de Maio de 1984. - Santos Carvalho.
Declaração de voto
É manifesta a analogia entre as disposições dos artigos 1094.º e 1782.º, n.º 1 (na sua redacção primitiva), ou 1786.º, n.º 1 (na redacção do Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro), todas do Código Civil.
Em face das dúvidas de interpretação que a disposição do artigo 1782.º, n.º 1, levantou e das correntes jurisprudenciais que se formaram sobre esse ponto, não se duvidará do carácter interpretativo da regra do n.º 2 do artigo 1786.º (redacção actual).
Ora, uma vez que a interpretação deve reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta, além do mais, a unidade do sistema jurídico (artigo 9.º, n.º 1, do mesmo Código), impõe-se, a meu ver, atribuir à norma do artigo 1094.º o mesmo sentido que o legislador entendeu atribuir à do artigo 1782.º, n.º 1 (ou 1786.º, n.º 1).
Joaquim Figueiredo.