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Acórdão 65/2010, de 8 de Março

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Sumário

Decide julgar inconstitucional a segunda parte da norma constante do n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil (na redacção da Lei n.º 21/98, de 12 de Maio), aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a proposição da acção de investigação de paternidade, o prazo de um ano a contar da data em que tiver cessado voluntariamente o tratamento como filho. (Proc. nº 339/09)

Texto do documento

Acórdão 65/2010

Processo 339/09

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional I - Relatório - 1 - Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Caminha, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido António Serafim Reis Loureiro, foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão daquele Tribunal de 16.10.2008, na parte em que recusou a aplicação, com fundamento em violação dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição, da norma ínsita no artigo 1817.º, n.º 4, do Código Civil.

2 - O presente recurso emerge de acção de investigação de paternidade, intentada por António Serafim Reis Loureiro contra João José Fernandes, na qual, além do mais, o réu invocou a excepção de caducidade do direito de autor.

Por decisão em despacho saneador, ora recorrida, o Tribunal Judicial da Comarca de Caminha julgou improcedente a referida excepção, tendo para o efeito recusado a aplicação da norma do artigo 1817.º, n.º 4, do Código Civil, na sua segunda parte (aplicável ao caso ex vi artigo 1873.º do mesmo Código), com fundamento na inconstitucionalidade do prazo aí fixado para a proposição da acção (prazo de um ano a contar da data em que o tratamento como filho, pelo pretenso pai, tenha cessado

voluntariamente).

A fundamentação da decisão recorrida é a seguinte, na parte que agora releva:

«[...] o n.º 1 da mesma norma foi julgado, com força obrigatória geral, inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional proferido em 10 de Janeiro de 2006 e publicado no Diário da República, 1.ª série-A,

n.º 28, de 28 de Fevereiro de 2006.

Deveremos retirar consequências relativamente aos restantes números do artigo em causa, designadamente, quanto ao n.º 4, invocado pelo Réu?

Pensamos que sim.

E neste ponto acompanhamos as considerações tecidas no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.10.2007, que tomamos a liberdade de citar: "As mesmas razões, salvo o devido respeito, se colocam face aos demais números do artigo 1817.º, pois nuns e noutros casos, o que sempre está presente é o direito à identidade pessoal, ao bom nome e reputação, à dignidade pessoal e genética do investigante, direitos de tal modo elevados que não podem ser limitados por prazos curtos. [...] Não se colocam de resto aos investigados situações de risco de caírem nas malhas dos "caça fortunas", pois os avanços científicos, designadamente na área do ADN, são de tal maneira elevados que não dão margem a prémios por jogos oportunísticos na determinação científica a cadeia biológica, nem conduzem à determinação da paternidade/maternidade com base em elementos inseguros de prova. [...] A lei ordinária acabou já com a indicação no registo com a enunciação de filho de pai ou mãe incógnito. [...] Com a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 1817.º foram postos em causa as últimas résteas, a nível de restrições legais, que inviabilizavam a investigação da paternidade ou maternidade para além de um curto prazo de tempo".

Consideramos, pois, que a norma constante do n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil é inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.» 3 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional apresentou

alegações onde conclui o seguinte:

«1 - Não há interesse processual em apreciar a questão de inconstitucionalidade da norma desaplicada, o n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil, porque, sendo aplicável aos processos pendentes o regime inovatoriamente definido pela Lei 14/2009, de 01 de Abril, por força da disposição transitória do respectivo artigo 3.º, independentemente do juízo que viesse a ser formulado, sobre a constitucionalidade, tal não teria qualquer repercussão no julgamento da causa.

2 - A declaração de inconstitucionalidade, operada pelo Acórdão 23/2006, não pode ser interpretada como implicando um regime de irremediável imprescritibilidade das acções de investigação de paternidade, mesmo quando intentadas após a cessação do tratamento como filho, conduzindo à inconstitucionalidade consequencial do prazo previsto na segunda parte do n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil aplicável por força

do artigo 1873.º do mesmo Código.

3 - O prazo de um ano, posterior à cessação do tratamento como filho, para a propositura da acção de investigação (segunda parte do n.º 4 do artigo 1817.º) é suficiente e adequado para o investigante mover a acção contra o pretenso progenitor, não se perspectivando qualquer obstáculo, objectivo ou subjectivo, relevante a que o autor, com 60 anos de idade, a pudesse ter instaurado tempestivamente, não sendo,

por isso, tal norma inconstitucional.

4 - Termos em que deverá proceder o presente recurso.» 4 - O recorrido contra-alegou, concluindo o seguinte:

«I) Aplicar-se ao caso dos autos - acção proposta em 03/06/2008 - a disposição transitória constante do artigo 3.º da Lei 14/2009 configura uma manifesta violação do princípio constitucional da justiça e da tutela da confiança contidos no princípio do estado de direito democrático, decorrente do artigo 2.º da Constituição da República

Portuguesa;

II) Nesta conformidade, não sendo aplicável qualquer prazo de caducidade ao direito de acção que se pretende fazer valer, à data da sua propositura, em 30/06/2008, deve ser declarada a inconstitucionalidade material do artigo 3.º da Lei 14/2009 e, consequentemente, recusada a aplicação de tal norma ao presente caso;

III) O STJ - posteriormente ao acórdão 23/2003 deste Tribunal Constitucional - vem invariavelmente decidindo que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do prazo previsto no artigo 1817.º, n.º 1 do C.C., suprimia todos os prazos, isto é, deixava de sujeitar a qualquer prazo a propositura de uma acção de

investigação de paternidade;

IV) Assim, a decisão recorrida, que concluiu pela inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 1817.º do C. C., como decorrência da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do n.º 1 do mesmo preceito, não merece censura, por estar de acordo com as mais modernas posições quer da Jurisprudência, quer da

Doutrina Portuguesas;

Nesta conformidade, deve o recurso improceder, com todas as consequências legais.»

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

A) Questão prévia: (in)utilidade do recurso 5 - Nas suas alegações, o Ministério Público questionou a utilidade do presente recurso, invocando, em síntese, que a nova redacção do artigo 1817.º do Código Civil, resultante da Lei 14/2009, de 1 de Abril, é aplicável ao caso dos autos, não se revestindo de qualquer efeito útil a apreciação da inconstitucionalidade da norma na anterior versão. Mais salienta que, ainda que se entenda que o tribunal recorrido não possa já decidir sobre tal questão (a da aplicação do novo regime), sempre será à luz deste novo regime que a acção será julgada em sede de recurso ordinário.

O recorrido contrapôs que, na sua perspectiva, a norma do artigo 3.º da Lei 14/2009 é inconstitucional, na medida em que a aplicação deste preceito às acções pendentes (intentadas após a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do n.º 1 do artigo 1817.º do CC), como é o caso da presente acção, constitui uma projecção retroactiva desta lei nova aos processo pendentes que, além do mais, frustra a confiança do aqui recorrido num «entendimento unânime, claro e indiscutível de que a propositura deste tipo de acção não estava sujeita a qualquer prazo», violando o princípio da tutela da confiança contido no princípio do estado de direito

democrático.

Saliente-se, em primeiro lugar, que não cabe no âmbito do presente recurso apreciar a inconstitucionalidade do artigo 3.º da Lei 14/2009, agora invocada pelo recorrido.

No que respeita à questão suscitada nas alegações do Ministério Público, não obstante a pertinência da mesma, temos de concluir em sentido contrário, no sentido da utilidade

do presente recurso.

É verdade que a nova redacção do artigo 1817.º do Código Civil, introduzida pela Lei 14/2009 (que, nomeadamente, aumentou o prazo aqui em causa de um para três anos) seria neste momento aplicável ao caso dos autos (por força do disposto no artigo 3.º da referida Lei 14/2009, que determina a sua aplicação aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor). No entanto, o despacho aqui recorrido foi proferido em 16.1.2009, portanto em data anterior à entrada em vigor da Lei 14/2009 (que ocorreu em 2.4.2009 - cf. artigo 2.º da Lei).

Significa isto que na hipótese de o Tribunal confirmar o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida, esta se manterá inalterada, excepto se da mesma for interposto recurso. A interposição de recurso, embora provável, não é, contudo, certa, pois depende da vontade da(s) parte(s) com legitimidade para accionar tal mecanismo

processual.

O Tribunal não pode, por isso, basear um juízo de (in)utilidade da sua decisão assente no pressuposto (incerto) de que posteriormente irá ser interposto recurso do despacho saneador aqui recorrido e no pressuposto (igualmente incerto, porque nem sequer sindicável por este Tribunal) de que o tribunal ad quem irá aplicar a nova redacção do

preceito ao caso dos autos.

No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão 626/2009, a propósito de questão idêntica, mas respeitante à norma do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil (na redacção anterior à lei 14/2009), onde se lê:

«Daí que não tenha sentido antecipar-se, num juízo probabilístico, a posição dessas instâncias [instâncias superiores à instância recorrida], cuja intervenção ainda é incerta, para se verificar a utilidade da intervenção do Tribunal Constitucional.

E o facto de posteriormente à emissão da decisão recorrida ter sido alterada a norma cuja aplicação foi recusada, isso também não influi na utilidade do conhecimento do mérito dessa desaplicação, uma vez que esta foi determinante do sentido da decisão recorrida, pelo que o julgamento pelo Tribunal Constitucional da questão de constitucionalidade colocada terá reflexo na manutenção dessa concreta decisão.» Pelo exposto, conclui-se pela utilidade do presente recurso.

B) Mérito do recurso

6 - A norma objecto do recurso

A norma do n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil, na redacção da Lei 21/98, de

12 de Maio, estabelece o seguinte:

«4 - Se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe, sem que tenha cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquela; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho, a acção pode ser proposta dentro do prazo de um ano a contar da data em que o tratamento tiver cessado.» (destacado nosso).

A decisão recorrida recusou a aplicação da segunda parte desta norma, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos "artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição". Em consequência desta recusa de aplicação, julgou improcedente a excepção peremptória de caducidade invocada pelo réu na acção.

A questão a decidir é, assim, a da constitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil, enquanto aplicável à acção de investigação de paternidade por força do disposto no artigo 1873.º do mesmo Código, no segmento que, para os casos em que o investigante é tratado como filho pelo pretenso pai, fixa o prazo de caducidade do direito à investigação da paternidade em um ano, a contar da cessação

voluntária do tratamento como filho.

Redunda manifesto do teor da decisão recorrida que esta se estribou nos mesmos parâmetros constitucionais que fundamentaram o Acórdão 23/2006, pelo qual o Tribunal Constitucional decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

É, por isso, notório que a decisão recorrida incorreu em lapso quando se refere ao artigo 16.º, n.º 1, da Constituição (respeitante ao âmbito e sentido dos direitos fundamentais, em geral), pois, na verdade, queria indicar o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, na parte respeitante ao direito fundamental à identidade pessoal.

Assim, a constitucionalidade da norma questionada deve ser analisada, em primeira linha, à luz dos direitos fundamentais à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade e do direito de constituir família, conjugados com a "regra do carácter restritivo das restrições de direitos, liberdades e garantias" (na expressão de Jorge Miranda, em Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2005, 159) - cf. artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição.

7 - Os prazos de caducidade do direito de investigar a maternidade e a paternidade É conhecida a evolução do ordenamento jurídico português no que respeita aos limites temporais à investigação da paternidade e da maternidade (uma descrição detalhada dessa evolução legislativa e da sua teleologia pode ler-se, por exemplo, em Guilherme de Oliveira, Critério Jurídico da Paternidade, Coimbra, 1998, 461 e s.; para uma análise pormenorizada da jurisprudência do Tribunal Constitucional nesta matéria veja-se, nomeadamente, o recente Acórdão 626/2009).

Importa, no entanto, relembrar alguns aspectos desse desenvolvimento legislativo e jurisprudencial, indispensáveis à análise do prazo que concretamente aqui é

questionado.

O Código Civil de 1966, na sua versão originária veio encurtar os prazos para a investigação da então denominada "filiação ilegítima", prevendo que a acção só podia ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua emancipação ou maioridade, salvo nos casos especiais em que filho exibia um escrito do suposto progenitor ou beneficiava de tratamento como filho (artigo 1854.º). Esta solução procurava combater os inconvenientes apontados ao direito anterior (o Decreto 2, de 25 de Dezembro de 1910, permitia que a acção de investigação da paternidade ou maternidade fosse intentada em vida do pretenso pai ou mãe ou dentro do ano posterior à sua morte, salvo certas excepções), tendo na génese, como razão principal, a «consideração ético-pragmática de combate à investigação como puro instrumento de caça à herança paterna e de estímulo à determinação da paternidade (e, em casos muitíssimo menos frequentes, da maternidade) em tempo socialmente útil.» (cf. Antunes Varela in Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil

Anotado, V, Coimbra, 1995, 83).

A Reforma de 1977, dando cumprimento, além do mais, ao princípio constitucional da não discriminação entre filhos, independentemente de os progenitores estarem ou não casados (artigo 36.º, n.º 4), operou mudanças significativas no regime das acções de investigação, nomeadamente, adoptando o princípio da livre investigação da paternidade fora do casamento (eliminando as "condições de admissibilidade" da acção previstas na versão originária do Código Civil) e estabelecendo um regime de presunções da relação biológica de paternidade (artigo 1871.º). Mas no que respeita aos prazos de caducidade das acções de investigação manteve, no essencial, o regime de 1966 (artigos 1817.º e 1873.º). Segundo Guilherme de Oliveira ("Caducidade das acções de investigação", Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 1, n.º 1, Coimbra, 2004, 7-13, 9), a Comissão encarregue da Reforma «terá pensado que a limitação resultante da caducidade não retirava ao pretenso filho uma ampla liberdade de intentar a acção - aliás em condições de passar a beneficiar, muitas vezes, de uma presunção legal - de tal modo que não se podia dizer que essa restrição afectava o conteúdo essencial do direito fundamental.» Posteriormente, a Lei 21/98, de 12 de Maio, veio explicitar certos aspectos do regime (clarificando que no âmbito do n.º 4 do artigo 1817.º só releva a cessação voluntária do tratamento como filho e fixando regra expressa quanto à repartição do ónus da prova do decurso do prazo de proposição da acção) sem, contudo, alterar os prazos já constantes do artigo 1817.º, que assim se mantiveram desde a versão originária do Código Civil até à recente aprovação da Lei 14/2009.

O entendimento de que o regime da caducidade previsto no Código Civil era compatível com os princípios constitucionais foi também defendido pelo Tribunal Constitucional, numa primeira fase, com base, designadamente, no fundamento, entretanto abandonado, de que os prazos de caducidade eram meros condicionamentos, e não verdadeiras restrições, do direito de investigação inerente ao direito fundamental à identidade pessoal (cf. os Acórdãos n.os 99/88, 413/89, 451/89,

370/91, 311/95 e 506/99).

Posteriormente, o Tribunal inverteu a sua jurisprudência nesta matéria: pelo Acórdão 456/2003 julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 1817.º (enquanto impede a investigação de paternidade em função de um critério de prazos objectivos, nos casos em que os fundamentos e as razões para instaurar a acção de investigação surgem pela primeira vez em momento ulterior ao termo daqueles prazos); e pelo Acórdão 486/2004 julgou inconstitucional a norma do n.º 1 do mesmo preceito (na medida em que prevê a extinção do direito de investigar a paternidade, em regra, a partir dos vinte

anos de idade).

A nova orientação jurisprudencial culminou no Acórdão 23/2006, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da

República Portuguesa.

Mais recentemente, o Acórdão 626/2009, julgou inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 1817.º, do Código Civil (redacção do Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro), quando interpretado no sentido de estabelecer um limite temporal de 6 meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade, para o exercício do direito

de investigação da paternidade.

Os acórdãos citados não censuraram a existência de prazos de caducidade, mas apenas consideraram constitucionalmente desconforme o prazo concreto aí em questão, por inviabilizar ou dificultar excessivamente a possibilidade de o interessado averiguar o

vínculo de filiação natural.

Mas não pode ser ignorado, na contextualização do problema em apreciação, que a imprescritibilidade das acções de investigação é solução consagrada em ordens jurídicas que nos estão próximas. De facto, como salientado no Acórdão 486/04, ela vigora na Alemanha, Itália, Brasil e Macau (neste território, para os casos de o vínculo produzir apenas efeitos pessoais). Na Suíça prevê-se uma cláusula de salvaguarda para um atraso desculpável na proposição da acção.

E, também entre nós, são progressivamente mais as vozes que propugnam a solução de

imprescritibilidade.

Já em 1999, o Provedor de Justiça, na Recomendação 36/B/99, recomendava a alteração da legislação no sentido de «a par da existência de prazo para propositura de acções com fins patrimoniais, ser consagrada a imprescritibilidade para a propositura das acções de investigação de paternidade/maternidade, desde que os efeitos pretendidos sejam de natureza meramente pessoal».

A solução da imprescritibilidade das acções de investigação é também defendida, actualmente, por parte significativa da doutrina portuguesa - cf. Guilherme de Oliveira, "Caducidade das acções de investigação", cit., 7 e 13, onde o autor clarifica que mudou de posição relativamente ao que defendia anteriormente; Jorge Duarte Pinheiro, "Inconstitucionalidade do artigo 1817.º, n.º 4, do Código Civil - anotação ao Ac. do TRC de 19.10.2004, Proc. 718/04", Cadernos de Direito Privado, 13, Janeiro/Março 2006, 51-71, 69, e Rafael Vale e Reis, O Direito ao Conhecimento das Origens Genéticas, Coimbra, 2008, 207 e s., maxime 214 e 494.

Os referidos Autores reconhecem que, pelo menos em casos limite, a ausência de prazos traz o inconveniente de permitir a proposição tardia da acção com vista apenas à obtenção de benefícios patrimoniais, mas divergem quanto à forma de paralisar o exercício abusivo do direito a investigar a maternidade e paternidade. As soluções avançadas são o recurso ao instituto do abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil) ou a outra solução tributária do mesmo princípio (Guilherme de Oliveira, "Caducidade...", cit., 13); ou uma solução legal que permitisse o afastamento judicial dos efeitos patrimoniais do vínculo (sucessórios e de alimentos), desde que assente na exigência do preenchimento de pressupostos legais rigorosos, nomeadamente, na demonstração de que a acção foi intentada com um atraso irrazoável e que, através dela, o autor apenas quis obter vantagens patrimoniais, pelo que a limitação dos efeitos resultaria de factos censuráveis, provados no processo, e imputáveis ao filho/autor (neste sentido Rafael Vale e Reis, ob. cit, 210-212); ou uma determinação que confine o artigo 1817.º à disciplina do prazo para a proposição de uma acção de investigação com efeitos sucessórios (Jorge Duarte Pinheiro, ob. cit., 71).

A recente Lei 14/2009, de 1 de Abril, veio alterar o artigo 1817.º do Código Civil, mas persistiu na previsão de prazos de caducidade do direito de investigar, limitando-se a alargar o respectivo limite temporal (o prazo-regra constante do n.º 1 passou para 10 anos e os prazos especiais, previstos nos n.os 2 a 5 do artigo 1817.º, passaram para 3 anos). Aquando da aprovação desta lei, foi rejeitado o Projecto de Lei 178/X, de 2002, apresentado pelo partido "Os Verdes", no qual, renovando anteriores iniciativas e louvando-se na referida Recomendação do Provedor de Justiça, se proponha consagrar a possibilidade de propor a acção de investigação a todo o tempo, desde que os efeitos pretendidos fossem de natureza meramente pessoal.

No presente recurso apenas está em causa a constitucionalidade da específica limitação constante da norma do n.º 4 do artigo 1817.º, na redacção anterior à Lei 14/2009, não cabendo a este Tribunal apontar qual a solução desejável de entre as várias constitucionalmente admissíveis. Este excurso só releva na medida em que faz presentes linhas valorativas que podem influir na apreciação da questão a decidir.

8 - O direito fundamental a investigar a paternidade Em matéria do direito a investigar a paternidade (e a maternidade) relevam as exigências constitucionais em matéria de direito da família, concretamente, o direito de constituir família (artigo 36.º, n.º 1) e a citada proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4).

Mas o parâmetro constitucional mais significativo para a análise do regime de caducidade das acções de investigação é o direito à identidade pessoal, ou seja, o "direito à historicidade pessoal" (na expressão de Gomes Canotilho/Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª edição revista, Coimbra, 2007, 462) consagrado, de entre outros direitos de personalidade, no artigo 26.º, n.º 1, da

Constituição.

Logo no Acórdão 99/88 o Tribunal Constitucional afirmou que «a "paternidade"

representa uma "referência" essencial da pessoa (de cada pessoa), enquanto suporte extrínseco da sua mesma "individualidade" (quer ao nível biológico, e aí absolutamente infungível, quer ao nível social) e elemento ou condição determinante da própria capacidade de auto-identificação de cada um como "indivíduo" (da própria "consciência" que cada um tem de si); e, sendo assim, não se vê como possa deixar de pensar-se o direito a conhecer e ver reconhecido o pai [...] como uma das dimensões dos direitos constitucionais referidos [direito à integridade pessoal, em especial, à integridade moral, e direito à identidade pessoal - artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da CRP], em especial do direito à identidade pessoal, ou uma das faculdades que nele vai

implicada.»

Sendo o direito ao conhecimento e ao reconhecimento da paternidade decorrência, nomeadamente, do direito à identidade pessoal, beneficia do regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias, só podendo ser restringido nas condições estabelecidas nos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição.

Como resulta claro do Acórdão 99/88, a posição inicialmente defendida pelo Tribunal Constitucional no sentido da conformidade constitucional dos prazos previstos para a acção de investigação, baseava-se no duplo fundamento de que, por um lado, tais prazos constituíam mero condicionamento do exercício do direito de investigar e não propriamente uma restrição ao direito à identidade pessoal (posição contestada, desde logo, no voto de vencido do Conselheiro Luís Nunes de Almeida); e, por outro, na consideração de que, mesmo aceitando que a distinção entre condicionamento e restrição é "fundamentalmente prática" e, muitas vezes, é apenas "um problema de grau ou de quantidade" (seguindo o ensinamento de Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª ed., Coimbra, 2009, 210, n.

51), sempre se mantinha a justeza da conclusão à luz de um critério de adequação e proporcionalidade, pelas razões assim resumidas no citado aresto:

«Tudo está em que, face ao direito do filho ao reconhecimento da paternidade, se perfilam outros direitos ou interesses, igualmente merecedores de tutela jurídica: em primeiro lugar, e antes de mais, o interesse do pretenso progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza quanto à sua paternidade, e em não ter que contestar a respectiva acção quando a prova se haja tornado mais aleatória; depois, um interesse da mesma ordem por parte dos herdeiros do investigado, e com redobrada justificação no tocante à álea da prova e às eventuais dificuldades de contraprova com que podem vir a confrontar-se; além disso, porventura, o próprio interesse, sendo o caso, da paz e harmonia da família conjugal constituída pelo pretenso pai. É o equilíbrio entre o direito do filho e este conjunto de interesses que normas como as dos n.os 3 e 4 do art. 1817.º do Código Civil visam assegurar, sem que se possa dizer que o façam de modo desproporcionado (isto é, com excessivo sacrifício daquele direito) - quer considerado o estabelecimento, em si, de prazos de caducidade, quer considerada a duração de tais prazos. E como todos os interesses em presença não deixam igualmente de encontrar ressonância constitucional - seja ainda nos artigos 25.º, n.º 1 (integridade moral), e 26.º, n.º 1 (direito à reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar), seja no artigo 67.º (protecção da família), seja só no valor da segurança e certeza do direito, já que a tal valor objectivo, que intimamente se conexiona com o direito à protecção jurídica (artigo 25.º), não pode negar-se semelhante dignidade num Estado justamente 'de direito' - eis como não pode ver-se excluída pela Constituição a solução consagrada pelo legislador nos

preceitos questionados.».

Este entendimento foi abandonado no Acórdão 486/2004 (cuja fundamentação serviu de base à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral constante do Acórdão 23/2006). Aí, partiu-se de uma análise substancial sobre se o tipo de limitação em causa, pela gravidade dos seus efeitos e pela sua justificação, é ou não actualmente aceitável, à luz do princípio da proporcionalidade, e após exame das justificações avançadas para a exclusão do direito a investigar a paternidade depois dos vinte anos de idade do pretenso filho, conclui-se que o regime constante do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil (na redacção anterior à Lei 14/2009) não é constitucionalmente admissível, por violação da exigência de proporcionalidade (latu sensu) consagrada no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, pelas razões assim resumidas:

«[...] pelo menos no actual contexto, tal regime passou a traduzir uma apreciação manifestamente incorrecta dos interesses ou valores em presença, em particular, quanto à intensidade e à natureza das consequências que esse regime tem para cada um destes:

não só os prejuízos, designadamente não patrimoniais, que advêm da perda, aos vinte anos de idade, do direito a saber quem é o pai, se apresentam claramente desproporcionados em relação às desvantagens eventualmente resultantes, para o investigado e sua família, da acção de investigação (quer esta proceda - caso em que só será mais evidente a falta de justificação para invocar estes interesses -, quer não), como são possíveis, como se disse, alternativas, quer ligando o direito de investigar às reais e concretas possibilidades investigatórias do pretenso filho, sem total imprescritibilidade da acção (por exemplo, prevendo um dies a quo que não ignore o conhecimento ou a cognoscibilidade das circunstâncias que fundamentam a acção), quer para obstar a situações excepcionais, em que, considerando o contexto social e relacional do investigante, a invocação de um vínculo exclusivamente biológico possa ser abusiva, não sendo de excluir, evidentemente, o tratamento destes casos-limite com um adequado "remédio" excepcional (seja ele específico - cf. o regime referido do Código Civil de Macau - ou geral, como o abuso do direito, considerando-se ilegítimo desprezar os efeitos pessoais a ponto de se considerar a paternidade como puro interesse patrimonial, a "activar" quando oportuno).» Em suma, e na linha da orientação fixada desde o citado Acórdão 486/2004, é de concluir que a previsão de um prazo de caducidade para intentar a acção de investigação constitui um limite ao exercício do direito fundamental em causa que, na prática, significa negar a possibilidade ao investigante de conhecer e ver reconhecida a sua "historicidade pessoal" após o decurso de tal prazo. Pois, como já se salientou no Acórdão 626/2009, no actual ordenamento jurídico português, a acção de investigação de paternidade constitui «o único meio destinado à efectivação do direito fundamental ao conhecimento da ascendência biologicamente verdadeira».

9 - As razões subjacentes à fixação de um prazo de caducidade da acção de

investigação

Sendo pacífico que o legislador pode conformar o exercício do direito fundamental aqui em causa em função de outros interesses ou valores constitucionalmente relevantes, torna-se determinante perceber quais as razões que, hoje, podem justificar a necessidade de se preverem prazos limitativos da acção de investigação.

Como é salientado, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência deste Tribunal, os dados do problema mudaram significativamente desde a aprovação do Código Civil de

1966.

Para além das mudanças no ordenamento jurídico, principalmente ao nível constitucional, a que já se foi aludindo, sofreram significativa evolução os elementos sociológicos e científico-técnicos que rodeiam esta questão.

Precisamente à luz deste novo contexto, a doutrina (cf., por todos, Guilherme de Oliveira, "Caducidade...", cit., 7 e s.) e a jurisprudência constitucional (v., principalmente, o citado Acórdão 486/2004) têm "desmontado" as razões - de progressivo "envelhecimento" das provas, de segurança jurídica do pretenso pai e seus herdeiros e de prevenção da "caça às fortunas" - tradicionalmente invocadas como justificativas da previsão de prazos de caducidade da acção de investigação.

Está totalmente afastado o risco de "envelhecimento" das provas. Contrariamente ao que acontecia ao tempo da Reforma de 1977, em que só se dispunham em Portugal de meios de prova que excluíam a paternidade (ou a maternidade), os meios de prova técnico-científicos hoje disponíveis permitem, mesmo após a morte, estabelecer uma percentagem de probabilidade de se ser o pai biológico (ou a mãe biológica) superior a 99,5 %, o que, de acordo com as perícias médico-legais, corresponde a uma "paternidade praticamente provada" [como é salientado por J. P. Remédio Marques, "Anotação ao Ac. TC n.º 486/04 (caducidade de acção de investigação de paternidade)", Jurisprudência Constitucional, 4, Outubro-Dezembro, 2004, 40-50, 47].

Assim, a justificação relativa à prova perdeu todo o seu valor, atenta a actual eficácia e

generalização das provas científicas.

Note-se que a esta conclusão não obsta o facto de o investigado (ou os seus familiares) poder recusar a realização do vulgarmente designado teste de ADN. Pois, nesse caso, o investigado não merece protecção perante uma situação de incerteza (objectiva, que não jurídica, atentas as presunções de prova constantes do artigo 1871.º do Código

Civil) por ele próprio criada.

Suplantadas as dúvidas quanto à possibilidade de provar objectivamente a filiação, fica a questão da segurança jurídica, traduzida no interesse do progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza quanto à sua paternidade, a que se junta o argumento de que uma acção de investigação tardiamente intentada visa frequentemente fins exclusivamente patrimoniais (de "caça à herança").

Como salienta Guilherme de Oliveira ("Caducidade das acções...", ob. cit., 10), a garantia de segurança jurídica nesta matéria tem sentido, essencialmente, no âmbito patrimonial. E não se coloca da mesma forma, se tivermos em consideração a posição do pretenso progenitor ou a posição dos seus herdeiros. Quanto ao primeiro, ainda que esteja em causa uma situação em que é «surpreendido com as consequências de um "acidente" passado há muito tempo, dir-se-á que tem sempre de assumir as responsabilidades, porque mais ninguém o pode fazer no lugar dele».

Como também salienta este Autor, o perigo de as acções serem tardiamente intentadas por razões puramente egoísticas, embora não tenha desaparecido, perdeu muita da sua importância face à alteração da estrutura social e da riqueza, não tendo qualquer valia em situações em que a acção é intentada entre autores e réus com meios de fortuna semelhantes ou num momento em que o investigante não tem pretensões materiais, porque já não está em condições de formular pretensões de natureza alimentar e ainda não terá pretensões de natureza sucessória. Outras situações há, ainda, em que tais pretensões materiais são irrelevantes porque, pura e simplesmente, o investigado não tem bens (ou não os tem em valor significativo).

Quanto aos herdeiros, o sistema jurídico não tem uma preocupação absoluta com a sua segurança patrimonial e com a tutela das suas legítimas expectativas, bastando lembrar que qualquer herdeiro preterido pode intentar uma acção de "petição da herança", a todo o tempo, com a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro (artigo 2075.º do Código Civil).

Ainda a respeito dos herdeiros do pretenso pai, não deixa de ser impressivo confrontar o prazo de que dispõe o sucessível para aceitar a herança - 10 anos, a contar em regra, do conhecimento de haver sido chamado à herança (artigo 2059.º, n.º 1, do Código Civil) - com os prazos previstos no artigo 1817.º do Código Civil, concretamente, com o prazo de 1 ano aqui em questão. O que significa que, para além do universo dos sucessíveis (legais ou voluntários) ser naturalmente indefinido em vida do de cujus, mesmo após a sua morte, e até ao esgotamento daquele prazo de 10 anos, fica em aberto o universo de herdeiros de entre os sucessíveis chamados à herança.

Para sintetizar esta questão da "segurança patrimonial", relembre-se o que a respeito se diz no Acórdão 486/2004, a propósito do prazo constante do n.º 1 do artigo 1817.º (na redacção anterior à Lei 14/2009): «pode duvidar-se de que o pretenso progenitor mereça uma protecção da segurança da sua vida patrimonial que justifique a regra de exclusão do direito do investigante, logo a partir dos vinte anos e sem consideração de outras circunstâncias, a saber que é o seu pai. É que não pode conceder-se a uma certeza ou segurança patrimonial de outros filhos, ou do pretenso progenitor, relevância decisiva para excluir o direito, eminentemente pessoal e que integra uma dimensão fundamental da personalidade, a saber quem é o pai ou a mãe

biológicos.»

Outra razão esgrimida como justificadora do regime de prazos é o direito do pretenso pai à reserva da intimidade da vida privada e familiar, que resultaria afectado pela revelação de factos tidos por comprometedores. Também este ponto carece de uma

leitura actualizada.

Já não poderão servir de justificação as razões anteriormente invocadas de protecção da paz e harmonia da família conjugal constituída pelo pretenso pai, pois, não só essas eram razões que serviam de base às antigas limitações da acção de investigação, banidas, por imposição constitucional, após a Reforma de 1977 (cf., a este respeito, o Acórdão 694/95, que julgou inconstitucionais as normas dos artigos 1860.º, alínea e), e 1864.º, primeira parte, da versão originaria do Código Civil de 1966, relativas ao requisito da sedução como pressuposto de admissibilidade da acção de investigação da paternidade), como tal protecção conduziria ao resultado inadmissível de conferir maior protecção, contra potenciais investigantes, ao "investigado casado", comparativamente com o "investigado solteiro" (cf. Acórdão 486/2004).

Por outro lado, como é salientado no Acórdão 486/2004, uma «alegada "liberdade-de-não-ser-considerado-pai", apenas por terem passado muitos anos sobre a concepção, ou um interesse em eximir-se à responsabilidade jurídica correspondente, determinada fundamentalmente pelo "princípio da verdade biológica" que inspira o nosso direito da filiação, não podem considerar-se dignos de tutela, pelo menos, a ponto de sacrificar o direito do filho a apurar e ver judicialmente declarado que é o seu pai.» Neste sentido, não será atendível a invocação do direito ao livre desenvolvimento da personalidade do progenitor para fundamentar um direito do progenitor a não assumir o estatuto (Rafael Vale e Reis, ob. cit., 207-208).

Em suma, como se lê no Acórdão 626/2009, a «desvalorização de todas as referidas razões que vinham justificando a previsão de limites temporais, relativamente ao exercício do direito de investigação e reconhecimento de paternidade, e a ausência de quaisquer outras razões reportadas a outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, determinou que se começasse a considerar insustentável continuar a alegar a não inconstitucionalidade dos prazos de caducidade estabelecidos nos artigos 1817.º

e 1873.º do Código Civil».

10 - O prazo de caducidade de um ano a contar da cessação do tratamento como filho Independentemente de saber se a previsão de um prazo de caducidade continua ao serviço da tutela de direitos ou interesses constitucionalmente relevantes (no sentido de que deixou de estar ao serviço da tutela de tais direitos ou interesses v., designadamente, Rafael Vale e Reis, ob. cit., 207 e s.) ou de se saber se é medida necessária (ou seja, conforme ao princípio da exigibilidade, incluído no princípio da proporcionalidade, em sentido amplo) à tutela dos interesses que se contrapõem ao do investigante, o certo é que o prazo aqui concretamente em questão (prazo de 1 ano, consagrado no n.º 4 do artigo 1817.º, na redacção anterior à Lei 14/2009) não passa o teste da proporcionalidade (em sentido estrito).

Vejamos porquê.

Nos Acórdãos n.os 99/88 e 370/91 o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre a norma ínsita no n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil, no sentido da não inconstitucionalidade do prazo aí fixado. Já vimos, no entanto, que a fundamentação de tais acórdãos não é a adoptada na jurisprudência mais recente do Tribunal, sobre esta matéria, sendo certo que, da nossa parte, subscrevemos a orientação fixada desde o

Acórdão 486/2004.

Na economia do artigo 1817.º, o prazo de 1 ano previsto no n.º 4, in fine, constitui um alargamento do prazo-regra fixado no n.º 1. As razões subjacentes são as resultantes da "compreensão das realidades práticas da vida", assim resumidas por Antunes Varela (em Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, V, cit., 84/85):

«Se o filho, nascido fora do casamento, for todavia tratado como tal pelo seu verdadeiro progenitor, embora este não figure no assento de nascimento nessa qualidade ou nem sequer haja no registo assento do seu nascimento, parece evidente que não existe, na esfera das suas recíprocas relações, nenhuma necessidade prática de determinação da relação de filiação, nem sequer ambiente propicio para a instauração

da acção judicial.

Um tal ambiente e a correlativa necessidade só surgem normalmente a partir do momento em que cessa o tratamento prestado ao investigante pelo seu pretenso progenitor. E daí que a lei, muito judiciosamente, para não fomentar a guerra em ambiente que era de paz familiar, só a partir do momento de ruptura inicie a contagem do prazo dentro do qual a acção deve ser proposta, sob pena de caducidade.» Ora, precisamente pelas razões que fundamentaram a previsão de um prazo "mais alargado" para as situações em que o investigante beneficiava do tratamento como filho, se tem de concluir que o prazo de 1 ano a contar da cessação voluntária desse tratamento é, à luz dos critérios de proporcionalidade e adequação exigidos pelo artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, manifestamente insuficiente e desadequado.

Como desde logo salientou Luís Nunes de Almeida, no voto de vencido aposto no Acórdão 99/88 (e renovado no Acórdão 370/91), «sendo o investigante tratado como filho pelo pretenso pai, e cessando, por qualquer razão, de forma abrupta, esse tratamento, é perfeitamente compreensível que o mesmo investigante mantenha durante um lapso de tempo relativamente longo a legítima esperança de ver reatado o relacionamento anteriormente havido como seu presumido progenitor. É que, em muitos casos, a cessação do tratamento será ocasionada por eventuais zangas ou motivos ocasionais que, no domínio das relações familiares, têm normalmente tendência a

resolver-se com o mero decurso do tempo.

Ora, a mera instauração da acção de investigação teria naturalmente como efeito impedir que o investigado voltasse a ter com o investigante o tipo de relação que com ele mantivera anteriormente, porquanto a situação de litigância se não apresenta, obviamente, como favorável a um tal reatamento» A este argumento - o de que o "impedimento moral" (que fundamenta a previsão de um prazo de caducidade mais longo que o prazo-regra) se mantém presente após a cessação voluntária do tratamento como filho e permanece durante um longo período de tempo ou mesmo, em certos casos facilmente conjecturáveis, durante toda a vida do investigado - há ainda que acrescentar uma outra razão demonstrativa da limitação excessiva de tal prazo e respeitante ao termo inicial do mesmo.

O prazo de 1 ano em questão começa a contar da "cessação voluntária do tratamento como filho" pelo pretenso pai. É sabido que o tratamento de alguém como filho se traduz numa série de actos e atitudes do pretenso pai, destinados a prestar a investigante um mínimo de assistência material, afectiva e moral (cf., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5.12.1991, P. 081214). A cessação de tal tratamento consubstanciar-se-á também numa sucessão de actos ou atitudes - ou, muitas vezes, de meras omissões - demonstrativas, não só de que o investigado já não beneficia de tal assistência (cessação do tratamento como filho), mas também de que o investigante teve intenção de fazer cessar essa assistência (cessação voluntária). Daqui se extrai sem esforço a dificuldade em demonstrar o momento exacto em que cessou o tratamento voluntário como filho. Embora a prova do esgotamento do prazo de caducidade incumba ao investigado (artigo 1817.º, n.º 6, do Código Civil, na redacção da Lei 21/98), o certo é que estas circunstâncias agravam a exiguidade do prazo em questão. Em rigor, obrigam o investigado a, por cautela, agir judicialmente ao primeiro sinal de cessação voluntária do tratamento como filho, sob pena de deixar esgotar o curto prazo de 1 ano. Ou seja, nas palavras do citado voto de vencido, «obriga-se o investigante a tentar obter por via de um litígio o que ele, muito humanamente procurará obter por via de um acto voluntário, tanto mais quanto já beneficiou do tratamento

como filho por parte do investigado».

Em suma, a norma constante do n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil (na redacção da Lei 21/98, de 12 de Maio), aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a proposição da acção de investigação de paternidade, o prazo de um ano a contar da data em que tiver cessado voluntariamente o tratamento como filho, traduz uma restrição desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, em violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da

Constituição.

III - Decisão

Pelo exposto, acordam em:

a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição, a segunda parte da norma constante do n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil (na redacção da Lei 21/98, de 12 de Maio), aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a proposição da acção de investigação de paternidade, o prazo de um ano a contar da data em que tiver cessado

voluntariamente o tratamento como filho;

b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2010. - Joaquim de Sousa Ribeiro - Benjamim Rodrigues - João Cura Mariano - Rui Manuel Moura Ramos.

202971707

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2010/03/08/plain-270875.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/270875.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1977-11-25 - Decreto-Lei 496/77 - Ministério da Justiça

    Revê o Código Civil aprovado pelo Decreto Lei 47344, de 25 de Novembro, nos domínios, e quanto à parte geral, do direito internacional privado, fixação da maioridade, regime do domicílio legal dos menores e aquisição da personalidade jurídica das associações. Revê ainda, no direito da família, a disciplina do casamento (e do divórcio), da filiação, da adopção e dos alimentos e, no direito sucessório, a posição do cônjuge sobrevivo.

  • Tem documento Em vigor 1998-05-12 - Lei 21/98 - Assembleia da República

    Altera o Código Civil, aprovado pelo Dec Lei 47344, de 25-Nov de 1966.

  • Tem documento Em vigor 2006-02-08 - Acórdão 23/2006 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante.

  • Tem documento Em vigor 2009-04-01 - Lei 14/2009 - Assembleia da República

    Altera os artigos 1817.º e 1842.º do Código Civil sobre investigação de paternidade e maternidade.

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