Acórdão do Tribunal Constitucional 180/2022, de 12 de Abril
- Corpo emitente: Tribunal Constitucional
- Fonte: Diário da República n.º 72/2022, Série I de 2022-04-12
- Data: 2022-04-12
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Sumário
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Sumário: Pronuncia-se pela inconstitucionalidade das normas do artigo 4.º, n.º 2, alíneas b) e f), e das normas do artigo 13.º do «Regime Jurídico da Atividade de Transportes Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica para a Região Autónoma dos Açores», aprovado pelo Decreto 1/2022, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores.
Processo 227/2022
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - O Representante da República para a Região Autónoma dos Açores requereu, ao abrigo do disposto no artigo 278.º, n.os 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e dos artigos 57.º e seguintes da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva, e a consequente pronúncia pela inconstitucionalidade, das normas constantes das alíneas b) e f) do n.º 2 do artigo 4.º e do artigo 13.º do Decreto 1/2022 da Assembleia Legislativa, da Região Autónoma dos Açores, que estabelece o Regime Jurídico da Atividade de Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a Partir de Plataforma Eletrónica na Região Autónoma dos Açores (TVDERAA), aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores em 11 de janeiro de 2022 e recebido, no seu Gabinete, no dia 11 de fevereiro de 2022.
2 - Parâmetros da constitucionalidade invocados
O requerente alega que as normas objeto do pedido violam o artigo 47.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que consagra a liberdade de escolha de profissão (direito, liberdade e garantia) - ao estabelecerem inovatoriamente determinados requisitos para o acesso à profissão de motorista de TVDE - e o artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que consagra a liberdade de iniciativa económica privada ("direito económico [...] e direito de natureza análoga a direito, liberdade e garantia, por força do artigo 17.º da Lei Fundamental.") - ao estabelecer um regime de contingentação do número de averbamentos ou licenças a emitir pelo serviço público competente - e consequentemente tais normas são:
i) Organicamente inconstitucionais, por violação conjugada da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º e da parte final da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, por manifesta invasão da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República;
ii) Materialmente inconstitucionais porque violam o princípio da proporcionalidade na restrição dos direitos aludidos, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
3 - O pedido assenta nos seguintes fundamentos
Os fundamentos apresentados no pedido para sustentarem as inconstitucionalidades das normas impugnadas são os seguintes:
"II
2 - O regime jurídico constante do Decreto ora em apreciação - abreviadamente TVDE - visa disciplinar o exercício na Região Autónoma dos Açores de uma atividade económica e profissional que se encontra regulada, no plano nacional, pela Lei 45/2018, de 10 de agosto, introduzindo aí algumas adaptações - algumas de natureza orgânica e procedimental, mas outras de natureza substantiva - destinadas a acautelar um conjunto de interesses regionais, que são sumariamente identificados no preâmbulo do próprio diploma e dos quais se destaca a sustentabilidade ambiental.
No essencial, o regime regional aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores não só não afasta a aplicação ao território insular da Lei 45/2018, de 10 de agosto - cujo regime, aliás, o n.º 5 do artigo 1.º do Decreto 1/2022 declara de aplicação supletiva -, como preserva o modelo regulador básico de exercício da atividade em causa. Isto é, um modelo tripartido de licenciamento:
a) Dos operadores de TVDE, que são as empresas detentoras (e que registam) as viaturas utilizadas no exercício da atividade;
b) Dos motoristas de TVDE, que conduzem os utilizadores do serviço de transporte do ponto A para o ponto B e se encontram vinculados contratualmente a um dos operadores;
c) Das plataformas eletrónicas, que são as empresas titulares ou que exploram as infraestruturas eletrónicas que prestam o serviço de intermediação entre os utilizadores aderentes e os operadores de TVDE.
Antes de mais, do ponto de vista jurídico-constitucional, relevante é assinalar que as regras legais de acesso e exercício da atividade de motorista de TVDE devem ser equacionadas à luz da liberdade de escolha de profissão - direito, liberdade e garantia consagrado no n.º 1 do artigo 47.º da Constituição - , ao passo que o regime legal regulador do acesso e exercício da atividade das operadoras de TVDE e das plataformas eletrónicas constitui precipuamente um problema de liberdade de iniciativa económica privada - direito económico previsto no n.º 1 do artigo 61.º da Constituição e direito de natureza análoga a direito, liberdade e garantia, por força do artigo 17.º da Lei Fundamental.
Não se ignora que os dois direitos não são propriamente isentos de relação: com efeito, "a liberdade de empresa [...] apresenta importantes afinidades com a liberdade profissional stricto sensu [...]. Nos dois casos, o seu exercício constitui um modo de vida, ou um modo de ganhar a vida, e de realização pessoal e profissional; e, nessa medida, ambas representam a projeção no domínio económico do valor do livre desenvolvimento da personalidade (Evaristo Mendes, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., Lisboa, 2017, p. 856, e também pp. 876-877). Desde logo, uma regulamentação muito restritiva da liberdade de iniciativa económica num determinado setor de atividade - v.g., limitando o acesso ao mercado de novos operadores, mais inovadores ou com um diferente modelo e negócio - redunda, naturalmente, em menores oportunidades de acesso e exercício das profissões correspondentes.
Não obstante, considerando a diversidade dos regimes constitucionais de proteção das duas liberdades em causa, julga-se que uma análise separada das questões tornará mais clara a discrepância entre as novas exigências regulatórias especificamente aduzidas pelo Decreto 1/2022 - no confronto com o regime definido pela Assembleia da República - e os parâmetros orgânicos e materiais decorrentes da Constituição.
III
3 - Estabelece o artigo 47.º da Lei Fundamental que "todos têm o direito de escolher livremente a profissão e o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade".
Neste quadro, o legislador nacional regulou de forma particularmente detalhada e exigente - ao longo dos extensos artigos 10.º e 11.º da Lei 45/2018, de 10 de agosto - as condições de acesso e exercício da profissão de motorista de TVDE. Os eventuais candidatos a motoristas de TVDE que não preencham a totalidade dos requisitos elencados pela lei - ou que, porventura, deixem de os preencher supervenientemente - não podem pura e simplesmente exercer essa profissão. Por outras palavras, terão de encontrar outro modo de vida e de procurar assegurar a sua subsistência num outro setor do mercado de trabalho. Não estão em causa, aqui, apenas normas conformadoras de uma atividade económica, mas sim verdadeiras e próprias restrições legais a um direito, liberdade e garantia - um direito que, sublinhe-se, é crucial para a realização profissional e pessoal dos indivíduos. Em última análise, um direito através do qual cada um projeta o livre desenvolvimento da sua personalidade.
A segunda parte do n.º 1 do artigo 47.º não podia ser mais clara a este respeito: nela se autoriza expressamente o legislador ordinário - em sintonia com a letra do n.º 2 do artigo 18.º, que limita as restrições aos "casos expressamente previstos na Constituição - a restringir o acesso a determinadas profissões quando tal seja necessário para salvaguardar o "interesse coletivo" ou quando as pessoas não tenham "capacidade" - física, intelectual, conhecimentos, habilitações - para desempenhar a profissão a que aspiram.
Não obstante a exaustiva regulação feita pela Assembleia da República - no sentido de acautelar o interesse coletivo (v.g. requisitos relativos à idoneidade dos motoristas) e de evitar o acesso à profissão de motorista de TVDE a pessoas sem a necessária capacidade (v.g., carta de condução adequada e curso de formação rodoviária) - , o artigo 4.º do Decreto 1/2022 vem acrescentar mais dois requisitos - inovadores - que restringem ainda mais o acesso à profissão em causa. Com efeito, para se obter um "certificado regional de motorista de TVDE" é ainda essencial "cumprir o requisito de escolaridade obrigatória" [alínea b)] e ter "domínio da língua portuguesa" [alínea f)] - domínio que, por princípio, abrange compreensão e expressão oral e compreensão e expressão escrita.
Consequentemente, estas duas alíneas do n.º 2 do artigo 4.º são organicamente inconstitucionais, por violação conjugada da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º e da parte final da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, por manifesta invasão da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República. Ainda muito recentemente, aliás, no seu Acórdão 429/2020, o Tribunal Constitucional foi claro, ao afirmar:
"Se o artigo 12.º do Decreto em apreciação proibisse em absoluto os operadores de TVDE de exercer serviços de turismo, isso constituiria uma limitação inovadora ao desempenho daquela atividade, que não encontraria cobertura no regime consagrado na Lei mencionada. Essa limitação traduzir-se-ia numa restrição originária ao direito à livre iniciativa económica privada previsto no artigo 61.º da Constituição, pois, a liberdade de empresa constitui uma dimensão essencial desse direito fundamental, suscetível de ser considerada análoga à categoria dos direitos, liberdades e garantias. De igual forma, a limitação em questão implicaria ainda uma restrição originária à liberdade de escolha de profissão consagrada no artigo 47.º da Constituição, na medida em que impediria um motorista de constituir a sua própria empresa para prestar simultaneamente serviços de TVDE e serviços de turismo. Nessa eventualidade, e tendo em conta que a regulação de direitos, liberdades e garantias (ou de direitos fundamentais com natureza análoga, nos termos do artigo 17.º da Constituição) integra a reserva relativa da competência da Assembleia da República [artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da Constituição], a restrição em questão estaria ferida de inconstitucionalidade orgânica, pois não poderia ser feita pela Assembleia Legislativa da RAM."
É esta, aliás, a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional - já desenvolvida, por exemplo, no Acórdão 88/2012: sempre que "as normas apreciadas versam sobre condições ou requisitos substanciais de acesso ao exercício da profissão", "limitando em consequência o universo de pessoas que a ela poderão aceder", "haverá de concluir-se que essa matéria apenas poderá ser regulada por lei parlamentar ou diploma governamental autorizado". Não surpreende, portanto, que o Tribunal Constitucional tenha reiterado agora a sua posição - justamente a respeito de um diploma da Região Autónoma da Madeira sobre regulação da atividade de TVDE - segundo a qual "uma restrição originária à liberdade de escolha de profissão consagrado no artigo 47.º da Constituição", quanto efetuada pelo legislador regional, estaria necessariamente "ferida de inconstitucionalidade orgânica".
É verdade que exigências semelhantes às das alíneas b) e f) do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto em análise constam também, grosso modo, das alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 5.º da Lei 6/2013, de 22 de janeiro, que aprova o regime jurídico de "acesso e exercício da profissão de motorista de táxi". Simplesmente, isso só demonstra que o legislador nacional - a Assembleia da República, em ambos os casos, sublinhe-se - optou por estabelecer regimes diversos de acesso às profissões de motorista de táxi e de motorista de TVDE, atendendo às características específicas e às exigências próprias de cada uma delas. Não obstante alguns pontos de contacto, em causa estão dois regimes jurídicos de atividades bastante diferenciadas - e, justamente por isso, o legislador parlamentar tomou a opção política de fundo de manter o seu tratamento em separado. E, como é evidente, regimes jurídicos que por definição estão reservados aos órgãos de soberania não podem ser fundidos ou reconfigurados pelos órgãos legislativos das Regiões Autónomas para efeitos da sua aplicação nos territórios insulares.
4 - As restrições de acesso à profissão de motorista de TVDE introduzidas pelo legislador regional - "cumprir o requisito de escolaridade obrigatória" e ter "domínio da língua portuguesa" - são também materialmente inconstitucionais, por violação dos parâmetros materiais que o n.º 2 do artigo 18.º prescreve para todas as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias.
É certo que, na perspetiva da generalidade das pessoas, hoje felizmente com níveis cada vez mais elevados de instrução e qualificações académicas, as exigências em causa podem parecer naturais, contribuindo até para a melhoria da qualidade em sentido lato do serviço prestado aos passageiros transportados. É inegável também que, do ponto de vista dos passageiros portugueses - não, como é evidente, dos muitos turistas estrangeiros que procuram os Açores - , é certamente agradável poder entabular uma conversação na sua língua materna com o motorista de TVDE que os conduz.
Acontece que, do ponto vista da liberdade de acesso e exercício da profissão, a perspetiva de análise não deve ser tanto essa, da perceção dos cidadãos comuns ou das expectativas pessoais dos utilizadores dos TVDE. A perspetiva determinante deve ser antes a daquelas pessoas que ficam excluídas pelas exigências legais acrescentadas pelo legislador regional. Por exemplo: a perspetiva daqueles jovens que, por razões culturais ou por circunstâncias familiares, abandonaram a escola demasiado cedo - e que assim não vão poder ser motoristas de TVDE; a perspetiva daquelas pessoas que chegaram à idade adulta com um baixo nível de instrução e que, por isso, sofrem já no seu dia a dia as dificuldades inerentes a um emprego pouco qualificado e mal remunerado - pessoas que também não vão poder complementar o seu rendimento mensal como motoristas de TVDE; ou a perspetiva dos emigrantes que, chegados a Portugal há relativamente pouco tempo, têm dificuldade em encontrar um emprego em que o (insuficiente) domínio da língua portuguesa não seja uma barreira inultrapassável - e que assim igualmente se veem excluídos da profissão de motorista de TVDE.
Por um lado, o abandono escolar precoce é um problema multifatorial e de difícil resolução, que as estatísticas oficiais do INE mostram estar ainda longe de ser erradicado. No caso específico dos Açores, não obstante os progressos realizados nos últimos anos, a taxa de abandono escolar precoce mantém-se claramente acima de 20 %. Por outro lado, Portugal é hoje um destino relevante de imigração de pessoas provindas de muitas partes do Globo e que aqui procuram uma vida melhor - e não apenas de pessoas provenientes dos países de língua oficial portuguesa.
Segundo o n.º 1 do artigo 47.º da Constituição, só podem estabelecer-se aqueles requisitos de acesso à profissão que sejam necessários para salvaguardar o "interesse coletivo" e para garantir que a pessoa tem "capacidade" adequada à função. A questão que importa responder é, portanto, a de saber se uma pessoa que não preencha um ou os dois requisitos adicionais impostos pelo legislador regional pode ou não conduzir um passageiro em segurança do ponto A para o ponto B, seguindo as indicações GPS que lhe são apresentadas por uma aplicação eletrónica? E a resposta é claramente positiva, uma vez que o enquadramento tecnológico em que os motoristas de TVDE desenvolvem a sua atividade permite reduzir ao mínimo a comunicação com os clientes e conduzi-los diretamente aos respetivos destinos - algo que não sucede, como é sabido, com os taxistas, que precisam de interagir mais com os clientes para saber o destino, têm muito mais autonomia na escolha dos percursos e no final têm de fazer a cobrança do serviço. Mais ainda, o Decreto 1 /2022 é claríssimo ao impedir os operadores de TVDE - e, consequentemente, os respetivos motoristas - de assumirem qualquer função que vagamente se assemelhe à de guia ou operador turístico (artigo 14.º).
Por conseguinte, os requisitos inovadoramente adicionados pelas alíneas b) e f) do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto 1/2022 constituem restrições desnecessárias à liberdade de escolha e exercício de profissão de operador de TVDE. Muito em particular, não se vislumbra que outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos poderiam, à luz do n.º 2 do artigo 18.º, justificar semelhantes restrições. Mesmo a tutela dos direitos dos consumidores - ou dos consumidores portugueses - , está já suficientemente acautelada pela legislação geral em vigor - assim como pela Lei 45/2018, de 10 de agosto, e por outras disposições do próprio Decreto 1/2022.
De resto, é importante não esquecer que a elevação das qualificações hoje requeridas para exercer muitas profissões - elevação que no caso em análise é feita por via legal, mas que frequentemente resulta do próprio funcionamento do mercado - sendo em geral um fenómeno muito positivo, não deixa também de penalizar (duplamente) aquelas pessoas que, pelos infortúnios da vida, não tiveram a oportunidade de concluir a escolaridade obrigatória e que, numa "sociedade justa e solidária" (artigo 1.º da Constituição), não devem ser sistematicamente coartadas nas suas aspirações profissionais. É por esse motivo que "não podem estabelecer-se requisitos académicos (graus ou formações) que não sejam essenciais ao exercício da profissão". E se algumas "restrições de índole subjetiva [...] podem ser justificadas [...] se necessárias e proporcionadas, já as restrições de índole objetiva (numerus clausus, contingentação) são em princípio injustificáveis (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007 p. 657)
5 - Além das razões anteriormente apontadas, o requisito do "domínio da língua portuguesa" - que pela formulação genérica como é apresentado, pode abarcar tanto a compreensão e expressão orais como a compreensão e expressão escritas - é ainda violador do princípio da equiparação do artigo 15.º da Constituição.
Com efeito, o que o n.º 1 deste preceito estabelece é que os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos mesmos direitos dos cidadãos portugueses - princípio este que, naturalmente, abarca a liberdade de escolha e exercício da profissão. O domínio da língua portuguesa não constitui condição prévia da aplicação deste princípio a todos os estrangeiros e apátridas que vivam em território nacional.
É sabido que o n.º 2 deste mesmo artigo 15.º consagra quatro exceções ao princípio da equiparação estabelecido no n.º 1, na última das quais autoriza a lei (ordinária) a reservar alguns direitos "exclusivamente aos cidadãos portugueses" - e, dir-se-ia, por maioria de razão, aos cidadãos portugueses e aos estrangeiros ou apátridas que dominem a língua portuguesa.
Sucede que esta referência final que o n.º 2 do artigo 15.º faz à "lei" não pode ser entendida como uma autorização genérica para o legislador ordinário reservar o exercício de certas profissões a portugueses, protegendo o emprego dos nacionais relativamente aos imigrantes - ou relativamente aos imigrantes que não dominem (ou ainda não dominem) a língua portuguesa. Essa referência à "lei" nunca poderia ser um cheque em branco passado ao legislador, que em última análise teria a oportunidade de esvaziar por essa via o princípio da equiparação do n.º 1 do artigo 15.º - princípio que não apenas reflete a vocação universalista portuguesa, como tem raízes fundas na tradição constitucional portuguesa.
Em suma, a dita referência à "lei" é uma remissão para o exigente regime das restrições legais a direitos, liberdades e garantias, constante dos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição (Jorge Pereira da Silva, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, cit., pp. 206-208). E, chegados a este ponto, não se vislumbra que outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos é que podem ter força suficiente para, numa análise exigente de proporcionalidade, justificar o afastamento liminar dos imigrantes que não dominam adequadamente a língua portuguesa do acesso e exercício da profissão de motorista de TVDE. Sem pôr em causa a relevância social e económica da função, trata-se de conduzir uma viatura ligeira, seguindo uma rota previamente definida por um GPS, cumprindo escrupulosamente as regras do Código da Estrada e as regras gerais de urbanidade para com os passageiros transportados.
Por outras palavras, se o legislador pudesse erigir o domínio da língua portuguesa como condição de acesso à generalidade das profissões - sempre que o conhecimento da língua possa ser minimamente relevante para facilitar a prestação do serviço ou sempre que haja um mínimo de interação com cidadãos portugueses - , que profissões restariam para os imigrantes não lusófonos quando chegam a Portugal em busca de um futuro melhor?
IV
6 - O artigo 13.º do Decreto 1/2022 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores - disposição sem paralelo na Lei 45/2018, de 10 de agosto - afigura-se também inconstitucional, uma vez que o regime de contingentação que estabelece - o número de averbamentos ou licenças a emitir pelo serviço público competente não excederá 5 % do total de táxis licenciados em cada ilha - viola o n.º 1 do artigo 61.º da Constituição, que consagra a liberdade de iniciativa económica privada.
Não se desconhece que a própria letra do n.º 1 do artigo 61.º - em acréscimo à particular localização sistemática deste preceito, decorrente do momento histórico em que a Constituição foi aprovada - reflete a intenção de conceder ao legislador ordinário uma ampla margem de conformação na disciplina que define, em cada momento, para as diferentes atividades económicas. Assim como também não se desconhece o imenso acervo jurisprudencial que, nessa senda, reconhece ao legislador a possibilidade de regulamentar o exercício da liberdade em causa, quer quando exercida individualmente, quer quando exercida sob forma empresarial. Por isso, seria absurdo questionar a possibilidade de o legislador ordinário (nacional ou regional) regular - até de forma bastante densa e exigente - a atividade dos operadores de TVDE e das plataformas eletrónicas que prestam o serviço de intermediação entre os utilizadores e as ditas operadoras.
7 - Não obstante, também não é possível esquecer duas coisas importantes. Primeiro, que a ampla liberdade de que o legislador ordinário beneficia neste domínio não é absolutamente ilimitada e que o próprio n.º 1 do artigo 61.º estabelece como parâmetros para o seu exercício "os quadros definidos pela Constituição" e o "interesse geral". Segundo, que fora dos setores básicos de atividade vedados à iniciativa económica privada (n.º 3 do artigo 86.º da Constituição), a contingentação do acesso a uma atividade económica é das formas mais rígidas e agressivas de restrição do direito de iniciativa económica privada e, de certa forma, é uma das vias mais anómalas de regulação económica numa economia de mercado. Nem mesmo em setores de atividade em que está em causa um interesse público de primeira grandeza - como a saúde, a educação ou a comunicação social - o legislador adota estratégias reguladoras assentes na limitação absoluta ou percentual do número de empresas, estabelecimentos ou prestadores de serviços que podem atuar no mercado.
Neste sentido, a fórmula semântica utilizada pelo n.º 1 do artigo 61.º - a referência aos "quadros definidos pela Constituição" - não pode ser nem vazia nem redundante, mas remissiva para outras normas constitucionais, mormente da parte II da Lei Fundamental, na qual se encontram os princípios básicos da organização económica portuguesa e as tarefas fundamentais do Estado nesse domínio. Dito de outro modo, o que cabe ao legislador ordinário - ao abrigo daquela remissão - não é tanto um "poder conformador da liberdade em questão: (mas) sim o poder de conformar o sistema socioeconómico em que ela se desenvolve" (Evaristo Mendes, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, cit., p. 872).
Torna-se, assim, incontornável a convocação da tarefa fundamental do Estado - rectius de todos os poderes públicos em geral - de "assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, contrariar formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral" (alínea f) do artigo 81.º da Constituição). Não cabe naturalmente ao Tribunal Constitucional determinar como se promove o funcionamento eficiente do mercado do transporte individual remunerado de passageiros, nem o modo concreto como se garante uma concorrência equilibrada entre táxis e TVDE - essa será sempre uma tarefa indeclinável do legislador democrático, nacional e regional - , mas afigura-se manifesto que a solução regional de estabelecer um contingente de 5 % de TVDE põe em causa o eficiente funcionamento do mercado e viola o princípio da concorrência equilibrada entre os agentes económicos envolvidos.
Efetivamente, "numa ordem económica baseada no mercado [...] todas as formas de iniciativa e de atividade económica [...] têm de submeter-se à disciplina da concorrência. Desse ponto de vista, o princípio da concorrência constitui um fundamento para restrições à liberdade económica nas suas diferentes modalidades (proibição de práticas restritivas [...] e para impedir situações lesivas da concorrência). Por outro lado, porém, o princípio da concorrência é um fator de fomento da liberdade económica, favorecendo a liberdade de entrada de novos operadores no mercado e a eliminação de fatores que a restrinjam" (Gomes Canotilho/Vital Moreira, cit, pp. 795-796).
Entre a liberdade de iniciativa económica do n.º 1 do artigo 61.º e a tarefa fundamental do Estado consagrada na alínea f) do artigo 81.º existe, assim, uma conexão íntima, uma vez que "fruto da evolução do modelo constitucional jus-económico [...], os mercados assumem hoje um relevo extraordinário, e estendem-se a praticamente todos os níveis mais relevantes da atividade social tratados pelos direitos fundamentais com assento constitucional" - e, em última análise "o funcionamento eficiente dos mercados constitui uma verdadeira condição da liberdade" (Rui Guerra da Fonseca, org. Paulo Otero, Comentário à Constituição Portuguesa, II, Coimbra, 2008, p. 181).
De resto, sublinhe-se ainda que, não obstante a natureza programática destas normas constitucionais que consagram direitos económicos e que elencam as tarefas fundamentais do Estado - no caso vertente, a parte final do n.º 1 do artigo 61.º e a parte final da alínea f) do artigo 81.º, que apontam ambas para a necessidade de a regulação da iniciativa económica promover o "interesse geral" - elas não perdem a sua natureza jurídica e, com isso, podem revelar um conteúdo prescritivo mínimo. Ora, independentemente do que seja o "interesse geral" da comunidade no domínio em causa, sob o prisma económico ou social, é evidente que o mesmo não se identifica com os interesses particulares de uma específica classe profissional, de uma corporação, de um grupo de pressão, de uma só empresa ou de um conjunto restrito de agentes económicos. Salvo eventualmente em setores muitíssimo específicos da atividade comercial, o interesse geral andará normalmente a par com "uma concorrência salutar dos agentes mercantis" (alínea a) do artigo 99.º da Constituição).
V
8 - A liberdade de iniciativa económica privada, como qualquer outro direito fundamental, aliás, tem um conteúdo rico e complexo. Por isso, é pacificamente aceite que, além de um direito económico, ela constitui também - mormente na sua dimensão negativa - um direito de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias. Consequentemente, por força do artigo 17.º, é-lhe aplicável o regime material desta categoria de direitos - e até, pelo menos no que toca ao seu núcleo verdadeiramente essencial, o regime orgânico. Ou seja, para o que é relevante quanto ao escrutínio do artigo 13.º do Decreto 1/2022, o regime das restrições constante dos n.os 2 e 3 do artigo 18.º - assim como, em segunda linha, a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º
Ainda que este especial regime constitucional de proteção não seja aplicável, em bloco, ao direito consagrado no n.º 1 do artigo 61.º, sê-lo-á sem dúvida àquela vertente do direito que guarda analogia substantiva e estrutural com os típicos direitos, liberdades e garantias: o direito - exercido de forma individual ou coletiva - a livremente constituir uma empresa, a aceder ao mercado sem que lhe sejam impostos obstáculos injustificados - desde logo, por parte de poderes públicos - e de aí conduzir a respetiva atividade sem interferência de terceiros. Deste ponto de vista, a liberdade de iniciativa económica privada guarda seguramente analogia com os direitos do título II da Parte I da Lei Fundamental na sua "dimensão pessoal ou individual", mas já não na sua "dimensão sistémica ou institucional" (Evaristo Mendes, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, cit., p. 857).
Em contrapartida, a natureza análoga dessa dimensão pessoal e individual da liberdade de iniciativa económica privada significa que ela não pode ser configurada por lei como um conjunto de exceções (pontuais, mais ou menos estreitas) a um modelo de organização da economia em que o acesso às atividades económicas está por regra limitado administrativamente, contingentado, segmentado, ostensivamente burocratizado ou mesmo vedado em termos práticos. Por definição, uma liberdade não precisa de se justificar; são os condicionamentos e as restrições que lhe são impostas pelo legislador que carecem de uma justificação clara, coerente e transparente. Uma liberdade que apenas pode ser exercida nos interstícios de um manto normativo carregado de imposições, obstáculos e proibições é uma liberdade ferida no seu conteúdo essencial. Neste sentido, é importante que o legislador assuma um ónus de fundamentação das verdadeiras e próprias restrições que impõe à liberdade de iniciativa económica privada.
9 - Neste pressuposto, antes mesmo de enveredar por uma análise do artigo 13.º em apreço à luz do princípio da proporcionalidade - averiguando da adequação, necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito (razoabilidade ou justa medida) do sistema de contingentação que nele se estabelece -, importa encontrar quais são os fins legítimos que justificam a restrição à liberdade de iniciativa económica privada operada pelo legislador regional. Nas palavras da Constituição, quais são os "outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos" que o contingente de 5 % de TVDE relativamente aos táxis visa "salvaguardar"?
Em abstrato, são muitos os direitos e interesses constitucionais que autorizam restrições, mais ou menos profundas, à liberdade de iniciativa económica privada. E, mesmo considerando apenas a atividade económica de transporte individual de passageiros, mediante remuneração, ocorrem pelo menos os seguintes, independentemente da identificação exaustiva do respetivo esteio constitucional:
a) Os direitos dos trabalhadores, em particular dos motoristas;
b) Os direitos dos consumidores, incluindo a sua segurança;
c) O cumprimento das obrigações fiscais por parte de todos os contribuintes envolvidos;
d) As necessidades especiais dos passageiros portadores de deficiência;
e) A não discriminação de tratamento de todos os clientes;
f) A segurança rodoviária e a desejável redução da sinistralidade;
g) A preservação do ambiente;
h) Eventualmente, em algumas zonas específicas do território, o ordenamento urbanístico e a preservação do património cultural.
Sucede que, em termos substantivos, todos os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos acabados de elencar já estão devidamente acautelados pelo regime regulatório aplicável aos TVDE, tanto pela Lei 45/2018, de 10 de agosto, como pelo Decreto 1/2022, quer quando acompanha o regime daquela, quer quando vai ainda um pouco mais longe nas exigências que estabelece.
O único valor constitucionalmente relevante que a Lei 45/2018, de 10 de agosto, não tutela de uma forma enfática é a proteção do ambiente - que apenas é protegida pela limitação quanto à idade máxima de 7 anos dos veículos TVDE. Por essa razão, não se questiona aqui a constitucionalidade do n.º 4 do artigo 6.º do Decreto 1/2022, justamente porque a restrição suplementar que impõe à liberdade de iniciativa económica privada - todos os veículos TVDE terão de ser 100 % elétricos - prossegue um interesse público relevante, aliás identificado como tal no preâmbulo do próprio diploma.
Simplesmente, é aqui que a solução da contingentação adotada pelo artigo 13.º do Decreto 1/2022 se releva paradoxal. Na Região Autónoma dos Açores, o transporte de passageiros em veículos TVDE será ecologicamente bastante mais sustentável do que o transporte em táxis, cujo funcionamento a gasóleo os torna claramente mais nocivos para o ambiente. A não ser que a obrigatoriedade de utilizar veículos 100 % elétricos venha a ser progressivamente alargada aos táxis - ou, pelo menos, aplicada a todos os novos veículos destinados a essa modalidade de transporte de passageiros - , o valor constitucionalmente protegido da sustentabilidade ambiental deveria conduzir a um regime de acesso alargado à atividade de TVDE e não a um regime de contingentação que, de forma contraproducente, protege a utilização de veículos claramente mais poluentes.
No preâmbulo do Decreto 1/2022, sublinha-se a "obrigação de tudo fazer para continuar a viver numa sociedade ambientalmente sustentável" - obrigação que terá sido "a razão principal na génese da criação de um regime jurídico próprio" - , mas o resultado prático da aplicação desse regime poderá bem ser o seguinte: 5 % de veículos totalmente elétricos; e 95 % de veículos a gasóleo, frequentemente com muitos anos de serviço.
10 - Excluído o fim importante da proteção do ambiente, a dificuldade em encontrar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos carecidos de salvaguarda e que possam eventualmente ser tutelados pelo contingente imposto pelo artigo 13.º do Decreto em análise coloca o seguinte problema: como fazer uma análise dessa medida legislativa de fixação de um numerus clausus à luz do triplo teste da proporcionalidade. Afinal, se não se conseguem identificar com segurança quais os fins que o legislador visa prosseguir - excluindo aqui a possibilidade de em causa estar apenas uma medida protecionista da atividade do táxi, com o propósito de dificultar ou evitar a entrada no mercado de operadores económicos concorrentes - , é difícil fazer um juízo sério sobre a adequação ou sobre a necessidade das medidas ou soluções que esse mesmo legislador em concreto adotou para os atingir.
Ainda assim, mesmo admitindo - sem contudo conceder - que a sujeição da atividade de TVDE na Região Autónoma dos Açores pode ser sujeita a um regime rígido de contingentação e que o mesmo pode ser imposto, inovadoramente, pelo legislador regional - dada a ostensiva restrição do núcleo da liberdade de iniciativa económica privada, direito cuja natureza análoga não sofre dúvida nesta dimensão -, sempre terá de se reconhecer que é manifestamente desproporcionado um teto máximo de 5 % "do total de transportes públicos de aluguer de veículos automóveis ligeiros de passageiros, normalmente designados por transportes em táxis, licenciados em cada ilha". Ou seja, 5 % versus 95 % não cumpre manifestamente as exigências de justa medida ou de razoabilidade que decorre do princípio da proporcionalidade e, certamente, não cumpre também o princípio da equilibrada concorrência entre as empresas (alínea f) do artigo 81.º da Constituição) nem contribui para a "concorrência salutar dos agentes mercantis" (alínea a) do artigo 99.º da Lei Fundamental).
Não fosse, aliás, a ressalva do n.º 3 do artigo 13.º do Decreto em análise, várias ilhas não poderiam ter sequer uma única unidade de TVDE. Segundo o Relatório Estatístico dos Serviços de Transporte em Táxi - A realidade atual e a evolução na última década - disponível na página da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes, são os seguintes os números disponíveis:
Para se ter uma ideia aproximada do efeito do regime de contingentação de 5 %, tomando por referência as licenças de táxis atribuídas pelas Câmaras Municipais dos Açores, São Miguel poderia ter 12 unidades TVDE, a Terceira 4, o Pico e o Faial 2 unidades, e todas as restantes ilhas apenas uma unidade cada. A exiguidade de um contingente de 5 %, agravada pela sua aplicação a um mercado segmentado por nove ilhas, algumas delas de pequena dimensão, porventura até mais do que restringir de forma desproporcionada a liberdade de iniciativa económica privada - tanto na sua dimensão individual quanto empresarial - redundará na inviabilização prática da atividade económica em causa. De jure, uma restrição rígida e manifestamente injustificada à liberdade de iniciativa económica privada, constituirá de facto um impedimento ao seu exercício.
Escusado será dizer, a este respeito, que "um aspeto relevante da liberdade de empresa consagrado no artigo 61.º, n.º 1, é a sua efetividade prática" (Evaristo Mendes, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, cit., p. 859). E se não é possível fazer prognósticos seguros quanto ao resultado da aplicação prática do Decreto 1/2022, é um facto público e notório que uma relevante plataforma eletrónica de intermediação de serviços TVDE cessou a respetiva atividade na Região Autónoma da Madeira na sequência da publicação do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, de 2 de outubro, e do contingente fixado no respetivo artigo 11.º.".
A final, o requerente sintetiza o pedido de fiscalização preventiva que formula:
"Nestes termos, o Representante da República para a Região Autónoma dos Açores vem requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva, e a consequente pronúncia pela inconstitucionalidade, das normas constantes das alíneas b) e f) do n.º 2 do artigo 4.º e do artigo 13.º do Decreto 1/2022 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, que estabelece o Regime Jurídico da Atividade de Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a Partir de Plataforma Eletrónica na Região Autónoma dos Açores."
4 - Resposta do autor das normas
Notificada a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, enquanto órgão autor das normas sindicadas, na pessoa do seu Presidente, ao abrigo do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, a mesma apresentou resposta, sustentando a constitucionalidade das normas sob fiscalização com os seguintes argumentos:
"Naquele pedido foram suscitadas três inconstitucionalidades, às quais a ALRAA manifesta a sua discordância, com os seguintes fundamentos:
A - Inconstitucionalidades orgânica e material das normas das alíneas b) e f) do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto 1/2022, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e garantias, consagrada na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP
As restrições legais ao acesso e exercício da profissão de motorista de TVDE na Região Autónoma dos Açores, previstas no artigo 4.º do Decreto 1/2022, respeitam de forma intrínseca o princípio constitucional da liberdade de escolha de profissão ou o género de trabalho, consagrado no n.º 1 do artigo 47.º da Constituição, uma vez que pretendem tão somente salvaguardar o setor do transporte público de passageiros na Região Autónoma dos Açores, designadamente, a nível económico e social, face ao surgimento da nova atividade económica, respeitante ao transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica.
Dado o seu grande impacto no dia a dia da população e no setor do turismo, o serviço de transporte de passageiros reveste claramente na Região Autónoma dos Açores um interesse público, pelo que o exercício desta atividade deve pautar-se pela garantia da segurança e confiança dos cidadãos.
Neste sentido, e em sintonia com o princípio consagrado da segunda parte do n.º 1 do artigo 47.º da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição permite, no caso em análise, ao legislador regional restringir o acesso à profissão de motorista de TVDE, no sentido de exigir a máxima segurança e conhecimento aos motoristas de TVDE, de modo a revestir o exercício desta nova atividade de transporte individual de passageiros na Região, das necessárias segurança, proteção e confiança dos cidadãos.
Deste modo, não se configuram, em nossa opinião, como inconstitucionais os dois requisitos inovadores exigidos pela ALRAA para obtenção de um certificado regional de motorista de TVDE na Região, nomeadamente, o cumprimento do requisito de escolaridade obrigatória previsto na alínea b) do artigo 4.º e o domínio da língua portuguesa, previsto na alínea f) do artigo 4.º, uma vez que, no respeito com o disposto no n.º 2 do artigo 18.º e no n.º 1 do artigo 47.º da Constituição, a norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 61.º da Lei 2/2009, de 12 de janeiro, que aprovou a 3.ª revisão do EPARAA, atribui competência própria à ALRAA para legislar em matéria de promoção dos direitos fundamentais dos trabalhadores, na qual se inclui, naturalmente, a criação de um regime jurídico inovatório de acesso a uma nova profissão, que se deve enquadrar na especificidades singulares da Região Autónoma dos Açores.
B - Inconstitucionalidade orgânica e material da norma do artigo 13.º do Decreto 1/2022, por violação do direito de iniciativa económica privada, consagrada no n.º 1 do artigo 61.º da CRP
O regime de contingentação previsto no artigo 13.º do Decreto 1/2022, nos termos do qual o número de averbamentos ou licenças a emitir pela direção regional com competência em matéria de transportes terrestres, de veículos para a prestação de serviços de TVDE na Região, não excederá o correspondente a 5 % do total de táxis licenciados em cada ilha, não contende, em nossa opinião, com a liberdade de iniciativa económica, consagrada no artigo 61.º da Constituição, e não contende, consequentemente, com direitos fundamentais, liberdades e garantias.
Por outro lado, o direito inerente à liberdade de iniciativa económica privada, não se encontra constitucionalmente ligado nem decorre da liberdade de escolha de profissão, consagrado no artigo 47.º da Constituição, pelo que não poderá inibir o legislador regional de legislar sobre e regular as diferentes atividades económicas, designadamente, a atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica, tendo por base as particularidades da Região.
O Decreto 1/2022, enquanto iniciativa legislativa com incidência em matéria de legislação do trabalho, foi alvo dos procedimentos relativos ao exercício do direito de participação na elaboração de legislação do trabalho, previstos nos artigos 472.º a 475.º do Código do Trabalho, e esteve em apreciação pública de 16 de maio a 5 de junho de 2021, tendo-se verificado que durante este período nenhuma associação profissional se opôs à aprovação da iniciativa legislativa.
Com efeito, o normativo constante do artigo 13.º do Decreto 1/2022, não invade os direitos, liberdades e garantias ou direitos de natureza análoga, já que a sua criação tem por fundamento as especificidades próprias da Região Autónoma dos Açores, e o seu vulnerável e pequeno mercado insular.
De igual modo, verificamos que o regime de contingentação do número de licenças emitidos pela Direção Regional da Economia e Transportes Terrestres (DRETT) da Região Autónoma da Madeira, ao abrigo do artigo 11.º do DLR n.º 14/2020/M, de 2 de outubro, nos termos do qual o número de licenças a emitir "não excederá o correspondente a 40 veículos para a prestação de serviços de TVDE na Região, com um máximo de 3 veículos por operador", é consensualmente aceite, por se entender que este regime não contende com o direito de livre iniciativa económica privada, consagrado no n.º 1 do artigo 61.º da Constituição e, concomitantemente, não contende, com direitos, liberdades e garantias.
Em consequência, a norma do artigo 13.º do Decreto 1/2022, quanto a nós, não invade matéria reservada à competência legislativa da Assembleia da República, designadamente, não interfere com o estabelecido na alínea b), do n.º 1, do artigo 165.º da Constituição, sobre direitos, liberdades e garantias, não sendo, assim, nem material, nem organicamente, nem a qualquer outro título, inconstitucional, e contem-se na competência legislativa da Região Autónoma dos Açores, consagrada na alínea a) do artigo 227.º da Constituição, cujo exercício cabe, exclusivamente, à Assembleia Legislativa da Região Autónoma Açores, nos termos do n.º 1 do artigo 232.º e em matéria de competência legislativa estatutariamente prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 54.º da Lei 2/2009, de 12 de janeiro.".
5 - Foi discutido em Plenário o memorando apresentado pelo relator e fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 59.º da LTC, cumprindo agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.
II. FUNDAMENTAÇÃO
6 - Legitimidade processual
A legitimidade do requerente para o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade que tem por objeto as normas contidas no "Regime Jurídico da Atividade de Transportes Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica para a Região Autónoma dos Açores", aprovado pelo Decreto 1/2022 da Assembleia Legislativa Regional da Região Autónoma dos Açores, advém do artigo 278.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Tendo ainda em conta a circunstância de o pedido conter todas as indicações a que se refere o artigo 51.º, n.º 1, da LTC e a observância de todos os prazos aplicáveis (artigo 278.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e artigos 54.º, 56.º, n.º 4, 57.º, n.os 1 e 2, e 58.º da LTC), nada obsta ao conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada, nem à consideração da resposta apresentada pelo órgão autor das normas impugnadas.
7 - Objeto do pedido
A - Contexto Normativo e enquadramento do Decreto 1/2022, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores
7.1 - A Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores decretou em 11.01.2022, ao abrigo da sua competência legislativa em matéria de transportes (cf. artigos 227.º, n.º 1, alínea a) e 228.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e artigo 56.º, n.os 1 e 2, alínea h), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores), o Decreto 1/2022, que aprovou o "Regime Jurídico da Atividade de Transportes Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica para a Região Autónoma dos Açores" (doravante, TVDERAA).
O diploma limita a sua eficácia normativa ao âmbito regional (artigo 1.º, n.os 1 e 2, do TVDERAA), articulando-se com a Lei 45/2018, de 10 de agosto, que por sua vez introduziu no ordenamento português o «Regime Jurídico da atividade de Transporte individual e remunerado de passageiros em Veículos descaracterizados a partir de plataforma Eletrónica», com entrada em vigor em 13.08.2018 (cf. artigo 33.º do diploma). O TVDERAA acompanha essencialmente a estrutura e sistematização da Lei da República e adota uma norma remissiva para o seu regime em tudo o que especialmente não prevê (cf. artigo 1.º, n.º 5).
Os dois diplomas constituem a resposta legislativa à introdução na realidade portuguesa de um novo paradigma de atividade, geralmente conhecido por «economia colaborativa», no âmbito da prestação de serviços eletrónicos e de transporte rodoviário de passageiros. Oriundo dos Estados Unidos da América e surgido no final da primeira década do século, este modelo de negócio caracteriza-se, em essência, pela disponibilização de serviços de transporte de passageiros ao público em trajetos urbanos através de um dispositivo digital, geralmente uma aplicação informática de descarga gratuita. Pela interação com a aplicação através de telemóveis inteligentes e disponibilizando dados pessoais e de pagamento, aos utentes é admitido solicitar serviço de transporte de passageiros e, de sua parte, também pela utilização da plataforma eletrónica, operadores empresariais ficam em condições de utilizarem os seus recursos para oferecerem resposta à solicitação através de motoristas ao seu serviço.
Os fluxos financeiros relativos ao serviço, incluindo os pagamentos em abono do explorador da plataforma e dos transportadores, são inteiramente realizados através da aplicação, que assim suporta e é veículo de todos os termos da contratação e de cumprimento, com exceção da efetivação do transporte. O gestor da plataforma eletrónica constitui, portanto, o núcleo em torno do qual gravitam utentes e entidades operacionais do setor do transporte rodoviário de passageiros, controlando também os movimentos de cash flow envolvidos no modelo.
Trata-se, enfim, de um paradigma de negócio que assenta no poder atrativo das aplicações eletrónicas e na elasticidade das suas virtudes funcionais para localizar procura e fazê-la encontrar adequada oferta, assim fazendo convergir empresas de transporte com o respetivo público-alvo. Aliviando custos fixos para os operadores, permitindo a captação de prestadores de serviço (motoristas) de cariz mais ou menos ocasional - mas disponíveis a constituir mão-de-obra utilizável em escala - , oferecendo comodidade de pagamento e fazendo-se usar do amplo potencial de exposição e publicidade proporcionado pelo espaço web, não tardou a que este arquétipo obtivesse grande sucesso e se disseminasse pelos mercados mundiais, do que são exemplos empresas como a «Uber», a «Lift», a «Sidecar», a espanhola «Cabify», a francesa «LeCab» e a inglesa «Hailo», entre outras.
A emergência de empresas tecnológicas que oferecem este tipo de serviços em contexto português colocou de imediato problemas de compatibilidade entre a implementação do modelo e a legislação nacional, maxime pelo confronto que importava para com o Decreto-Lei 251/98, de 11 de agosto (acesso à atividade e ao mercado dos transportes em táxi). As entidades envolvidas na importação deste novo paradigma pretenderam poder operar no mercado português à margem da disciplina reguladora do transporte de passageiros em viaturas com motorista, dispensando-se da observância dos requisitos de acesso e de exercício impostos aos operadores já no mercado (serviços «táxi»). A disputa por espaços de mercado congéneres e a desigualdade de condições, pela pretensa inaplicabilidade do espartilho administrativo referente ao transporte rodoviário de passageiros em meio urbano, levou à deflagração de oposição enérgica à implementação do modelo no território pelas instituições associativas de empresas tradicionais, gerando insegurança sobre a viabilidade do projeto no contexto português.
Por outro lado, à semelhança do que foi sucedendo um pouco por toda a Europa, a adoção do modelo inspirou ainda preocupações sobre o impacto que representava para a segurança do transporte de passageiros e para os direitos de consumidores e de trabalhadores envolvidos. Do ponto de vista jurídico, a qualificação das relações negociais estabelecidas entre utentes e empresas gestoras das plataformas eletrónicas foi causa de especial foco de controvérsia, designadamente se seria possível entendê-las como simples mediadoras entre contratantes, ou se efetivamente se poderiam dizer adstritas a vínculos obrigacionais gerados pelas declarações eletrónicas coevas à utilização da aplicação e à contratação do transporte. Da caracterização dos efeitos jurídicos e sua classificação dogmática foi igualmente dependendo a qualificação das empresas exploradoras de plataformas eletrónicas como operadores no setor de transportes, do que, por sua vez, dependeria a necessidade de observância de regulamentação administrativa nacional. Dessa qualificação dependeria igualmente a extensão do perímetro de intervenção admitido aos legisladores nacionais à sombra do Direito da União Europeia, caso pretendessem fixar condicionantes específicas à atividade.
A jurisprudência dos Tribunais europeus (com exceção do caso francês) veio consolidando o entendimento de que as empresas gestoras de plataformas eletrónicas efetivamente operam no setor do transporte rodoviário de passageiros e que o esquema negocial definido importa a sua vinculação obrigacional perante utentes aos contratos de transporte constituídos através da utilização das aplicações (Em Espanha: Juzgado de lo Mercantil n.º 2 Madrid, Recurso 707/2014, 09/12/2014; Sección n.º 28 de la Audiencia Provincial de Madrid - Recurso de Apelación - 494/2016; Em Itália: Tribunale di Milano, Sezione specializzata in materia d'impresa, Ordinanza 25 maggio 2015, Procedimento cautelare n. 16612/2015 R.G; Ordinanza 2 luglio 2015, PROC. R.G. 36491/2015; Tribunale di Torino, Prima Sezione Civile, Sezione Specializzata in materia di Impresa, Sentenza 1-24 marzo 2017, n. 1553; ribunale civile di Roma, Sez. nona Specializzata in materia d'impresa, R.G. 76465/2016 del 07/04/2017; Na Alemanha: Hamburgisches OVG, Beschluss vom 24. September 2014, Az. 3 Bs 175/14; VG Berlin, Beschluss vom 26. September 2014 Az. 11 L 353.14; OVG Berlin-Brandenburg, Beschluss vom 10. April 2015 Az. OVG 1 S 96.14; LG Frankfurt am Main, Urteil vom 18. März 2015 · Az. 3-08 O 136/14, 3-8 O 136/14, 3-8 O 136/14, 3-08 O 136/14; Oberlandesgericht Frankfurt am Main, Urteil vom 09.06.2016, Az.: 6 U 73/15; andgericht Berlin, Urteil vom 11. April 2014 - 15 O 43/14; Kammergericht, Urteil vom 11. Dezember 2015 - 5 U 31/15; No Reino Unido: London Employment Tribunal, 28 October 2016, Aslam, Farrar and Others - v. Uber (Case 2202551/2015); Employment Appeal Tribunal, 10 November 2017, Uber BV and Others v. Mr. Y. Aslam and Others, Appeal No. UKEAT/0056/17/DA). Entre nós, foi também essa a tendência que se veio observando nas abordagens doutrinais e jurisprudenciais disponíveis (v. JOANA CAMPOS CARVALHO, "Enquadramento Jurídico da Atividade da Uber em Portugal", Revista de Concorrência e Regulação, Ano VII, n.º 26, abril/junho 2016, sentença de 25.06.2015 da 1.ª Secção Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Processo 7730/15.0T8LSB).
Localizando a atividade no setor do transporte de passageiros, por esta via se reforçou o entendimento de quem observava o protótipo como fonte de tensão com um extenso leque de interesses de ordem pública, regulatórios e de segurança, que comummente são associados a essa área de atividade. A caracterização dos sujeitos jurídicos envolvidos como operadores neste setor também significou que este subsetor seria de entender permeável à introdução de quadros de legislação estadual que impusessem a observância de requisitos de exercício e de acesso à atividade aos agentes económicos envolvidos.
É o caso do regime jurídico aplicável aos operadores de plataformas eletrónicas, que a Lei 45/2018 de 10 de agosto previu nos seus artigos 16.º a 20.º A definição de plataformas eletrónicas, consta do artigo 16.º, o qual estabelece que as mesmas consistem nas «[...] infraestruturas eletrónicas da titularidade ou sob exploração de pessoas coletivas que prestam, segundo um modelo de negócio próprio, o serviço de intermediação entre utilizadores e operadores de TVDE aderentes à plataforma, na sequência de reserva efetuada pelo utilizador por meio de aplicação informática dedicada». Apesar de esta definição se focar particularmente no papel de intermediação desempenhado por estes operadores, tal não significa que os mesmos sejam considerados como meros intermediários dos serviços de transporte prestados pelos operadores de TVDE. Com efeito, tanto o artigo 1.º, n.º 2 (o qual prevê que os operadores das plataformas eletrónicas «[...] organizam e disponibilizam aos interessados a modalidade de transporte referida no número anterior»), como o artigo 20.º, n.º 1 (que estabelece que estes operadores são solidariamente responsáveis perante os utilizadores pelo pontual cumprimento das obrigações resultantes do contrato) apontam para a qualificação destes operadores como verdadeiros prestadores de serviços de transporte, em conformidade com a interpretação do pertinente Direito da União pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
7.2 - Como se relatou no Acórdão 429/2020 deste Tribunal Constitucional, o Tribunal de Justiça da União Europeia tomou parte na controvérsia em duas decisões decorrentes de pedidos de pronúncia prejudicial de Tribunais estaduais (de Espanha e de França).
Um princípio estrutural do Direito da União reside na liberdade de prestação de serviços, desde logo patenteado nos artigos 56.º e 57.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). No domínio do direito derivado, a Diretiva 2006/123 CE (do Parlamento Europeu e do Conselho) orientou-se neste sentido, com o escopo de garantir a efetividade do "exercício da liberdade de estabelecimento dos prestadores de serviços e a livre circulação dos serviços" (artigo 1.º, n.º 1). Este diploma estabeleceu um conjunto significativo de limitações aos legisladores estaduais neste âmbito, designadamente pela proibição de subordinação do início de atividade de operadores no setor a autorizações administrativas (artigos 9.º, n.º 1, 10.º, 11.º e 14.º a 16.º). A Diretiva 2000/31/ CE (do Parlamento Europeu e do Conselho), de seu lado, veio garantir também aos agentes económicos de prestação de serviços no setor do comércio eletrónico a libertação de condicionantes administrativas de direito interno para o acesso a atividade (artigo 4.º, n.º 1), oferecendo grau autónomo de proteção contra regulamentação restritiva pelos Estados-Membros.
Não obstante, o TFUE e o legislador europeu sentiram necessidade de acautelar questões de ordem pública referentes a certas categorias de serviços de especial interesse para os Estados. Entre eles, o setor dos transportes que recebeu estatuto jurídico particular no âmbito da política comum (artigos 58.º, n.º 1 e 90.º-100.º, todos do TFUE). Em consonância, a Diretiva 2006/123 CE subtrai expressamente do seu âmbito disciplinador o setor dos transportes (artigo 2.º, n.º 1, alínea d)) e a Diretiva 2000/31 CE igualmente sinaliza preocupações relativas a autorizações administrativas que não sejam peculiares aos serviços de comércio eletrónico, que exceciona do princípio de não-autorização prévia (artigo 4.º, n.º 2).
Assim, o problema colocado ao Tribunal de Justiça era, essencialmente, aquele com que se confrontavam os Tribunais estaduais: cabia compreender se os operadores de plataformas eletrónicas de transporte rodoviário de passageiros, de acordo com o modelo de economia partilhada que aportara no continente europeu, podiam ser entendidos como agentes económicos no setor dos transportes, ou se, pelo contrário, seriam qualificáveis como prestadores de serviços no mercado digital, para assim concluir pelo âmbito de intervenção legislativa consentida aos Estados-Membros.
O Tribunal de Justiça tomou posição no primeiro sentido, entendendo por isso inaplicável ao subsetor o artigo 56.º do TFUE e as Diretivas 2006/123/CE e 2000/31/CE, facto que tem relevância, como se assinalou, no que respeita à competência da União Europeia na matéria. Desta forma, ficou franqueado o caminho aos legisladores estaduais para aprovarem quadros legais de regulamentação do novo modelo de atividade económica:
"um serviço de intermediação como o que está em causa no processo principal, que tem por objeto, através de uma aplicação para telefones inteligentes, estabelecer a ligação, mediante remuneração, entre motoristas não profissionais que utilizam o seu próprio veículo e pessoas que pretendam efetuar uma deslocação urbana, deve ser considerado indissociavelmente ligado a um serviço de transporte e, por conseguinte, abrangido pela qualificação de "serviço no domínio dos transportes", na aceção do artigo 58.º, n.º 1, TFUE. Tal serviço deve, portanto, ser excluído do âmbito de aplicação do artigo 56.º TFUE, da Diretiva 2006/123 e da Diretiva 2000/31»" (acórdão do TJUE de 20.12.2017, Asociación Professional Elite Taxi c. Uber Systems Spain, SL, proc. C-434/15)
"uma legislação nacional que prevê [...] um sistema que estabelece a ligação entre clientes e pessoas que fornecem prestações de transporte rodoviário de passageiros a título oneroso com veículos de menos de dez lugares [...] refere(-se) a um "serviço no domínio dos transportes", na medida em que se aplica a um serviço de intermediação prestado através de uma aplicação para telefones inteligentes e que faz parte integrante de um serviço global cujo elemento principal é o serviço de transporte. Esse serviço está excluído do âmbito de aplicação destas diretivas [referindo-se às Diretivas 2006/123 CE e 2000/31 CE]»" (acórdão do TJUE de 20.12.2017, no Proc. C-434/15)
Sendo certo que, na medida em que possa ser abrangida pelas demais liberdades comunitárias (como a liberdade de estabelecimento), as normas nacionais apenas as podem restringir caso se verifiquem os respetivos pressupostos.
Cabe ainda anotar que a Comissão Europeia tomou posição na controvérsia, também exibindo idêntico entendimento, embora não tenha deixado de assinalar que "proibições absolutas ou restrições quantitativas ao exercício de uma atividade constituem medidas de último recurso, devendo unicamente ser aplicadas na ausência de outros instrumentos menos restritivos para atingir os objetivos de interesse público" (Comissão Europeia, «Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das regiões - Uma Agenda Europeia para a Economia Colaborativa», 2.6.2016, COM (2016), p. 5).
Regressando ao pedido de fiscalização e base normativa em causa, o surgimento da Lei 45/2018, de 10 de agosto, e do Decreto 1/2022 (TVDERAA) compreendem-se neste contexto. Os dois diplomas estabelecem o regime jurídico, no domínio nacional e regional, respetivamente, dos operadores envolvidos neste esquema de negócio e da sua atividade, estabelecendo, para além do mais, os requisitos formais e materiais a que ficam sujeitos os respetivos acesso e exercício.
7.3 - Vertendo agora diretamente para a legislação em mãos, a atividade económica de que se ocupam os dois atos legislativos coenvolve, em consonância com o exposto, a disponibilização ao público de plataforma digital, instalada e gerida por um sujeito ("operador de plataforma eletrónica") que permite ao público a solicitação de serviços de transporte rodoviário de passageiros junto de operadores ("operador TVDE"). O serviço solicitado pelo utente (de transporte do ponto «A» para o ponto «B») será efetivado por "motorista de TVDE" ao serviço do segundo dos operadores tipificados. Para o efeito, o motorista terá de realizar registo prévio na mesma plataforma eletrónica e proceder à competente aceitação da reserva através da aplicação.
Esta estrutura básica da atividade regulamentada pode ser observada pela análise sistemática dos artigos 2.º, n.º 2 e 5.º a 9.º, todos da Lei 45/2018, de 10 de agosto (que o TVDERAA incorpora pela norma remissiva do seu artigo 1.º, n.º 5) e os dois diplomas exibem uma disciplina legal semelhante também no que tange à definição tripartida de agentes que desempenham funções no modelo económico. Os diplomas estabelecem igualmente a necessidade, de todos os sujeitos e entidades envolvidas, obterem licenciamento para o desempenho das respetivas atividades, de reunirem requisitos específicos para o efeito e de se acharem dotados de idoneidade adequada.
É assim quanto a plataformas eletrónicas e seus operadores (artigos 16.º-19.º da Lei 45/2018, de 10 de agosto e artigos 8.º-12.º do TVDERAA), quanto a operadores de TVDE (artigos 2.º-4.º da Lei 45/2018, de 10 de agosto e artigo 3.º da TVDERAA) e quanto a motoristas de TVDE (artigos 10.º e 11.º da Lei 45/2018, de 10 de agosto e artigos 4.º e 5.º da TVDERAA).
B - Apreciação das inconstitucionalidades por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República
O requerente pede ao Tribunal, em específico, a fiscalização das normas contidas no artigo 4.º, n.º 2, alíneas b) e f) e no artigo 13.º do TVDERAA. Os preceitos possuem a seguinte redação, destacando a negrito os excertos direta ou implicitamente abrangidos pelo pedido de sindicância:
"Artigo 4.º
Atividade de motorista de transporte em veículo descaracterizado a partir de plataforma eletrónica na Região Autónoma dos Açores
1 - Apenas podem conduzir veículos de TVDE na Região os motoristas inscritos junto de plataforma eletrónica devidamente averbada ou licenciada na Região, nos termos do artigo 15.º, e detentores de certificado regional de motorista de TVDE emitido pela direção regional com competência em matéria de transportes terrestres, nos termos do presente artigo.
2 - Para obtenção de certificado regional de motorista de TVDE na Região, o motorista de TVDE que presta serviço na Região ao operador de TVDE deve deter um certificado de motorista de TVDE válido emitido pela direção regional com competência em matéria de transportes terrestres e um certificado de curso de formação rodoviária para motoristas na Região, nos termos dos números seguintes, e preencher, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) Ser titular de carta de condução há mais de três anos para a categoria B com averbamento no grupo 2;
b) Cumprir o requisito de escolaridade obrigatória;
c) Deter certificado de curso de formação rodoviária para motoristas na Região, nos termos dos números seguintes;
d) Ser considerado idóneo, nos termos do artigo seguinte;
e) Dispor de um contrato escrito com o operador de TVDE na Região que titule a relação entre as partes;
f) Domínio da Língua Portuguesa.
3 - O certificado de motorista de TVDE na Região é emitido pela direção regional com competência em matéria de transportes terrestres, segundo modelo aprovado por despacho do membro do Governo Regional responsável pela área dos transportes terrestres, demonstrado o preenchimento dos requisitos mencionados no número anterior, que atribui ao interessado um número de registo regional de motorista de TVDE, com o qual é identificado em todas as plataformas eletrónicas a prestar serviço na Região.
4 - O curso de formação rodoviária para motoristas na Região a que se refere o n.º 2 deve ter uma carga horária e conteúdos técnicos a definir por despacho do membro do Governo Regional responsável pela área dos transportes terrestres, que também procede ao reconhecimento das entidades formadoras, além de integrar módulos específicos relativos a comunicação e relações interpessoais, língua inglesa, normas legais de condução, técnicas de condução, regulamentação da atividade, situações de emergência e primeiros socorros, devendo a formação providenciar ainda uma adaptação à orografia da Região e a outras especificidades relevantes para o exercício da sua atividade.
5 - O certificado do curso de formação rodoviária para motoristas na Região referido no n.º 2 é emitido por escola de condução ou entidade formadora legalmente habilitada e autorizada pela direção regional com competência em matéria de transportes terrestres e depende da frequência efetiva pelo formando da carga horária mínima referida no número anterior.
6 - O certificado regional de motorista de TVDE é válido pelo período de cinco anos, renovável por iguais períodos, contados da data da sua emissão pela direção regional com competência em matéria de transportes terrestres, dependendo a renovação da comprovação da manutenção de certificado válido emitido pela direção regional com competência em matéria de transportes terrestres e do preenchimento cumulativo, pelo motorista requerente, dos requisitos de idoneidade e da frequência de curso de atualização, versando as matérias referidas no n.º 4.
7 - A direção regional com competência em matéria de transportes terrestres deve proceder à apreensão do certificado regional de motorista de TVDE sempre que comprovadamente se verifique a falta superveniente de um dos requisitos mencionados nas alíneas a) a f) do n.º 2.
8 - O certificado do curso de formação rodoviária para motoristas na Região é dispensado a quem seja titular de certificado de motorista de táxi na Região, emitido e válido nos termos da Lei 6/2013, de 22 de janeiro.
9 - O certificado regional de motorista de TVDE pode ser substituído por guia emitida pela direção regional com competência em matéria de transportes terrestres, a qual faz prova de entrega de um pedido de certificado, sendo a mesma válida pelo período nela indicado.
10 - Os certificados de motorista de TVDE emitidos pelo IMT, I. P. podem ser renovados por certificados regionais de motorista de TVDE, nos termos e condições definidas no n.º 6.
11 - Os motoristas afetos à prestação do serviço de TVDE na Região devem, no exercício da respetiva atividade, fazer-se acompanhar do certificado regional de motorista de TVDE, da guia referida no n.º 9 ou do certificado de motorista de táxi.
12 - Constituem deveres gerais dos motoristas afetos à prestação do serviço TVDE na Região:
a) Prestar os serviços de transporte que lhe forem solicitados de acordo com a regulamentação aplicável ao exercício da atividade;
b) Usar de correção e de urbanidade no trato com os passageiros e terceiros;
c) Auxiliar os passageiros que apresentem mobilidade reduzida na entrada e saída do veículo;
d) Observar as orientações que o passageiro fornecer quanto ao itinerário e à velocidade, dentro dos limites em vigor, devendo, na falta de orientações expressas, adotar o percurso mais curto;
e) Cumprir as condições do serviço de transporte contratado, salvo causa justificativa;
f) Transportar bagagens pessoais, nos termos estabelecidos, e proceder à respetiva carga e descarga, incluindo cadeiras de rodas de passageiros deficientes, podendo solicitar aos passageiros a colaboração que estes possam disponibilizar e apenas nos casos em que se justifique, nomeadamente em razão do peso ou do volume das bagagens;
g) Transportar cães de assistência de passageiros com deficiência, a título gratuito;
h) Proceder diligentemente à entrega na autoridade policial de objetos deixados no veículo, podendo também fazê-la ao passageiro, desde que por este solicitado e mediante pagamento do respetivo serviço, se o motorista de TVDE entender que deve haver lugar a este pagamento;
i) Cuidar da sua apresentação pessoal;
j) Diligenciar pelo asseio interior e exterior do veículo;
k) Não se fazer acompanhar por pessoas estranhas ao serviço."
"Artigo 13.º
Fixação de contingentes
1 - O número de averbamentos ou licenças emitidas pela direção regional com competência em matéria de transportes terrestres ao abrigo do presente diploma, de veículos para a prestação de serviços de TVDE na Região, não excederá o correspondente a 5 % do total de transportes públicos de aluguer em veículos automóveis ligeiros de passageiros, normalmente designados por transportes em táxi, licenciados em cada ilha, com um máximo de três veículos por operador.
2 - A distribuição do contingente a que se refere o número anterior pode ser fixada por determinadas áreas geográficas da Região, por despacho do membro do Governo Regional responsável pela área dos transportes terrestres.
3 - Nas ilhas onde o contingente referido no n.º 1 seja inferior a uma unidade é admitido como contingente máximo uma unidade de TVDE."
Concretizando o objeto do pedido de fiscalização e desde já adiantando que não está em causa a necessidade de licenciamento pelos agentes económicos investidos nesta arquitetura económica, o requerente suscita, de uma parte, a sindicância da exigência legal, constante do TVDERAA, da observância de dois requisitos específicos para que o licenciamento de motorista de TVDE ("detenção de certificado regional de motorista de TVDE") seja obtida pelos interessados. Integra a controvérsia a imposição legal de que o proposto motorista cumpra "o requisito de escolaridade obrigatória" e, bem assim, que possua "domínio da língua portuguesa". São estes dois requisitos para a obtenção de certificado regional, resultantes do cotejo dos n.os 1, 2, corpo do texto, e alíneas b) e f), do artigo 2.º do TVDERAA, que o requerente pretende fiscalizados.
De outra parte, o requerente pede ainda a fiscalização da norma de contingentação constante do artigo 13.º do diploma. O n.º 1 deste dispositivo estabelece dois limites ao número máximo de veículos que podem estar subjacentes às licenças concedidas a operadores TVDE ao abrigo do artigo 3.º do diploma: por um lado, impõe-se um limite absoluto por operador TVDE, proibindo que a entidade obtenha licenciamento caso integre mais de três veículos na empresa (artigo 13.º, n.º 1, in fine); por outro, os veículos explorados por operadores licenciados não podem exceder 5 % do total de viaturas «táxi» licenciadas em cada ilha da Região Autónoma dos Açores (artigo 13.º, n.º 1). O n.º 2 do artigo 13.º do TVDERAA permite ainda que o contingente de veículos TVDE passível de ser licenciado de acordo com estes limites seja distribuído por áreas geográficas mediante despacho do membro do Governo Regional responsável.
Por fim, o n.º 3 do mesmo articulado legal arredonda à unidade o limite máximo de veículos TVDE nos casos de áreas geográficas da Região Autónoma dos Açores em que o contingente de 5 % fixado no artigo 13.º, n.º 1, resultasse inferior a 1, norma residual de cariz interpretativo que depende da operatividade da primeira das normas descritas.
Tomando precedência sobre as demais questões colocadas, o requerente sustenta que as duas primeiras normas consubstanciam restrições à liberdade de escolha de profissão (artigo 47.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa), matéria que diz sujeita a reserva de lei parlamentar nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa. Acrescenta-se que o sobredito artigo 13.º consubstancia uma restrição ao direito à iniciativa económica (artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República), que o requerente defende possuir natureza análoga a direitos, liberdades e garantias, por isso se aplicando a mesma proibição de legislar, de forma autónoma, a órgãos constitucionais que não o parlamento (artigo 17.º da Constituição da República Portuguesa).
Cabe-nos por isso observar as normas sob sindicância por esses prismas, mobilizando a inerente disciplina constitucional.
8 - Liberdade de Escolha de Profissão e Liberdade de Iniciativa Privada
8.1 - Liberdade de Escolha de Profissão
A liberdade de escolha de profissão acha-se recenseada no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual «[t]odos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade».
Trata-se de direito fundamental integrado no catálogo de direitos, liberdades e garantias e que se reconhece de composição complexa e de grande amplitude defensiva. Integra, nesta perspetiva negativa, o direito a não ser forçado a escolher determinada profissão ou ser impedido de o fazer; o direito de não ser impedido de exercer a profissão escolhida ou de não a exercer. O seu espaço de tutela distende-se ainda a uma dimensão positiva, compreendendo o direito à obtenção dos elementos de que dependa o acesso à profissão, o direito à desobstrução de condicionantes que o limitem (v. g., habilitações escolares e profissionais, licenciamento e autorizações administrativas, etc.) e o direito ao confronto em condições de igualdade de outros profissionais. A liberdade consagrada no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa caracteriza-se, pois, por conceder ampla latitude ao seu titular no direito a escolher e a aceder a atividades profissionais, assegurando ainda a integridade contra interferências de Direito público no seu exercício subsequente.
O direito fundamental conhece também, por anverso, importantes restrições, desde logo anunciados no preceito do texto constitucional que o consagra (cf. artigos 47.º, n.º 1, 2.ª parte e 18.º, n.os 2 e 3, ambos da Constituição da República Portuguesa). Assim, dentro das possibilidades de restrição legal, fundadas no interesse coletivo ou inerentes à capacidade de cada um para desempenhar determinadas funções, contam-se o caráter antijurídico de certas atividades e ocupações, a exigência de determinadas aptidões pessoais ou conhecimentos, e ainda as limitações associadas a interesses coletivos específicos, no quadro de domínios de atividade peculiares e sensíveis, que por sua natureza impõem condicionantes de acesso ou de exercício por tributo a princípios de ordem pública ou de segurança (v., sobre todo o exposto, francamente consensual entre fontes, J. J. CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Ed., 2007, pp. 653-654; na Jurisprudência constitucional, v., entre muitos outros, os acórdãos do TC n.os 187/2001, 255/2002, 563/2003, 509/2015, 376/2018, 502/2019 e 129/2020).
8.2 - Liberdade de Iniciativa Privada
A liberdade de iniciativa privada consagrada no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa - «A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral» - conforma também um direito fundamental - embora não-incluído no catálogo de direitos, liberdades e garantias - , este com evidente correlação com os princípios de organização económica postulados pela Lei Fundamental (artigo 80.º, alínea c) da Constituição da República Portuguesa). Esta liberdade compreende, por um lado, o direito a iniciar uma atividade económica (liberdade de realização de investimento e de aplicação de capitais, liberdade de criação de estabelecimento e liberdade de constituição de instrumentos jurídicos para o efeito) e, por outro, a liberdade de exercício de uma atividade económica, por vezes apelidada de liberdade de empresa. Nesta última dimensão, a liberdade de iniciativa privada manifesta-se contra interferências e ingerências externas na governação de agentes económicos, localizando-se por isso na esfera da entidade empresarial (seja individual ou coletiva) e resultando por isso dotada de um sentido «institucional» que é derivação necessária, pois, da especial qualidade de agente económico por que se caracteriza o sujeito jurídico que dela beneficia (v., sobre o assunto, J. J. CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit.; na jurisprudência constitucional, v., entre outros, acórdãos n.os 545/2014, 220/2015, 538/2015, 545/2015 e 329/2020).
O Tribunal Constitucional tem entendido que na primeira das dimensões compreendidas no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa a liberdade de iniciativa privada se pode entender análoga a direitos, liberdades e garantias, partilhando do respetivo regime constitucional (cf. artigo 17.º da Constituição da República; v., sobre esta matéria, acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 76/85, 187/2001, 358/2005, 304/2010, 274/2012, 75/2013 e 545/2015). Empresta-se reforço a esta noção quando se leve em conta que a liberdade de escolha e de exercício de profissão e a liberdade de iniciativa privada possuem um espaço de sobreposição, concorrendo por vezes à proteção de uma mesma posição jurídica. De facto, o direito a escolher profissão e o direito a iniciar uma atividade económica operam ambos nos casos em que dado profissional pretende iniciar uma atividade dotada de alcance económico. O direito a abrir uma loja de comércio, um estabelecimento de carpintaria ou uma oficina de mecânica, por exemplo, tanto recebe cobertura da liberdade de escolha de profissão (de lojista, de carpinteiro, de mecânico, etc.), como da liberdade de iniciativa económica, já que a atividade profissional escolhida importa também a criação de uma estrutura de meios apta ao desenvolvimento de uma atividade nesses termos que opera como aplicação de capitais, possuindo por isso atributos enquanto investimento que exorbitam o âmbito estritamente ocupacional do seu titular (notando esta incidência, v. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., p. 656).
Impõe-se assim, com segurança e em coerência, a aplicabilidade do regime constitucional conferido aos direitos, liberdades e garantias também quanto à liberdade de iniciativa privada, uma vez que respeita, nesta vertente, à mesma realidade.
9 - Ingerências na Liberdade de Escolha de Profissão e na Liberdade de Iniciativa Privada
9.1 - Cabe agora procurar saber se as normas consubstanciam, como se alega, ingerências nas liberdades suprarreferidas. Estaremos perante uma restrição legal nos casos em que "o âmbito de proteção de um direito fundado numa norma constitucional é direta ou indiretamente limitado através da lei. De um modo geral, as leis restritivas de direitos «diminuem» ou limitam as possibilidades de ação garantidas pelo âmbito de proteção da norma consagradora desses direitos e a eficácia de proteção de um bem jurídico inerente a um direito fundamental" (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2.ª Ed., Almedina, p. 1276; sobre o conceito, em sentido mais amplo, v., também, Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2003, pp. 157). Cabe, pois, abordar as normas sindicadas tendo em vista aferir se a regulamentação sujeita a fiscalização é produtora deste tipo de efeito no perímetro de defesa dos direitos assinalados.
Não existem dúvidas de que o TVDERAA, particularmente nas normas sob sindicância e como adiante veremos em maior pormenor, estabelece um conjunto de condicionantes de acesso a uma profissão, a de motorista TVDE. O ingresso na profissão depende de obtenção de certificado regional de motorista TVDE (cf. artigo 4.º, n.º 1, do TVDERAA), pelo que os requisitos de que dependa a sua concessão conformam, pois claro, limitações na liberdade de a ela aceder, já que de outra forma não será possível ao indivíduo exercê-la em condições de regularidade. Os requisitos legais que subordinam a autorização administrativa, está bom de ver, consubstanciam intrusões no perímetro defensivo garantido pela liberdade de escolha de profissão ("a fixação de condições específicas para o exercício de determinada profissão ou atividade profissional [...] enquadra[-se] no contexto da liberdade de escolha de profissão regulada no artigo 47.º da Lei Fundamental" - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 255/2002).
Contra esta conclusão não milita o facto de o paradigma em referência, a cuja análise acima nos dedicámos perfunctoriamente, apresentar singularidades quanto à atividade de motorista em causa quando em confronto com as profissões tradicionais. O modelo económico implícito à regulamentação admite que o motorista TVDE adote a atividade a título de profissão secundária, como forma de obter remuneração complementar ou como atividade não-permanente, isto em confronto com os atributos que geralmente se reconhecem na profissionalização. Esta observação, porém, não preclude o que vai dito.
O sentido constitucional de «profissão» deve ser entendido de forma dinâmica, abarcando novas realidades emergentes de novos paradigmas resultantes da capacidade de iniciativa e da criatividade dos agentes económicos, também levando em conta a alteração de sensibilidades e de realidades que resulta da transição entre períodos históricos, todos eles, naturalmente, importando a mutabilidade do conceito. A doutrina já veio salientando que "profissão é cada vez mais uma categoria constitucional aberta, rebelde a caracterizações tradicionais e apriorísticas, devendo o seu âmbito de proteção ser oxigenado através do enriquecimento do seu setor normativo (realidades empíricas). [...] há hoje muitas atividades profissionais que se caracterizam pela dinamicidade e temporariedade, como, por ex., as profissões do setor quaternário, típicas da globalização (exs.: consultores de marketing, operadores de software, copywrighters, internet auditors), que estão a todos os títulos garantidas na sua liberdade por esta norma constitucional." (J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., p. 655).
Desta forma, as peculiaridades que derivam do paradigma inovatório regulamentado, no que tange à posição do motorista de TVDE e às condições da sua ocupação, não impõem, nem permitem, afastar o âmbito de tutela do artigo 47.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. A atividade pode constituir a fonte de rendimento secundária ou primária para o motorista e pode absorver toda a sua vida ativa ou apenas parte dela, mas constituirá, em qualquer caso equacionável, uma ocupação que permite ao agente a angariação de recursos por contrapartida da aplicação da sua força de trabalho. A sua atividade será entendida, também em qualquer caso, como a participação num processo económico que obedece a uma lógica de valor acrescentado e que depende de que esteja dotado de um conjunto de valências específicas coevas a ela. Este conjunto conduz à conclusão que, na nova realidade introduzida pelo subsetor, de modo nenhum se pode entender descaracterizado o estatuto de proteção jurídica que deriva da liberdade de escolha e de acesso a profissão.
Chamando agora à colação a formulação das normas cuja fiscalização se peticiona em concreto, temos que, ao subordinar a obtenção de certificado regional e, por inerência, o acesso à profissão de motorista TVDE, ao cumprimento, pelo interessado, do "requisito de escolaridade obrigatória" (artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do TVDERAA) e, bem assim, ao exigir que domine a "língua portuguesa" (artigo 4.º, n.º 2, alínea f), do TVDERAA), é evidente que as normas operam restrições sobre a liberdade de acesso à profissão, já que excluem liminarmente o universo de pessoas que não obedeçam a estes requisitos.
Trata-se, enfim, de normas intrusivas no espectro defensivo do artigo 47.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, tal como alega o requerente, ficando por isso subordinadas ao inerente regime constitucional.
9.2 - Já no que respeita à disposição do artigo 13.º, n.os 1, 2 e 3 do TVDERAA, resulta do supra exposto que o diploma restringe o número de licenças passíveis de serem emitidas (ou averbadas, no caso de entidades já licenciadas a nível nacional ao abrigo da Lei 45/2018, de 10 de agosto) recorrendo à estrutura fixa de empresas de transporte no mercado: o licenciamento do operador de TVDE não será legalmente admissível caso o total de veículos de operadores congéneres represente mais de 5 % do total da frota de táxis (de empresas licenciadas) em cada ilha açoriana (n.º 1). Por outro lado, mediante decisão do Governo Regional, o número autorizado de veículos TVDE resultante da aplicação do coeficiente sobre o parque de viaturas-táxi pode ser alterado para certas áreas geográficas específicas, potencialmente restringindo o licenciamento em grau superior nessas circunscrições territoriais (n.º 2).
A limitação do número de licenças a emitir (ou a averbar) significa o encerramento do mercado a novos operadores de TVDE depois de atingido o valor numérico que resulte da aplicação do coeficiente fixado nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 13.º do TVDERAA. Porque do licenciamento depende o acesso à atividade, a norma estabelece, em efeito, um numerus clausus de operadores no subsetor. Vedando por esta forma o acesso de novos agentes ao mercado de transporte de passageiros em regime TVDE, não há dúvidas de que estamos perante medida restritiva da liberdade de iniciativa privada.
Finalmente, cabe relembrar que o artigo 13.º, n.º 1, in fine, do TVDERAA impõe um outro limite adicional para que as empresas estejam em condições de aceder ao mercado. Como acima dissemos, o investimento em capitais fixos não pode importar a incorporação na empresa de mais de três viaturas TVDE, sob pena de o licenciamento ser recusado ao agente, bloqueando o acesso ao mercado. Esta é uma limitação da iniciativa empresarial na vertente financeira, já que daqui resulta a impossibilidade de implementar um projeto orientado por economia de escala. De facto, esta medida legal constitui uma condicionante quanto a perspetivas de rendibilidade do investidor e quanto ao limiar temporal de recuperação do capital aplicado, operando por essa via uma restrição de acesso ao subsetor.
Em consonância com o que acima se expôs sobre o perímetro de defesa da liberdade de iniciativa privada recenseada no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o programa normativo constante do artigo 13.º, n.os 1 e 2, do TVDERAA consubstancia uma restrição ao âmbito de tutela da liberdade de iniciativa privada na vertente análoga a direitos, liberdades e garantias (respeitando à liberdade de criar uma empresa e prosseguir uma atividade económica, por um lado, e à liberdade de investimento, por outro), ficando por isso a medida restritiva sujeita ao respetivo regime constitucional, ex vi, artigo 17.º da Constituição da República Portuguesa.
Uma nota ainda para deixar impresso que, para além de condicionar o investidor e as condições de investimento, como se disse, a limitação de três viaturas por operador TVDE atinge também a liberdade de empresa, cerceando a autonomia de gestão da entidade económica pela necessidade de observância desta condicionante estrutural durante o período de atividade, ou seja, no período de exercício e já depois de obtido o licenciamento. A norma é, por isso, invasiva da liberdade de iniciativa privada também na segunda dimensão de tutela acima destacada, já que sinaliza um importante condicionamento da atividade e das opções de governo da empresa-objeto.
Por último, deixamos impresso que o n.º 3 do artigo 13.º do TVDERAA não possui autonomia face ao n.º 1 do mesmo articulado, a que acima nos dedicámos. O arredondamento que aí se consagra depende da vigência da norma restritiva e, se se pode entender mitigadora dos seus efeitos, é incidente sobre a liberdade de iniciativa privada na dimensão análoga a direitos, liberdades e garantias também, ficando por isso qualificada como disciplina legal respeitante a condições de acesso ao mercado e que imporá tratamento idêntico, como passaremos a expor já de seguida.
10 - O Regime Orgânico das Medidas Legislativas sobre Direitos, Liberdades e Garantias (e Direitos Fundamentais Análogos)
10.1 - Tendo em conta que o principal problema de fundo subjacente ao pedido de fiscalização de constitucionalidade incide sobre o âmbito das competências da Região Autónoma dos Açores, e, em particular, sobre o exercício do poder legislativo por parte da Assembleia Legislativa Regional, importa começar por fazer um breve enquadramento sobre esta temática.
O requerente funda o seu pedido na invasão, pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, de competências legislativas sobre matéria inserida na reserva relativa da Assembleia da República - a matéria prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa: direitos, liberdades e garantias. O artigo 227.º, n.º 1, alínea a) da Lei Fundamental, por seu lado, atribui às regiões autónomas competências próprias no exercício do poder legislativo, ao dispor que as mesmas dispõem da faculdade de "legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania". Esta competência é reforçada no artigo 228.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, quando prevê que "a autonomia legislativa das Regiões Autónomas incide sobre as matérias enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo que não estejam reservadas aos órgãos de soberania".
A jurisprudência deste Tribunal tem vindo consistentemente a interpretar estas normas constitucionais no sentido de estabelecerem dois diferentes tipos de limitações às competências legislativas das regiões autónomas. Efetivamente, como foi salientado no Acórdão 450/2019: "o poder legislativo das regiões autónomas - cometido às Assembleias Legislativas Regionais - encontra-se sujeito a um duplo limite: um limite positivo, no sentido em que apenas pode versar, no âmbito regional, sobre matérias enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo; e um limite negativo, no sentido em que não pode incidir sobre matérias reservadas aos órgãos de soberania (artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, [da Constituição])".
No que respeita ao limite positivo acima expresso, importa referir que o domínio dos transportes é uma das matérias que se encontra enunciada no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA). Efetivamente, o seu artigo 56.º, n.º 1, estabelece que «Compete à Assembleia Legislativa legislar em matéria se infraestruturas, transportes e comunicações.», abrangendo, para o que aqui interessa, as matérias de transportes, nomeadamente, «os transportes terrestes [...]» (n.º 2, alínea h)). Significa isto que a Região Autónoma dos Açores possui competência legislativa própria para regular, no respetivo âmbito regional, matérias relativas aos serviços de transportes terrestres, sendo neste domínio que se incluem tanto a atividade de operador de TVDE como de operador de plataforma eletrónica.
Porém, como avançado supra, o exercício do poder legislativo por parte das Assembleias Legislativas Regionais tem ainda de respeitar um limite negativo: a atividade legislativa do órgão não pode incidir sobre matérias reservadas a órgãos de soberania. Embora mitigado pela cláusula prevista no artigo 227.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, quando prevê que as Assembleias Legislativas Regionais podem "legislar em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta [...]", a verdade é que a própria norma constitucional afasta expressamente a possibilidade de essa autorização parlamentar se referir a algumas matérias que se encontram enunciadas no artigo 165.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Uma dessas matérias é, precisamente, a que consta da alínea b) do n.º 1 desse artigo, segundo a qual é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre direitos, liberdades e garantias. Isto significa que a regulação de direitos, liberdades e garantias consiste numa das matérias sobre as quais as Regiões Autónomas não podem em caso algum legislar - nem mediante autorização parlamentar - , uma vez que a mesma se encontra reservada aos órgãos de soberania.
Por conseguinte, embora a Região Autónoma dos Açores possua competência legislativa própria para regular, no respetivo âmbito regional, matérias relativas aos serviços de transportes terrestres (e, nessa medida, adaptar o regime contido na Lei 45/2018, de 10 de agosto, às especificidades da RAA), essa competência encontra-se condicionada pelo limite negativo decorrente do artigo 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), e do artigo 228.º, n.º 1, da Constituição, nos termos do qual são excluídas do âmbito da competência legislativa das Regiões Autónomas as matérias reservadas aos órgãos de soberania, nelas se incluindo a regulação de direitos, liberdades e garantias.
Por outras palavras, ressalvando os casos de autorização legislativa ao Governo (artigos 161.º, alínea d) e 166.º, n.º 3, ambos da Constituição da República Portuguesa), apenas a Assembleia da República pode definir quadros legais que representem intervenções conformadoras nesta categoria de direitos, tanto mais assim quando se traduzam em restrições ao seu exercício. Por esse motivo, o ato legislativo que ab-rogue esta regra essencial de repartição da competência legiferante entre órgãos constitucionais estará ferido de inconstitucionalidade orgânica:
"Como resulta da expressa enunciação da alínea b) do n.º 1, do artigo 165.º da Constituição - «É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: b) direitos, liberdades e garantias» - e, bem assim, da jurisprudência exarada neste Tribunal, a reserva de competência legislativa parlamentar ali consagrada não se confina às bases ou ao regime geral dos direitos liberdades e garantias, abrangendo toda a intervenção legislativa reportada à matéria em causa, sendo que, para mais, não se mostra a reserva confinada à emissão de leis restritivas de direitos liberdades e garantias, embora assuma neste domínio uma fundamental importância (cf., designadamente, Acórdãos n.os 128/2000, 255/2002, 563/2003, 620/2007, 119/2010, 362/2011, 578/2014 e 509/2015)."
(v. acórdão do TC n.º 502/2019; para além dos citados neste aresto, v., entre muitos outros, acórdãos do TC n.os 329/99, 187/2001, 491/2002, 358/2005, 211/2007, 310/2009, 176/2010, 304/2010, 311/2012, 75/2013, 578/2014 e 545/2015)
No entanto, a jurisprudência constitucional sedimentou-se no sentido de entender que o vício de inconstitucionalidade orgânica ficará afastado quando a norma conformadora de direitos, liberdades e garantias aprovada por outros órgãos constitucionais possua carácter redundante face a legislação em vigor emanada pela Assembleia da República. Caso o programa normativo invasivo da reserva parlamentar possua caráter não-inovatório, limitando-se a reproduzir a disciplina legal produzida pelo órgão competente, não se pode entender introduzida no ordenamento uma diferente modulação das matérias por aquela acobertadas.
Descaracterizando-se, por essa via, o ato legislativo como uma iniciativa conformadora de direitos, liberdades e garantias (já que se cinge a transpor um sistema normativo introduzido no ordenamento de acordo com o programa constitucional), ter-se-á por afastado o vício de inconstitucionalidade orgânica: "debruçando-se um dado normativo - não emanado pela Assembleia da República nem pelo Governo, com autorização legislativa - sobre matéria atinente a direitos, liberdades e garantias (a), a sua conformidade constitucional, a nível competencial, está dependente do caráter "não inovatório" - rectius, puramente "executivo" - das prescrições que ele contenha (b) - cf. os acórdãos n.os 307/88 e 258/06)" (acórdão do TC n.º 578/2014).
Esta questão poderá possuir relevância no caso sub iudicio, já que a Lei 45/2018, de 10 de agosto, estabelece um espetro regulamentar vasto sobre o setor económico a que se dedica o TVDERAA. Apenas se concluirmos que este último introduz uma disciplina legal inovatória sobre direitos, liberdades e garantias face à legislação parlamentar, compreendendo novas previsões ou novas estatuições sobre a matéria, se poderá concluir pela respetiva inconstitucionalidade orgânica.
10.2 - Posto isto e chamando à colação o supra exposto, vimos já que as alíneas b) e f) do artigo 4.º, n.º 2, do TVDERAA materializam restrições à liberdade de escolha de profissão recenseada no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, integrada no catálogo constitucional de direitos, liberdades e garantias e abrangida pela reserva parlamentar patenteada no artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa.
Cabe agora acrescentar que a Lei 45/2018, de 10 de agosto estabelece, à semelhança do TVDERAA, um conjunto de requisitos de que depende a obtenção de certificado administrativo de motorista TVDE no seu artigo 10.º, n.º 2, alíneas a) a e), mas que entre eles não se inclui, porém, o "requisito de escolaridade obrigatória" ou o "domínio da língua portuguesa" impostos pelas normas sob sindicância. Assim sendo, nesta parte do diploma e do objeto da fiscalização estamos perante um ato normativo inovatório - com o que concordam, mesmo, tanto o requerente como a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores - aprovado por um diploma legal invasivo da reserva legislativa da Assembleia da República.
De facto, o requisito de escolaridade obrigatória poderia entender-se apenas dependente de o interessado completar 18 anos de idade ou de concluir o ensino secundário, já que a Lei 85/2009, de 27 de agosto (diploma que estabelece o regime da escolaridade obrigatória para as crianças e jovens que se encontram em idade escolar e consagra a universalidade da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 4 anos de idade) considera cessada a obrigatoriedade de frequência escolar uma vez sobrevindo qualquer uma dessas duas circunstâncias (cf. artigo 2.º, n.º 4, alíneas a) e b)). Assim, caso o interessado não disponha do grau académico, dir-se-ia, o artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do TVDERAA limita-se a exigir que tenha atingido a maioridade.
Ora, porque a Lei 45/2018, de 10 de agosto, exige que o motorista TVDE possua carta de condução há mais de três anos e porque a sua obtenção depende que se trate de maior de dezoito anos (cf. artigos 18.º, n.º 1, alínea a) e 20.º, n.º 1, alínea c), ambos do Decreto-Lei 138/2012, de 5 de julho - diploma que alterou o Código da Estrada e aprovou o novo Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir), dir-se-ia defensável que a exigência de idade mínima estabelecida no TVDERAA já decorria de Lei da República (assim, do artigo 10.º, n.º 2, alínea a), da Lei 45/2018, de 10 de agosto), não se podendo dizer inovatória face ao seu regime legal.
Por outro lado, poder-se-ia procurar defender que a necessidade de prestação de provas para obtenção de carta de condução de categoria B (artigo 18.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 138/2012, de 5 de julho) tem por implícita a necessidade de o interessado dominar razoavelmente a língua portuguesa. Esta conclusão levaria a que se tivesse também por descaracterizada a introdução do artigo 4.º, n.º 2, alínea f), do TVDERAA como uma iniciativa legislativa inovatória face à Lei da República, afastando o vício orgânico.
No entanto, não é assim. Veja-se que as duas normas estão inseridas num catálogo de requisitos cumulativos para a obtenção do certificado de motorista TVDE: a imposição de titularidade de carta de condução de categoria B há mais de três anos, reproduzindo o dispositivo congénere da Lei 45/2018, de 10 de agosto, está inscrita no artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do TVDERAA e cumula-se com os dois novos requisitos de forma autónoma (domínio da língua portuguesa e escolaridade obrigatória), o que imporá ao intérprete (cf. artigo 9.º do Código Civil) que compreenda as três normas como possuindo conteúdos normativos distintos e aditivos entre si.
Por outro lado, de notar que o artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do TVDERAA não exige que a obrigatoriedade de escolaridade esteja cessada, exige que esteja cumprido o requisito a ela referente. É uma redação nebulosa, mas que sugere (e é assim que a interpreta o requerente) que será necessário ao licenciamento administrativo a conclusão com aproveitamento do ensino secundário. Sendo assim, não há dúvida, pois, que esta norma não se pode entender produtora de efeito que se dissesse absorvido pelas disposições da Lei 45/2018, de 10 de agosto.
Acresce que, mesmo que se interpretasse esta norma no sentido de importar apenas a cessação da obrigatoriedade de frequência escolar, persistiria o facto de o efeito restritivo operado pela norma do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do TVDERAA apenas possuir semelhança face aos requisitos necessários à obtenção de carta de condução enquanto existisse, no ordenamento, a descrita equiparação de idade mínima para ambos os efeitos. Por exemplo, caso se viesse a admitir a obtenção de carta de condução de categoria B a pessoas com idade inferior a 18 anos, sem nenhuma dúvida que o artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do TVDERAA persistiria em efeitos, impondo restrições de acesso à profissão de motorista de TVDE relativas a maioridade, não obstante a alteração legislativa. Da mesma forma, caso a Lei 85/2009, de 27 de agosto, viesse a ser alterada no sentido de prolongar a escolaridade obrigatória para idade superior à que hoje se observa (para 21 ou 25 anos, por exemplo), também não haveria dúvidas de que o requisito do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do TVDERAA representaria uma restrição mais importante para o acesso à profissão do que a que resulta da necessidade de carta de condução. Isto sucede, precisamente e em ambas as situações, por a norma sindicada possuir impacto estatutivo autónomo, não se cingindo a um efeito de mera redundância face à Lei 45/2018, de 10 de agosto, ao estabelecer condicionantes ao ingresso na profissão, o que constitui, decisivamente, o critério essencial para aferir da natureza inovatória da norma.
Finalmente, em momento nenhum o Decreto-Lei 138/2012, de 5 de julho, impõe ou permite dizer que o exame para obtenção de carta de condução compreende qualquer forma de avaliação do domínio da língua portuguesa pelo interessado, até porque a carta de condução pode ter sido obtida no estrangeiro e ser reconhecida em Portugal (artigo 13.º), ou, ter sido requerida a sua troca por carta de condução portuguesa para as categorias de veículos para que se encontrem habilitados (artigo 14.º).
Não existe, como tal, qualquer dimensão normativa nessa regulamentação que consentisse a afirmação de que o requisito constante da alínea f) do n.º 2 do artigo 4.º do TVDERAA já resultasse das condicionantes de acesso à profissão de motorista TVDE por via do artigo 10.º, n.º 2, alínea a), da Lei 45/2018, de 10 de agosto.
Cabe concluir, portanto e face a todo o exposto, pelo juízo de inconstitucionalidade orgânica das normas constantes do artigo 4.º, n.º 2, alíneas b) e f), do TVDERAA, por violação da reserva legislativa da Assembleia da República estabelecida no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa.
10.3 - Convocando agora o supra expendido a propósito do artigo 13.º, n.os 1, 2 e 3 do TVDERAA e o regime de contingentação da atividade dos operadores TVDE que aí se consagra, já dissemos que se trata de uma disciplina legal que incide sobre a liberdade de iniciativa privada (artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), conformando uma restrição a uma vertente do seu espectro de tutela que possui natureza análoga a direitos, liberdades e garantias, estando por isso sujeita ao mesmo regime constitucional.
Cabe agora acrescentar que a Lei 45/2018, de 10 de agosto, não prevê qualquer disposição congénere, pelo que se dispensa um percurso pelo diploma paralelo ao que realizámos a propósito das demais normas sob fiscalização.
Sobre a aplicabilidade da reserva parlamentar estabelecida no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa a direitos meramente análogos a direitos, liberdades e garantias, como é aqui o caso, não desconhecemos que uma parte da doutrina afasta o regime de equiparação patenteado no artigo 17.º da Constituição da República Portuguesa deste âmbito mediante uma interpretação restritiva do texto constitucional (v., neste sentido, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 2008, Coimbra Ed., 160-163). No entanto, o entendimento deste Tribunal há muito se consolidou no sentido de conferir amplitude máxima à reserva de competência parlamentar ínsita na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º, de modo a abranger também os direitos análogos do artigo 17.º, sem vozes dissidentes (v., acórdãos do TC n.os 329/99, 187/01, 491/02, 358/05, 304/10, 75/2013 e 545/2015). A analogia substancial que acima se assinalou entre direitos fundamentais expressamente qualificados pela Constituição como direitos, liberdades e garantias e os direitos fundamentais de natureza análoga a que se refere o artigo 17.º da Lei Fundamental - ao menos quando uns e outros constem da própria Constituição - justifica a aplicação aos segundos, não só do regime material dos primeiros, como também do respetivo regime orgânico-formal, em especial no que se refere à reserva de competência legislativa da Assembleia da República prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (nesse sentido, v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, cit., anot. IV ao artigo 17.º, pp. 372-373; e Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa, 6.ª Ed., 2019, pp. 185-186).
Finalmente, sobre o que alega a Assembleia Legislativa Regional dos Açores a propósito do artigo 13.º do diploma, cabe fazer ver que não é possível afirmar que a norma constante do artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M da Assembleia Legislativa Regional da Madeira, que igualmente adotou um regime de contingentação da atividade de transporte TVDE para esta Região, "é consensualmente aceite, por se entender que [...] não contende com o direito de livre iniciativa económica privada [...] e, concomitantemente, [...] com direitos, liberdades e garantias". De facto, o Acórdão 429/2020 deste Tribunal Constitucional não se debruçou sobre essa matéria por não ter sido pedida a fiscalização da constitucionalidade da norma em referência (cf. artigo 79.º-C da Lei 28/82, de 15 de novembro), não valendo por isso o argumento que subjaz à alegação, quer sobre força de precedente prudencial, quer sobre tratamento igualitário.
Cabe concluir que as normas do artigo 13.º, n.os 1, 2 e 3 do TVDERAA sob sindicância estão, pelo exposto, também feridas de inconstitucionalidade orgânica, por violação do espaço material sujeito a reserva legislativa da Assembleia da República, ex vi artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa.
11 - Concluindo-se que todas as normas fiscalizadas (artigo 4.º, n.º 2, alíneas b) e f) e artigo 13.º, n.os 1, 2 e 3, do "Regime Jurídico da Atividade de Transportes Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica para a Região Autónoma dos Açores", aprovado pelo Decreto 1/2022 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores) estão atingidas de vício de inconstitucionalidade orgânica, resulta dispensável a apreciação dos vícios de inconstitucionalidade material alegados pelo requerente. Isto é assim, não apenas porque a pronúncia quanto a estes últimos nada acrescentaria a título de efeitos (cf. artigo 61.º da Lei 28/82, de 15 de novembro e artigo 279.º, n.os 1 a 3, da Constituição da República Portuguesa), mas também porque, tratando-se de invasão da reserva parlamentar sobre direitos, liberdades e garantias (e direitos fundamentais a eles análogos), qualquer intervenção legislativa autónoma da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores sobre a matéria colocada terá de se entender inconstitucional em termos idênticos aos ora explanados.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do "Regime Jurídico da Atividade de Transportes Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica para a Região Autónoma dos Açores", aprovado pelo Decreto 1/2022 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, por violação do disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea a), conjugado com o artigo 165.º, n.º 1, alínea b), com referência ao artigo 47.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa;
b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma do artigo 4.º, n.º 2, alínea f), do "Regime Jurídico da Atividade de Transportes Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica para a Região Autónoma dos Açores", aprovado pelo Decreto 1/2022 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, por violação do disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea a), conjugado com o artigo 165.º, n.º 1, alínea b), com referência ao artigo 47.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa;
c) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas do artigo 13.º do "Regime Jurídico da Atividade de Transportes Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica para a Região Autónoma dos Açores", aprovado pelo Decreto 1/2022 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, por violação do disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea a), conjugado com os artigos 165.º, n.º 1, alínea b), e 17.º, com referência ao artigo 61.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa.
O Relator atesta o voto de conformidade do Senhor Conselheiro Teles Pereira que apresenta declaração de voto. António José da Ascensão Ramos.
Lisboa, 16 de março de 2022. - António José da Ascensão Ramos - José Eduardo Figueiredo Dias - Pedro Machete (com declaração relativa ao n.º 8.2 do Acórdão) - Assunção Raimundo - Joana Fernandes Costa - Lino Rodrigues Ribeiro - Gonçalo Almeida Ribeiro (subscrevo a declaração de voto do Conselheiro Teles Pereira) - Afonso Patrão - José João Abrantes - Mariana Canotilho - Maria Benedita Urbano - João Pedro Caupers (subscrevo a declaração de voto do Conselheiro Teles Pereira).
Declaração de voto
Declaração relativa ao n.º 8.2. do presente acórdão
A liberdade de iniciativa económica considerada quer como direito de iniciar uma atividade económica, quer como direito de exercer tal atividade integra necessariamente uma componente institucional, que, todavia, não a esgota.
Com efeito, aquela liberdade exprime a liberdade de ação (e de desenvolvimento da respetiva personalidade) de um (ou mais) sujeito(s), nomeadamente do empresário: aquele que decide iniciar e desenvolver, por sua conta e risco e em vista da obtenção de um ganho, certa atividade económica.
Tal como afirmado, por exemplo e entre muitos, nos Acórdãos deste Tribunal n.os 187/2001, 289/2004 e 75/2013, a liberdade de iniciativa económica integra dimensões defensivas com importância axiológica análogas às que se encontram nos direitos, liberdades e garantias («a parcela do "direito à livre iniciativa privada" que corresponde a um dever de abstenção do Estado face àquela livre conformação do indivíduo (ou da pessoa coletiva)», ou seja, «os quadros gerais e os aspetos garantísticos da liberdade de iniciativa económica»), nomeadamente no que se refere à constituição da empresa, ao acesso desta ao mercado e à própria condução pela mesma da sua atividade económica.
A empresa é o veículo necessário da atuação do empresário e a sua criação só tem sentido enquanto expressão do modo próprio de ser do empresário. De outro lado, o exercício da atividade económica pela empresa espelha o modo próprio de agir do empresário. E a ação deste último caracteriza-se justamente pela iniciativa. Daí não se justificar uma separação fundamental ou ontológica, no que à liberdade de iniciativa económica diz respeito, entre a criação de uma empresa e a condução da respetiva atividade económica (gestão): a segunda constitui a razão de ser da primeira; e a primeira representa uma condição de possibilidade da segunda. Em ambas o que tem relevância jusfundamental é a ligação indissociável com a liberdade de ação do empresário. - Pedro Machete.
Declaração de voto
1 - Concordando inteiramente com o pronunciamento do Tribunal no sentido da inconstitucionalidade orgânica das três disposições visadas pelo Requerente no Decreto 1/2022, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores (artigos 4.º, n.º 2, alíneas b) e f), e 13.º), distancio-me do trecho da fundamentação (item 7.2., que é projetado pelo final do item antecedente) onde se pretende enquadrar o objeto temático do Diploma [1] no Direito da União Europeia (DUE).
Com efeito, a menção de que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), os operadores de plataformas eletrónicas de transporte rodoviário de passageiros são qualificados como agentes económicos no setor dos transportes (i.e., de que o serviço de imediação é qualificado como "serviço no domínio dos transportes", na aceção do artigo 58.º, n.º 1, do TFUE e que deve, portanto, ser excluído do âmbito de aplicação do artigo 56.º, do TFUE, da Diretiva 2006/123 e da Diretiva 2000/31), quando se lhe acrescenta a conclusão de que os legisladores estaduais podem aprovar - ficou-lhes franqueado o caminho para aprovarem... - quadros legais de regulamentação do novo modelo de atividade económica, desconsidera um enquadramento completo na ótica do DUE, tornando a afirmação em causa equivoca, desvalor que não é verdadeiramente afastado pelo inciso que o Acórdão fez seguir a esta conclusão (após a transcrição do dispositivo dos dois Acórdãos do TJUE de dezembro de 2017).
2 - Importa sublinhar o seguinte: as duas primeiras normas sindicadas (constantes das alíneas b) e f) do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto), respeitantes à obtenção de certificação como motorista de TVDE na Região, estabelecem requisitos para o exercício dessa atividade (escolaridade obrigatória e domínio da língua portuguesa); a terceira norma sindicada (o artigo 13.º do Decreto) regula o número de averbamentos ou licenças emitidas de veículos para prestação de serviços de TVDE na Região Autónoma dos Açores. Em qualquer dos casos, não estará em causa, diretamente, o serviço de intermediação em si, i.e., os operadores de plataformas eletrónicas (cuja qualificação como serviço no domínio dos transportes resulta da citada jurisprudência do TJUE de 2017). Estará em causa, sim, (i) o acesso, por pessoas singulares, à atividade de motorista de transporte em veículo descaracterizado a partir de plataforma eletrónica na RAA, e (ii) a prestação de serviços de TVDE em si.
Ora, nem aquela qualificação (dos operadores de plataformas eletrónicas de intermediação) será, sem mais, aplicável à atividade de motorista, a exercer em Portugal, no quadro do mercado interno - e à prestação de serviços de TVDE pelos veículos licenciados (e seus motoristas); nem à mesma atividade de motorista - e sob a forma de direito de estabelecimento ou de prestação de serviços - deixa de ser aplicável o enquadramento geral de DUE efetuado no Acórdão 429/20 (no respetivo ponto 19). Esta asserção vale quanto aos princípios aplicáveis e domínio de competências da União (subsidiariedade, competências partilhadas: mercado interno - direito de estabelecimento e livre prestação de serviços - e política de transportes), aplicando-se diretamente as regras relativas ao direito de estabelecimento aos transportes [2], não devendo as imposições estaduais constituir um entrave ou uma restrição à liberdade de estabelecimento [3] ou à livre prestação de serviços. E o que se disse também releva quanto aos princípios gerais que os Estados membros devem observar ao legislar, ao abrigo do princípio da subsidiariedade, nomeadamente o princípio da não discriminação (direta ou indireta) em razão da nacionalidade (artigos 18.º do TFUE e 21.º da CDFUE) ou do local do estabelecimento principal ou secundário, no que ao direito de estabelecimento diz respeito, se os serviços objeto de regulação recaem no âmbito de aplicação dos Tratados. E, enfim, isso mesmo vale quanto à existência da regra especial do artigo 58.º, n.º 1, do TFUE, em matéria de liberdade de prestação de serviços de transporte [4].
Sublinha-se, por fim, que o enquadramento de DUE mais amplo, que aqui propugnamos, será tanto mais importante quanto na presente situação - e diversamente do que sucedia no Acórdão 429/2020 - está em causa um critério reportado ao próprio modo de acesso e exercício de uma atividade económica (licença dependente de requisitos, contingentação) no quadro do mercado interno, e ao direito fundamental de iniciativa económica privada (ou, noutra perspetiva, de acesso à profissão), nomeadamente através do direito de estabelecimento (principal ou secundário) ou da livre prestação de serviços no âmbito do mercado interno.
3 - São estes, em síntese, os motivos que me afastam relativamente ao ponto 7.2. do Acórdão.
[1] Definido no artigo 1.º, n.º 1, do Decreto: "[o] presente diploma tem por objeto estabelecer o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica na Região Autónoma dos Açores, doravante designado por TVDERAA.".
[2] Como o TJUE afirmou no Acórdão Yellow Cab (de 22/12/2010, no processo C-338/09): "[...] importa apreciar a regulamentação nacional [...] à luz das disposições do TFUE em matéria de liberdade de estabelecimento, diretamente aplicáveis aos transportes, e não por intermédio do título deste Tratado relativo a estes últimos." (ponto 33).
[3] Ponto 34 do Acórdão Yellow Cab: "[...] a obrigação de dispor de uma sede ou de outro estabelecimento no território do Estado-Membro de acolhimento não pode logicamente constituir, enquanto tal, um entrave ou uma restrição à liberdade de estabelecimento.
[4] Ponto 29 do Acórdão Yellow Cab: "[...] a livre circulação de serviços no domínio dos transportes é regida, não pela disposição do artigo 56.º do TFUE, que diz respeito, em geral, à livre prestação de serviços, mas pela disposição específica do artigo 58.º, n.º 1, do TFUE, nos termos do qual «[a] livre prestação de serviços em matéria de transportes é regulada pelas disposições constantes do título relativo aos transportes» (v., neste sentido, acórdão de 13 de julho de 1989, Lambregts Transportbedrijf, 4/88, Colect., p. 2583, n.º 9).".
J. A. Teles Pereira.
115181785
Anexos
- Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/4881002.dre.pdf .
Ligações deste documento
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1982-11-15 -
Lei
28/82 -
Assembleia da República
Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.
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1998-08-11 -
Decreto-Lei
251/98 -
Ministério do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território
Regulamenta o acesso à actividade e ao mercado dos transportes em táxi.
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2009-01-12 -
Lei
2/2009 -
Assembleia da República
Aprova a terceira revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto, e procede à sua republicação
-
2009-08-27 -
Lei
85/2009 -
Assembleia da República
Estabelece o regime da escolaridade obrigatória para as crianças e jovens que se encontram em idade escolar e consagra a universalidade da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 5 anos de idade.
-
2012-07-05 -
Decreto-Lei
138/2012 -
Ministério da Economia e do Emprego
Altera o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei 114/94, de 3 de maio, e aprova o Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, transpondo parcialmente a Diretiva n.º 2006/126/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro, alterada pelas Diretivas n.os 2009/113/CE, da Comissão, de 25 de agosto, e 2011/94/UE, da Comissão, de 28 de novembro, relativas à carta de condução.
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2013-01-22 -
Lei
6/2013 -
Assembleia da República
Aprova os regimes jurídicos de acesso e exercício da profissão de motorista de táxi e de certificação das respetivas entidades formadoras.
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2018-08-10 -
Lei
45/2018 -
Assembleia da República
Regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica
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2020-10-02 -
Decreto Legislativo Regional
14/2020/M -
Região Autónoma da Madeira - Assembleia Legislativa
Adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto, que estabelece o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica
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2022-01-05 -
Decreto
1/2022 -
Presidência do Conselho de Ministros
Classifica como bens de interesse nacional o Cravo, João Batista Antunes, século XVIII (1789), MNM 373, e o Pianoforte, Henri-Joseph Van Casteel, século XVIII (1763), MNM 425, e como conjunto de interesse nacional os três bustos imperiais provenientes da Villa Romana de Milreu: Agrippina minor, Adriano e Galieno, sendo-lhes atribuída a designação de «tesouro nacional»
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