Ricardo da Silva Lima Costa recorreu para o plenário deste Tribunal com fundamento em oposição entre os Acórdãos deste mesmo Tribunal de 10 de Dezembro de 1985, proferido no processo 73524, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 352, pp. 402 e segs., e de 24 de Janeiro de 1990, processo 78439, ambos proferidos no domínio da mesma legislação e transitado em julgado o primeiro deles.
Foi reconhecida a invocada oposição, o que determinou o prosseguimento do processo.
Não tendo o recorrente apresentado alegações, concluiu-se não pela deserção do recurso mas, dado o interesse público subjacente à uniformização da jurisprudência, pela sua prossecução, embora restrito a tal.
O Exmo. Magistrado do Ministério Público pronunciou-se pela confirmação do acórdão recorrido e pela solução do conflito de jurisprudência através de assento com a seguinte formulação:
A taxa de juros de mora aplicável às letras e livranças emitidas e pagáveis em Portugal é, em cada momento, a que decorra do artigo 4.º do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, e não a taxa de 6% prevista nos n.os 2 dos artigos 48.º e 49.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, na medida em que estes últimos preceitos legais deixaram de vincular jure gentium o Estado Português, estando excluídos da nossa ordem interna.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Em processo de execução para pagamento de quantia certa que o Banco Português do Atlântico, E. P., moveu a Maria Luísa de Jesus Lopes da Silva e a Ricardo da Silva Lima Costa, decidiu-se que o artigo 4.º do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, não ofende a convenção internacional que aprovou a Lei Uniforme, pelo que a taxa de juro a considerar seria a de 23% ao ano, corrigida por presumíveis vicissitudes posteriores, e não a de 6% dos artigos 48.º e 49.º daquela lei.
Já no acórdão fundamento considerou-se aquele artigo 4.º como violador das normas constitucionais, o que conduziu à inaplicabilidade das taxas de juro daquele decreto-lei e da Portaria 581/83, de 18 de Maio, prevalecendo assim a taxa de 6% contemplada pela Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.
Assim os acórdãos recorrido e fundamento adoptaram soluções expressas e diametralmente opostas relativamente à mesma questão fundamental de direito; foram proferidos no domínio da mesma legislação, em processos diferentes, tendo transitado em julgado o acórdão fundamento. Daí que não se altere a decisão proferida preliminarmente.
Pelo que se passa ao conhecimento do objecto do recurso.
O Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, depois de salientar no seu preâmbulo que, na actualidade, «a taxa moratória de 6%, fixada nas respectivas leis uniformes, perde o carácter de sanção e quase redunda num prémio conferido aos devedores menos escrupulosos», preceitua no seu artigo 4.º:
O portador das letras, livranças ou cheques, quando o respectivo pagamento estiver em mora, pode exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais.
À primeira vista, este preceito legal parece contrariar o disposto no artigo 47.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, aprovada esta e ratificada pelo Estado Português sem que a seu respeito fosse oposta qualquer reserva.
O artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa consagra uma cláusula de recepção geral do direito internacional factício, em que reside o fundamento da vigência na ordem interna do direito uniforme que foi estabelecido na Convenção de Genebra de 1930. Só que a vinculação à face da ordem jurídica internacional constitui condição necessária de vigência na ordem interna dessas disposições, enquanto normas internacionais.
Há que ter presente quer o artigo 1.º daquela Convenção quer o artigo 13.º do seu anexo II. Enquanto o primeiro prevê que os juros moratórios de letras de câmbio emitidas no território de uma das partes e pagável no território de outra ficariam sempre obrigados à taxa de 6%, em todo o lado, o segundo refere-se às letras emitidas e pagáveis no território de uma mesma parte em que prevalecia aquela taxa se, no acto de ratificação ou de adesão, a parte não emitisse reserva quanto à competência para aplicação da taxa legal em vigor no seu território.
Não repugna, assim, que, em relação a esta segunda hipótese, com base em causa legítima jure gentium, o Estado Português deixe de estar obrigado a aplicar os juros convencionais. Prevendo a Convenção duas causas de extinção - artigo 8.º, denúncia, e artigo 9.º, revisão - tem-se que o compromisso assumido pelo Estado Português quanto à taxa de 6% pode ser suspenso ou extinto jure gentium. Na verdade, é princípio de direito internacional que a alteração das circunstâncias que rompa o equilíbrio global das obrigações constantes dos compromissos convencionais ao ponto de se tornar injusto ou contrário à boa-fé e exigência do seu cumprimento pode conduzir à caducidade de tais compromissos. Trata-se da aplicação prática da chamada rebus sic stantibus, hoje codificada no artigo 62.º da Convenção de Viena.
Esta cláusula vem permitir que qualquer Estado possa deixar de cumprir a Convenção a partir do momento em que invoque a modificação das circunstâncias, conforme o princípio de que os sujeitos de direito internacional estão autorizados, em cada momento, a agir de harmonia com o que julgarem ser o seu direito.
Público e notório que, desde há alguns anos, profundas alterações ocorrem no domínio dos quadros económico, financeiro e cambiário. Como consequência, a taxa de juros moratórios saltou de 5% para 23%, terminando com o então existente equilíbrio da taxa de 6% do credor cambiário com a ataxa aplicável às obrigações cambiárias.
Este facto, como o referimos já, conduz forçosamente à extinção do compromisso assumido pelo Estado Português quanto à manutenção desta taxa de 6%, por ser evidente a oposição entre o disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei 262/83 e o artigo 47.º da Lei Uniforme. Colisão que ofenderia a regra pacta sunt servanda, introduzida na nossa ordem interna por força da cláusula geral de recepção plena do artigo 8.º, n.º 1, da Constituição da República, com consequente violação deste preceito constitucional.
De onde a prevalência constitucional do referido artigo 4.º e a sua legal aplicação, ao contrário do que se concluiu no acórdão fundamento.
Pelo que o recurso interposto nunca poderia proceder.
Como consequência do exposto, formula-se o seguinte assento:
Nas letras e livranças emitidas e pagáveis em Portugal é aplicável, em cada momento, aos juros moratórios a taxa que decorre do disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, e não a prevista nos n.os 2 dos artigos 48.º e 49.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 13 de Julho de 1992. - Cura Mariano - José Saraiva - Sousa Macedo - Lopes de Melo - Ferreira Vidigal - Joaquim Carvalho - Ferreira Dias - Beça Pereira - Jaime de Oliveira - Miguel Montenegro - Figueiredo de Sousa - Martins da Fonseca - Mário Noronha - Pereira dos Santos - Rui de Brito - Fernando Fabião - César Marques - Sá Nogueira - Barbiere Cardoso - Sá Pereira - Vaz de Sequeira - Pires de Lima - Roger Lopes - Tavares Lebre - José Magalhães - Mora do Vale - Ramiro Vidigal - Santos Monteiro - Eduardo Martins - Ramos dos Santos - Abranches Martins - Guerra Pires - Brochado Brandão - Ferreira da Silva (vencido nos termos da declaração de voto que junto) - Baltazar Coelho (vencido nos termos da declaração de voto que junto) - Cabral Andrade (vencido pelas mesmas razões que constam dos n.os 2 e 3 da douta declaração de voto do Exmo. Colega Baltazar Coelho) - Dionísio Pinho (votei o acórdão de acordo com a declaração de voto que apresento) - Sequeira Vahia.
Declaração da voto
Os assentos - artigo 2.º do Código Civil - reconduzem-se a actos de natureza normativa, traduzindo verdadeiras normas jurídicas legislativas, revestidas de eficácia impositiva universal - cf. Castanheira Neves, O Instituto dos Assentos e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, pp. 292 e segs., e «Assento», in Polis, I, p. 419, Gomes Canotilho, Revista de Legislação e Jurisprudência, 124.º, p. 131. Ora, a função legislativa não compete aos tribunais - artigo 206.º da Constituição. De contrário, o múnus judicial, ao ser chamado, através dos assentos, ao exercício daquela função, seria investido num estatuto que está em contradição com o sentido que lhe deverá corresponder no sistema político do Estado de direito dos nossos dias, baseado no sistema democrático da separação de funções - cf. Revista, cit., 120.º pp. 618 e 619. Daí que seja patente a inconstitucionalidade dos assentos, como decorre, aliás, para nós, do disposto no artigo 115.º, n.os 1, 2 e 5, da lei fundamental. Nem se argumente em contrário com o teor do seu artigo 122.º, n.º 1, alínea g), o qual, na lógica do sistema e no panorama legislativo actual, se refere tão-só à declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, dos regulamentos administrativos - artigo 66.º, n.º 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos. Não votei, em consequência, o presente assento. - Ferreira da Silva.
Declaração de voto
1 - Como tive oportunidade de salientar então - fls. 85 -, da fotocópia que me foi facultada aquando do meu visto não constava a do parecer do Ministério Público nem se certificava que este o não tivesse dado. Por isso, considerando o disposto no n.º 3 do artigo 767.º do Código de Processo Civil, reservei a oposição do meu visto para momento posterior à supressão daquela falta, o que não me foi facultado.Sem embargo do que deixo dito e tendo acabado de tomar conhecimento do indicado parecer, passo a enunciar, em resumo, o meu entendimento sobre a decisão que, salvo o devido respeito, entendo devia ter sido tirada.
2 - O recorrente, como reconhecem os meus ilustres colegas que fizeram vencimento, não cumpriu o ónus de, segundo o disposto no n.º 2 do artigo 767.º do Código de Processo Civil, alegar para o presente recurso.
Assim, dada a, para mim, inegável aplicabilidade ao recurso para o tribunal pleno das disposições gerais contidas nos artigos 690.º, n.º 2 - cf. A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, VI, p. 307, e J. R. Bastos, Notas, III, p. 419 -, e 292.º, n.os 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, devia o Exmo. Relator ter julgado deserto o presente recurso.
Porque o não fez, nada impedia, penso eu, que o pleno deste Tribunal, em suprimento daquela falta, se tivesse abstido de conhecer do objecto do recurso.
3 - Sempre salvo o devido respeito, ainda esta tomada de posição se impunha por outra via.
Conforme resulta dos autos, o conflito jurisprudencial em causa diz respeito à constitucionalidade do preceito contido no artigo 4.º do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, afirmada no acórdão recorrido e negada no acórdão fundamento.
Simplesmente, a última, a vinculativa, palavra sobre a constitucionalidade das leis não cabe ao pleno do Supremo Tribunal de Justiça, mas, como resulta, entre outros, dos artigos 223.º e seguintes e 277.º e seguintes da Constituição da República Portuguesa e 6.º e 69.º e seguintes da Lei 28/82, de 15 de Novembro, ao Tribunal Constitucional.
Por isso se tem aqui julgado que o Supremo Tribunal de Justiça não pode através de assento uniformizar a jurisprudência em matéria de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de normas - cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (tribunal pleno) de 24 de Abril de 1985, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 346, p. 208 - ou, por outras palavras, que não é admissível recurso para o tribunal pleno de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com o fundamento da inconstitucionalidade das normas jurídicas aplicadas afirmada num aresto e negada noutro - cf. parecer do relator de 21 de Abril de 1989, por mim subscrito, no processo 77955 e, bem assim, o Acórdão de 2 de Novembro de 1989 que o confirmou.
Daí que, também por esta via, não se devesse ter conhecido do objecto do presente recurso. - Baltazar Coelho.
Declaração de voto
Votei o acórdão, sem embargo de entender que a falta de apresentação das alegações previstas no artigo 767.º, n.º 2, do Código de Processo Civil pelo recorrente implica a execução do recurso. As alegações a que se refere o artigo 765.º do mesmo diploma legal apenas incidem, tal como o acórdão aí previsto, sobre a questão prévia da admissibilidade do recurso. Mas, a partir daí, o princípio do impulso processual consagrado no artigo 3.º do Código de Processo Civil e reflectido naquele n.º 2 do artigo 767.º citado não se compadece com o prosseguimento do processo à revelia da realização do interesse do recorrente, a quem cabe a disponibilidade processual do recurso.Contudo, entendo que o despacho em contrário do Exmo. Relator é susceptível de trânsito em julgado; contra ele não tendo havido reacção, impõe-se-nos. - Dionísio de Pinho.