Acórdão 223/90
Processo 42/89
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - O procurador-geral-adjunto em exercício de funções no Tribunal Constitucional como representante do Ministério Público veio requerer, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.º 2, da Constituição (na versão da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro) e 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade «da norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do Estatuto da Inspecção-Geral do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei 327/83, de 8 de Julho, na parte em que excede a previsão contida no artigo 384.º do Código Penal, designadamente quanto à forma de oposição e quanto ao leque dos ofendidos».
Para tanto vem alegado que esta norma, na dimensão assinalada, foi já julgada inconstitucional, por violação do disposto no artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, em três processos de fiscalização concreta de constitucionalidade, através dos Acórdãos n.os 426/87, 164/88 e 155/89, todos da 1.ª Secção do Tribunal Constitucional.
O requerimento foi instruído, além do mais, com cópia das três invocadas decisões.
2 - Em obediência ao disposto no artigo 54.º da Lei 28/82, foi notificado o Primeiro-Ministro, em ordem a, querendo, produzir a resposta havida por conveniente, acabando, a final, por se limitar a oferecer o merecimento dos autos.
Cabe agora apreciar e decidir.
II - A fundamentação
1 - Em conformidade com o estatuído nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição (na versão estabelecida pela Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho) e 82.º da Lei 28/82, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos, cabendo a iniciativa da organização do respectivo processo a qualquer dos seus juízes ou ao Ministério Público, seguindo-se nele os trâmites do processo de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade previstos naquela lei.
Na situação vertente pertenceu o impulso processual ao Ministério Público, nos termos do artigo 82.º da Lei 28/82, cabendo averiguar, antes de mais, se a norma cuja declaração de inconstitucionalidade vem peticionada foi efectivamente julgada inconstitucional nos três casos concretos referenciados na petição, pois que só essa norma pode constituir, nos presentes autos, objecto de apreciação e de eventual declaração de inconstitucionalidade.
2 - Como se alcança da leitura dos Acórdãos n.os 426/87, 164/88 e 155/89, Diário da República, 2.ª série, de, respectivamente, 5 de Janeiro de 1988, 14 de Novembro de 1988 e 22 de Março de 1989, e nomeadamente da sua parte decisória, existe inteira coincidência entre a norma em causa, na exacta dimensão que lhe é atribuída pelo Ministério Público, e o segmento da mesma norma efectivamente julgado inconstitucional nos três casos concretos sobre que recaíram aquelas decisões.
Com efeito, tal-qualmente vem requerido, aqueles arestos houveram por inconstitucional «a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do Estatuto da Inspecção-Geral do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei 327/83, de 8 de Julho, na parte em que (quanto à forma de oposição e quanto ao leque dos ofendidos) excede a previsão contida no artigo 384.º do Código Penal, por violação do disposto no artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição».
E esta inteira coincidência não é prejudicada pelo manifesto lapso material contido na parte decisória do Acórdão 426/87, onde se faz integrar a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º em causa no Decreto-Lei 327/83, e não já, como em realidade se pretendia dizer, no Estatuto da Inspecção-Geral do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei 327/83.
Delimitado assim o segmento da norma que constitui o objecto de apreciação e de eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, importa agora aferir da sua conformidade com a lei constitucional.
3 - O Decreto-Lei 327/83 aprovou, no seu artigo 1.º, o Estatuto da Inspecção-Geral do Trabalho, definindo, nomeadamente, as suas atribuições e competência em ordem a assegurar o cumprimento das disposições legais relativas às condições de trabalho e ao sistema de protecção do emprego e no desemprego dos trabalhadores.
Nos seu capítulo IV, subordinado à epígrafe «Acções de inspecção», inscreve-se o artigo 45.º, relativo a infracções penais, cujo texto reza do modo seguinte:
1 - Feita a identificação do pessoal de inspecção, quando no exercício e por motivo das suas funções, cometem os crimes previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 384.º e 402.º do Código Penal:
a) Aqueles que se oponham à sua entrada ou ao livre exercício das suas funções nos locais onde tenham de actuar, bem como à entrada das pessoas referidas no n.º 3 do artigo 49.º deste Estatuto;
b) Aqueles que lhes prestam falsas informações ou declarações ou que, sem justa causa, se recusem a prestar declarações, informações, depoimentos ou outros elementos de apreciação que lhes forem exigidos.
2 - Nos casos referidos no número anterior, a IGT remeterá a participação à entidade competente.
O artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição reserva para a Assembleia da República, salvo autorização legislativa concedida ao Governo, a competência para a definição dos crimes e penas, e a orientação pacificamente seguida pelo Tribunal Constitucional e definida no Acórdão 56/84, Diário da República, 1.ª série, de 9 de Agosto de 1984, faz inscrever em tal competência, ressalvada a existência de credencial parlamentar, a definição dos crimes e penas em sentido estrito, o que comporta «o poder de variar os elementos constitutivos do facto típico, de extinguir modelos de crime, de desqualificá-los em contravenções e contra-ordenações e de alterar as penas previstas para os crimes no direito positivo».
À luz deste entendimento, cujo acerto não é seguramente contestável, cumpre indagar se a previsão contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei 327/83, emitido a descoberto de autorização legislativa, contém um tipo legal de crime diferenciado daquele para o qual remete, concretamente o crime de «coacção a funcionários» previsto no artigo 384.º do Código Penal.
4 - O exame comparativo dos dois preceitos (já se deixou atrás transcrição do artigo 45.º do Estatuto da Inspecção-Geral do Trabalho) impõe agora a descrição textual do normativo contido no artigo 384.º do Código Penal, que é do seguinte teor:
1 - Quem empregar violência ou ameaça grave contra funcionário, ou membro das forças armadas ou das forças militarizadas, para se opor a que ele pratique ou continue a praticar acto legítimo compreendido nas suas funções ou para o constranger a que pratique ou continue a praticar acto relacionado com as suas funções, mas contrário aos seus deveres, será punido com prisão até 2 anos e multa até 100 dias.
2 - Se a violência ou ameaça grave produzir o efeito querido, a pena elevar-se-á até 3 anos e a multa até 150 dias.
Pode dizer-se que os elementos constitutivos do crime de «coacção de funcionários» previsto na primeira parte do n.º 1 deste preceito, a única que se encontra em causa na situação em apreço, podem enumerar-se do modo seguinte:
a) Um funcionário ou membro das forças armadas ou das forças militarizadas pretendendo praticar ou praticando acto legítimo compreendido nas suas funções;
b) Oposição por parte do agente do crime ao exercício dessas funções;
c) Utilização de violência ou ameaça grave como meio de oposição.
Da análise comparativa deste tipo legal de crime com aqueloutro que se acha descrito na já referenciada norma do artigo 45.º, n.º 1, alínea a), logo ressalta não existir identidade absoluta em todos os elementos constitutivos dos respectivos factos típicos.
Na verdade, esta última norma veio operar uma dupla variação do tipo de crime previsto no artigo 384.º do Código Penal:
1) Por um lado, enquanto não faz qualquer referência ao uso de violência ou ameaça grave como meio de oposição à prática de acto funcionalmente devido;
2) Por outro lado, enquanto alarga o leque dos ofendidos («funcionário ou membros das forças armadas ou das forças militarizadas») não somente a todo o pessoal da Inspecção-Geral do Trabalho (o que seria legítimo, na medida em que esse pessoal é integrado por «funcionários», de harmonia com a definição que deste conceito é dada no artigo 437.º, n.º 1, do Código Penal), mas também às pessoas referidas no artigo 49.º, n.º 3, do Estatuto da Inspecção-Geral do Trabalho, concretamente «técnicos do Ministério do Trabalho ou de outros serviços públicos e técnicos e representantes das associações sindicais ou patronais», algumas das quais não detêm manifestamente aquela situação funcional.
Deste modo, há-de dizer-se que o artigo 45.º do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei 327/83 veio alterar a tipificação contida no artigo 384.º do Código Penal, ampliando o conteúdo e a dimensão de alguns dos elementos essenciais do tipo legal de crime aí definido.
Isto vale por dizer que, existindo embora uma parcial coincidência entre a esfera de previsão das duas normas - a que se reporta à oposição feita a funcionários com emprego de violência ou ameaça grave -, existe também, para além dessa coincidência, uma margem de acréscimo na norma do artigo 45.º, qual seja a parte em que consente outras e diversas formas de oposição que daquele modo não possam ser qualificadas e revistam, nomeadamente, mera natureza passiva, e, outrossim, quando tal oposição possa ser dirigida a pessoas não revestidas da situação categorial de «funcionários».
E, assim sendo, haverá de concluir-se, tal-qualmente aconteceu nos arestos que serviram de suporte à petição do Ministério Público, que a norma do artigo 45.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei 327/83, emitido pelo Governo a descoberto de legitimação parlamentar, ao ampliar a dimensão de dois elementos essenciais constitutivos do crime de «coacção de funcionários» previsto no artigo 384.º do Código Penal, acaba por violar o disposto no artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição.
III - A decisão
Nestes termos, declara-se, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 45.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto da Inspecção-Geral do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei 327/83, de 8 de Julho, na parte em que excede a previsão contida no artigo 384.º do Código Penal.
Lisboa, 26 de Junho de 1990. - Antero Alves Monteiro Dinis - António Vitorino - José de Sousa e Brito - Bravo Serra - Mário de Brito - Vítor Nunes de Almeida - Fernando Alves Correia - Messias Bento - Armindo Ribeiro Mendes - Maria da Assunção Esteves - José Manuel Cardoso da Costa.