Acordam no Tribunal Constitucional:
I - O procurador-geral-adjunto em exercício neste Tribunal, por delegação do procurador-geral da República e no uso da iniciativa do artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, e ao abrigo do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição, requer a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos n.os 1 do artigo 206.º e 5 do artigo 209.º do Regulamento Geral das Capitanias, aprovado pelo Decreto-Lei 265/72, de 31 de Julho.
Apoia o pedido na circunstância de terem já sido julgadas materialmente inconstitucionais nos Acórdãos n.os 16/84/49/83 e 103/83, todos de fiscalização concreta de constitucionalidade, e datados, respectivamente, de 4 de Julho de 1984, os dois primeiros, e de 25 de Março de 1985, o terceiro.
Para prova do alegado, junta fotocópias dos citados acórdãos.
II - Os acórdãos juntos são, respectivamente, os dois primeiros, da 2.ª Secção e, o último, da 1.ª Secção e foram publicados na 2.ª série do Diário da República, os da 2.ª Secção em 10 de Janeiro de 1985 e o da 1.ª em 28 de Maio de 1985.
Todos eles foram aprovados por unanimidade e todos eles, nos respectivos casos concretos que apreciaram, julgaram inconstitucionais as normas constantes do n.º 1 do artigo 206.º e do n.º 5 do artigo 209.º do Regulamento Geral das Capitanias, aprovado pelo Decreto-Lei 265/72, de 31 de Julho, por violação dos artigos 205.º, 206.º. 208.º e 212.º da Constituição e, no acórdão da 1.ª Secção ainda por violação dos artigos 20.º, n.º 2, e 18.º, n.º 2, do mesmo diploma fundamental.
III - As normas cuja inconstitucionalidade se pede seja declarada com força obrigatória geral dispõem:
a) N.º 1 do artigo 206.º:
É competente para decidir os litígios referidos na alínea oo) do n.º 1 do artigo 10.º a autoridade marítima em cuja área de jurisdição ocorreu o facto ou, quando este tenha tido lugar fora das águas de jurisdição nacional, a do primeiro porto nacional que a embarcação escalar.
b) N.º 5 do artigo 209.º:
Não pode ser intentada acção no tribunal competente para resolver qualquer dos litígios a que este capítulo se refere sem ele ter sido submetido a decisão do capitão do porto.
Tal como se acentua num dos acórdãos juntos - o n.º 71/84 -, «segundo o preceituado nos artigos 205.º e 206.º da Constituição, 'os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbindo-lhes no exercício dessa competência assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados'.
Com base nestas disposições constitucionais é quase geral o entendimento segundo o qual a lei fundamental reserva a função jurisdicional aos tribunais, competindo a estes, e só a estes, a administração da justiça. (Assim, J.J.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, p. 396; J.J Gomes Canotilho, Direito Constitucional. 3.ª ed., pp. 575 e 576; Jorge Miranda, A Constituição de 1976: Formação, Estrutura, Princípios Fundamentais, pp. 476 e 479, e Acórdãos n.os 41 e 155 da Comissão Constitucional, de 20 de Outubro de 1977 e 29 de Maio de 1979, respectivamente; cf., todavia, as reservas constantes da declaração de voto junta a este último acórdão, subscrita pelo vogal Prof. Figueiredo Dias.) E, efectivamente, na medida em que a Constituição considera os tribunais os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça, isto é, para exercer a função jurisdicional tal como se encontra definida no artigo 206.º, não parece que entendimento diverso deva ser perfilhado».
Entretanto, como se salienta no Acórdão junto n.º 56/85, o facto de a Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro, ter alterado o artigo 212.º da Constituição, permitindo a existência de tribunais marítimos, não autoriza o argumento de que, como os preceitos constitucionais são de aplicação imediata, as disposições em causa do Regulamento Geral das Capitanias deixaram de contrariar qualquer disposição constitucional.
«À luz da interpretação conjugada dos artigos 205.º, 206.º e 208.º da Constituição, as 'autoridades marítimas' referidas no mesmo Regulamento Geral das Capitanias não têm a natureza de 'tribunais', nem os 'capitães dos portos' podem ser considerados 'juízes'; como tal, as competências a estes atribuídas pelo referido Regulamento Geral das Capitanias ofendem frontalmente a reserva da função jurisdicional constitucionalmente outorgada aos tribunais.» E não pode esquecer-se que a independência do tribunal é, na sua essência, resultante da independência dos juízes, mediante a criação de condições objectivas.
No entanto, tais condições não se verificam relativamente às autoridades marítimas, v. g., aos capitães de porto, já que estes estão integrados no sistemas da Administração Pública e são hierarquicamente dependentes, porque hierarquicamente subordinados a várias entidades, tais como o director-geral dos Serviços de Fomento Marítimo, e através deste ao Chefe do Estado-Maior da Armada e, consequentemente, ao próprio Governo, não podendo, por isso, de nenhum modo, enquadrar-se em qualquer das categorias de tribunais de que nos fala o artigo 212.º da Constituição.
Mas poderá dizer-se que os capitães de porto, apesar de não deverem ser considerados tribunais, podem praticar, como autoridades administrativas, certos actos jurisdicionalizados, o que não seria contrário à Constituição, por nada impedir que certos processos conducentes à prática de actos administrativos sigam uma forma jurisdicionalizada.
Simplesmente o que não pode ser consentido é que, como à face das disposições questionadas acontece, a autoridade marítima resolva um litígio, julgue um Processo, porque o exercício dessa competência não faz parte da função administrativa, pelo contrário, consubstancia uma função jurisdicional como indiscutivelmente se alcança do artigo 206.º da Constituição.
De resto, como bem se realça no Acórdão 72/84, junto aos autos, «o acto praticado pelo capitão do porto não pode, pois, ser considerado como um acto administrativo jurisdicionalizado, recorrível para os tribunais, antes deve ser tido como um verdadeiro e próprio acto jurisdicional. Só assim não aconteceria caso se entendesse que a autoridade marítima agia como mera instância conciliatória ou que a sua intervenção assumia o carácter de um mero parecer técnico destinado a auxiliar o tribunal no julgamento da questão. Tal interpretação não é, porém, compatível com o texto da lei nem com o seu espírito. Esta, efectivamente, é clara quando determina que a autoridade marítima dispõe de competência para 'decidir os litígios', mesmo nos casos em que tal decisão se pode recorrer para os tribunais comuns. E não poderia este Tribunal proceder à conversão dessa 'decisão' em 'parecer técnico', para tanto substituindo-se ao próprio legislador».
Assim, e remetendo-se no mais que aqui não é tratado para o que nos três acórdãos juntos foi largamente desenvolvido, e que aqui se dá como integralmente reproduzido, entende-se ser de atender o pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas dos artigos 206.º, n.º 1, e 209.º, n.º 5, do Regulamento Geral das Capitanias, por violação dos artigos 205.º, 206.º, 208.º e 212.º da Constituição, que são as normas que aqueles acórdãos comummente têm por violadas.
Nestes termos, decidem declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas dos n.os 1 do artigo 206.º e 5 do artigo 209.º do Regulamento Geral das Capitanias, aprovado pelo Decreto-Lei 265/72, de 31 de Julho, por violação dos artigos 205.º, 206.º, 208.º e 212.º da Constituição.
Lisboa, 27 de Maio de 1986. - José Magalhães Godinho - Mário Afonso - Vital Moreira - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Diniz - José Martins da Fonseca - Mário de Brito - Raul Mateus - António Luís Costa Mesquita - Armando Manuel Marques Guedes.