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Acórdão 483/2014, de 27 de Novembro

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Sumário

Não julga inconstitucionais as normas constantes dos artigos 1.º e 4.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, conjugadas com o disposto nos artigos 2.º e 3.º, n.º 1, da Lei n.º 4/83, de 2 de abril, com as alterações produzidas pela Lei n.º 38/2010, de 2 de setembro, quando interpretadas no sentido de que os tribunais administrativos são competentes para, uma vez verificado o incumprimento - pelo titular de cargo público - do dever de apresentação da declaração de rendimentos, aplicar a sanção de inibição para o exercício de cargo que obrigue à referida declaração

Texto do documento

Acórdão 483/2014

Processo 75113

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1 - A Representante do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da decisão daquele tribunal que, recusou, com fundamento em violação do artigo 18.º da Constituição, a aplicação dos artigos 1.º e 4.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, quando interpretados no sentido de que os tribunais administrativos e fiscais são materialmente competentes para o conhecimento de ações especiais, com caráter urgente, para declaração de inibição temporária para o exercício de cargos públicos e equiparados.

2 - Nos presentes autos, intentou o Ministério Público, contra o recorrido, ação administrativa especial, com caráter urgente, para declaração de inibição temporária para o exercício de cargos políticos e equiparados, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1 [com referência ao artigo 1.º, alínea d)], e 3.º, n.º 2 [com referência ao n.º 1, parte final, do mesmo preceito], da Lei 4/83, de 2 de abril, na redação conferida pela Lei 25/95, de 18 de agosto, e do disposto nos artigos 11.º e 15.º da Lei 27/96, de 1 de agosto, e nos artigos 46.º, 99.º e 191.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

O recorrido foi nomeado Diretor Regional de Agricultura e de Pescas do Centro, cargo que manteve até 27 de janeiro de 2012. Em 28 de março de 2012, submeteu junto do Tribunal Constitucional uma declaração sobre o valor dos seus rendimentos, nos termos do modelo único constante do Decreto regulamentar 1/2000, de 9 de março. Nesta declaração, foram omitidos pelo recorrido dados obrigatórios, concretamente, a qualidade de sócio gerente de uma sociedade comercial, com indicação das datas de início e termo do respetivo cargo. Notificado pelo magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional para informar se desempenhou cargos sociais que devessem constar da declaração, o recorrido respondeu em sentido negativo.

Todavia, intentada a ação administrativa especial, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco declarou-se absolutamente incompetente para a julgar, sob pena de violação do artigo 18.º da Constituição, louvando-se para tanto, na fundamentação vertida no acórdão 59/95 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):

«[...]

O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria - artigo 13.º CPTA.

[...]

A apreciação preventiva da constitucionalidade do Decreto 185/VI da Assembleia da República sobre o "controlo público de rendimentos e património dos titulares de cargos públicos", acabou por verter na feitura da Lei 25/05, de 18/08, abandonando o legislador a projetada norma atributiva de competência aos tribunais administrativos.

Não foi consagrada na versão final.

Um "silêncio eloquente" da lei.

Como se sabe, um dos elementos de interpretação é o elemento lógico-histórico-temporal.

E, pelo que se vê, para o caso, com vincada, determinante e significante presença.

Indubitavelmente, a occasiolegis (circunstancialismo que rodeou o aparecimento da lei) revela que o legislador se absteve, com propósito sentido, infletindo propósito, de atribuir competência aos tribunais administrativos.

Ao nível infraconstitucional de interpretação, afigura-se, pois, que a competência para a causa não cabe a este tribunal administrativo: o dizer e o sentido da lei ordinária não leva a essa atribuição, antes pelo contrário.

Noutra perspetiva, a da interpretação conforme o texto constitucional, e nos parâmetros do supra referenciado aresto do Tribunal Constitucional, os artºs. 1.º e 4.º do ETAF, hão de ser lidos como excluindo causa como a presente.

Lastbutnottheleast, sufragando tal entendimento, fazendo aplicação direta do texto constitucional, na análise aí vertida, resulta a rejeição de competência, sob pena de violação da Lei Fundamental - artigo 18.º da CRP.

[...]»

3 - Notificado para alegar, nos termos do artigo 79.º da LTC, o recorrente formulou as seguintes conclusões:

«[...]

1.ª) O Ministério Público interpôs recurso, para si obrigatório, da sentença constante de fls. 201 a 209 dos autos de "Ação administrativa especial de pretensão conexa com atos administrativos (Cargos políticos e equiparados)", que correu termos com o n.º 360/12.13.3BECTB, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, para este Tribunal Constitucional, na medida em que "recusou a aplicação do artigo 1.º e 4.º alínea a) do ETAF, por violação do artigo 18.º CRP, quando interpretada no sentido de que: Os Tribunais Administrativos e Fiscais são materialmente incompetentes para o conhecimento de ações especiais, com caráter urgente, para declaração de inibição temporária para o exercício de cargos políticos e equiparados".

2.ª) O critério normativo que a decisão recorrida tomou como inconstitucional será a "interpretação normativa" segundo a qual os "artigos 1.º e 4.º do ETAF" não atribuem competência aos tribunais administrativos para (conhecer e) aplicar a sanção de "inibição" a que alude o artigo 3.º (Incumprimento), n.º 1, parte final, da Lei 4/83, de 2 de abril, com a redação que lhe foi conferida pela Lei 25/95, de 18 de agosto, o que decorreria do facto dessa "inibição" infringir o regime constitucional da "lei restritiva".

3.ª) Porém, o comportamento tipificado na previsão do artigo 3.º, n.º 1, da Lei 4/83, cit., na redação da Lei 25/95, cit., na medida em que for judicialmente comprovado e qualificado como um ilícito culposo, não integra o âmbito de proteção e, portanto, por definição, não infringe o conteúdo dos direitos fundamentais de "participação na vida pública" e de "acesso a cargos públicos" (artigos 48.º, n.º 1, e 50.º, n.º 1).

4.ª) Concedendo, apenas para argumentar, que a medida de "inibição", no sentido do artigo 3.º, n.º 1, da Lei 4/83, cit., na versão da Lei 25/95, cit., consubstancia ingerência no conteúdo dos referidos direitos fundamentais de "participação na vida pública" e de "acesso a cargos públicos" (uma "restrição", por via da "inelegibilidade" para cargos eletivos ou da "incapacidade" para cargos não eletivos, que são sempre estritamente temporárias), então o caso será de um sacrifício imposto a tais direitos por uma "lei restritiva" (ou "lei harmonizadora") que é um ato normativo constitucionalmente conforme, em particular em virtude do regime legal, que institui, se limitar ao necessário para salvaguardar princípios e valores constitucionalmente protegidos relevantes do caso, da "publicidade e transparência" e, mais em geral, da "legalidade democrática" e da "responsabilidade" dos titulares de "cargos públicos", revestir caráter geral e abstrato, não ter efeito retroativo e não diminuir a extensão e o alcance do "conteúdo essencial" dos preceitos constitucionais em causa (artigo 18.º, n.os 2 e 3).

[...]»

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

4 - O objeto do presente recurso é integrado pelas normas constantes dos artigos 1.º e 4.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, conjugadas com o disposto nos artigos 2.º e 3.º, n.º 1, da Lei 4/83, de 2 de abril, com as alterações produzidas pela Lei 38/2010, de 2 de setembro, quando interpretadas no sentido de que os tribunais administrativos são competentes para, uma vez verificado o incumprimento - pelo titular de cargo público - do dever de apresentação da declaração de rendimentos, aplicar a sanção de inibição para o exercício de cargo que obrigue à referida declaração.

Com efeito, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º do referido diploma, devem os titulares de cargos políticos e equiparados (cf. artigo 4.º, n.os 1 e 2), bem como os titulares de altos cargos públicos (cf. artigo 4.º, n.º 3), apresentar ao Tribunal Constitucional, no prazo de 60 dias contado da data do início das respetivas funções, uma declaração dos seus rendimentos, património e cargos sociais com o conteúdo fixado nas alíneas a) a d) do mesmo preceito.

Como se lê no artigo 2.º do diploma:

«[...]

1 - Nova declaração, atualizada, é apresentada no prazo de 60 dias a contar da cessação das funções que tiverem determinado a apresentação da precedente, bem como de recondução ou reeleição do titular.

2 - Em caso de substituição de Deputados, tanto o que substitui como o substituído só devem apresentar a declaração referida no n.º 1 no fim da legislatura, a menos que entretanto renunciem ao mandato.

3 - Sempre que no decurso do exercício de funções se verifique um acréscimo patrimonial efetivo que altere o valor declarado referente a alguma das alíneas do artigo anterior em montante superior a 50 salários mínimos mensais, deve o titular atualizar a respetiva declaração.

4 - A declaração final deve refletir a evolução patrimonial durante o mandato a que respeita.

[...]»

Já o artigo 3.º tem a seguinte redação (os itálicos são nossos):

«[...]

1 - Em caso de incumprimento das declarações previstas nos artigos 1.º e 2.º, a entidade competente para o seu depósito notificará o titular do cargo a que se aplica a presente lei para a apresentar no prazo de 30 dias consecutivos, sob pena de, em caso de incumprimento culposo, salvo quanto ao Presidente da República, ao Presidente da Assembleia da República e ao Primeiro-Ministro, incorrer em declaração de perda de mandato, demissão ou destituição judicial, consoante os casos, ou, quando se trate da situação prevista na primeira parte do n.º 1 do artigo 2.º incorrer em inibição pelo período de um a cinco anos para o exercício de cargo que obrigue à referida declaração e que não corresponda ao exercício de funções como magistrado de carreira.

2 - Quem fizer declaração falsa incorre nas sanções previstas no número anterior e é punido pelo crime de falsas declarações, nos termos da lei.

3 - As secretarias administrativas das entidades em que se integrem os titulares de cargos a que se aplica a presente lei comunicarão ao Tribunal Constitucional a data do início e da cessação de funções.

[...]»

5 - A recusa da aplicação dos mencionados normativos, por parte do tribunal recorrido, partiu não tanto da circunstância de as matérias em causa extravasarem o âmbito constitucional de competência dos tribunais administrativos, à luz do disposto no artigo 212.º, n.º 3, da Constituição, mas essencialmente do facto de ao legislador estar constitucionalmente vedada a previsão de situações de inelegibilidade (cargos eletivos) ou incapacidade (cargos não eletivos) que não possam reconduzir-se a uma sanção de direito penal, por violação do artigo 18.º, n.º 2 da Constituição.

A desconformidade da interpretação enunciada com o parâmetro normativo-constitucional assentou na pronúncia de inconstitucionalidade constante do acórdão 59/1995 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), proferida em processo de fiscalização abstrata preventiva da constitucionalidade. Teve aí o Tribunal ensejo de apreciar, a pedido do Presidente da República, a constitucionalidade de várias disposições normativas do Decreto 185/VI, da Assembleia da República, entre elas o artigo 8.º, n.º 2, que atribuía competência aos tribunais administrativos para aplicação da sanção de inibição para o exercício dos cargos públicos elencados no artigo 2.º, fossem eles eletivos ou não eletivos.

Considerou nessa decisão o Tribunal que o direito de sufrágio passivo, enquanto concretização do princípio democrático (cf. o artigo 2.º da Constituição), é um "verdadeiro direito subjetivo público fundamental", cuja restrição não encontrava, in casu, arrimo expresso no n.º 3 do artigo 50.º, da Constituição. Destarte, concluiria o Tribunal que a "perda genérica do acesso a cargo público só pode estatuir-se por previsão expressa da Constituição, salvo como pena criminal", ou, noutros termos, que:

«[...]

A inibição para o exercício de cargo público tem como efeito a negação de uma parte constitutiva do estatuto de cidadão, a capacidade para o acesso e exercício de cargos públicos num Estado de direito democrático, e de uma forma genérica. Assemelha-se, deste ponto de vista, como privação parcial da liberdade, à prisão, que priva o cidadão da sua liberdade, como capacidade genérica do exercício de direitos, e que a Constituição proíbe, em princípio, que seja cominada por lei fora do direito penal (cf. o artigo 27.º, n.º 2, da Constituição).

[...]»

A origem legislativa das normas cuja aplicação foi recusada é, no entanto, posterior à decisão de pronúncia vertida no acórdão 59/95. A Lei 25/95, de 18 de agosto, que introduziu alterações na Lei 4/83, de 2 de abril, é fruto do procedimento legislativo desencadeado através dos Projetos de Lei 544/VI, apresentado em 27 de abril de 1995, e n.os 561/VI e 569/VI, ambos apresentados em 15 de maio de 1995.

6 - Ora, independentemente do grau de afronta que as soluções legislativas vertidas na Lei 4/83, na interpretação que delas fez o tribunal recorrido, consubstanciem para a censura constante da decisão de pronúncia parcialmente transcrita, certo é que a questão de constitucionalidade a que o Tribunal deve, in casu, dar resposta entronca em três núcleos problemáticos distintos: (a) o problema da natureza da sanção de inibição para o exercício de cargo público; (b) o problema da validade constitucional de tal medida, enquanto restrição ao âmbito de proteção de um direito, liberdade e garantia; (c) eo problema da atribuição de competência aos tribunais administrativos, à luz do critério material inscrito no artigo 212.º, n.º 3, da Constituição.

6.1 - Ao primeiro problema identificado já deu a jurisprudência constitucional resposta no acórdão 59/95. Enfrentou aí o Tribunal a questão de saber se o incumprimento culposo do dever de apresentação da declaração de rendimentos deveria ser considerado uma infração criminal e se as sanções daí advenientes seriam, também elas, sanções penais.

Dessa apreciação, extrai-se que, segundo o Tribunal, a especificidade do direito penal relativamente aos demais ramos do direito sancionatório - mormente, o direito disciplinar e o direito de mera ordenação social - não assenta na "natureza das respetivas infrações" nem nos "fins das sanções correspondentes". De facto, a mesma privação ou limitação de direitos pode ser o efeito quer de sanções penais, quer de sanções disciplinares, pelo que aquilo se afigura verdadeiramente idiossincrático do direito penal é "configuração única" que nele assumem três princípios fundamentais: os princípios da legalidade, da jurisdicionalidade e da necessidade.

6.2 - O artigo 3.º, n.º 1, da Lei 4/83, de 2 de abril, prevê, portanto, para aqueles que não entreguem as declarações de rendimentos a que estão obrigados, a aplicação de uma inibição, por um período máximo de cinco anos, para o exercício de cargo público que obrigue à referida declaração, e que não corresponda ao exercício de funções como magistrado de carreira. Na parte em que tal inibição incida sobre cargos públicos eletivos, há lugar - pois - a uma inelegibilidade; já na parte em que tal inibição se reporte a cargos públicos não eletivos, fala-se preferencialmente em incapacidade (cf. Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 997 e ss.). Neste sentido, o juízo sobre a constitucionalidade do artigo 3.º, n.º 1 terá de levar em consideração o facto de a inibição, uma vez determinada, abranger ambos os tipos de cargos.

Ora, o direito de acesso a cargos públicos, sejam eles eletivos ou não eletivos, encontra consagração expressa no artigo 50.º da Constituição, enquanto concretização do direito de participação política dos cidadãos (status activae civitatis). Visto que a regra é do acesso em condições de igualdade e liberdade aos cargos públicos, a medida de inibição constitui uma privação temporária do exercício dos mesmos, que se traduz, em termos jurídico-constitucionais, numa restrição a um direito, liberdade e garantia de cariz político. Mais, estando em causa um cargo eletivo, o alcance restritivo da inibição aumenta, atingindo não só os direitos de acesso a cargo público e de participação na vida pública (cf. artigo 48.º, n.º 1, da Constituição), mas também o direito de sufrágio passivo, consagrado no artigo 49.º da Constituição.

Estas são duas proposições sobejamente conhecidas da jurisprudência constitucional, que, em variados arestos, reconheceu o direito de sufrágio passivo - e de forma mais genérica, o direito de acesso a cargos públicos - como um "direito subjetivo público fundamental", que, em princípio, "assiste a todo o cidadão com mais de 18 anos", e que está indissociavelmente ligado ao princípio democrático e à ideia de cidadania (cf., entre outros, os acórdãos n.os 59/95, 602/89 e 480/13, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Destarte, tem suficiente respaldo jurisprudencial a asserção de que as inelegibilidades constituem restrições ao direito de sufrágio passivo, sujeitas, portanto aos "limites dos limites" vertidos nos n.os 2 e 3 do artigo 18.º, da Constituição, nomeadamente, ao princípio da proibição do excesso (cf., entre outros, os acórdãos n.os 364/91, 25/92, 382/01, 515/01, 448/05, 443/09 e 462/09, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

Sucede que esta conclusão, aparentemente comum, assume, no domínio das inelegibilidades, um recorte mais específico, por força do disposto no n.º 3 do artigo 50.º, da Constituição, introduzido aquando da revisão constitucional de 1989. Dispõe um tal preceito o seguinte:

«[...]

No acesso a cargos eletivos a lei só pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respetivos cargos.

[...]»

Antes deste acrescento ao artigo 50.º, a jurisprudência constitucional já admitia o estabelecimento, por via legislativa, de inelegibilidades. Considerava-se, na verdade, que o artigo 153.º da Constituição (atualmente, o artigo 150.º), apesar de enxertado no título relativo à Assembleia da República, continha um princípio geral de direito eleitoral português, que deveria servir de arrimo à previsão legislativa de inelegibilidades nas restantes eleições (cf. os acórdãos n.os 225/85, 244/85, 4/84, 8/84, 12/84, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

Esta leitura ressentiu-se, naturalmente, do impacto provocado pela revisão constitucional de 1989, visto que a partir daí a possibilidade de o legislador estabelecer inelegibilidades passou a estar sujeita a uma "vinculação teleológica" (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 677), concretizada na necessidade de, através delas, se assegurarem dois interesses constitucionalmente determinados: a liberdade de escolha dos eleitores (i) e a isenção e independência no exercício de cargos eletivos (ii).

O mesmo é dizer que os "outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos" (v. artigo 18.º, n.º 2, da Constituição) suscetíveis de justificar uma restrição ao direito de sufrágio passivo passaram a ser, em termos exclusivos, os elencados no n.º 3 do artigo 50.º, da Constituição. Trata-se de um entendimento já por diversas vezes sufragado pela jurisprudência constitucional, a qual, no acórdão 364/91 (cf., ainda, os acórdãos n.os 532/89, 59/95 e 480/13, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), o concretizou do seguinte jeito (o itálico é nosso):

«[...]

Seja como for, o legislador constituinte optou pela defesa de determinados valores - no caso, além do mais, a isenção e independência no exercício dos respetivos cargos - e essa intenção axiológica-normativa condiciona estritamente a liberdade de conformação do legislador ordinário e só é concebível à luz dos princípios constitucionais que integram o sistema de direitos fundamentais.

[...]»

De forma igualmente impressiva, apurou-se, no acórdão 59/95 (já mencionado), aquando da apreciação da conformidade constitucional de norma (praticamente) idêntica à do artigo 3.º, n.º 1, da Lei 4/83, de 2 de abril, que (o itálico é nosso):

«[...]

Segundo o preceito [o artigo 50.º, n.º 3, da CRP] a isenção e a independência são relativas ao exercício do cargo. Trata-se do específico cargo e, portanto, terão de verificar-se especificamente específicos interesses e relações do cidadão que não garantem a isenção e imparcialidade na gestão e representação dos interesses do cargo eletivo [...]. O artigo 50.º, n.º 3 não autoriza, portanto, uma inelegibilidade para todos os cargos eletivos previstos na Constituição. Qualquer outra causa de inelegibilidade terá em face do artigo 50.º, n.º 3, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, que estar expressamente prevista na Constituição.

[...]»

Noutros termos, o juízo do Tribunal, no aresto citado, foi no sentido de que uma inelegibilidade genérica enquanto sanção para a não apresentação da declaração de rendimentos não descobria suficiente arrimo na "intenção axiológico-normativa" que serve de filtro às restrições ao direito de sufrágio passivo.

Todavia, independentemente da posição que se perfilhe quanto ao sentido da introdução do artigo 50.º, n.º 3, da Constituição, certo é que - talqualmente respaldado em várias declarações de voto vertidas no acórdão (cf., concretamente, as declarações de voto dos Conselheiros Bravo Serra e Cardoso da Costa) - avulta como razoável um entendimento alternativo, assente numa leitura não tão severa da "vinculação teleológica" imposta por aquele normativo.

De facto, não repugna admitir que, paralelamente a objetivos mais imediatos - mormente os ligados à "moralização" da vida política e à "transparência" da situação financeira dos titulares de cargos públicos - a obrigação de entrega da declaração de rendimentos - e a correspondente sanção - possam genericamente erigir-se em veículos de uma maior isenção e independência no exercício de tais cargos.

Desta perspetiva, a medida restritiva afigura-se, não só idónea, mas também não desnecessária à consecução do programa axiológico preceituado pela norma constitucional, efetuando uma ponderação não desproporcionada entre os bens e interesses em jogo. Atente-se, sobretudo, na medida de realização do interesse público que através do dever de declaração se alcança, mormente ao nível da transparência e da independência daqueles que exercem cargos públicos, isto é, cargos de "confiança política" (i); no nível de lesão implicado pela inibição, a qual se traduz, bem vistas as coisas, numa suspensão temporária do exercício do direito de sufrágio passivo, cujo quantum caberá a um tribunal imparcial apurar, atento o circunstancialismo do caso concreto (ii); nos limites abstratos da inibição, que pode variar entre um e cinco anos, sendo certo que, tratando-se de cargos públicos eletivos e de renovação periódica, apenas o limite máximo permitirá, nos casos mais graves, conferir operatividade à medida inibitória na consecução dos interesses públicos almejados (iii).

Este juízo é suscetível de transposição para o segmento em que inibição se traduz numa incapacidade para o exercício de cargos públicos não eletivos. Isto porque aqui, não valendo a "vinculação teleológica" contida no n.º 3 do artigo 50.º, da Constituição, que se reporta exclusivamente a cargos eletivos, estará em causa uma restrição não expressamente autorizada ao direito de acesso a cargos públicos, cuja constitucionalidade depende igualmente da verificação da respetiva proporcionalidade (cf., entre outros, o acórdão 404/12, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).

6.3 - Ora, demonstrado que está que a medida de inibição para o exercício de cargos públicos não assume natureza penal, não resulta problemático que a competência para a sua determinação e aplicação seja atribuída aos tribunais da jurisdição administrativa.

A leitura que a jurisprudência constitucional vem há muito fazendo do n.º 3 do artigo 212.º, da Constituição, aponta no sentido de que a reserva de jurisdição nele fixada apenas exige que seja respeitado o "núcleo essencial dos litígios jurídico-administrativos", sob pena de esvaziamento da tutela jurisdicional efetiva de natureza administrativa (cf., entre outros, os acórdãos n.os 211/2007, 218/2007, 145/2009 e 19/2011, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Como se lê no primeiro dos arestos mencionados (os itálicos são nossos):

«[...]

O preceito constitucional não impôs que todos esses litígios fossem conhecidos pela jurisdição administrativa (com total exclusão da possibilidade de atribuição de alguns deles à jurisdição comum), nem impôs que esta jurisdição apenas pudesse conhecer destes litígios (com absoluta proibição de pontual confiança à jurisdição administrativa do conhecimento de litígios emergentes de relações não administrativas), sendo constitucionalmente admissíveis desvios num sentido ou noutro, desde que materialmente fundados e insuscetíveis de descaracterizar o núcleo essencial de cada uma das jurisdições.

[...]»

Destarte, independentemente de saber se está em causa um litígio emergente de relações jurídicas administrativas (v. Jorge Miranda/Rui Medeiros, op. cit., tomo II, p. 148), certo é que as normas constantes da Lei 4/83, de 2 de abril, são normas de direito público, porquanto, com o propósito de preservar interesses jurídicos fundamentais para a comunidade política, levam pressuposta uma intervenção estadual em veste de poder deautoridade.

Os tribunais administrativos, enquanto órgãos jurisdicionais, oferecem as garantias de imparcialidade impostas pela Constituição no domínio do direito sancionatório, não se vislumbrando que da sua intervenção neste processo possa advir um enfraquecimento da tutela jurisdicional efetiva dos afetados.

7 - Deste modo, há que concluir no sentido de que as normas em crise não estão feridas de inconstitucionalidade, não importando violação dos artigos 18.º, n.os 2 e 3 e 212.º, n.º 3, da Constituição.

8 - Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 1.º e 4.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, conjugadas com o disposto nos artigos 2.º e 3.º, n.º 1, da Lei 4/83, de 2 de abril, com as alterações produzidas pela Lei 38/2010, de 2 de setembro, quando interpretadas no sentido de que os tribunais administrativos são competentes para, uma vez verificado o incumprimento - pelo titular de cargo público - do dever de apresentação da declaração de rendimentos, aplicar a sanção de inibição para o exercício de cargo que obrigue à referida declaração;

b) Por conseguinte, conceder provimento ao recurso, revogando-se a douta decisão recorrida no que à questão de inconstitucionalidade importa, baixando os autos ao tribunal recorrido para reforma da decisão em conformidade com tal juízo.

Sem custas.

Lisboa, 25 de junho de 2014. - José Cunha Barbosa - Maria de Fátima Mata-Mouros - João Pedro Caupers - Maria Lúcia Amaral - Joaquim de Sousa Ribeiro.

208239226

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/3764304.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1983-04-02 - Lei 4/83 - Assembleia da República

    Controle público da riqueza dos titulares de cargos políticos.

  • Tem documento Em vigor 1991-08-23 - Acórdão 364/91 - Tribunal Constitucional

    PRONUNCIA-SE PELA INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA DO ARTIGO 2 DO DECRETO NUMERO 356/V DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 18, NUMEROS 2 E 3, E 50, NUMERO 3, DA CONSTITUICAO DA REPÚBLICA.

  • Tem documento Em vigor 1995-03-10 - Acórdão 59/95 - Tribunal Constitucional

    PRONUNCIA-SE PELA INCONSTITUCIONALIDADE DAS SEGUINTES NORMAS CONSTANTES DO DECRETO 185/VI DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, SOBRE O CONTROLO PÚBLICO DE RENDIMENTOS E PATRIMÓNIO DOS TITULARES DE CARGOS PÚBLICOS: - NUMERO 2 DO ARTIGO 5, NA PARTE EM QUE SE REFERE AOS JUIZES DO TRIBUNAL DE CONTAS (EXCLUINDO-OS DA PREVISÃO DE APLICAÇÃO DE SANÇÃO, QUALIFICADA DISCIPLINARMENTE, COMO GRAVE DESINTERESSE PELO CUMPRIMENTO DO DEVER PROFISSIONAL), POR VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 18, NUMERO 2 , E 13 DA CONSTITUICAO, - NUMERO 1 DO ART (...)

  • Tem documento Em vigor 1995-08-18 - Lei 25/95 - Assembleia da República

    ALTERA A LEI 4/83, DE 2 DE ABRIL (CONTROLO PÚBLICO DA RIQUEZA DOS TITULARES DE CARGOS POLITICOS). PARA OS EFEITOS DA PRESENTE LEI EQUIPARA A TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS OS MEMBROS DOS ÓRGÃOS PERMANENTES DE DIRECÇÃO NACIONAL E DAS REGIÕES AUTÓNOMAS DOS PARTIDOS POLÍTICOS COM FUNÇÕES EXECUTIVAS, OS CANDIDATOS A PRESIDENTE DA REPÚBLICA, OS GESTORES PÚBLICOS, ADMINISTRADORES DESIGNADOS POR ENTIDADE PÚBLICA EM PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO OU EM SOCIEDADE DE CAPITAIS PÚBLICOS OU DE ECONOMIA MISTA, DIRECT (...)

  • Tem documento Em vigor 1996-08-01 - Lei 27/96 - Assembleia da República

    ESTABELECE O REGIME JURÍDICO DA TUTELA ADMINISTRATIVA A QUE FICAM SUJEITAS AS AUTARQUIAS LOCAIS E ENTIDADES EQUIPARADAS, BEM COMO O RESPECTIVO REGIME SANCIONATÓRIO. SAO CONSIDERADAS ENTIDADES EQUIPARADAS A AUTARQUIAS LOCAIS AS ÁREAS METROPOLITANAS, AS ASSEMBLEIAS DISTRITAIS E AS ASSOCIAÇÕES DE MUNICÍPIOS DE DIREITO PÚBLICO E A TUTELA ADMINISTRATIVA CONSISTE NA VERIFICAÇÃO DO CUMPRIMENTO DAS LEIS E REGULAMENTOS POR PARTE DOS ÓRGÃOS E DOS SERVIÇOS DAS AUTARQUIAS LOCAIS E ENTIDADES EQUIPARADAS, QUE PODE ASSUMI (...)

  • Tem documento Em vigor 2000-03-09 - Decreto Regulamentar 1/2000 - Presidência do Conselho de Ministros

    Regulamenta a Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, alterada pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, relativa ao controlo público da riqueza dos titulares dos cargos políticos.

  • Tem documento Em vigor 2010-09-02 - Lei 38/2010 - Assembleia da República

    Altera (quinta alteração) a Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, que aprovou o regime do controle público da riqueza dos titulares dos cargos políticos.

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