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Acórdão 166/2010, de 28 de Maio

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Sumário

Julga inconstitucional a norma que resulta das disposições conjugadas da alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 3 do artigo 252.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e dos artigos 201.º, 904.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 909.º do Código de Processo Civil, quando interpretada «no sentido de dispensar a audição dos credores providos com garantia real nas fases de venda ordenada pelos Serviços de Finanças e, fundamentalmente, quando é ordenada a venda por negociação particular e feita a adjudicação consequente».

Texto do documento

Acórdão 166/2010

Processo 1206/2007

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - O Banco de Investimento Imobiliário, S. A. reclamou créditos em execução fiscal promovida pelo Serviço de Finanças de Olhão, em que é executada Liliana Pegado Lemos de Deus e exequente a Fazenda Nacional, com fundamento na titularidade de

um crédito com garantia real.

Por ocasião da realização da venda do imóvel sobre que recaía a garantia, a Fazenda Pública não notificou o credor reclamante com garantia real para o efeito de, depois de frustrada a venda judicial através de propostas em carta fechada devido à inexistência de propostas, este se pronunciar sobre a modalidade de venda por negociação

particular bem como sobre o preço base.

Assim, do despacho do Chefe do Serviço Local de Finanças de Olhão que determinou que se procedesse à venda desse imóvel por negociação particular (após a venda do imóvel por propostas em carta fechada não ter sido conseguida, por nenhuma proposta ter sido formulada), apresentou o Banco de Investimento Imobiliário, S. A. reclamação, pedindo a anulação do processado, incluindo a venda deste modo efectuada.

2 - O Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé julgou a reclamação improcedente.

Fê-lo nos seguintes termos:

Importa apreciar e resolver as seguintes questões:

[...]

1.ª Caso a venda efectuada numa execução fiscal por meio de propostas em carta fechada fique deserta, tem o órgão de execução fiscal que notificar o credor reclamante para se pronunciar sobre a subsequente modalidade de venda?

[...]

Vejamos em seguida a primeira das enunciadas questões.

Como sabemos, por princípio «a venda será feita por meio de propostas em carta fechada, pelo valor base que for mencionado nas citações, editais e anúncios a que se refere a presente secção» (art.º 248.º do Código de Procedimento e de Processo

Tributário).

Casos há, no entanto, em que outra pode ser a modalidade da venda, avultando, inter alia, o previsto no art.º 252.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o qual, na parte relevante, nos diz o seguinte:

«1 - A venda por uma das modalidades extrajudiciais previstas no Código de Processo

Civil só se efectuará nos seguintes casos:

a) Quando a modalidade de venda for a de propostas em carta fechada e no dia designado para a abertura de propostas se verificar a inexistência de proponentes ou a existência apenas de propostas de valor inferior ao valor base anunciado;

[...]»

Nos normativos referidos (nem de quaisquer outros do Código de Procedimento e de Processo Tributário) não se vê rasto da alegada necessidade do credor reclamante ser ouvido sobre a modalidade da venda no caso de se frustrar a venda por meio de propostas em carta fechada Mas também se não pode ignorar que o processo civil é subsidiário do processo tributário e, por isso, em caso de lacuna deverá a mesma ser preenchida com o recurso ao mesmo, nos termos regulados pelo art.º 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário. Daí que se compreenda a pretensão dos Reclamantes em recorrer aos termos da lei processual civil para tentar levar a água aos seus moinhos e por isso importa fazer um excurso sobre o que nos reserva esse regime

legal.

Com relevo encontra-se o art.º 886.º-A do Código de Processo Civil, que nos diz o

seguinte:

«1 - Quando a lei não disponha diversamente, a decisão sobre a venda cabe ao agente de execução, ouvidos o exequente, o executado e os credores com garantia sobre os

bens a vender.

2 - A decisão tem como objecto:

a) A modalidade da venda, relativamente a todos ou a cada categoria de bens penhorados, nos termos da alínea e) do artigo 904.º da alínea b) do n.º 1 do artigo

906.º e do n.º 3 do artigo 907.º;

[...]

4 - A decisão é notificada ao exequente, ao executado e aos credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender.

5 - Se o executado, o exequente ou um credor reclamante discordar da decisão, cabe ao juiz decidir; da decisão deste não há recurso.» Ainda com aparente relevo constata-se que do art.º 904.º do mesmo Código de

Processo Civil consta o que segue:

«A venda é feita por negociação particular.

[...]

d) Quando se frustre a venda por propostas em carta fechada, por falta de proponentes, não aceitação das propostas ou falta de depósito do preço pelo

proponente aceite;

[...].»

Assim sendo as coisas, o regime previsto no Código de Procedimento e de Processo Tributário para o caso de a venda por propostas em carta fechada ficar deserta é similar ao que o Código de Processo Civil prevê. A questão poderia ser diversa apenas se estivesse em causa a necessidade do órgão da execução fiscal ouvir o executado e o credor reclamante na execução fiscal previamente à sua decisão de escolha da modalidade da venda mas essa, como vimos, não é a que aqui se coloca. Mas ainda que fosse, sempre a solução a encontrar deveria ser diversa da propugnada pelos Reclamantes, como de resto se acentuou no recente Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, prolatado no dia 28-03-2007 [...] Neste acórdão, o STA decidira que o legislador preceituara integral e imperativamente no CPPT o regime da venda no processo de execução fiscal, excluindo, ao contrário do que acontece na execução comum, a audição do credor com garantia sobre a modalidade da venda (e consequente notificação da decisão do agente de execução).

Daqui decorreria a necessária aceitação, por parte do dito credor e no caso de negociação particular, do comprador ou do preço proposto pelo exequente, justificando-se tal interpretação atendendo à natureza e características da execução fiscal. Estando nela em causa a cobrança de receitas tributárias que visam "a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas" e a promoção da justiça social, da igualdade de oportunidades e das necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento - artigo 5.º, n.º 1 da lei geral tributária -, a execução fiscal caracterizar-se-ia pela sua celeridade.

3 - Da decisão do TAF de Loulé veio o Banco de Investimento Imobiliário, S. A.

interpor o presente recurso de constitucionalidade sobre o qual, inicialmente, recaiu um despacho de indeferimento por falta de preenchimento de pressupostos processuais, mas que, após reclamação deferida pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão 464/2007, veio a ser admitido pelo Tribunal a quo.

A norma que delimita o objecto do recurso de constitucionalidade é a que resulta das disposições conjugadas da alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º e n.º 3 do artigo 252.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e dos artigos 201.º, 904.º e alínea c), do n.º 1 do artigo 909.º do Código de Processo Civil, quando interpretada "no sentido de dispensar a audição dos credores providos com garantia real nas fases de venda ordenada pelos Serviços de Finanças e, fundamentalmente, quando é ordenada a venda por negociação particular e feita a adjudicação consequente".

No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade o recorrente alega que a norma viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, pois entende não ser aceitável que, num Estado de Direito, o legislador consagre, expressamente, a protecção dos direitos dos credores reclamantes providos de garantia real para aplicação na jurisdição comum e omita esses mesmos direitos no âmbito de

uma execução fiscal.

A esse fundamento, vem o recorrente, nas alegações apresentadas, acrescentar o da violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2), do princípio do acesso à justiça (artigo 20.º, n.º 4) e do direito de propriedade privada (artigo 62.º, n.º 1), assim pretendendo reforçar o entendimento de que, mesmo considerando-se as características particulares da execução fiscal, ainda assim não se justifica que aí seja dispensada a audição prévia dos credores reclamantes providos de garantia real para efeitos de escolha da modalidade de venda e de fixação do preço base.

4 - Relativamente ao princípio da igualdade, afirma o recorrente que a opção do legislador de não consagrar, expressamente, para o processo de execução fiscal, a solução do processo de execução comum, se apresenta in casu, e numa perspectiva jurídico-constitucional, intolerável ou inadmissível, por se não poder encontrar para ela fundamento material bastante. A diferença entre o regime da execução fiscal e o regime da execução comum não é materialmente sustentada em critérios objectivos, constitucionalmente relevantes, e que permitam tratar de forma desigual a tramitação da execução fiscal, sendo para tanto insuficiente a justificação assente na necessidade de celeridade da execução fiscal e no interesse público da cobrança de impostos. Além disso, diz, é violado o princípio da igualdade porque, quando detém a posição processual de credor reclamante em execução comum e na liquidação do activo em processo de insolvência, a Fazenda Nacional é sempre ouvida enquanto credor com garantia sobre os bens a vender nesses processos.

5 - No que respeita ao princípio da proporcionalidade, o recorrente reconhece que a execução fiscal, dado o seu fim de arrecadação coerciva de dívidas ao Estado ou entidades equiparadas, tende a caracterizar-se por uma pretendida celeridade, o que revela ter este princípio geral uma notável premência nessa forma de processo.

Simplesmente, considera que não existe qualquer justificação para aí dispensar a audição prévia dos credores reclamantes providos de garantia real. São três os argumentos utilizados. Em primeiro lugar, o recorrente considera que o argumento da celeridade prova demais, na medida em que também na execução comum é relevante a celeridade, sendo que aí não é legítimo que a Fazenda Nacional deixe de ser ouvida quando reclama os seus créditos em execução pendente no Tribunal Comum. Além disso, afirma que não se vislumbra de que modo é que a audição dos credores vai atrasar a execução fiscal, sendo certo que basta uma notificação aos credores reclamantes feita nos termos previstos no CPPT (o que vale por dizer que na grande maioria das situações se trata de notificações feitas aos mandatários forenses dos referidos credores). Por último, entende o recorrente não valer o argumento segundo o qual o fim da execução fiscal é o de garantir a não preterição dos créditos do Estado, porque os credores reclamantes com garantia real têm em muitas e variadas situações direito a serem pagos, prioritariamente, aos créditos do Estado.

6 - Relativamente ao direito de propriedade privada consagrado no n.º 1 do artigo 62.º da CRP, entende o recorrente que o mesmo se estende ao direito do credor à satisfação do seu crédito e que tal direito é violado pela dispensa de audição prévia. O facto de o credor com garantia real poder ser confrontado com uma modalidade de venda e preço que desconhecia e que por esse facto é colocado na situação de credor preterido por uma decisão arbitrária de um agente administrativo é, desde logo, razão bastante para considerar infundado, ilegítimo e inconstitucional o regime do CPPT em relação ao CPC. Porque assim se coloca o credor provido de garantia real na situação de ver total ou parcialmente frustrada a possibilidade de satisfação do seu crédito sobre o seu devedor que até lhe prestou uma garantia, a dispensa de audição prévia é excessiva, abrindo a porta a tudo quanto é possível imaginar no seio do mercado imobiliário, incluindo a venda dos bens por menos de metade do seu valor de mercado

(como terá ocorrido no caso dos autos).

7 - Já o direito de acesso aos tribunais surge violado pela circunstância de entre a frustração da venda por propostas em carta fechada e a consumação da venda por negociação particular vigorar a arcana praxis da Administração Fiscal, o que tem como efeito que o credor reclamante desconhece o momento temporalmente adequado para intervir na venda do bem, assim ficando privado de desencadear qualquer actuação processual tendente a acompanhar a venda e, consequentemente, de defender a efectivação da garantia patrimonial do seu crédito. Por via do secretismo da actuação da Administração Fiscal e em face da dispensa de notificação, o credor reclamante com garantia real vê ser-lhe negado o direito ao contraditório e a um processo justo e

equitativo.

Os recorridos não apresentaram contra-alegações.

II - Fundamentos

8 - Nos processos de execução fiscal, a execução não pode prosseguir se não forem citados os credores que detenham garantias reais relativamente aos bens penhorados. É o que determina o Código de Procedimento e de Processo Tributário, que confere ainda, aos referidos credores, um prazo de 15 dias após a citação para que possam reclamar os seus créditos (artigos 239.º e 240.º do CPPT).

Em regra geral, e neste tipo de processos, a venda de bens penhorados faz-se por meio de propostas em carta fechada, conforme dispõe o artigo 248.º do CPPT. A disposição, introduzida por redacção da Lei 15/2001, de 5 de Junho, veio pôr termo ao regime anteriormente vigente, nos termos do qual se admitia, neste tipo de processos, a venda por arrematação em hasta pública, sempre que o órgão de execução fiscal, em despacho fundamentado, sustentasse a manifesta vantagem da adopção dessa modalidade de venda, tendo em conta a natureza dos bens a penhorar e uma vez assegurada a transparência da operação.

Com esta mudança de regime, efectuada em 2001, terá querido o legislador ordinário dificultar o conluio entre potenciais compradores que o processo de venda em hasta pública sempre possibilitaria. Semelhante intenção, manifestada na reforma do processo de execução comum (que veio a proibir, também, a adopção dessa modalidade de venda: veja-se o preâmbulo do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro), justificar-se-ia, por maioria de razão, em processo de execução fiscal, que, prosseguindo o interesse público da cobrança de impostos, não pode deixar de ser ordenado de modo a garantir a transparência de todas as operações. Ao impor, como regra geral, a venda feita por meio de propostas em carta fechada, pretendeu portanto o legislador assegurar que, neste tipo de processo, as acções de venda se realizassem num contexto inquestionável de "regularidade".

A regra tem, no entanto, excepções. De acordo com o artigo 248.º do CPPT, a venda é feita desse modo [por meio de propostas em carta fechada] "salvo quando diversamente se disponha na presente lei". A disposição diversa é a que consta do artigo 252.º, que determina que a venda se faça por outra das modalidades previstas no Código de Processo Civil quando "no dia designado para a abertura de propostas se verificar a inexistência de proponentes ou a existência de propostas de valor inferior ao

valor de base anunciado".

Foi precisamente a inexistência de propostas o que ocorreu no caso em juízo.

As outras modalidades a que se refere o artigo 252.º [do CPPT] são as que constam do artigo 886.º do Código de Processo Civil: venda em bolsa de capitais ou mercadorias; venda directa a pessoas ou entidades; venda por negociação particular;

venda em estabelecimento de leilões; venda em depósito público ou equiparado; venda em leilão electrónico. No caso, a Administração Fiscal decidiu escolher a modalidade

da venda por negociação particular.

Nos termos do regime de execução comum, os credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender são sempre ouvidos quanto à escolha da modalidade da venda e quanto à fixação do valor base dos bens. É o que decorre do artigo 886.º-A do CPC, que determina que a decisão - que inclui tanto a escolha da modalidade da venda, quanto a fixação do preço dos bens, quanto a eventual formação de lotes - seja notificada pelo agente de execução aos credores reclamantes, que dela podem discordar. Se tal suceder, o juiz decidirá, sem recurso: n.º 7 do artigo 886.º-A

do CPC.

Como já se viu, entende a decisão recorrida que em processo de execução fiscal se não deve aplicar esta regra, pelo que a venda dos bens penhorados se efectuará sem a notificação dos credores reclamantes, que assim não poderão discordar da decisão tomada, nem quanto à modalidade da venda, nem quanto ao preço base atribuído pela Administração Fiscal aos bens a vender. Isto, apesar de o Código de Procedimento e de Processo Tributário determinar, no seu artigo 2.º, que, "de acordo com a natureza dos casos omissos", são de aplicação supletiva ao procedimento e ao processo judicial tributário as normas do Código de Processo Civil. Como também já se sabe, as razões para este entendimento fundam-se nas exigências próprias do processo fiscal, nomeadamente nas exigências de celeridade. Considera portanto a decisão recorrida que, por causa destas exigências próprias, a "natureza" da questão a decidir impedirá aqui a aplicação subsidiária do regime do CPC.

9 - Deve começar por dizer-se que não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar se a decisão recorrida interpretou correctamente o direito infra-constitucional. Na verdade, não lhe cabe censurar a correcção do juízo hermenêutico desenvolvido pelo tribunal a quo e, nomeadamente, se, como defende o recorrente, decorre do disposto nos artigos 2.º e 252.º do CPPT que o CPC é subsidiariamente aplicável à notificação dos actos relevantes na execução fiscal como seja a venda qualquer que seja a modalidade

adoptada.

Sob apreciação está única e exclusivamente a norma que resulta das disposições conjugadas da alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º e n.º 3 do artigo 252.º do CPPT e dos artigos 201.º, 904.º e alínea c), do n.º 1 do artigo 909.º do CPC, quando interpretada "no sentido de dispensar a audição dos credores providos com garantia real nas fases de venda ordenada pelos Serviços de Finanças e, fundamentalmente, quando é ordenada a venda por negociação particular e feita a adjudicação consequente".

Na interpretação do recorrente tal norma seria inconstitucional por violação do princípio da igualdade, do princípio da proporcionalidade, do direito de propriedade privada e do direito a um processo justo e equitativo.

Vejamos, pois.

10 - Sustenta o recorrente que a opção do legislador de não consagrar, expressamente, para o processo de execução fiscal, a solução do processo de execução comum, lesa antes do mais o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP.

Alega-se essencialmente que tal opção se apresenta, in casu e numa perspectiva jurídico-constitucional, como uma solução intolerável ou inadmissível, por se não encontrar para ela fundamento material bastante. Ao ser "apenas" justificada a partir da necessidade de celeridade da execução fiscal e no interesse público da cobrança de impostos, a diferença, quanto ao ponto agora relevante, entre o regime da execução fiscal e o regime da execução comum não será (no entender do recorrente) materialmente sustentada em critérios objectivos, que permitam tratar de forma desigual a tramitação da execução fiscal; além disso, diz-se, é violado o princípio da igualdade porque, quando detém a posição processual de credor reclamante em execução comum e na liquidação do activo em processo de insolvência, a Fazenda Nacional é sempre ouvida enquanto credor com garantia sobre os bens a vender nesses processos.

Não tem razão o recorrente. É que a justificação da dispensa de audição prévia do credor reclamante com garantia real com base na necessidade de celeridade da execução fiscal e no interesse público de cobrança de impostos consubstancia objectivamente fundamento material bastante para efeitos de uma distinção de regimes, não cabendo ao Tribunal substituir-se ao legislador na avaliação da razoabilidade dessa distinção sobre ela formulando um juízo positivo, como se estivesse no lugar deste e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução razoável, justa e oportuna (cf. Acórdão da Comissão Constitucional n.º 458, de 25 de Novembro de 1982, in apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de 1983). O controlo do Tribunal é antes de carácter negativo, cumprindo-lhe tão-somente verificar se a solução legislativa se apresenta em absoluto intolerável ou inadmissível, de uma perspectiva jurídico-constitucional, por para ela se não encontrar qualquer fundamento inteligível.

Como foi salientado, entre muitos outros, nos Acórdãos n.os 186/90, 187/90 e 188/90 (qualquer deles disponível em www.tribunalconstitucional.pt), "o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa perspectiva sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio

(Willkürverbot)".

No que especificamente respeita à razoabilidade de diferenciação de regimes com base na relevância do interesse público subjacente à eficiência do sistema fiscal, ainda que versando norma diferente da dos autos, decidiu o Tribunal Constitucional, no Acórdão

n.º 345/2006, que:

[...] atento o interesse público subjacente à actividade da cobrança dos impostos, cuja eficiência é essencial para o regular funcionamento dos serviços públicos, vocacionados à satisfação de necessidades colectivas, não surge como inadequada, irracional ou desajustada a solução de só consentir a sustação da execução fiscal perante um despacho judicial que ou determine o prosseguimento do processo de recuperação da empresa executada ou decrete a sua falência, não deixando o normal andamento da execução fiscal inteiramente dependente do mero requerimento por um credor desse tipo de processos, sem prévio controlo judicial, por mais perfunctório que seja, da

sustentabilidade desse requerimento.

A não aplicabilidade do regime do artigo 870.º do CPC ao processo de execução fiscal explica-se, assim, pelo interesse público ínsito na cobrança de créditos através do processo de execução fiscal, que recomenda que não se coloque na disponibilidade das partes, independentemente de qualquer intervenção judicial, a possibilidade de suspensão do processo, que tem como corolário um prejuízo para aqueles interesses.

A razoabilidade de diferenciação de regimes com base na relevância do interesse público subjacente à eficiência do sistema fiscal, revelado quer em normas de natureza substantiva, quer de índole adjectiva, tem sido reiteradamente salientada por este Tribunal. Assim, no Acórdão 153/2002, que não julgou inconstitucional a norma da primeira parte do n.º 1 do artigo 736.º do Código Civil, que outorga ao Estado um privilégio mobiliário geral, para garantia de créditos fiscais provenientes de IVA e respectivos juros compensatórios, considerou-se não ser "arbitrária, irrazoável ou infundada - e, como tal, violadora do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição - a consagração de tal privilégio a favor do Estado", pois se trata "de uma medida legislativa justificável atentas as múltiplas funções do Estado - económicas, sociais e culturais -, funções estas que exigem uma cobrança, rápida e segura, das receitas provenientes das contribuições e impostos para cobrir as despesas públicas com aumento constante", que "atentas as finalidades subjacentes ao sistema fiscal", torna "justificável a quebra da regra da par conditio creditorum, a que a norma ora em causa procede". Ou nos Acórdãos n.os 302/97, 303/97, 213/98, 251/98 e 355/98, que não julgaram inconstitucional a norma do artigo 35.º, n.º 1, do Código de Processo Tributário, que estabelecera um prazo prescricional de 5 anos para as contra-ordenações fiscais, superior ao do regime geral, consignando-se que a aludida diferenciação de prazos não "encerra uma desigualdade de tratamento arbitrária, sem fundamento razoável ou material bastante dos arguidos em processos de contra-ordenação fiscal em comparação com os arguidos em outros processos de contra-ordenação", considerando-se, além do mais, que "a relevância das funções cometidas pela lei Fundamental ao «sistema fiscal» (artigos 106.º e 107.º da Constituição da República Portuguesa) constituirá suporte material bastante para legitimar o estabelecimento de um regime especial de prescrição do procedimento contra-ordenacional fiscal menos favorável aos infractores, dificultando e desincentivando a fuga ao cumprimento dos deveres fiscais - essenciais à satisfação das necessidades financeiras do Estado e demais entidades públicas e à realização de relevantes objectivos de justiça social".

Idênticos valores justificam que, no presente caso, se considere não arbitrário que, para a sustação da execução fiscal, o legislador tenha considerado insuficiente a mera apresentação por um qualquer credor de requerimento de processo de recuperação de empresa ou de declaração de falência, exigindo, para que tal sustação tenha lugar, uma intervenção judicial no sentido do prosseguimento daquele processo ou do

decretamento da falência.

No sentido da razoabilidade da solução legislativa em causa ainda se poderá invocar a diferença de consistência das diversas categorias de crédito em causa: enquanto nos processos comuns (de execução e de falência), os créditos dos credores comuns ainda demandam, em regra, uma actividade de reconhecimento judicial ou da assembleia de credores, já os créditos do Estado, advindos de impostos ou de contribuições para a Segurança Social, têm-se, à partida, por definitivos, certos e exigíveis com o acto de liquidação, que tem a natureza de um título formal, de fonte legal, de reconhecimento da existência dos créditos, sem prejuízo, obviamente, de superveniência de anulação judicial perante impugnação da liquidação. Sendo assim, compreende-se que, quando estejam em causa créditos dependentes de reconhecimento, a sustação da execução apenas ocorra após prolação de despacho judicial de prosseguimento da acção de recuperação da empresa ou de decretação da falência.

Não ocorre, pois, a alegada violação das normas e princípios constitucionais invocados

pela recorrente.

Também a dispensa, em processo de execução fiscal, ao contrário do que sucede em processo de execução comum, de audição prévia do credor reclamante com garantia real não é materialmente infundada, irrazoável ou arbitrária, ficando a satisfação do crédito do credor reclamante com garantia real dependente de factores aleatórios, como seja o de ser um particular ou a Fazenda Pública a promover a execução.

E não o é, desde logo, pelo simples facto de que, em execução fiscal, quem conduz o processo é a Fazenda Pública, a quem a lei reconhece competência para avaliação patrimonial com base em critérios legalmente determinados. Ao contrário do que sucede em processo de execução comum, que corre os seus termos num tribunal e é conduzido por um solicitador de execução nomeado pelo tribunal, e em que, portanto, a contribuição de terceiros, designadamente, de credores reclamantes com garantia real, pode revelar-se de extrema utilidade para efeitos de avaliação do bem objecto de venda, o processo de execução fiscal corre na repartição de finanças do executado, sendo o valor base para venda, tratando-se de imóveis, inscritos ou omissos na matriz, fixado pelo órgão da execução fiscal, podendo a fixação ser precedida de parecer técnico do presidente da comissão de avaliação ou de um perito avaliador designado nos termos da lei [tal é, nos termos da alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 250.º do CPPT, o regime vigente à data da execução fiscal em causa e anterior às alterações introduzidas pela Lei 53.º-A/2006, de 29 de Dezembro].

Tudo isto permite concluir que não seja desrazoável, ou arbitrário, presumir a capacidade técnica ou a idoneidade da Administração Fiscal para proceder ela própria à avaliação de um bem, tanto mais que se lhe reconhece essa competência para efeitos de cálculo do imposto devido pelo contribuinte (pelo menos nas situações em que o valor do imposto está directamente relacionado com o valor do bem sobre que incide o imposto). Nestes termos, não tem razão o recorrente, quando entende que a inconstitucionalidade do regime sob juízo se funda, desde logo, na violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP.

Resta saber se o juízo de inconstitucionalidade se não poderá fundar na lesão de outras

normas ou princípios constitucionais.

11 - O Tribunal tem sempre dito, em jurisprudência firme, que o direito de propriedade a que se refere o artigo 62.º da Constituição "não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os direitos de crédito e os «direitos sociais» (Vejam-se, entre muitos outros, os Acórdãos n.os 491/02, 273/04 e 620/04, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

Significa isto que, não havendo coincidência entre o conceito constitucional de propriedade e o correspondente conceito civilístico, e incluindo-se no âmbito de protecção da norma contida no n.º 1 do artigo 62.º da CRP situações patrimoniais outras que não apenas as respeitantes à propriedade das coisas e aos direitos reais menores, alguma tutela reservará a garantia constitucional da propriedade aos

chamados direitos de crédito.

O conteúdo concreto que, nos diferentes momentos históricos, adquirem estes direitos é no entanto conformado pela lei ordinária e não pela Constituição. Assim, e como o Tribunal tem esclarecido em jurisprudência também ela constante - vejam-se, entre outros, os Acórdãos n.os 340/91, 494/94, 516/94, para além dos já citados Acórdãos n.os 273/04 e 620/04 -, no âmbito de protecção da norma constitucional relativa à garantia do património privado não se contém o direito de crédito em si mesmo considerado, mas tão somente o direito do credor à satisfação do seu crédito, direito esse que se traduz na possibilidade de exigir, em caso de inadimplência, a realização coactiva do crédito à custa do património do devedor.

12 - Por imperativo constitucional que decorre, desde logo, do princípio do Estado de direito, está o legislador ordinário vinculado a conformar os processos de execução comum e de execução fiscal de modo tal que, através de ambos, se atinjam os fins de realização do Direito e de efectiva garantia de exercício dos direitos. É certo que os dois tipos de processo (de execução comum e de execução fiscal) se distinguem entre si por assinaláveis diferenças de natureza (cf. supra, ponto 10). Como se disse no Acórdão 263/02, "[n]ão se vislumbrando qualquer composição de interesses no acto de instauração da execução pelos serviços da administração fiscal, não pode naturalmente aceitar-se a sua natureza materialmente jurisdicional", pelo que o processo de execução fiscal envolverá "uma actividade que se enquadra ainda no exercício da função tributária" assumindo por isso fundamentalmente um carácter administrativo, "sem deixar de se reconhecer que esse processo comporta, em todo o caso, momentos claramente jurisdicionais." (Diário da República, 2.ª série, n.º 262, 13/11/2002, p.

18789). Contudo, e não obstante estas assinaláveis diferenças de natureza - que explicam que o processo de execução fiscal não possa ser considerado um processo judicial "puro" -, o que é claro é que através da conformação deste último, tal como através da conformação do processo de execução comum, estará sempre o legislador ordinário vinculado a adoptar procedimentos justos e adequados de acesso ao Direito e de realização do Direito: quanto mais não seja, e independentemente da natureza de que se revista o concreto procedimento em causa, tal vinculação decorrerá inquestionavelmente do princípio consagrado no artigo 2.º da CRP.

Ora, sendo a realização do Direito determinada pela conformação jurídica dos processos e dos procedimentos, tal conformação corresponderá a um dever do legislador, que terá que ser cumprido - ainda de acordo com os imperativos constitucionais inscritos no artigo 2.º - com observância das exigências decorrentes quer do princípio da proibição do excesso quer do princípio da proibição do "deficit"

ou da insuficiência.

Com efeito, e como o Tribunal tem sempre dito (vejam-se a este propósito os Acórdãos n.os 205/2000 e 491/2002), o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, enquanto princípio vinculativo das acções de todos os poderes públicos, decorre antes do mais das próprias exigências do Estado de direito a que se refere o artigo 2.º da Constituição, por ser consequência dos valores de segurança nele inscritos. Como se sabe, o que através dele se pretende é evitar cargas coactivas excessivas ou ingerências desmedidas na esfera jurídica dos particulares (assim mesmo, J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 7.ª

ed., pp. 273).

No entanto, tal como do princípio do Estado de direito decorre o imperativo constitucional de proibição do excesso, também do mesmo princípio decorre a proibição da insuficiência ou do deficit: é tão censurável, para a perspectiva constitucional, que o legislador imponha cargas excessivas aos particulares, quanto o é que adopte medidas insuficientes para proteger ou garantir a realização dos seus direitos, caso decorra da Constituição um dever de legislar em ordem a essa protecção ou realização. (Canotilho, op. et loc. cits) Como vimos, a conformação dos processos de execução comum e fiscal corresponde ao cumprimento de um dever de legislar, que merecerá assim censura constitucional se vier a ser cumprido ou de forma excessiva ou de modo insuficiente ou deficitário.

13 - Sobre o que seja o princípio da "proibição do deficit", ou da "proibição da insuficiência", e sobre as circunstâncias apertadas em que pode o juiz constitucional censurar uma medida legislativa por esta se mostrar, face a deveres estaduais de protecção ou de prestação de normas, deficitária ou insuficiente, já se pronunciou com clareza o Tribunal. No Acórdão 75/2010, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, ocupou-se o Tribunal da dogmática geral dos imperativos jurídico-constitucionais de protecção, já que estavam então em causa deveres de normação, impendentes sobre o legislador ordinário, destinados a proteger bens jusfundamentais face a potenciais agressões provindas de terceiros. No presente caso, estamos perante deveres de normação impendentes sobre o legislador ordinário, dirigidos a garantir o cumprimento de bens jusfundamentais através da instituição de organizações e procedimentos. Em ambas as situações, o juízo de inconstitucionalidade só poderá ser emitido se se provar que o legislador cumpriu insuficientemente, ou deficitariamente, o dever de prestação de normas a que estava vinculado.

Basicamente, poderá considerar-se que existe um deficit inconstitucional de protecção (ou de prestação normativa), quando as entidades sobre as quais recai o dever de proteger adoptam medidas insuficientes para garantir a protecção adequada às posições jusfundamentais em causa, sendo que tal sucede sempre que se verificar um duplo teste: (i) sempre que se verificar que a protecção não satisfaz as exigências mínimas de eficiência que são requeridas pelas posições referidas; (ii) cumulativamente, sempre que se verificar que tal não é imposto por um relevante interesse público, constitucionalmente tutelado. (Neste sentido, e quanto à dogmática geral dos imperativos jurídico-constitucionais de protecção, veja-se o já citado Acórdão n.º

75/2010, ponto 11.4.3).

Para que se saiba se a protecção adoptada satisfaz ou não as exigências mínimas de eficiência requeridas pelas posições jusfundamentais em causa necessário é que se tenha em conta a intensidade do perigo ou do risco de lesão que pode resultar, para as referidas posições, da medida legislativa sob juízo. Por seu turno, para que se saiba se tal risco de lesão é ou não justificado, em ponderação, por motivos constitucionais relevantes, necessário é que se identifiquem os bens jurídicos e interesses contrapostos às referidas posições, e se decida se, na escolha do legislador, foi ou não sobreavaliado o seu peso (Acórdão 75/2010, loc. cit).

14 - Assim, e seguindo a metodologia atrás definida, importa, desde logo, identificar qual o valor constitucionalmente protegido que possa estar em conflito com o direito do credor à satisfação do seu crédito e, uma vez identificado este, proceder a um juízo da razoabilidade da ponderação, efectuada pelo legislador ordinário, entre os direitos e ou

valores em conflito.

A sentença recorrida louva-se no acórdão do STA de 28 de Março de 2007, processo 026/07, que justifica a dispensa de audição prévia dos credores reclamantes com garantia real a partir das características próprias do processo de execução fiscal. O princípio da celeridade nessa forma de processo - por estar em causa a cobrança de receitas tributárias que visam a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e a promoção da justiça social, da igualdade de oportunidades e das necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, nos termos do n.º 1 do artigo 5.º da lei geral tributária - requereria, ele próprio, a dispensa de audição.

Conforme resulta de jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional, "[o] legislador [não está] impedido de tutelar os créditos do Estado de forma mais intensa, quer no plano substantivo, através da criação de garantias reais, quer no plano adjectivo, através de formas processuais adequadas que respeitem o núcleo essencial do direito de propriedade" (nesse sentido, não obstante aí se ter concluído pela violação do n.º 1 do artigo 62.º, Acórdão 516/94). É o que sucede no caso dos autos, em que por razões relacionadas com a necessidade de celeridade na cobrança de impostos para a prossecução do interesse público o legislador, de acordo com a interpretação do direito infra-constitucional adoptada na sentença do Tribunal a quo, prescinde da audição prévia dos credores reclamantes com garantia real.

Assim identificado o valor constitucionalmente protegido, importa então proceder a uma ponderação entre a intensidade do sacrifício imposto ao direito do credor à satisfação do seu crédito e a necessidade da dispensa, em execução fiscal, da audição prévia de credores reclamantes com garantia real para efeitos de escolha da modalidade de venda e de fixação do preço base, por apenas desse modo se lograr a cobrança de impostos para a prossecução do interesse público.

Ao apreciar a norma do n.º 1 do artigo 300.º do Código de Processo Tributário, entretanto já revogado, que previa como regra a impenhorabilidade de bens penhorados em execução fiscal, o Tribunal Constitucional julgou-a inconstitucional por violação da garantia do direito do credor à satisfação do seu crédito conjugada com o princípio da proporcionalidade (v. acórdão 494/94, já atrás referido). Importa observar que a norma em causa não determinava, só por si, a impossibilidade de satisfação do crédito do credor comum, apenas aumentava o risco de o mesmo ver o seu crédito satisfeito. Dito de outro modo, o sacrifício imposto pelo legislador atingia a posição jusfundamental apenas numa zona sensivelmente próxima dos seus limites externos. Simplesmente, o Tribunal entendeu que, do mesmo modo, a vantagem que a norma em causa trazia para a realização do interesse público de celeridade do processo de execução fiscal e de garantia de cobrança das dívidas através do foro fiscal com prevalência total sobre a de quaisquer créditos comuns era de tal modo irrelevante, que não podia servir para justificar um regime que fazia impender sobre o credor comum o risco de ver totalmente frustrada a possibilidade de satisfação do seu crédito. A ponderação é efectuada, portanto, através do confronto entre a intensidade do sacrifício imposto à posição jusfundamental e a necessidade e vantagem para o interesse público resultante desse mesmo sacrifício.

Também a norma sub judicio, ou seja a dispensa do dever de audição prévia dos credores reclamantes com garantia real, não compromete, só por si, o direito de satisfação do crédito. Com efeito, a execução não deixa de prosseguir e a venda não deixa de ser realizada, podendo, aliás, os credores reclamantes com garantia real preceder o próprio Estado na satisfação do seu crédito, consoante a graduação verificada. Pode, assim, afirmar-se que, tal como no caso que vimos de analisar, o direito do credor à satisfação do seu crédito é aqui atingido com pouca intensidade.

Também aqui a norma apenas vem aumentar o risco de insatisfação do crédito do

credor reclamante com garantia real.

De modo a analisar em que se traduz, rigorosamente, esse aumento do risco, importa começar por fazer uma distinção entre a audição prévia dos credores reclamantes com garantia real para efeitos de escolha da modalidade de venda e a sua audição para efeitos de determinação do valor base do bem para a venda. No que respeita à escolha da modalidade de venda, não se verifica, num primeiro momento, qualquer aumento do risco de insatisfação do crédito dos credores reclamantes com garantia real imputável à não-realização da audição prévia. Com efeito, resulta do facto de o artigo 248.º do CPPT estabelecer, como regime regra, a venda por meio de propostas em carta fechada, que não é conferida à Administração Fiscal qualquer discricionariedade na escolha da modalidade de venda, revelando-se, portanto, para esse efeito, desprovida de qualquer efeito útil a eventual audição prévia dos credores reclamantes com garantia real. Porém - e como já se viu supra, ponto 8 - decorre do regime legal (al. a) do n.º 1 do artigo 252.º do CPPT) que sempre que se vir frustrada a venda por propostas em carta fechada por no dia designado para a abertura de propostas se verificar a inexistência de proponentes ou a existência apenas de propostas de valor inferior ao valor base anunciado, a venda há-de efectuar-se por outra das modalidades previstas no CPC, cabendo a escolha à Administração Fiscal. Tal significa que, nessa hipótese, a audição prévia dos credores reclamantes com garantia real não é de todo inconsequente. No que respeita à determinação do valor base do bem para a venda, a lei, na versão anterior à alteração introduzida pela Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, atribui ao órgão da execução fiscal competência para fixar o valor base para a venda (al. a) do n.º 1 do artigo 250.º), o que significa que a eventual audição prévia dos credores reclamantes com garantia real não é, também aqui, desprovida de utilidade. Conclui-se, portanto, que o aumento do risco de insatisfação do crédito dos credores reclamantes com garantia real decorre do facto de não serem ouvidos tanto para efeitos da escolha da modalidade de venda como para efeitos da determinação do

valor base do bem para a venda.

Simplesmente, não basta a conclusão, segundo a qual se verifica in casu um aumento do risco de insatisfação do crédito, para com isso se dar por verificada a inconstitucionalidade, por cumprimento insuficiente ou deficitário dos deveres de prestação normativa que impendem sobre o legislador ordinário nos termos, já analisados, do princípio decorrente do artigo 2.º da CRP. Como se afirmou anteriormente, o direito do credor à satisfação do seu crédito há-de ser confrontado com a necessidade da dispensa, em execução fiscal, da audição prévia de credores reclamantes com garantia real para efeitos de escolha da modalidade de venda e de fixação do preço base, por apenas desse modo se lograr a cobrança de impostos para

a prossecução do interesse público.

Importa, assim, analisar se, e em que medida, é efectivamente necessária para a realização do interesse público de cobrança coerciva de impostos, a dispensa da audição prévia dos credores reclamantes com garantia real.

Ora, não se vê como é que tal dispensa pode pôr em causa a realização do interesse público. Mesmo considerando eventuais incidentes de reclamação que possam vir a ocorrer ao abrigo do disposto no artigo 276.º do CPPT, resulta da circunstância de, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º do mesmo Código, o tribunal só conhecer de reclamações após a realização da venda - justamente por, de outro modo, a subida imediata da reclamação poder afectar a desejada celeridade do processo de execução fiscal -, que a dispensa de audição prévia dos credores reclamantes com garantia real não pode, objectivamente, ser considerada uma medida necessária, de forma tal que a sua ausência comprometa inelutavelmente os fins pertinentes de interesse colectivo.

Tanto basta para que se conclua a norma sub judicio não assegura uma ponderação razoável entre a posição jusfundamental que deve acautelar e o valor constitucional (de realização do interesse público) que com tal posição conflitua.

A tudo isto acresce que, para a ponderação a efectuar, não pode deixar de relevar o facto de a audição prévia dos credores reclamantes com garantia real poder vir a compensar o eventual prejuízo que dela resulte em termos de celeridade processual.

Com efeito, uma formação mais informada da decisão administrativa sobre a escolha da modalidade de venda e sobre o valor base do bem para a venda - informação essa resultante da contribuição oferecida, em audição prévia, pelos credores reclamantes com garantia real - pode redundar num ganho geral do interesse público. Assim, e independentemente da questão da celeridade do processo de execução fiscal, importa assinalar que, em abstracto, longe de existir um conflito entre o interesse público e o interesse dos credores reclamantes, poderá existir uma convergência de interesses consistente em realizar a venda do bem de modo a garantir a satisfação dos seus

créditos.

Conclui-se assim que, in casu, o legislador que conformou as normas pertinentes do CPPT não conferiu, às posições jurídicas tuteladas, a protecção eficiente que poderia ter conferido; e fê-lo por razões de interesse público que, uma vez ponderadas, se mostram, na sua relação com os outros bens e valores constitucionalmente tutelados,

claramente sobreavaliadas.

Tanto basta, por isso, para que se considere, à luz da metodologia atrás definida, que se não cumpriu aqui o imperativo constitucional de proibição do deficit ou da insuficiência, decorrente do artigo 2.º da CRP.

III - Decisão

14 - Pelo exposto, e com estes fundamentos, decide-se a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 2.º da CRP, a norma que resulta das disposições conjugadas da alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º e n.º 3 do artigo 252.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e dos artigos 201.º, 904.º e alínea c), do n.º 1 do artigo 909.º do Código de Processo Civil, quando interpretada "no sentido de dispensar a audição dos credores providos com garantia real nas fases de venda ordenada pelos Serviços de Finanças e, fundamentalmente, quando é ordenada a venda por negociação particular e feita a adjudicação consequente";

b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida para ser reformada de acordo com o juízo de constitucionalidade agora formulado.

Sem custas.

Lisboa, 28 de Abril de 2010. - Maria Lúcia Amaral (com declaração) - Carlos Fernandes Cadilha - Vítor Gomes - Ana Maria Guerra Martins - Gil Galvão.

Declaração de voto

Entendeu o Colégio que, neste caso, a decisão de inconstitucionalidade se deveria fundar, exclusivamente, na lesão do princípio do Estado de direito, consagrado no

artigo 2.º da CRP.

Discordei desta orientação.

Considerei - e foi nesse sentido que, como relatora, elaborei o projecto de fundamentação que, quanto a este ponto, não obteve vencimento - que se encontrava primacialmente no n.º 1 do artigo 62.º da CRP o parâmetro constitucional que, no

caso, fora violado.

Partindo do princípio segundo o qual o direito do credor à satisfação do seu crédito se inclui ainda no âmbito de protecção da norma constitucional relativa à tutela da propriedade ou do património privado, conclui que os deveres de organização e de procedimento, impendentes sobre o legislador ordinário que, nesta situação, se mostravam deficitária ou insuficientemente cumpridos, decorriam antes do mais de posições jusfundamentais tuteladas (nos termos definidos pelo ponto 11 do Acórdão)

no n.º 1 do artigo 62.º da CRP.

É certo que a sede última dos deveres do legislador de instituir procedimentos justos e adequados à realização do Direito e à garantia do exercício efectivo dos direitos se encontra no princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da CRP. E certo é, também, que deste mesmo princípio decorre, em última análise, o imperativo constitucional da proibição da insuficiência ou do deficit de protecção. No entanto, tal não significa, a meu ver, que o princípio do artigo 2.º possua, nesta situação, um alcance prescritivo tal que lhe permita ser o parâmetro único fundador do juízo de inconstitucionalidade. Entendo antes que ele é apenas o auxiliar hermenêutico que permite ao juiz constitucional censurar a decisão do legislador com fundamento em cumprimento insuficiente de deveres de "protecção" que decorrem, antes do mais, do disposto no n.º 1 do artigo 62.º da CRP. - Maria Lúcia Amaral.

203296136

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2010/05/28/plain-275105.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/275105.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1913-07-16 - Lei 53 - Ministério do Interior - Direcção Geral de Saúde

    Autoriza o Governo a ceder à Junta Geral de Angra do Heroísmo uma propriedade situada no lugar de Porto Santo. (Lei n.º 53)

  • Tem documento Em vigor 1995-12-12 - Decreto-Lei 329-A/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código de Processo Civil. Altera o Código Civil e a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais

  • Tem documento Em vigor 2001-06-05 - Lei 15/2001 - Assembleia da República

    Reforça as garantias do contribuinte e a simplificação processual, reformula a organização judiciária tributária e estabelece um novo Regime Geral para as Infracções Tributárias (RGIT), publicado em anexo. Republicados em anexo a Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98 de 17 de Dezembro, e o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/99 de 26 de Outubro.

  • Tem documento Em vigor 2006-12-29 - Lei 53-A/2006 - Assembleia da República

    Aprova o Orçamento do Estado para 2007.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2023-06-09 - Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo 2/2023 - Supremo Tribunal Administrativo

    Acórdão do STA de 9 de Março de 2023, no Proc.º n.º 2586/14.3BELSB - 1.ª Secção Uniformiza a Jurisprudência nos seguintes termos: «A deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 03.08.2014 que, fazendo aplicação do DL n.º 298/92, de 31.12 [vulgo RGICSF - considerando o teor da Lei n.º 58/2011 e as redações introduzidas àquele DL, nomeadamente, pelo DL n.º 31-A/2012 e pelo DL n.º 114-A/2014], procedeu à aplicação ao BES de medida de resolução não infringiu os comandos constitucionais cons (...)

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