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Acórdão 587/2014, de 3 de Dezembro

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma constante do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, quando interpretada no sentido de que se mantém em vigor o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas i a iv, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias

Texto do documento

Acórdão 587/2014

Processo 230/14

Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Mário Augusto Marques Martins, melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 20 de janeiro de 2014.

2 - O recorrente delimita o objeto do presente recurso da seguinte forma:

«[...]

Para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 75.º-A do diploma supra citado, consigna-se que por violar os artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 3 e 4, da CRP, pelos motivos constantes desta motivação, deve ser julgada inconstitucional a interpretação conjugada das normas contidas nos artigos 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, e no artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, quando interpretadas no sentido de que não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, o artigo 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, manteve-se em vigor não só quanto ao cultivo como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 (dez) dias, por flagrante violação do reduto nuclear dos direitos e garantias do arguido, mormente, os consagrados princípios da legalidade e da tipicidade.

[...]»

3 - Por decisão do tribunal de 1.ª instância, proferida em 10 de julho de 2013, foi o arguido condenado pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, punido nos termos do artigo 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de (euro)5.

Inconformado com a decisão condenatória, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

«[...]

I - A sentença judicial que condenou, em dispositivo, o Arguido, ora Recorrente, pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93 de 22 de janeiro fez uma errada interpretação das normas contidas no artigo 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei 15/93 de 22 de janeiro, nos artigos 2.º, n.º 1 e 2 e 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, violando, frontalmente, o artigo 7.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (C.E.D.H), o artigo 1.º, n.º 1 e 3 do Código Penal, o artigo 9.º do Código Civil e, ainda, os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade ínsitos nos comandos constitucionais dos artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 3 e 4 da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.).

II - Os factos apurados no decurso da audiência de discussão e julgamento, embora integradores da previsão do ilícito penal constante do artigo 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, não podem redundar, presentemente, nesse enquadramento jurídico-penal, porquanto tal norma foi expressamente revogada pela disposição constante do artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro.

III - E, nesse contexto, impõe-se a absolvição do Arguido, ora Recorrente, tanto pela prática do crime de tráfico de menor gravidade do qual, aliás, o mesmo vinha acusado, nos termos ínsitos na sentença recorrida, como do crime de consumo de estupefacientes previsto e punível, anteriormente, pela redação da norma do artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro.

IV - Para tal entendimento sustentamo-nos, em síntese, no conteúdo e objetivos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99, de 26 de maio, que aprovou a Estratégia Nacional de Luta contra a Droga, na dimensão normativa gerada pela Lei 30/2000, de 29 de novembro, no teor do artigo 7.º da C.E.D.H, no artigo 1.º, n.º 1 e 3, do C.P., nas regras da interpretação da lei insertas no artigo 9.º do C.C., e, primordialmente, ainda, o sentido e alcance visados nos princípios constitucionais ínsitos, sobretudo, nos artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 3 e 4, da C.R.P.

V - A corrente que argumenta que a conjugação dos artigos 21.º, 25.º, 26.º e 40.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro e dos artigos 2.º, n.º 1 e 2, e 28.º da Lei 30/2000, de 289 de novembro, resulta que as situações de detenção para consumo próprio, cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de 10 (dez) dias, é sancionada como tráfico, seja pelo ilícito criminal ínsito no artigo 21.º, seja por via da aplicação do artigo 25.º, seja, se estiver reunido o respetivo pressuposto, por via do artigo 26.º, todos do referido Decreto-Lei 15/93, não pode proceder, porquanto, numa análise global do regime jurídico da droga e das bases em que o mesmo se fundamenta, é patente que o legislador ordinário nunca teve a intenção de agravar a punição daqueles agentes, pois os mesmos não deixam de ser considerados como meros consumidores de estupefacientes e, portanto, devem, ainda assim, ser distinguidos dos criminosos.

VI - Por sua vez, a posição que defende que a intenção do legislador é descriminalizar o consumo, pelo que sempre que a quantidade detida pelo agente exceda o consumo médio individual necessário durante o período de 10 (dez) dias, não se podendo entender existir um crime de tráfico de estupefacientes, seja pela via do artigo 21.º, 25.º ou 26.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, deve ser aplicado o regime de mera ordenação social, também não pode proceder, porque, seja pela via da integração de lacunas com aplicação analógica, seja pela interpretação extensiva, há uma clara violação dos princípios da legalidade e da tipicidade penal, resultante das normas contidas no artigo 29.º, n.º 1 e 3 da C.R.P., no n.º 1 e 3 do artigo 1.º do CP e no artigo 2.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de outubro, que impedem o recurso a analogia ou à interpretação extensiva, quer para qualificar um facto como crime ou contraordenação.

VII - Finalmente, a interpretação que sustenta que o artigo 40.º do Decreto-Lei 15/93 continua em vigor para as situações de detenção para consumo, cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de dez dias, devendo nessa medida a norma revogatória do artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, ser interpretada restritivamente, de modo a não abranger a aquisição e detenção para consumo de uma quantidade superior à necessária para 10 (dez) dias, perpassada pelo Acórdão 8/2008 do Supremo Tribunal de Justiça, também não pode proceder pois não se adequa à política legislativa sobejamente divulgada aquando da publicação da nova Lei 30/2000, de 29 de novembro, desrespeita vários normativos internacionais e nacionais vigentes e, salvo melhor entendimento, viola, frontalmente, os princípios constitucionais enunciados.

VIII - Sabendo que o texto do artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, é que "são revogados o artigo 40.º, exceto quanto ao cultivo...", entendemos, manifestamente, inapropriado e sem qualquer sustentação legal extrair deste texto que o legislador não pretendeu revogar o artigo 40.º quanto à detenção e aquisição de estupefacientes para consumo não enquadráveis na Lei 30/2000, de 29 de novembro.

IX - A interpretação preconizada no aludido Acórdão uniformizador não respeita as regras legais atinentes à interpretação de normas, concretamente, o teor do artigo 9.º, n.º 2, do CC, porquanto o Supremo Tribunal de Justiça não refere expressamente o princípio geral expresso naquela norma, de que não deve ser considerado pelo intérprete "o pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso".

X - A condenação, crime e a pena respetiva estão subordinadas aos princípios da legalidade e da tipicidade consagrados no artigo 29.º da CRP - na vertente nullum crimen sine lege scripta, proevia, certa - o qual condiciona, entre o mais, a interpretação dos preceitos incriminadores, proibindo o recurso à analogia/integração de lacunas, como, aliás, decorre expressamente do artigo 1.º, n.º 3 do CP.

XI - A interpretação instituída no Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça, justamente afirmamos, que a mesma vai além do que a mera interpretação restritiva da norma revogatória do artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, a qual, desde logo, não poderá ser tida como conforme à CRP.

XII - Tal interpretação apresenta-se como uma verdadeira integração de aparente lacuna legal, na senda do que prevê o artigo 10.º, n.º 3 do CC, dispositivo, porém, inaplicável em sede de definição de tipos incriminadores, atentos os princípios da legalidade e da tipicidade que subjazem a toda a dimensão jurídico-penal.

XIII - Para que se pudesse qualificar a jurisprudência do dito Acórdão como interpretação restritiva da norma revogatória era fundamental que da letra da lei resultasse um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, como diz o artigo 9.º , n.º 2 do CC, o que, incontornavelmente, não resulta.

XIV - Ainda que se situasse o teor da jurisprudência fixada pelo Acórdão uniformizador no âmbito da mera interpretação restritiva da lei, a verdade é que também essa dimensão normativa da interpretação padeceria de evidente inconstitucionalidade, pois a interpretação preconizada em apreço viola o princípio da prevalência da constituição, na medida em que tal interpretação afronta o princípio da legalidade previsto no artigo 29.º da C.R.P., inserido no âmbito dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, nos termos supra expostos, quando a letra e o espírito da lei permitam, ou mesmo impunham, outra interpretação conforme à C.R.P.

[...]

XVI - No caso presente, tendo sido, como expressamente foi, revogado um preceito que tipificava determinada conduta como crime, ressuscita-lo através de interpretações aparentemente restritivas, mas que, no fundo, traduzem verdadeira integração de lacunas, além de consubstanciar uma violação do princípio da legalidade põe, obviamente, em causa a segurança jurídica, a justiça material e os direitos de defesa do arguido.

[...]

XXIII - Por violar os artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 3 e 4 da CRP, pelos motivos constantes desta motivação deve ser julgada inconstitucional a interpretação conjugada das normas contidas no artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, e no artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, quando interpretadas no sentido de não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, manteve-se em vigor não só "quanto ao cultivo" como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 (dez) dias - inconstitucionalidade essa que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais.

[...]»

4 - O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão proferido em 20 de janeiro de 2014, negou provimento ao recurso, louvando-se, para o efeito, nos seguintes argumentos:

«[...]

Apreciação

Nos termos do artigo 412.º n.º 1 do C.P. Penal, o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo da apreciação pelo tribunal ad quem das questões de conhecimento oficioso, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º n.º 2 do C. P. Penal.

Atentando nas conclusões apresentadas, que pecam pela prolixidade, o arguido insurge-se quanto à qualificação jurídica dos factos apurados decorrente da aplicação do AFJ n.º 8/2008, defendendo que a interpretação restritiva da norma revogatória do artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29/11, efetuada neste AFJ viola o artigo 1.º n.º 1 e 3 do C. Penal, artigo 9.º do C. Civil, arts. 18.º n.º 2, 29.º n.º 1, 3 e 4 da CRP assim como o artigo 7.º da CEDH.

O citado Acórdão 8/2008 fixou a seguinte jurisprudência: "Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, manteve-se em vigor não só "quanto ao cultivo" como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias."

De acordo com o disposto no artigo 445.º, n.º 3 do Código de processo Penal a decisão que resolver o conflito, no caso de recurso para a fixação de jurisprudência não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão.

Assim, os tribunais só podem divergir da jurisprudência fixada quando invoquem argumentos que nela foram esgrimidos, ou seja, a divergência tem de se fundamentar em argumentos novos que não aqueles constantes da tese que ficou vencida no acórdão de fixação de jurisprudência, sob pena de a uniformização não ter qualquer efeito e os tribunais continuarem com base nos mesmos argumentos a produzirem decisões desencontradas.

[...]

No caso em apreciação, atentando na argumentação aduzida na motivação e nas conclusões do recurso, resulta que a mesma se baseia em fundamentos que já foram esgrimidos no AFJ n.º 8/2008, designadamente no voto de vencido do Conselheiro Henriques Gaspar e na declaração de voto concordante do Conselheiro Souto de Moura.

Começando pelo elemento histórico de interpretação da Lei 30/2000, sobretudo o seu artigo 2.º, realçando a Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99, que aprovou a "Estratégia Nacional de Luta contra a Droga", os dois votos de vencido (dos Conselheiros Henriques Gaspar e Maia Costa) retiraram desse elemento histórico o apoio para o entendimento de que, depois da Lei 30/2000, tornou-se impossível defender a criminalização da detenção para consumo, fossem quais fossem as quantidades detidas para esse efeito, e salvaguardado o caso do cultivo. Por outro lado, o texto do AFJ não retirou desses elementos de cariz histórico o mesmo efeito, mas não deixou de a eles se referir.

Questões também aludidas no AFJ, concretamente, no voto de vencido do Conselheiro Henriques Gaspar e na declaração de voto concordante do Conselheiro Souto de Moura, são as relativas aos critérios de interpretação das normas, a observar à luz do artigo 9.º do C. Civil e aos limites entre a interpretação restritiva e a integração de lacunas, concretamente em matéria incriminatória. Discorreu-se ainda (sobretudo no voto do Conselheiro Henriques Gaspar), sobre o problema da inconstitucionalidade invocada e relação da mesma com a CEDH.

Em síntese, o recorrente não aduz argumentos que não tinham sido já debatidos no AFJ, nem tão-pouco este tribunal ad quem encontra fundamento novo para divergir da jurisprudência fixada pelo Acórdão 8/2008.

Nesta conformidade, improcede o recurso.

[...]»

5 - O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido. Notificado para apresentar alegações, nos termos do artigo 79.º da LTC, formulou o recorrente as seguintes conclusões:

«[...]

CONCLUSÕES

I - A interpretação conjugada das normas contidas nos artigos artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, e no artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, quando interpretadas no sentido de que não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, manteve-se em vigor não só quanto ao cultivo como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 (dez) dias, além de desrespeitar vários normativos internacionais e nacionais vigentes, viola, salvo melhor entendimento, o sentido e alcance visados nos princípios constitucionais ínsitos, sobretudo, nos artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 3 e 4, da C.R.P.

II - Essa interpretação padece de inconstitucionalidade, na sua dimensão normativa ao nível da interpretação do artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro.

III - O preceito constitucional constante do artigo 29.º da C.R.P., com correspondência no artigo 1.º do C.P. consagra o chamado "Princípio da Legalidade" penal, cuja importância é considerada basilar e indiscutível num Estado de Direito como o nosso.

IV - Dada a necessidade de prevenir as condutas lesivas dos bens jurídico-penais e igualmente de garantir o cidadão contra a arbitrariedade judicial, exige-se que a lei criminal descreva o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime pois só assim o cidadão poderá saber que ações e omissões deve evitar, sob pena de vir a ser qualificado criminoso, com a consequência de lhe vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança.

V - A condenação crime e a pena respetiva estão subordinadas aos princípios da legalidade e da tipicidade consagrados no artigo 29.º da C.R.P. - na vertente de nullum crimen sine lege scripta, proevia, certa -, o qual condiciona, entre o mais, a interpretação dos preceitos incriminadores, proibindo o recurso à analogia/integração de lacunas, como, aliás, decorre, expressamente, do artigo l.º, n.º 3, do C.P.

VI - A interpretação enunciada vai mais além do que a mera interpretação restritiva da norma revogatória do artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, a qual, desde logo, não poderá ser tida como conforme a C.R.P.

VII - Na realidade, tal interpretação apresenta-se como uma verdadeira integração de aparente lacuna legal, na senda do que prevê o artigo 10.º, n.º 3, do C.C., dispositivo, porém, inaplicável em sede da definição de tipos incriminadores, atentos os princípios da legalidade e da tipicidade que subjazem a toda a dimensão jurídico-penal.

VIII - Mas, ainda que se situasse o teor da decisão recorrida no âmbito da mera interpretação restritiva da lei, a verdade é que também essa dimensão normativa da interpretação padeceria de evidente inconstitucionalidade.

IX - Pois, por um lado, a interpretação preconizada em apreço viola o princípio da prevalência da constituição, o qual impõe que, dentre as várias possibilidades de interpretação, só deve escolher-se uma interpretação não contrária ao texto e programa da norma ou normas constitucionais, bem como viola o dever de aplicação do direito legal em conformidade com os direitos liberdades e garantias, na medida em que tal interpretação afronta o princípio da legalidade previsto no artigo 29.º da C.R.P., inserido no âmbito dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, nos termos supra expostos, quando a letra e o espírito da lei permitiam, ou mesmo impunham, outra interpretação conforme à C.R.P.

X - Por outra via, mesmo sendo admissíveis, em abstrato, as interpretações extensivas de normas incriminadoras ou as interpretações restritivas de normas descriminalizadoras, a verdade é que tais interpretações não podem exceder o teor literal das significações possíveis e adequadas segundo o entendimento comum das palavras do texto legal, sob pena de se estar a criar direito, devendo considerar-se proibidas e violadoras do princípio da legalidade constitucionalmente consagrado as interpretações que o façam.

XI - No caso presente, tendo sido, como expressamente foi, revogado um preceito que tipificava determinada conduta como crime, ressuscitá-lo através de interpretações aparentemente restritivas, mas que, no fundo, traduzem verdadeira integração de lacuna, além de consubstanciar uma violação do princípio da legalidade põe, obviamente, em causa a segurança jurídica, a justiça material e os direitos de defesa do arguido.

XII - Pelo argumentos aduzidos o tribunal ad quem deverá decidir pela não aplicação do Acórdão uniformizador aos presentes autos por força da disposição constante do artigo 204.º da C.R.P. que impõe que nos feitos submetidos a julgamento, não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados.

[...]»

6 - O Ministério Público contra-alegou nos seguintes termos:

«[...]

VIII - Conclusões

62 - Pretende o recorrente nos presentes autos, Mário Augusto Marques Martins, ver apreciada a constitucionalidade da "interpretação conjugada das normas contidas nos artigos 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, e no artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, quando interpretadas no sentido de que não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, manteve-se em vigor não só quanto ao cultivo como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 (dez) dias [...]".

63 - Fundamenta, o recorrente, o seu pedido de declaração da inconstitucionalidade da interpretação normativa identificada, na "[...] flagrante violação do reduto nuclear dos direitos e garantias do arguido, mormente, os consagrados princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade" com assento, segundo o recorrente, nos "[...] artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 3 e 4, da C.R.P. [...]".

64 - Porém, segundo entendemos, o fundamento da suposta desconformidade constitucional, invocado pelo ora recorrente, não é a norma resultante da interpretação conjugada do disposto nos artigos 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro e 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, à qual não é imputada qualquer desconformidade constitucional; mas sim o processo interpretativo prosseguido pelo tribunal "a quo", o qual, por restritivo e integrador de uma lacuna legal, se revelaria, potencialmente, violador dos princípios da legalidade e da tipicidade.

65 - Ora, não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar as decisões de interpretação e aplicação do direito infraconstitucional a que procedeu o tribunal "a quo", pois que tal redundaria na transmutação do processo de fiscalização da constitucionalidade num contencioso de decisões e não num contencioso normativo.

66 - Acresce, que já teve o Tribunal Constitucional oportunidade de se pronunciar sobre a presente questão, no seu douto Acórdão 385/03, tendo decidido não conhecer do objeto do processo, não se vislumbrando razão que justifique a alteração da jurisprudência então fixada.

67 - Para a eventualidade de assim se não vir a entender, diremos que, no que respeita à invocada violação do disposto no n.º 2, do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, para além de não ter, a mesma, merecido qualquer reflexão, por parte do arguido, em sede de alegações, não se vislumbram quaisquer violações do regime constitucional da restrição ao exercício dos direitos, liberdades e garantias, quer de natureza material, quer de natureza formal, não se evidenciando a ultrapassagem, por parte do legislador ordinário, dos limites da sua liberdade conformativa.

68 - No que toca à alegada desconformidade com o disposto no n.º 4, do artigo 29.º, da Constituição da República Portuguesa, que consagra, no essencial, o princípio da não retroatividade da lei penal, na sua conjugação com a obrigatoriedade da aplicação retroativa da lei penal mais favorável, também não se verifica, em nosso entendimento, a violação do princípio constitucional nele plasmado, por parte da interpretação normativa resultante da conjugação entre os artigos 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro e 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro.

69 - Igualmente no que respeita à eventual violação do princípio constitucional da legalidade stricto sensu, compreendendo as vertentes da reserva de lei da Assembleia da República em matéria de crimes, penas, medidas de segurança e seus pressupostos; da proibição de intervenção normativa de regulamentos; e da exclusão do direito consuetudinário como fonte de definição de crimes ou de punição penal, devemos concluir que a mesma não se verifica.

70 - Já não assim, por fim, no que concerne à violação do princípio constitucional da legalidade, na sua vertente de princípio da tipicidade, o qual, em nosso alvitre, é ferido pela interpretação normativa resultante da conjugação entre os artigos 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro e 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, efetuada pelo tribunal "a quo".

71 - O julgador "a quo", ao proceder à interpretação normativa da conjugação entre o disposto nos artigos 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro e 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, extravasou os limites da moldura semântica do texto legal, recorrendo a um procedimento analógico de redefinição, violando o referido princípio da tipicidade, sediado nos n.os 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.

72 - Efetivamente, o julgador, ao interpretar restritivamente a norma revogatória contida no artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, mais não fez do que, logicamente, ampliar, sem suporte literal, o sentido e o alcance da norma ínsita no n.º 2, do artigo 40.º, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, num procedimento de preenchimento, não admissível, de uma lacuna legal, no domínio dos requisitos de incriminação e, igualmente, das consequentes reações punitivas.

73 - Por força do acabado de expor, entende o Ministério Público, ora recorrido, que não deverá o Tribunal Constitucional conhecer do objeto do presente recurso.

74 - Todavia, se assim se não vier a entender, deverá este Tribunal Constitucional julgar materialmente inconstitucional a interpretação normativa impugnada, resultante da conjugação entre o disposto nos artigos 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro e 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, por violação do princípio da legalidade, na sua dimensão de princípio da tipicidade, concedendo, assim, provimento parcial ao presente recurso.

[...]»

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

7 - Questão prévia: do conhecimento do objeto do recurso

O presente recurso de constitucionalidade tem por base a questão de saber se a interpretação sufragada pelo tribunal recorrido se compagina com o princípio da legalidade criminal, consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, em virtude de aquela assentar numa analogia in malam partem, isto é, numa interpretação analógica da qual resulta a incriminação do arguido.

Ora, independentemente da conclusão a que se chegue sobre esta questão, cumpre determinar, previamente, se estão preenchidos os pressupostos processuais inerentes ao nosso modelo de justiça constitucional, concretamente, se a questão em causa se configura como uma questão de constitucionalidade normativa de que este Tribunal deva tomar conhecimento.

Trata-se, como é consabido, de um problema com um extensíssimo lastro jurisprudencial, de onde não é possível extrair uma posição sedimentada e uniforme. Destacam-se, por um lado, inúmeros arestos em que o Coletivo concluiu que a sindicância do processo de aplicação analógica de norma incriminadora não integrava o objeto de controlo, por incidir sobre o ato de julgamento propriamente dito e não sobre uma norma ou interpretação normativa dela extraída (cf. os acórdãos n.os 634/94, 154/98 e 674/99, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Ou seja, de acordo com esta compreensão, não é tarefa do Tribunal controlar interpretações tidas por erróneas efetuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade. De outra forma, como se lê no acórdão 674/99 (disponível em

www.tribunalconstitucional.pt):

«[...]

O Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a atividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais - designadamente os tribunais supremos de cada uma das respetivas ordens -, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu «sentido natural» (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detetar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.

[...]»

Foi esta a argumentação que, no acórdão 385/2003 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), esteve subjacente à decisão proferida pelo Tribunal a propósito da questão que ora integra os presentes autos, entenda-se, a questão de saber se, com a norma revogatória constante do artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, teria sido descriminalizada a detenção para consumo de estupefacientes em quantidade que exceda o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

Contudo, este não é um entendimento unânime. Noutros arestos, alguns deles recentes, o Tribunal chegou a conclusão diametralmente oposta, não vislumbrando obstáculos a que, em certos domínios normativos, se controlasse a conformidade do processo hermenêutico seguido pelo tribunal recorrido com o princípio da legalidade criminal ou com o princípio da legalidade fiscal (cf. os acórdãos n.os 141/92, 205/99, 183/08 e 186/13, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Contrariando a argumentação expendida supra, logrou-se um entendimento nos termos do qual a recondução destas hipóteses ao objeto de controlo não deveria ser entendida uma situação de sindicância do ato de julgamento nem tampouco como uma interferência ilegítima nas competências dos tribunais ordinários. De facto, talqualmente consta de declaração de voto aposta ao acórdão 383/2000 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):

«[...]

Em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa, há que distinguir - apesar das inevitáveis dificuldades teóricas e práticas suscitadas - entre tudo o que é resultado da ponderação do caso concreto submetido ao tribunal, e que releva da decisão, daquilo que é a adoção de critérios normativos. E que releva da norma aplicada. Ora, quando um tribunal extrai, a partir de uma fonte, um critério normativo válido para uma série de casos, utilizando um processo hermenêutico também considerado válido para esses casos, não é o singular ato de julgamento que está em causa, nem a concreta decisão do tribunal em que esse ato se consubstancia. Pelo contrário, nessas hipóteses a questão é manifestamente de constitucionalidade normativa.

Uma coisa é a bondade de uma dada interpretação, e outra, bem distinta, é a contrariedade à Constituição dessa mesma interpretação. Uma disposição penal pode ser objeto de diferentes interpretações compatíveis com o princípio da legalidade. O que este princípio proíbe é que o julgador alcance, contra o princípio nullum crimen sine lege certa, uma norma cujo conteúdo ultrapassa o sentido possível das palavras da lei.

[...]»

Ou seja, muito embora a opção por um modelo de controlo normativo tenha visível respaldo na Constituição, não resultando exclusivamente de uma solução legal nem tampouco de uma interpretação jurisprudencial, certo é que há que conjugar esta impostação com as demais regras e princípios constitucionais. Na verdade, se a Constituição consagra, no seu artigo 29.º, n.º 1, o princípio da legalidade criminal, extraindo-se do âmbito de proteção de tal normativo a proibição de aplicação analógica de normas incriminadoras, uma interpretação sistemática do texto constitucional aconselha a que esse momento hermenêutico se converta num "pedaço" de normatividade integrante do objeto de controlo. Daqui não resulta que o Tribunal Constitucional haja de escrutinar qualquer processo hermenêutico que, em matéria penal ou processual penal, venha a ser adotado a nível infraconstitucional. O iter metodológico seguido pelo tribunal recorrido no apuramento do sentido normativo da norma permanece insindicável, não cabendo ao Tribunal Constitucional repassá-lo, mas apenas verificar se foram ultrapassados os limites constitucionais a que esse iter está sujeito em matéria penal, concretamente, a proibição da analogia in malam partem.

Este foi, aliás, o entendimento que obteve vencimento no recente acórdão 186/13 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), onde foi apreciada a constitucionalidade da norma constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, por violação do princípio da legalidade criminal. Apesar das muitas declarações de voto relativas a outros pontos da decisão, formou-se uma maioria sólida no sentido de que o fundamento invocado não devia afetar a admissibilidade do recurso.

Destarte, há que tomar conhecimento do objeto do recurso.

8 - Da inconstitucionalidade da interpretação normativa sufragada pela decisão recorrida

8.1 - Admitindo que estão verificados os pressupostos processuais de que se acha dependente o conhecimento do presente recurso, tudo estará em saber, portanto, se a interpretação normativa seguida pelo tribunal recorrido viola o princípio da legalidade criminal, consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, por resultar de uma analogia in malam partem.

O segmento questionado é integrado pelas normas constantes dos artigos 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, e 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, quando interpretadas no sentido de que "não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, manteve-se em vigor não só "quanto ao cultivo" como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias". Esta interpretação, recorde-se, coincide integralmente com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão 8/2008, de 25 de junho de 2008.

Sublinhe-se, ainda, que não é tarefa deste Tribunal apurar qual a melhor interpretação da norma em crise à luz dos instrumentos hermenêuticos à disposição do intérprete. Por conseguinte, a apreciação de outras sugestões ou hipóteses interpretativas só será levada a cabo caso isso se revele necessário para apurar se o recurso à analogia consubstancia, in casu, um alargamento constitucionalmente proibido das margens de punibilidade.

8.2 - A proibição da analogia in malam partem, isto é, da analogia da qual resulta um agravamento da responsabilidade penal do arguido, é um corolário do princípio da legalidade criminal (cf. artigo 29.º, n.º 1 da Constituição), concretizado no brocardo latino "nullum crimen, nulla poena sine lege". Este princípio opera como uma garantia contra o exercício ilegítimo e não controlável do ius puniendi estadual - sendo, nessa medida, condição de previsibilidade e de confiança jurídica - mas também como uma manifestação de justiça material, pois é através dele que se fixam os "limites da liberdade" (cf. António Castanheira Neves, «O Princípio da legalidade criminal - O seu problema jurídico e o seu critério dogmático», Boletim da Faculdade de Direito, Número Especial: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, vol. 1, 1984, p. 307 e ss., e os acórdãos n.os 559/01 e 183/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

Já aquela proibição justifica-se em razão da fragmentariedade do direito penal, enquanto direito de proteção de bens jurídicos, e pela necessidade de respeitar o programa político-criminal gizado pelo legislador democraticamente legitimado (cf. José Francisco de Faria Costa, «Construção e Interpretação do tipo legal de crime à luz do princípio da legalidade: duas questões ou um só problema?», Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3933, p. 354 e ss.). Em causa está, portanto, o problema da repartição de competências entre legislação e jurisdição, e, por conseguinte, também o princípio da separação de poderes.

Tradicionalmente, a analogia proibida em direito (e em processo) penal ocorre quando o intérprete extrai de uma norma um sentido já não "cabível" na sua letra ou que já não tenha nesta um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso. O mesmo é dizer que, neste domínio, as lacunas (os casos omissos) funcionam sempre contra o legislador e a favor da liberdade do agente. Não significa isto que o direito penal consubstancie um completo desvio aos postulados hermenêuticos tradicionais. Na verdade, a proibição da analogia opera exclusivamente como um limite, e não como um critério de interpretação, de onde resulta a plena convocação dos elementos de que geralmente se serve a metodologia jurídica - a saber, os elementos gramatical, histórico, teleológico e sistemático (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, p. 188).

8.3 - Até à entrada em vigor da Lei 30/2000, de 29 de novembro, a problemática do consumo e do tráfico de droga era exclusivamente disciplinada pelo Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro. Este diploma tratava, no seu capítulo IV, a questão do consumo, prevendo, no artigo 40.º, n.º 1, um crime de consumo, punível com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias, e no n.º 2, um subtipo qualificado, onde se denotava um agravamento da moldura penal em função da quantidade de droga detida ou adquirida pelo agente.

Paralelamente, o legislador prevê, no artigo 21.º daquele diploma, um crime de tráfico (e outras atividades ilícitas), cuja redação é a seguinte: "Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos" (o itálico é nosso). Esta moldura penal é suscetível de ser agravada em um terço, nas hipóteses elencadas no artigo 24.º, de acordo com a redação dada ao preceito pela Lei 45/96, de 3 de setembro. A par destas incriminações, o Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, acolhe ainda um crime de tráfico de menor gravidade (artigo 25.º), quando a ilicitude do facto se mostre consideravelmente diminuída em razão dos meios utilizados, da quantidade das substâncias ou das circunstâncias da ação; e a situação do "traficante-consumidor" (artigo 26.º), vocacionada para as situações em que o agente pratica os factos elencados no artigo 21.º, mas tem por finalidade conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, desde que estas não excedam a necessária para o consumo médio individual durante o período de 5 dias (cf. o artigo 26.º, n.º 2).

É de concluir, portanto, que até à entrada em vigor da Lei 30/2000, a fronteira entre o tráfico e o consumo não dependia das quantidades de droga em causa, mas sim da afetação da droga ao consumo pessoal do agente. Aliás, tráfico e consumo eram "tipos alternativos": não exigindo o "tipo" do tráfico um qualquer fim lucrativo, ele só teria aplicação "fora dos casos previstos no artigo 40.º", leia-se, fora dos casos em que o consumo, a aquisição e a detenção se fizessem para "consumo próprio" (cf. Cristina Líbano Monteiro, «O consumo de droga na política e na técnica legislativas: comentário à Lei 30/2000», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, vol. 11, p. 87, e Eduardo Maia Costa, «Breve nota sobre o novo regime punitivo do consumo de estupefacientes», Revista do Ministério Público, n.º 87, p. 147).

Pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99, de 22 de abril de 1999, foi aprovada a Estratégia Nacional de Luta contra a Droga, que assentou, entre outras, numa opção estratégica de descriminalização do consumo de drogas e da respetiva proibição como ilícito de mera ordenação social. Esta opção fundou-se nas seguintes coordenadas:

- em primeiro lugar, numa rejeição de opções "antiproibicionistas", tais como a legalização do comércio de drogas ou do consumo de drogas, por razões de vária índole, entre as quais se destacam os compromissos a que o Estado Português se encontra vinculado a nível europeu e internacional;

- em segundo lugar, na convicção de que a proibição do consumo como ilícito de mera ordenação social se justifica em nome do princípio humanista, que torna desnecessária a intervenção do direito penal, sobretudo nos casos de primeiras infrações, de consumidores ocasionais e de toxicodependentes propriamente ditos, e que reclama o chamamento de mecanismos mais flexíveis e eficientes no tratamento dos casos concretos;

A concretização destas opções estratégicas deu-se com a Lei 30/2000, de 29 de novembro, que mexeu em dois aspetos nucleares do anterior regime jurídico. Efetivou, por um lado, a descriminalização do consumo, da detenção e da aquisição para consumo próprio de droga (artigo 2.º, n.º 1), e por outro, revogou o artigo 40.º, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, exceto no que se refere ao cultivo (cf. o artigo 28.º). O n.º 2 do artigo 2.º acrescenta, porém, que "para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias", lançando, por conseguinte, a questão de saber como deve ser punido o agente que é encontrado com uma quantidade de droga superior à necessária para o consumo médio individual durante dez dias.

8.4 - São várias as respostas que doutrina e jurisprudência propuseram para responder adequadamente à questão colocada supra. Essa resposta não passa, porém, por rejeitar a punição da situação descrita, já que esse seria um resultado interpretativo absurdo e notoriamente inconstitucional. Com efeito, constituiria uma evidente violação do princípio da igualdade admitir que a detenção de doses para dez dias fosse punida como contraordenação, e que a detenção de quantidade superior, ainda que sem a intenção de traficar, não merecesse qualquer punição da parte do ordenamento jurídico.

A par deste ponto de convergência, doutrina e jurisprudência têm oscilado entre três resultados interpretativos.

O primeiro, acolhido pelo acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ, passa por interpretar restritivamente a norma revogatória constante do artigo 28.º da Lei 30/2000, no sentido de considerar que este preceito manteve em vigor o artigo 40.º, do Decreto-Lei 15/93, e de que, portanto, as situações de detenção ou aquisição de droga para consumo próprio não convertidas em contraordenações pelo novo diploma continuam a ser puníveis a título de crime de consumo (cf., neste sentido, Cristina Líbano Monteiro, ob. cit., p. 89). A obtenção de um resultado deste tipo parte de um pressuposto importante, que é o de que o n.º 2 do artigo 2.º, da Lei 30/2000, delimita o âmbito factual do ilícito contraordenacional previsto no n.º 1, não havendo margem para dúvida de que a conversão em contraordenação se estendeu apenas às situações de detenção ou aquisição de quantidades de droga não superiores à quantidade inerente ao consumo médio individual durante o período de dez dias.

Este pressuposto não é, todavia, inteiramente partilhado. Argumenta-se, com efeito, que uma solução deste tipo é contrária ao programa político-criminal vertido na Estratégia Nacional de Luta contra a Droga, e de que, nessa medida, não há razões para crer que deva continuar a ser punido como crime um comportamento que o legislador ambicionou "descriminalizar". Estando aquela afastada por via interpretativa, mormente por força do elemento teleológico, resta considerar que a detenção ou aquisição de droga em quantidades superiores às fixadas no n.º 2 do artigo 2.º, da Lei 30/2000, é suscetível de punição a título de contraordenação (cf., neste sentido, José Francisco de Faria Costa, «Algumas breves notas sobre o regime jurídico do consumo e do tráfico de droga», Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3930, p. 275 e ss.), valendo a superação do teto previsto nesse normativo como um (mero) "indício" de tráfico.

A terceira solução pugna pela punição da situação descrita como crime de tráfico, nos termos dos artigos 21.º e 25.º, do Decreto-Lei 15/93. Para ela aponta o elemento literal, visto que, mantendo-se a compreensão de que consumo e tráfico são "tipos alternativos", caem no tipo "tráfico" os comportamentos que não respeitarem os elementos do tipo "consumo", mormente a estatuição aí definida sobre o que há de entender-se por "consumo próprio". A isto não se opõe, segundo alguns, o "tipo" previsto no artigo 21.º, porquanto o respetivo conteúdo é compatível com comportamentos que não integram a aceção tradicional de tráfico - comprar para vender. Acresce que, como já observou o Tribunal Constitucional no acórdão 295/03 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), "é bem possível sustentar que o legislador, após a vigência da Lei 30/2000 [...] intentou despenalizar a detenção, para consumo, de substâncias estupefacientes, entendendo que para esse efeito, se haveria de considerar tão-somente a detenção de uma quantidade que não fosse superior à necessária para o consumo individual durante dez dias [...], e que a detenção não permitida de quantidade superior àquela por si só haveria de ser sancionada como ilícito criminal".

Trata-se de um resultado que, independentemente da sua compatibilidade com o princípio da legalidade criminal (artigo 29.º, n.º 1 CRP), mereceu forte crítica por parte da doutrina não só por ser contrário ao programa político-criminal gizado pelo legislador, mas também por viabilizar a punição a título de tráfico de situações em que se demonstra que o agente deteve ou adquiriu a droga para consumo pessoal, e não com o intuito de traficar (cf. Maria Fernanda Palma, «Consumo e tráfico de estupefacientes e Constituição: absorção do "Direito Penal de Justiça" pelo Direito Penal Secundário»?, Revista do Ministério Público, n.º 96, p. 35, e Eduardo Maia Costa, ob. cit., p. 149). No aresto citado, porém, o Tribunal concluiria pela não inconstitucionalidade daquela interpretação normativa, considerando inexistir violação do princípio da proibição do excesso:

«[...]

Neste contexto, pergunta-se: é manifestamente excessivo, arbitrário ou desproporcionado punir (designadamente em termos tais como os constantes artigo 25.º do Decreto-Lei 15/93) um agente que detenha, sem para tanto estar autorizado, uma quantidade de substâncias estupefacientes que seja superior à necessária para um consumo médio individual durante dez dias, ainda que destinada a seu exclusivo consumo?

A resposta a uma tal pergunta não pode deixar de ser negativa.

Na verdade, independentemente da admissibilidade de outros fundamentos para a punição da conduta em causa, mesmo atentos os riscos que essa detenção pode acarretar e a que acima se fez referência, não se afigura que o legislador, ao definir como ilícita a conduta de detenção, esteja a agir arbitrária ou desproporcionadamente. A posse, por alguém que para tanto não está licitamente autorizado, de uma quantidade de substâncias que excede aquela que serviria para, pelo mesmo, ser consumida durante um determinado período de tempo (que, note-se nem sequer se afigura como demasiado escasso - um terço de um mês), constitui (ou, ao menos, potencia) - por si e independentemente da falta de intenção do detentor de, ao detê-la, a oferecer, proporcionar, ceder, distribuir ou vender a terceiros, de a pôr à venda, distribuir, transportar ou transitar - um risco de essas mesmas substâncias assumirem a acessibilidade para algumas daquelas situações que se não incluíam ou incluem na vontade do agente.

[...]»

8.5 - O juízo que venha a ser adotado quanto à constitucionalidade da posição interpretativa aplicada pelo tribunal recorrido deve ter atenção dois aspetos nucleares já parcialmente explicitados supra. O primeiro é de que, nesta sede, não é tarefa do Tribunal escrutinar todo o iter hermenêutico percorrido pela decisão recorrida, mas apenas determinar se o sentido para que aponta esse iter ainda encontra na letra da lei algum respaldo. O segundo é o de que, havendo motivos para concluir que aquela interpretação resvala para uma integração analógica, há que indagar se da mesma resulta um real alargamento das margens de punibilidade, operação que implica que o Tribunal averigue a existência de outras interpretações não inconstitucionais, metodologicamente mais adequadas e das quais emirjam resultados mais favoráveis para o arguido.

Ora, o resultado interpretativo vertido nos autos foi o de que "não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, manteve-se em vigor não só "quanto ao cultivo" como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias". Em termos metodológicos, estamos perante uma interpretação corretiva, concretamente, perante uma restrição teleológica, exercício que, em nome da teleologia da norma, desconsidera o elemento gramatical por forma a que aquela abarque menos casos do que os qur seriam "naturais" ou "possíveis" à luz da sua letra. A este exercício metodológico, atenta a centralidade da letra da lei, tem de ser reconhecido caráter analógico. Tudo está em saber, portanto, se esta é uma situação de analogia constitucionalmente vedada (in malam partem), por implicar um alargamento da responsabilidade criminal do agente. A resposta a esta interrogação deve ser negativa, pelas razões de que seguidamente se dá conta.

Na verdade, o entendimento que vê na factualidade vertente um ilícito de mera ordenação social é metodologicamente inadequado, porquanto esbarra rotundamente na letra do artigo 2.º, n.º 2 da Lei 30/2000 sem ter, nos demais elementos da interpretação, alicerces consistentes. Se, nos termos do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, é de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, não se vê como é que, a partir do n.º 2, a detenção de quantidades de droga superiores à nele previstas possa apenas indiciar a prática de um crime de tráfico, constituindo, nessa medida, uma contraordenação. Numa palavra, a redação do preceito é categórica no sentido de excluir do regime contraordenacional a factualidade nele visada.

Nem se argumente, por outro lado, que, atentos os elementos histórico e teleológico da interpretação, esta é a solução para que aponta o programa político-criminal subjacente ao diploma. Tanto na Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga, como no mais recente Plano Nacional contra a Droga e as Toxicodependências, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 115/2006, de 24 de agosto, descobrem-se amiúde referências à "descriminalização do consumo de droga", sem quaisquer precisões adicionais. Contudo, as razões que motivaram a transição para um modelo proibicionista de tipo contraordenacional, concretamente, a inadequação e a desnecessidade de mobilização do ilícito criminal quando em causa estejam consumidores ocasionais ou "verdadeiros" (doentes) toxicodependentes, não valem para todo o tipo de detenção ou aquisição, sem cuidar, portanto, dos riscos associados às quantidades efetivamente detidas e das dificuldades probatórias provenientes do facto de em muitos casos não ser possível averiguar ou provar os fins da posse de droga.

É de concluir, portanto, que a interpretação normativa sufragada nos presentes autos, independentemente da sua maior ou menor consistência metodológica - que não cabe a este Tribunal controlar - não viola o princípio da legalidade criminal, consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição. Na verdade, posta de parte a solução contraordenacional, pelos motivos referidos, e a solução de não punibilidade, porque inconstitucional, aquele sentido normativo, mesmo extravasando a letra da lei, leva pressuposta, afinal, uma analogia in bonam partem, conducente a um estreitamento das margens de punibilidade.

9 - Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucional, por violação do princípio da legalidade criminal, consagrado no n.º 1 do artigo 29.º, da Constituição, a norma constante do artigo 28.º, da Lei 30/2000, de 29 de novembro, quando interpretada no sentido de que se mantém em vigor o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias;

b) Negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.

Lisboa, 17 de setembro de 2014. - José Cunha Barbosa - Maria de Fátima Mata-Mouros - João Pedro Caupers - Maria Lúcia Amaral - Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido pelas razões constantes da declaração anexa).

Declaração de voto

Dissenti da posição que fez vencimento por entender que, através das exigências extraíveis do seu núcleo essencial, o princípio da legalidade criminal, consagrado no artigo 29.º, n.os 1 e 3, da Constituição, veda aprioristicamente ao intérprete-aplicador a possibilidade de resolver qualquer desajuste normativo detectado no ordenamento jurídico-penal através da repristinação de um tipo legal incriminador objecto de revogação expressa.

Como é sabido, o princípio da legalidade criminal encontra-se tanto historicamente associado como funcionalmente vinculado à protecção do indivíduo perante o direito penal, colocando-o a salvo de uma intervenção estadual arbitrária ou excessiva.Encontra-se por isso, em geral, incluído no catálogo dos direitos, liberdades e garantias, surgindo aí consagrado como uma garantia pessoal de não punição fora do domínio de uma lei escrita, prévia, certa e estrita.

A exigência de lei escrita diz respeito ao plano da fonte da intervenção penal: só a lei formal é fonte político-juridicamente legítima da incriminação punitiva e, portanto, só a lei é competente para definir os crimes e as respectivas consequências jurídicas. Para além de escrita e anterior aos factos praticados, a lei que cria ou agrava a responsabilidade criminal tem que ser certa, no sentido em que deve especificar suficientemente os factos que integram o tipo legal de crime (princípio da tipicidade) e as penas que lhes correspondam, e estrita, no sentido em que só a lei, com exclusão de qualquer outra fonte normativa, tem legitimidade para decidir e definir a incriminação punitiva: aos Tribunais apenas compete a aplicação estrita dessa norma incriminadora e punitiva, proibindo-se-lhes qualquer concreta incriminação para além da legalmente imposta, designadamente através do recurso à analogia.

Em estreita sintonia com a sua função defensiva, o princípio da legalidade penal apenas cobre a matéria penal na parte destinada a criar ou agravar a responsabilidade criminal e não também a parte respeitante à extinção ou à atenuação dessa responsabilidade.

O Acórdão começa por enunciar as três posições interpretativas que doutrina e jurisprudência vêm propondo para responder à questão de saber "como deve ser punido o agente que é encontrado com uma quantidade de droga superior à necessária para o consumo médio individual durante dez dias", e assim superar a desarmonia introduzida pela Lei 30/2000, de 29 de Novembro, que efectivou, por um lado, a descriminalização do consumo, da detenção e da aquisição para consumo próprio de droga (artigo 2.º, n.º 1), e revogou, por outro, o artigo 40.º, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, exceto no que se refere ao cultivo (cf. o artigo 28.º): i) a primeira, acolhida pelo Acórdão de uniformização de jurisprudência 8/2008 do STJ, aplicada na decisão recorrida e aqui impugnada; ii) a segunda, que considera que a detenção ou aquisição de droga em quantidades superiores às fixadas no n.º 2 do artigo 2.º, da Lei 30/2000, é susceptível de punição a título de contraordenação; iii) e a terceira, que aponta para a punição da situação descrita como crime de tráfico, nos termos dos artigos 21.º e 25.º, do Decreto-Lei 15/93

Depois de considerar a segunda posição "metodologicamente inadequad[a]" por "esbarra[r] rotundamente na letra do artigo 2.º, n.º 2 da Lei 30/2000", o Acórdão entende que a "solução interpretativa impugnada, mesmo extravasando a letra da lei, leva pressuposta, afinal, uma analogia inbonum partem" na medida em que conducente, quando confrontada com a terceira e última hipótese, "a um estreitamento das margens da punibilidade", tornando-se com tal fundamento compatível com o princípio da legalidade criminal.

É deste pressuposto que começamos por divergir.

A incidência do princípio da legalidade criminal sobre a norma constante do artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, quando interpretada no sentido de que, apesar de nessa parte expressamente revogado, o artigo 40.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, se mantém em vigor numa extensão superior à do cultivo é distinta consoante se trate de: i) nessa interpretação ancorar a subsistência da incriminação da aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias; ii) dessa interpretação extrair a subsistência do elemento através do qual, por emprego da fórmula "fora dos casos previstos no artigo 40.º", o legislador procedeu à delimitação negativa dos factos incriminados no tipo legal do "tráfico e outras actividades ilícitas", previsto no artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro. Com efeito, enquanto no primeiro caso se trata da manutenção em vigor, apesar de expressamente revogada, da norma criadora de responsabilidade penal, no segundo caso trata-se da consideração dessa mesma norma mas apenas para o efeito de fazer subsistir na composição de um tipo legal diverso o elemento que aí contém o âmbito possível da responsabilidade criminal prevista. Sendo assim, a possibilidade de colisão com o princípio da legalidade da norma constante do artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, quando interpretada no sentido de que, apesar de nessa parte expressamente revogado, o artigo 40.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, se mantém em vigor numa extensão superior à do cultivo só se verifica no primeiro caso e não também no segundo. O que vale por dizer que qualquer impossibilidade de, por força do princípio da legalidade criminal, interpretar a norma constante do artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, no sentido de que se mantém em vigor o tipo incriminador constante n.os 1 e 2 do artigo 40.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, não gera nem acarreta a necessidade de uma concomitante supressão da cláusula de contracção de responsabilidade que, através da fórmula "fora dos casos previstos no artigo 40.º", delimita negativamente a acção típica no âmbito do crime previsto no 21.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro. É por isso que a solução interpretativa impugnada, que o próprio Acórdão considera extravasar "a letra da lei", não é, ao contrário do que aí simultaneamente se afirma, necessária a "assegurar o estreitamento das margens da punibilidade", assim decaindo o fundamento que conduziu o Tribunal a considerar compatível com o princípio da legalidade criminal a imputação de responsabilidade através da repristinação judicial de um tipo legal objecto de revogação expressa. Conforme começou por se assinalar, o princípio da legalidade criminal conduz aprioristicamente a que não possa constituir solução interpretativa mobilizável, ainda que considerada necessária a devolver coerência ou adequação ao sistema, qualquer uma que se funde na convocação de uma norma criadora de responsabilidade criminal expressamente revogada. - Joaquim de Sousa Ribeiro.

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Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/362176.dre.pdf .

Ligações deste documento

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  • Tem documento Em vigor 1982-10-27 - Decreto-Lei 433/82 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1993-01-22 - Decreto-Lei 15/93 - Ministério da Justiça

    Revê a legislação do combate à droga, definindo o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.

  • Tem documento Em vigor 1996-09-03 - Lei 45/96 - Assembleia da República

    Altera o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (regime jurídico do tráfico e consumo de estupefacientes).

  • Tem documento Em vigor 2000-11-29 - Lei 30/2000 - Assembleia da República

    Define o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica.

Ligações para este documento

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