I - O Exmo. Procurador-Geral da República-Adjunto, em exercício neste Tribunal, por delegação do procurador-geral da República, vem, nos termos dos artigos 281.º, n.º 2, da Constituição e 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, requerer que o T. Const. aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 30.º do Código das Expropriações (Decreto-Lei 845/76, de 11 de Dezembro), por violação do disposto nos artigos 62.º, n.º 2, e 13.º, n.º 1, da Constituição.
Tal norma já foi julgada inconstitucional pelo T. Const. em quatro casos concretos, através dos seguintes acórdãos, todos da 1.ª Secção, dos quais juntou cópia:
Acórdão 341/86, de 10 de Dezembro de 1986, proferido no processo 111/84 e publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 65, de 19 de Março de 1987;
Acórdão 442/87, de 18 de Novembro de 1987, proferido no processo 10/87 e publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 39, de 17 de Fevereiro de 1988;
Acórdão 3/88, de 6 de Janeiro de 1988, proferido no processo 215/87 e publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 61, de 14 de Março de 1988;
Acórdão 5/88, da mesma data, proferido no processo 241/87 e publicado no Diário da República, 2.ª série, com o mesmo número e data.
Tudo visto.
O T. Const. pode declarar, de harmonia com as disposições citadas, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de certa norma desde que se verifiquem os seguintes pressupostos:
a) Ter sido julgada inconstitucional em três casos concretos;
b) Ter sido formulado um pedido nesse sentido pelo Ministério Público ou por qualquer dos juízes do T. Const.
No caso em apreço, estão sem dúvida preenchidos aqueles pressupostos, pelo que nada obsta a que o Tribunal exerça o seu poder jurisdicional no sentido de apreciar se se verifica a alegada inconstitucionalidade da norma já aludida e em consequência declarar a sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
II - Há que decidir se a mencionada norma está efectivamente eivada de inconstitucionalidade por violação dos artigos 62.º, n.º 2, e 13.º, n.º 1, ambos da Constituição.
As razões constantes dos arestos citados, por si só, justificariam, por simples remissão e sem quaisquer outras considerações, que se deferisse o pedido formulado, visto não existirem quaisquer fundamentos para se alterar a jurisprudência já firmada desde a prolação do Acórdão 341/86, de 10 de Novembro de 1986, in Diário da República, 2.ª série, n.º 65, de 19 de Março de 1987, nem existir nova argumentação a aditar.
Para se poder tomar posição sobre o problema de saber se o artigo 30.º, já referido, padece de inconstitucionalidade, torna-se indispensável, previamente, apreender com exactidão o significado do conceito de justa indemnização utilizado no artigo 62.º da Constituição.
Este normativo reza assim:
1 - A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
2 - A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e, fora dos casos previstos na Constituição, mediante justa indemnização.
Por seu turno, o Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei 845/76, de 11 de Dezembro, a propósito da indemnização devida pelo acto expropriatório, dispõe assim no seu artigo 27.º:
1 - A expropriação por utilidade pública de quaisquer bens ou direitos confere ao expropriado o direito a receber uma justa indemnização.
2 - A indemnização será fixada com base no valor real dos bens expropriados e calculada em relação à propriedade perfeita, saindo deste valor o que deva corresponder a quaisquer ónus ou encargos, salvo no que se refere à caducidade de arrendamento nos termos do artigo 36.º E a seguir no artigo 28.º, n.º 1:
A justa indemnização não visa compensar o benefício alcançado pelo expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação. O prejuízo do expropriado mede-se pelo valor real e corrente dos bens expropriados, e não pelas despesas que haja de suportar para obter a substituição da coisa expropriada por outra equivalente.
E em continuidade, prescreve no seu artigo 30.º, n.º 1:
Para efeito de expropriação, o valor dos terrenos situados fora dos aglomerados urbanos será calculado em função dos rendimentos efectivo e possível dos mesmos, atendendo exclusivamente ao seu destino como prédio rústico e ao seu estado no momento da expropriação, devendo tomar-se em conta, porém, a natureza do terreno e do subsolo, a sua configuração e as condições de acesso, as culturas predominantes e o clima da região, os frutos pendentes e outras circunstâncias objectivas, susceptíveis de influírem no seu valor, desde que respeitem unicamente àquele destino.
A compreensão deste normativo ilumina-se por remissão expressa do artigo 131.º do Código das Expropriações através do artigo 62.º do Decreto-Lei 794/76, de 5 de Novembro (Lei dos Solos), no qual se dispõe:
1 - Para efeitos deste diploma, entende-se por aglomerado urbano o núcleo de edificações autorizadas e respectiva área envolvente, possuindo vias públicas pavimentadas e que seja servido por rede de abastecimento domiciliário de água e drenagem de esgoto, sendo o seu perímetro definido pelos pontos distanciados 50 m das vias públicas onde terminam aquelas infra-estruturas urbanísticas.
2 - Para efeitos deste diploma, entende-se por zona diferenciada do aglomerado urbano o conjunto de edificações autorizadas e terrenos contíguos marginados por vias públicas urbanas pavimentadas que não disponham de todas as infra-estruturas urbanísticas do aglomerado.
Estas as disposições fundamentais para se poder tomar posição sobre o problema que nos é colocado.
A expropriação de coisas pode definir-se como «a relação jurídica pela qual o Estado, considerando a conveniência de utilizar determinados bens móveis com um fim específico de utilidade pública, extingue os direitos subjectivos constituídos sobre eles e determina a sua transferência definitiva para o património da pessoa a cujo cargo esteja a prossecução desse fim, cabendo a esta pagar ao titular dos direitos extintos uma indemnização compensatória» (cf. Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 9.ª ed., p. 1020).
Na expropriação há, pois, uma extinção de direitos existentes sobre determinados bens, para efeito da sua transferência para uma outra esfera dominial por uma razão de utilidade pública, mediante, porém, o pagamento de uma justa indemnização. Por isso se diz que a expropriação vem a resolver-se numa conversão de valores patrimoniais. No património onde estavam os imóveis, a entidade expropriante põe o seu valor pecuniário. A justa indemnização, por sua vez, não visa compensar o benefício alcançado pelo expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação.
O pagamento da justa indemnização é um dos requisitos constitucionais da expropriação. Traduz-se num princípio geral, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, de harmonia com o qual os actos lesivos de direitos e os danos causados a outrem determinam uma indemnização.
A Constituição, porém, embora estabelecendo que a indemnização há-de ser justa, não define um concreto critério indemnizatório, mas é evidente que os critérios definidos por lei têm de respeitar os princípios materiais da Constituição (igualdade, proporcionalidade), não podendo conduzir a indemnizações irrisórias ou manifestamente desproporcionadas à perda do bem requisitado ou expropriado (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., revista e ampliada, 1.º vol., p. 331).
Sobre esta matéria Fernando Alves Correia sustenta que «o dano material suportado pelo expropriado é ressarcido de uma forma integral e justa, se a indemnização corresponder ao valor comum do bem expropriado ou, por outras palavras, ao respectivo valor do mercado ou ainda ao seu valor de compra e venda» (cf., do autor citado, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, Coimbra, 1982, p. 129).
Este Tribunal, porém, nas várias decisões mencionadas, embora concluindo pela inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 30.º do Código das Expropriações, não afirmou que constitucionalmente a justa indemnização tenha de responder ao valor de mercado. E não será indispensável partir de tal premissa para se concluir pela inconstitucionalidade da norma posta em crise.
É que essa norma, ao impor que o valor dos terrenos situados fora dos aglomerados urbanos seja calculado em função dos rendimentos efectivo e possível dos mesmos, atendendo exclusivamente ao seu destino como prédio rústico, e só permitindo que se tomem em conta certas circunstâncias objectivas, susceptíveis de influírem no seu valor desde que respeitem unicamente àquele destino, afasta-se, não apenas do critério geral daquele Código, contido nos artigos 27.º, n.º 2, e 28.º, mas também dos princípios materiais da Constituição (igualdade e proporcionalidade), já anteriormente referidos, e que não permitem que a indemnização seja irrisória ou desproporcionada.
Desta forma é indubitável que a norma em apreço impede que se possa atender a factores de outra natureza que não os rústicos, pelo que afasta ilegitimamente a possibilidade de se considerarem outros factores susceptíveis de ocasionar um acréscimo do valor do prédio, entre eles o da «potencial aptidão de edificabilidade» dos terrenos expropriados.
Como bem se diz no Acórdão 341/86, já citado:
No direito de propriedade constitucionalmente consagrado contém-se o poder de gozo do bem objecto do direito, sendo certo que não se tutela ali expressamente um jus aedificandi, um direito à edificação como elemento necessário e natural do direito fundiário.
Parece, contudo, que mesmo naqueles casos em que a Administração impõe aos particulares certos vínculos que, sem subtraírem o bem objecto do vínculo, lhes diminuem, contudo, a utilitas rei se deverá configurar o direito a uma indemnização, ao menos quando verificados certos pressupostos.
E acrescenta-se:
Bem pode assim dizer-se que o jus aedificandi, sem embargo de não possuir tutela constitucional directa no direito de propriedade, deverá ser considerado como um dos factores de fixação valorativa, ao menos naquelas situações em que os respectivos bens envolvam uma muito próxima ou efectiva potencialidade edificativa.
O critério de avaliação estabelecido no artigo 30.º, n.º 1, do Código das Expropriações, ao afastar-se do padrão de medida definido nos citados artigos 27.º e 28.º, com incidência exclusiva em factores de natureza rústica, envolve ou pode envolver uma determinação de valor distinto do conceito constitucionalmente adequado de justa indemnização.
Se é certo que esta não pode estar sujeita e condicionada por factores especulativos, por, muitas vezes, artificialmente criados, sempre deverá representar e traduzir uma adequada restauração da lesão patrimonial sofrida pelo expropriado.
Ora, os limitados e restritivos índices ali contidos podem não consentir essa restauração patrimonial, impondo uma valoração distinta daquela que, fora de qualquer jogo especulativo e em condições de inteira normalidade de mercado, o expropriado podia alcançar.
A antecedente interpretação das normas em causa não envolve uma substituição do legislador pelo T. Const., antes aponta para a necessidade de uma rigorosa densificação legislativa do conceito constitucionalmente adequado de indemnização.
Deverá ainda acrescentar-se que o direito à justa indemnização, em casos de expropriação, se traduz num direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, para os efeitos previstos no artigo 17.º da Constituição, pelo que só pode sofrer as restrições previstas na Constituição, as quais devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Por conseguinte, tem de concluir-se pela violação do artigo 62.º, n.º 2, da Constituição.
Acresce que, na situação em presença, como se acentua no acórdão já referido, a norma do artigo 30.º, n.º 1, do Código das Expropriações, na medida em que impõe um critério de valorização restritivo que não assegura uma adequada restauração da lesão patrimonial sofrida pelos expropriados, acaba também por determinar para estes uma desigualdade de tratamento, impondo-lhes uma onerosidade forçada e acrescida sem a tutela do princípio da igualdade, por inexistência de justificação material para a diferença de tratamento dessas situações, nos termos aí previstos.
Pelo que se tem de concluir também pela violação do artigo 13.º da Constituição.
Nestes termos, decide-se declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do n.º 1 do artigo 30.º do Código das Expropriações (Decreto-Lei 845/76, de 11 de Dezembro) por violação do n.º 2 do artigo 62.º e do n.º 1 do artigo 13.º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Lisboa, 8 de Junho de 1988. - José Martins da Fonseca - José Manuel Cardoso da Costa - Raul Mateus - Vital Moreira - Messias Bento - José Magalhães Godinho - Luís Nunes de Almeida - Antero Alves Monteiro Dinis - Mário de Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Armando Manuel Marques Guedes.
Declaração de voto
O n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei 845/76, de 11 de Dezembro (Código das Expropriações), possibilita a expropriação por utilidade pública dos bens imóveis e direitos a eles relativos mediante o pagamento de justa indemnização. Nos artigos 27.º e 28.º desse diploma contêm-se regras gerais sobre a indemnização. Assim: a indemnização é fixada com base no valor real dos bens expropriados e calculada em relação à propriedade perfeita, saindo, em princípio, deste valor o que deva corresponder a quaisquer ónus ou encargos (n.º 2 do artigo 27.º); não visa tal indemnização compensar o benefício alcançado pelo expropriante, mas sim ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, medindo-se esse prejuízo pelo valor real e corrente dos bens expropriados e não pelas despesas que o expropriado haja de suportar para obter a substituição da coisa expropriada por outra equivalente (n.º 1 do artigo 28.º). E nos artigos 30.º e seguintes definem-se critérios especiais para o cálculo do valor das diversas espécies de bens, sempre para efeito de expropriação: a) o n.º 1 do artigo 30.º estabelece o «valor dos terrenos situados fora dos aglomerados urbanos»; b) o n.º 2 do artigo 30.º diz qual o «valor dos terrenos situados em zona diferenciada do aglomerado urbano, que, pelas suas condições, sejam insusceptíveis de rendimento como prédios rústicos»; c) o artigo 31.º é aplicável quando seja expropriado «terreno para o qual esteja em vigor licença de construção ou aprovação de projecto para este efeito» (n.º 1) e ainda quando «já tiver sido dado início à construção ou contraído qualquer encargo para esse efeito» (n.º 2); d) o artigo 32.º aplica-se quando seja expropriado «terreno em que existam ou estejam em curso obras de urbanização legalmente efectuadas pelos particulares» (n.º 1) e quando «para o prédio expropriado estiver em vigor licença de loteamento, mas não tiverem tido ainda início quaisquer obras de urbanização» (n.º 2); e) o artigo 33.º diz os termos em que deve ser calculado o valor dos «terrenos situados em aglomerado urbano»; f) o artigo 34.º especifica os elementos a atender na determinação do valor de «edifícios».É a constitucionalidade do n.º 1 do artigo 30.º que está em causa neste processo.
Diz-se aí que, «para efeito de expropriação, o valor dos terrenos situados fora dos aglomerados urbanos será calculado em função dos rendimentos efectivo e possível dos mesmos, atendendo exclusivamente ao seu destino como prédio rústico e ao seu estado no momento da expropriação, devendo tomar-se em conta, porém, a natureza do terreno e do subsolo, a sua configuração e as condições de acesso, as culturas predominantes e o clima da região, os frutos pendentes e outras circunstâncias objectivas, susceptíveis de influírem no seu valor, desde que respeitem unicamente àquele destino».
Ao contrário do que se decidiu neste acórdão, não vejo, porém, que tal norma viole quer o n.º 2 do artigo 62.º da Constituição, na parte em que este preceito estabelece que a expropriação por utilidade pública só pode ser efectuada «mediante pagamento de justa indemnização», quer o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da lei fundamental. A «justa indemnização» parece-me assegurada pela consideração dos elementos a que o n.º 1 do artigo 30.º manda atender. E, tratando-se de situações desiguais, não parece que os elementos a ter em conta neste caso, isto é, no caso de terrenos situados «fora dos algomerados urbanos», devam ser os mesmos a que os outros preceitos do Código das Expropriações mandam atender, como é o caso, v. g., e terrenos situados «em aglomerado urbano». - Mário de Brito.