A complexidade do empreendimento e o desinteresse que mereceu às Câmaras o projecto de 1861, por um lado, e, por outro, a urgência de substituir certas disposições, chocantemente anacrónicas, daquele diploma e de o integrar com ideias e institutos que a ciência e a política criminal iam propondo e recomendando, forçaram, entretanto, o nosso legislador a seguir o caminho de reformas parciais e de enxertos articulados no corpo do próprio código ou em legislação avulsa. É o caso da Lei de 1 de Julho de 1867, da Reforma Penal de 1884, da legislação de 1893 sobre suspensão da pena e liberdade condicional e da Lei de 1911 sobre menores, das disposições parasitárias de direito substantivo contidas na Reforma Prisional de 1936, da reforma levada a cabo pelo Decreto-Lei 39688, de 5 de Junho de 1954, e do Decreto-Lei 40550, de 12 de Março de 1956 - no que toca à parte geral do código e para só falar das modificações mais significativas -, e de numerosa legislação que alterou diversas incriminações da parte especial ou as completou em leis extravagantes.
E só isto, valorizado por um grande esforço da doutrina e pelo grande senso e equilíbrio da nossa jurisprudência, tornou possível que um código como o de 1852, do qual logo se disse «ter nascido velho», tenha podido sobreviver até hoje, sem gravíssimo prejuízo dos valores que à legislação criminal cumpre tutelar.
É, porém, manifesto que o caminho que se vem seguindo de reformas parciais, orientadas à luz de princípios e de doutrinas diferentes e, por vezes, contraditórias, torna a interpretação e a aplicação da lei penal particularmente difíceis, dando larga margem a uma insegurança e possibilitando injustiças, que, mais do que em qualquer outro ramo de direito, repugnam a um domínio jurídico em que, para além da fazenda, estão em jogo a própria liberdade e honra das pessoas.
Por outro lado, tal expediente de reformas parciais difìcilmente pode reflectir as alterações das concepções jurídicas, sociais e económicas que se vêm processando desde a entrada em vigor do Código de 1852. Até porque mal o consente o antiquado sistema deste código e o perigo de utilização de padrões punitivos diferentes. Acresce ainda que as alterações e criações de tipos legais de crimes têm sempre de relacionar-se com a parte geral do Código Penal, e a do nosso, apesar das modificações que foi sofrendo, tem na sua base uma técnica legislativa subsidiária de uma ciência criminal ultrapassada e mal consciente da problemática moderna da teoria geral da infracção e das virtualidades da penetração da personalidade do delinquente no direito criminal.
Por toda a parte, aliás, se vem observando, desde há muito, um dinamismo legislativo, que procura, por via de uma revisão geral dos códigos criminais, não só responder, no seu plano, aos problemas sociais, económicos, jurídicos e até meramente axiológicos que a vida moderna cria, mas ainda reflectir os aperfeiçoamentos da técnica e da ciência jurídico-criminais, a que não são estranhos uma nota de unificação e de internacionalização de conceitos e de processos - que, na medida em que torna possível uma colaboração mais ampla das ciências criminais dos vários países, não deixa de ser aconselhável - e uma tomada de posição sobre o sentido e formas de recepção no direito criminal da personalidade do delinquente e de novos meios, de tipo chamado institucional ou não institucional, de reacções contra a criminalidade.
Nas últimas décadas, sobretudo, e especialmente na Europa, para além da publicação recente de códigos na Bulgária, Hungria (parte geral), Checoslováquia (1951), construídos sobre o modelo do da União Soviética, e da do menos ortodoxo código jugoslavo de 1951, são exemplo desse dinamismo, antes da última guerra, os códigos da Dinamarca, Itália (1930), Polónia (1932), Roménia (1936), Suíça (1937) e o projecto francês de 1934 e, depois de 1945, o código da Gronelândia de 1954, o projecto sueco de um chamado Código de Protecção (Skyddslag) de 1956 - nos quais se reflectem as audácias de um neopositivismo e das correntes da «Nova defesa social» -, o código grego de 1951 e o projecto alemão de 1959.
Particularmente significativo é, justamente, este projecto alemão, não só pela largueza de estudos e de documentação de que foi fruto, mas ainda porque a sua elaboração mostra que, mesmo relativamente a códigos particularmente evoluídos e objecto de importantes e recentes reformas (1933 e 1953), como o alemão, se continua a afirmar a necessidade de uma sua revisão total.
Um pensamento paralelo esteve, aliás, sempre presente na nossa legislação, mesmo quando ela também introduziu ou consolidou no velho corpo do Código de 1852 alterações muito vastas.
Assim, já na proposta da reforma de 1884 se escrevia que ela «não prejudicava nem dispensava» a publicação de um novo código. Do mesmo modo, no relatório do Decreto-Lei 39688, de 5 de Junho de 1954, se acentua que as reformas por ele consagradas se justificavam «independentemente da desejável publicação de um novo código penal».
O protelar-se a satisfação desta imperiosa necessidade de publicação de um novo código poderia, contudo, justificar-se, até há pouco tempo, para além de outras considerações, por uma razão de oportunidade. É que faltava entre nós suficiente experiência relativamente a certas inovações que a ciência criminal aconselhava e a sua incorporação num novo código arriscava, no caso de fracasso na sua execução, comprometê-lo integralmente. Por outro lado, não dispúnhamos de meios materiais para executar essas inovações com suficiente garantia de êxito.
Presentemente as coisas mostram-se, todavia, sob outra perspectiva.
É que não só as reformas parciais que tiveram lugar na nossa legislação permitiram a recolha de uma certa experiência sobre os resultados de muitos preceitos inovadores - v. g., os que reflectiram uma deslocação do direito criminal no sentido do agente -, como a progressiva realização do plano de construções prisionais começa a tornar possível a conveniente execução das reacções criminais de tipo institucional, ao mesmo tempo que, através da criação da Escola Prática de Ciências Criminais pelo Decreto 41306, de 2 de Outubro de 1952, se lançaram as bases que permitirão num futuro não muito distante da presumível data da entrada em vigor de um novo código ter convenientemente preparado um quadro de pessoal capaz de assegurar a execução das reacções criminais de carácter não institucional que a política criminal moderna vivamente preconiza.
Nem todo o esforço que nestes domínios se vem desenvolvendo se poderia continuar a compreender sem um corpo unitário de ideias e de princípios que o orientem e que precisamente só pode ser vazado e articulado num novo código criminal, cuja publicação, assim, urgentemente se impõe.
Nestes termos:
Usando da faculdade conferida pela 1.ª parte do n.º 2.º do artigo 109.º da Constituição, o Governo decreta e eu promulgo, para valer como lei, o seguinte:
Artigo 1.º Fica o Ministro da Justiça autorizado promover a elaboração de um projecto de reforma do Código Penal, podendo para esse fim nomear, em comissão, um professor de Direito, bem como os colaboradores que forem julgados necessários.
Art. 2.º - 1. As pessoas nomeadas receberão a remuneração que for fixada pelo Ministro da Justiça, depois de ouvido o Ministro das Finanças, considerando-se o exercício da comissão pelo professor nomeado, para todos os efeitos, como exercício do magistério e dispensando-o da regência de cadeiras e cursos, se o Ministério da Educação Nacional puder dispensá-lo, bem como de quaisquer cargos que acumule com os de professor, sem perda de vencimentos e outras regalias.
2. Se os colaboradores nomeados forem funcionários públicos, poderão ser dispensados pelo Ministro respectivo do serviço dos seus cargos, igualmente sem perda de vencimentos e outras regalias.
Art. 3.º Elaborado o projecto, serão sobre ele ouvidos, dentro do prazo fixado pelo Ministro da Justiça, os organismos e as pessoas que se julgue conveniente.
Art. 4.º Em seguida será o projecto sujeito a revisão, podendo para esse feito ser nomeada uma comissão, presidida pelo Ministro da Justiça e da qual fará parte o autor do projecto. Esta comissão deverá ultimar os seus trabalhos no prazo que pelo seu presidente for fixado, sendo aplicável aos seus membros o disposto nos n.º 1 e 2 do artigo 2.º Publique-se e cumpra-se como nele se contém.
Paços do Governo da República, 28 de Janeiro de 1961. - AMÉRICO DEUS RODRIGUES THOMAZ - António de Oliveira Salazar - Pedro Theotónio Pereira - Júlio Carlos Alves Dias Botelho Moniz - Arnaldo Schulz - João de Matos Antunes Varela - António Manuel Pinto Barbosa - Afonso Magalhães de Almeida Fernandes - Fernando Quintanilha Mendonça Dias - Marcello Gonçalves Nunes Duarte Mathias - Eduardo de Arantes e Oliveira - Vasco Lopes Alves - Francisco de Paula Leite Pinto - José do Nascimento Ferreira Dias Júnior - Carlos Gomes da Silva Ribeiro - Henrique Veiga de Macedo - Henrique de Miranda Vasconcelos Martins de Carvalho.
Para ser presente à Assembleia Nacional.