Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório:
Isabel da Silva Escoval Rolos interpôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela acção administrativa especial visando a anulação contenciosa do despacho da Directora do Centro Distrital de Segurança Social de Bragança, de 15 de Junho de 2007, que indeferiu a atribuição do subsídio de desemprego por não ter sido requerido, pela interessada, no prazo de 90 dias consecutivos a contar da data do desemprego, nos termos do n.º 1 do artigo 72.º do Decreto-Lei 220/2006, de 3 de Novembro.Por sentença de 26 de Junho de 2008, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, baseando-se no entendimento sufragado pelo Tribunal Constitucional sobre questão similar, julgou materialmente inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 72.º do Decreto-Lei 220/2006, de 3 de Novembro, interpretada no sentido de que o incumprimento do prazo de 90 dias consecutivos a contar da data do desemprego para o interessado requerer à segurança social a atribuição do subsídio de desemprego determina a irremediável preclusão do direito global a todas as prestações a que teria direito durante o período de desemprego involuntário; e, em consequência, recusou a sua aplicação e julgou procedente a acção.
Desta decisão, o magistrado do Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional e, no prosseguimento do processo, apresentou alegações, em
que formulou as seguintes conclusões:
Nessa medida, julga-se que o presente recurso, interposto pelo digno magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, deverá ser julgado procedente, e, consequentemente, decidir este Tribunal Constitucional:a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade conjugado com o artigo 59.º, n.º 1, alínea e), da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 72.º, n.º 1, do Decreto-Lei 220/2006, de 3 de Novembro, interpretado no sentido de que o incumprimento do prazo de 90 dias consecutivos, a contar da data do desemprego, para o interessado requerer, à Segurança Social, a atribuição do subsídio de desemprego, determina a irremediável preclusão do direito global a todas as prestações a que teria direito durante todo o período de desemprego involuntário; e,
consequentemente,
b) Confirmar o Acórdão recorrido, de 26 de Junho de 2008, do TribunalAdministrativo e Fiscal de Mirandela.
Não houve contra-alegações.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação:
A decisão recorrida julgou inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, a norma do artigo 72.º, n.º 1, do Decreto-Lei 220/2006, de 3 de Novembro, quando interpretada no sentido de que o incumprimento do prazo de 90 dias consecutivos, a contar da data do desemprego, para o interessado requerer, à segurança social, a atribuição do subsídio de desemprego, determina a irremediável preclusão do direito global a todas as prestações a que teria direito durante todo operíodo de desemprego involuntário.
O referido diploma estabelece, no âmbito do subsistema previdencial, o quadro legal da reparação da eventualidade de desemprego dos trabalhadores por conta de outrem, prevendo a atribuição aos beneficiários de prestações de desemprego (artigos 1.º e5.º).
A gestão das prestações de desemprego compete, em geral, ao Instituto da Segurança Social, I. P., através dos centros distritais de segurança social (artigo 68.º), determinando o artigo 72.º, n.º 1, em matéria de organização de processos, o seguinte:1 - A atribuição das prestações de desemprego deve ver requerido no prazo de 90 dias consecutivos a contar da data do desemprego e ser precedida de inscrição para
emprego no centro de emprego.
Através do acórdão 275/2007, o Tribunal Constitucional pronunciou-se já sobre a norma correspondente a esta, constante do artigo 61.º, n.º 1, do Decreto-Lei 119/99, de 14 de Abril, diploma que anteriormente regulava a mesma matéria, vindo a concluir pela sua inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade conjugado com o artigo 59.º, n.º 1, alínea e), da Constituição da República, quando interpretada no sentido de que o incumprimento do prazo de 90 dias aí mencionado implicava a irremediável preclusão do direito global a todas as prestações a que o interessado teria direito durante todo o período de desemprego involuntário.
É a seguinte a sua fundamentação.
2.1 - Em termos constitucionais, a situação de desemprego não é apenas uma daquelas «situações de falta ou diminuição de meios de subsistência» em que incumbe ao «sistema de segurança social» a protecção dos «cidadãos» (artigo 63.º, n.º 3, da CRP, inserido no capítulo dedicado aos Direitos e deveres sociais). Especificamente quanto aos trabalhadores que «involuntariamente se encontrem em situação de desemprego», o artigo 59.º, n.º 1, alínea e), da CRP (inserido no capítulo dedicado aos Direitos e deveres económicos) confere expressa e directamente a esses trabalhadores o direito a«assistência material».
O direito a assistência material nas situações de desemprego involuntário constitui, assim, um direito fundamental dos trabalhadores, com amplo âmbito de aplicação (abrangendo os trabalhadores da Administração Pública, como se decidiu no Acórdão 474/2002, e os trabalhadores independentes), embora a sua plena concretização dependa das disponibilidades financeiras e materiais do Estado (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, pp. 609-610).Para J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, vol. I, Coimbra, 2007, p. 774), o direito ao subsídio de desemprego consiste numa espécie de compensação ou indemnização por não satisfação do direito ao trabalho (proclamado no artigo 58.º, n.º 1), pelo que, nesta perspectiva, ele deveria satisfazer os seguintes requisitos: (a) ser universal, abrangendo todos os desempregados, independentemente de já terem tido um emprego ou não; (b) manter-se enquanto persistir a situação de desemprego, não podendo, portanto, ter um limite temporal definido; (c) permitir ao desempregado uma existência condigna, não podendo portanto ficar muito aquém do salário mínimo garantido. Reconhecendo embora que a realização deste direito prestacional, de natureza positiva, depende do legislador e da sua implementação administrativa e financeira, entendem os referidos autores que o regime legal actual (Decreto-Lei 119/99) não dá resposta aos
apontados requisitos.
No citado Acórdão 474/2002, em que se deu por verificado o não cumprimento da Constituição, por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequível o direito previsto na alínea e) do n.º 1 do seu artigo 59.º, relativamente a trabalhadores da Administração Pública, o Tribunal Constitucional entendeu não ser relevante, para a tarefa então em causa (apuramento de uma situação de inconstitucionalidade por omissão), a adopção de uma posição expressa quanto à qualificação - sustentada pelo requerente (Provedor de Justiça) - do direito à assistência material em situação involuntária de desemprego como um direito de natureza análoga à dos denominados direitos, liberdades e garantias, pois para a ocorrência de uma situação de inconstitucionalidade por omissão basta que o legislador não tenha executado, ou tenha executado apenas parcialmente, uma imposição constitucional concreta, mesmo que o direito em causa seja um direito social e não deva ser tido como análogo aos direitos,liberdades e garantias.
Seja como for, a inegável fundamentalidade do direito dos trabalhadores à assistência material em situação de desemprego involuntário implica - obviamente sem questionar a liberdade de conformação do legislador na concretização material desse direito - que a regulação do correspondente procedimento administrativo fique subordinada ao princípio da proporcionalidade, no sentido de que as exigências procedimentais devem ser necessárias e adequadas e de que as consequências do seu incumprimento devemser razoáveis.
2.2 - O Decreto-Lei 119/99, editado em desenvolvimento do regime jurídico estabelecido na Lei 28/84, de 14 de Agosto, após regular substantivamente as medidas de reparação do desemprego, designadamente de natureza prestacional e respectivas condições de atribuição, montantes e duração, insere, no plano procedimental ou adjectivo, regras relativas ao processamento e gestão de tais prestações, resultando do artigo 61.º, n.º 1, na interpretação desaplicada pela decisão recorrida, a fixação de um prazo de caducidade da totalidade das prestações que integram o subsídio de desemprego se o interessado não requerer a sua atribuição nos «90 dias consecutivos a contar da data do desemprego».O subsequente artigo 63.º prevê diversas situações de suspensão deste prazo, entre elas a de incapacidade por doença (alínea a) do n.º 1), mas, quanto a esta causa de suspensão, o n.º 3 do preceito exige que, quando a incapacidade se prolongue por mais de 30 dias, seguidos ou interpolados, só determina a suspensão «se confirmada pelo sistema de verificação de incapacidades, após comunicação do facto pelo interessado».
No presente caso, embora a requerente tenha invocado uma situação de doença, susceptível de funcionar como "justo impedimento" da tempestiva formulação do requerimento, apresentando atestado médico (cf. fls. 14 do processo administrativo anexo), não cumpriu o ónus de provocar a «confirmação» de tal incapacidade pelo «sistema de verificação» instituído e, por isso, não foi considerada qualquer suspensão
do aludido prazo de 90 dias.
Como resulta da decisão recorrida, não se questiona a constitucionalidade da exigência de formulação pelo próprio interessado de pedido de concessão de subsídio de desemprego, nem sequer do estabelecimento de um prazo para tal formulação.O que está em causa - como se salienta nas alegações do Ministério Público, convocando o princípio da proporcionalidade - não é, porém, o estabelecimento de tal prazo, ou mesmo a sua normal suficiência para a dedução do pedido pelo trabalhador em situação de desemprego involuntário, mas antes a razoabilidade das consequências associadas ao incumprimento desse prazo. É que importa distinguir o direito global ou complexo às prestações emergentes da verificação de uma situação de desemprego relevante, podendo o período de concessão do subsídio de desemprego alcançar, nos termos do artigo 31.º, n.º 2, do Decreto-Lei 119/99, 30 meses (ainda susceptíveis dos acréscimos previstos no subsequente n.º 3) para os beneficiários com idade igual ou superior a 45 anos de idade (como era o caso da requerente, nascida em 14 de Setembro de 1948 - cf. fls. 1 do processo administrativo anexo); e o direito a cada uma das prestações parcelares que sucessivamente se vão vencendo, a partir da data do
requerimento.
Nem a decisão recorrida nem o recorrente questionam que o retardamento injustificado na apresentação do requerimento pelo interessado - iniciando ou impulsionando o procedimento de verificação pela Segurança Social dos pressupostos ou condições da atribuição das prestações - possa fazer caducar ou precludir as prestações parcelares que entretanto se poderiam ter vencido. O que se reputa inconstitucional, por desproporcionado, é o entendimento segundo o qual qualquer atraso no cumprimento do referido prazo peremptório de 90 dias dita a irremediável caducidade do direitoglobal a todas as prestações.
Como refere o recorrente, não se vê que as razões de segurança jurídica, subjacentes ao estabelecimento de prazos de caducidade, sejam suficientes para - com base em qualquer «mora» do trabalhador desempregado - o privar, na totalidade, da percepção de todas as prestações pecuniárias substitutivas das remunerações salariais perdidas durante o período em que lhe deveriam ser concedidas, perdurando a situação de desemprego involuntário: a circunstância de a autora ter formulado a sua pretensão perante a Segurança Social apenas em 19 de Novembro de 2002 (quando o deveria ter feito até 9 de Agosto de 2002) não é susceptível de dificultar, de modo relevante, a actividade procedimental cometida à Segurança Social no âmbito do procedimento em causa, destinada essencialmente a ajuizar da existência dos pressupostos e condições do direito às prestações de desemprego e calcular a respectiva duração e montante - sendo certo que tal «mora» dos trabalhadores sempre ditará a preclusão ou caducidade das prestações parcelares que se teriam vencido até à referida data de apresentação dorequerimento.
A estas considerações - que se sufragam - apenas se aditará que, tendo o subsídio de desemprego uma função sucedânea da remuneração salarial de que o trabalhador se viu privado e sendo a situação de desemprego, geradora do direito àquele subsídio, por natureza uma situação permanente e não instantânea, que se prolonga e renova no tempo, é de todo desrazoável fulminar com a perda definitiva e irreversível do direito ao subsídio de desemprego, por todo o tempo (futuro) em que o trabalhador a ele teria direito (que se pode prolongar por anos), por qualquer atraso na formulação inicial do pedido. A situação de desemprego involuntário, em que se funda o direito ao subsídio de desemprego, persistia no momento em que o pedido da sua concessão foi formulado e ter-se-á prolongado para além dessa data. Negar este direito, embora limitado ao período temporal em que se pode considerar ter sido tempestivamente exercitado, significa, em termos substanciais, uma negação, sem motivo adequado, do próprio direito dos trabalhadores, constitucionalmente garantido, à assistência material emsituação de desemprego involuntário.
Toda esta argumentação é transponível para o caso dos autos, mantendo inteira validade quanto à correspondente disposição do artigo 72.º, n.º 1, do Decreto-Lei 220/2006, de 3 de Novembro, tal como, aliás, considerou a decisão recorrida, que,nestes termos, é de manter.
3 - Decisão:
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade conjugado com o artigo 59.º, n.º 1, alínea e), da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 72.º, n.º 1, do Decreto-Lei 220/2006, de 3 de Novembro, interpretada no sentido de que o incumprimento do prazo de 90 dias consecutivos a contar da data do desemprego para o interessado requerer à segurança social a atribuição do subsídio de desemprego determina a irremediável preclusão do direito global a todas as prestações a que teria direito durante o período de desemprego involuntário; e, consequentemente, b) Confirmar o acórdão recorrido, na parte impugnada.
Sem custas.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 2010. - Carlos Fernandes Cadilha - Vítor Gomes - Ana Maria Guerra Martins - Maria Lúcia Amaral (com declaração de voto em anexo) -
Gil Galvão.
Declaração de voto
Proc. n.º 757/2009
Votei esta decisão com as maiores dúvidas, a esclarecer com ulterior e mais aprofundado estudo. Mais uma vez, emite o Tribunal um juízo de inconstitucionalidade quanto a um acto do legislador concretizador de um direito social (neste caso, o direito à «assistência material em situação involuntária de desemprego») com fundamento em violação do princípio da proporcionalidade.É certo que, tendo este princípio sede no artigo 2.º da Constituição, ele não vale apenas para os casos em que estejam em juízo restrições legislativas de direitos, liberdades e garantias. O âmbito de aplicação do princípio não se esgota no artigo 18.º, n.º 2, da CRP; estende-se a actos do Estado que não a actos legislativos e, dentro destes últimos, pode estender-se também a leis que não sejam restritivas de direitos de defesa. Ponto é, no entanto, que, nestes últimos casos, se encontre o legislador vinculado por algum outro limite constitucional, ou, dizendo de outro modo, ponto é que tais leis se não inscrevam no espaço de liberdade de conformação legislativa.
Contendo o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso uma «ordem» de congruência e de medida entre os meios que o legislador usa para a prossecução de certas finalidades e essas mesmas finalidades, em si próprias tomadas, parece-me seguro que ele só será aplicável aos casos em que o legislador esteja vinculado, pelo menos, quanto à escolha de certos fins. É o que sucede com as restrições aos direitos, liberdades e garantias, que só podem ser adoptadas tendo em conta a necessária prossecução de outros bens ou valores constitucionalmente tutelados. Mas não é o que sucede com as medidas concretizadoras de direitos sociais, onde se define livremente o se e o como da realização das prestações estaduais.
Todos os direitos sociais têm por certo dimensões negativas, que impõem ao legislador um dever de não afectação (para além do dever de protecção e de promoção). Nessas dimensões, o dever de não afectar pode ser identificado com o dever de não restringir excessivamente: o princípio da proporcionalidade será, aqui, inteiramente aplicável.
Tenho porém dúvidas que seja esse o caso do direito ao subsídio de desemprego e à fixação de um prazo para o requerer. Parece-me, antes, que se estará, aqui, no pleno coração da dimensão positiva de um direito social. Não vejo, por isso, como chegar a um juízo de inconstitucionalidade com fundamento em violação do princípio da
proporcionalidade. - Maria Lúcia Amaral.
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