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Acórdão 626/2009, de 18 de Janeiro

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Sumário

Julga inconstitucional a norma constante do artigo 1817, n.º 3.º, do Código Civil, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, quando interpretada no sentido de estabelecer um limite temporal de seis meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade, para o exercício do direito de investigação da paternidade. (Proc. nº 271/09).

Texto do documento

Acórdão 626/2009

Processo 271/09

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Relatório

No âmbito da acção de investigação de paternidade, proposta por Catarina Alexandra Ferreira Araújo Contra Petrovert Maurice, que corre os seus termos, sob o n.º 4002/08.0 TBMAI, no 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Maia, foi proferido despacho saneador, datado de 5 de Março de 2009, em que foi apreciada a excepção de caducidade deduzida pelo Réu, tendo-se concluído do seguinte modo:

"...decide-se julgar improcedente a excepção peremptória de caducidade invocada

pelo Réu:

No que respeita ao artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, por força da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, proferida pelo Acórdão 23/2006, de

10 de Janeiro e,

No que respeita ao artigos 1817.º n.º 3 e 4 do Código Civil, porquanto este Tribunal recusa a aplicação do disposto no n.º 3 e n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, quando interpretados no sentido de estabelecerem um limite temporal para o exercício do direito de investigação da

paternidade...".

O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), suscitando a fiscalização da constitucionalidade das normas constantes do artigo 1817.º, n.os 3 e 4, do Código Civil, quando interpretados no sentido de estabelecerem um limite temporal para o exercício do direito de investigação da paternidade, cuja aplicação foi recusada com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação do disposto nos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição.

Notificado para efeito de apresentação de alegações de recurso, o Ministério Público

alegou e concluiu do seguinte modo:

"Passando a apreciar as questões suscitadas, importa notar que - relativamente à recusa de aplicação da norma constante do artigo 1817.º, n.º 4, do Código Civil, na versão em vigor à data da decisão recorrida - é inútil a pronúncia deste Tribunal Constitucional, já que a própria decisão recorrida admite que o prazo ali previsto ainda se não esgotou (p. 77): não sendo alegada "a cessação do tratamento como filho pelo réu e sendo este ainda vivo, forçoso seria de concluir que a acção é tempestiva, pois que dispunha a A. de um ano posterior à morte do R. para intentar a acção de investigação de paternidade com fundamento em posse de estado".

Relativamente à questão de constitucionalidade suscitada quanto à norma constante do n.º 3 daquele preceito legal, importa começar por realçar uma circunstância fundamental e decisiva: é que, ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, a jurisprudência constitucional «nunca considerou» que o único regime normativo, conforme à lei Fundamental, é o da «imprescritibilidade» do direito de investigar a paternidade (afirmando-se, aliás, tal conclusão expressamente no Acórdão 23/06, bem como nas decisões anteriores que estiveram na base daquela declaração de inconstitucionalidade); ou seja, o que este Tribunal Constitucional considerou desconforme à Constituição foi o específico e concreto regime de «caducidade», plasmado no n.º 1 do artigo 1817.º, tendo por insuficiente o prazo de «2 anos», contados do alcance da «maioridade» pelo investigante, e cujo início assentava irremediavelmente em tal «facto objectivo», não conferindo relevância, em regra, a um superveniente e «tardio» conhecimento subjectivo de factos ou provas, só então

reveladas ao interessado.

A correcta interpretação da declaração de inconstitucionalidade constante do citado aresto, é essencial para compreender e apreciar o «novo regime» instituído pela Lei 14/09, de 01/04, aplicável aos processos pendentes nessa data - sendo evidente que - se porventura, resultasse da jurisprudência constitucional a necessária «imprescritibilidade» das referidas acções - o regime ali inovatoriamente fixado padeceria de evidente inconstitucionalidade material...

A nosso ver, o regime plasmado no n.º 3 do artigo 1817.º, na versão anterior à Lei 14/09, ao atribuir ao filho a possibilidade de interpor ainda (tardiamente) a acção, no prazo de 6 meses contados do conhecimento do conteúdo do escrito em que o pretenso pai afirmava inequivocamente a sua paternidade, não era violador de qualquer preceito ou princípio constitucional, já que, neste caso, a acção podia ainda ser proposta a partir do momento em que ficava «disponível» para o interessado um «elemento probatório fundamental», de que, aliás, se presumia a paternidade - não podendo afirmar-se que o prazo de 6 meses (embora algo limitado) fosse manifesta e ostensivamente exíguo e inadequado para se poder ainda mover a acção de

reconhecimento judicial.

Admitimos, porém, que a imediata entrada em vigor da Lei 14/09 - e a sua aplicação aos «processos pendentes» - retire utilidade à dirimição de tal questão de constitucionalidade, já que - não tendo obviamente transitado em julgado a decisão que apreciou a caducidade, face à lei em vigor à data da decisão recorrida, será necessário proceder a uma nova apreciação de tal matéria, perante o novo quadro normativo do qual decorre ampliação para «três» anos do prazo da acção «tardia», fundada em ulterior acesso pelo investigante a matéria fáctica ou probatória, relevante ou decisiva para a viabilidade da investigação da paternidade.

2 - Conclusão

Nestes termos e pelo exposto conclui-se:

1.º) Não é enquadrável no âmbito do artigo 78.º, n.º 2, da lei do Tribunal Constitucional um recurso obrigatório, baseado na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º, cujo regime nunca é moldado pelo que seria aplicável no recurso ordinário que, no caso, nunca poderia ser interposto - o que dita a aplicação do regime contido no n.º 4

daquele artigo 78.º

2.º) Não há interesse processual em apreciar as questões de constitucionalidade colocadas quanto aos n.os 3 e 4 do artigo 1817 do Código Civil, na sua redacção originária, já que, por um lado, não está sequer esgotado o prazo previsto naquele n.º

4, face ao teor da decisão recorrida.

3.º) E - quanto ao referido n.º 3 - será aplicável, porventura, o regime inovatoriamente definido pela Lei 14/09, face à disposição transitória do respectivo artigo 3.º (o que conduz à aplicação de no prazo de caducidade de 3 anos para a acção «tardia», fundada em conhecimento superveniente de factos ou provas relevantes para a propositura o da acção, em momento ulterior ao esgotamento do "prazo-regra", afirmado no n.º 1 do referido artigo 1817.º [...]".

Não foram apresentadas contra-alegações.

Fundamentação

1 - Da delimitação do objecto do recurso

Foi interposto recurso da decisão que recusou a aplicação do disposto nos n.º 3 e 4, do artigo 1817.º, do Código Civil (C.C.), por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), quando interpretados no sentido de estabelecerem um limite temporal para o exercício do direito de investigação da paternidade.

Nas suas alegações o Ministério Público colocou a possibilidade do recurso não ser conhecido, pela susceptibilidade desse conhecimento não ter repercussão útil no

processo concreto de que emerge.

Relativamente à recusa de aplicação da norma constante do n.º 4, do artigo 1817.º, do C.C., na redacção conferida pela Lei 21/98, de 12 de Maio, quando interpretado no sentido de estabelecer um limite temporal para o exercício do direito de investigação da paternidade, com fundamento em inconstitucionalidade material, a referida disposição legal apresenta a seguinte redacção:

"4. Se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe, sem que tenha cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquela; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho, a acção pode ser proposta dentro do prazo de um ano a contar da data em que o

tratamento tiver cessado."

A decisão recorrida admitiu, expressamente, que o prazo de caducidade em questão, respeitante à situação de posse de estado, ainda não se esgotou, ou melhor dizendo, ainda nem sequer se iniciou, uma vez que o pretenso pai ainda é vivo e nenhuma das partes alegou a cessação voluntária do tratamento da investigante como filha.

Assim sendo, a recusa de aplicação da disposição que estabelece um prazo de caducidade, com fundamento na sua inconstitucionalidade, não foi determinante da decisão recorrida, sendo apenas um simples obicter dictum, uma vez que nem sequer se coloca a questão de aplicação daquele prazo, dado que o mesmo ainda nem sequer se

iniciou.

Deste modo a intervenção do Tribunal Constitucional em relação à referida norma é totalmente inútil uma vez que não haverá lugar a qualquer alteração da decisão recorrida nesta parte, seja qual for o sentido da decisão do recurso de

constitucionalidade.

Verificada a falta de interesse processual no recurso, nesta parte, importa concluir que não estão preenchidos todos os requisitos de conhecimento do recurso de constitucionalidade, no que respeita à apreciação do n.º 4, do artigo 1817.º, do C.C.

Já relativamente à recusa de aplicação do prazo de caducidade previsto no n.º 3, do artigo 1817.º, do C.C., o recorrente apenas coloca a hipótese do seu conhecimento não ter qualquer utilidade, por entretanto ter sido aprovada pela Lei 14/2009, de 1 de Abril, uma alteração do prazo de caducidade nela prescrito, com aplicação aos processos pendentes, o que poderá conduzir a uma alteração da decisão recorrida

pelas instâncias ordinárias de recurso.

Ora, o recurso de constitucionalidade previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, caracteriza-se precisamente pela possibilidade de intervenção directa e imediata do Tribunal Constitucional, não se exigindo aqui um esgotamento das instâncias.

Perante uma presunção de validade das regras do Direito ordinário interno dotadas de hierarquia mais elevada, se essa validade é negada pela decisão de uma jurisdição comum, entendeu-se que esse incidente podia ser apreciado imediatamente pelo Tribunal Constitucional, sem se aguardar pela posição das instâncias superiores daquela

jurisdição.

Daí que não tenha sentido antecipar-se, num juízo probabilístico, a posição dessas instâncias, cuja intervenção ainda é incerta, para se verificar a utilidade da intervenção

do Tribunal Constitucional.

E o facto de posteriormente à emissão da decisão recorrida ter sido alterada a norma cuja aplicação foi recusada, isso também não influi na utilidade do conhecimento do mérito dessa desaplicação, uma vez que esta foi determinante do sentido da decisão recorrida, pelo que o julgamento pelo Tribunal Constitucional da questão de constitucionalidade colocada terá reflexo na manutenção dessa concreta decisão.

Deste modo, deve o presente recurso cingir-se à recusa de aplicação do disposto no n.º 3, do artigo 1817.º, do C.C., quando interpretado no sentido de estabelecer um limite temporal de 6 meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade para o exercício do direito de investigação da paternidade.

Impõe-se ainda tecer uma consideração suplementar relativamente aos parâmetros constitucionais pretensamente contrariados pela referida interpretação normativa.

O tribunal recorrido recusou a aplicação da referida interpretação normativa do n.º 3, do artigo 1817.º, do C.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, com fundamento em inconstitucionalidade material traduzida na violação do disposto nos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição.

Analisada a fundamentação da decisão recorrida, alcança-se facilmente que a mesma se estribou nos mesmos parâmetros constitucionais que sustentaram a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral levada a cabo pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, por referência ao artigo 1817.º, n.º 1, do C.C., quando aplicável às acções de investigação de paternidade.

Assim sendo, é indubitável que a alusão ao artigo 16.º, n.º 1, da Constituição, respeitante ao âmbito e sentido dos direitos fundamentais em geral, deveu-se a mero lapso, na medida em que se pretendia efectivamente indicar o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, na parte respeitante ao direito fundamental à identidade pessoal.

Por conseguinte, a análise das questões de constitucionalidade suscitadas pelo Recorrente será levada a cabo, em primeira linha, tendo por referência os parâmetros constitucionais constantes dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição, sem prejuízo, obviamente, da convocação de outros parâmetros que o caso concreto coloque em evidência, por respeito ao disposto no artigo 79.º- C, da

LTC.

2 - Do mérito do recurso

2.1 - A interpretação normativa sob fiscalização e o caso concreto O tribunal recorrido recusou a aplicação da norma constante do n.º 3, do artigo 1817.º, do C.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, quando interpretado no sentido de estabelecer um limite temporal de 6 meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade para o exercício do direito de investigação da paternidade, com fundamento em inconstitucionalidade material traduzida na violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição.

A referida disposição legal, aplicável às acções de investigação de paternidade por força do disposto no artigo 1873.º, do C.C., apresenta a seguinte redacção:

"3. Se a acção se fundar em escrito no qual a pretensa mãe declare inequivocamente a maternidade, pode ser intentada nos seis meses posteriores à data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito."

A existência de carta ou outro escrito no qual o pretenso pai declare inequivocamente a sua paternidade (escrito de pai) facilita em muito a tarefa probatória do investigante na medida em que a paternidade se presume na referida situação, por força do artigo 1871.º, n.º 1, al. b), do C.C., na redacção do Decreto-Lei 496/77, de 25 de

Novembro.

No caso concreto, a Autora, nascida em 1 de Novembro de 1971, propôs uma acção de investigação da respectiva paternidade, quando já perfazia 36 anos de idade, com fundamento, inter alia, na alegada existência de escrito datado de 1975 no qual o pretenso pai declara inequivocamente a paternidade.

Em sede de contestação, a Autora viu ser-lhe excepcionada a caducidade do direito de investigação da paternidade fundada no alegado escrito de pai.

O tribunal recorrido reputou de inconstitucional a existência do prazo previsto no n.º 3, do artigo 1817.º, do C.C., para a propositura da acção de investigação da paternidade e, consequentemente, recusou a aplicação da norma em questão ao caso concreto.

Interessa, pois, saber se a Constituição tolera a existência de tal limite temporal em sede de acção de investigação da paternidade proposta pelo filho contra o pretenso

pai.

2.2 - A presunção de paternidade resultante de escrito que a reconheça A existência de carta ou outro escrito no qual o pretenso pai declare inequivocamente a sua paternidade começou por ser no nosso direito uma das condições em que, excepcionalmente, era admitida uma acção de investigação de paternidade.

Na verdade, sob a influência da doutrina da Revolução Francesa nesta matéria, segundo a qual a imposição judicial da paternidade envolvia, além de um atentado contra a liberdade individual, arbítrio, incerteza e possibilidade de abuso, constituindo um risco grosseiro de erro, o Código de 1867 (Código de Seabra) previu no seu artigo 130.º, n.º 2, como uma das situações em que excepcionalmente era admissível a propositura de uma acção de investigação de paternidade, a existência de escrito do pai em que este declarasse expressamente a sua paternidade.

A relevância jurídica deste facto não residia, contudo, no seu valor indiciário da paternidade, mas sobretudo porque o seu autor ao emitir esse escrito abria voluntariamente uma brecha no seu direito à autonomia privada, deixando de merecer o anonimato que o ordenamento jurídico lhe garantia, pelo que se justificava que passasse a estar exposto ao risco de uma acção de investigação de paternidade, conferindo-se prevalência aos interesses do filho (vide, neste sentido, Guilherme de Oliveira, em "Critério jurídico da paternidade", pág. 125-126, da ed. de 1998, da Almedina).

A valia jurídica deste facto manteve-se nestes precisos termos na redacção original do C.C. de 1966, tendo o sentido jurídico da sua utilização apenas mudado com a Reforma de 1977. As situações referidas pelo artigo 1871.º, n.º 1, do C.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, onde se contam os referidos escritos, num sistema de liberdade de investigação, passaram a assumir o valor de índices da verdade biológica, de factos denunciadores de uma probabilidade forte da existência da paternidade por eles revelada.

Por isso, deles se passou a extrair uma presunção de paternidade, sendo essa presunção ilidível mediante a demonstração de circunstâncias donde resultem dúvidas sérias acerca dessa paternidade (artigo 1871.º, n.º 2, do C.C.).

2.3 - A existência de limites temporais à investigação da paternidade no direito

ordinário português

O estabelecimento de prazos específicos de caducidade para as acções de reconhecimento da filiação surgiu expressamente com o Código de Seabra.

Durante a vigência das Ordenações Filipinas, na ausência de previsão de prazos de caducidade para as acções de reconhecimento da filiação, a doutrina divergia entre a solução da imprescritibilidade e a da sujeição ao prazo ordinário de prescrição de 30 anos relativo aos direitos de crédito (Vide Guilherme de Oliveira, na ob. cit., pág. 461).

Na redacção originária do Código de Seabra, os filhos só podiam investigar a filiação durante a vida dos investigados, excepto se estes falecessem durante a menoridade dos filhos - caso em que se sobrepunha um prazo de caducidade de 4 anos após a maioridade, ou emancipação -, ou quando os filhos obtivessem após a morte dos pais documento escrito destes revelando a sua paternidade (artigo 133.º).

A implantação do regime republicano foi acompanhada de alterações em sede de

Direito da Filiação.

O artigo 37.º, do Decreto 2, de 25 de Dezembro de 1910, veio admitir que a acção de investigação de filiação pudesse ser ainda intentada no ano seguinte à morte dos pretensos progenitores e estabeleceu um prazo de seis meses para a propositura da acção quando esta se fundasse em escrito obtido após a morte daqueles (artigo 37.º).

Perante as críticas (Vide, por exemplo, Paulo Cunha, em "Lições de direito de família", II vol., pág. 238, da ed. de 1941, da Imprensa Baroeth, e Gomes da Silva, em "O direito de família no futuro Código Civil", no B.M.J. n.º 88, pág. 86-87.) que vinham sendo feitas à permissividade deste regime, o C.C. de 1966, no seu artigo 1854.º, estabeleceu um sistema de prazos de caducidade mais curtos e que, com pequenas alterações e aditamento de normas interpretativas, se mantém na redacção actual do artigo 1817.º, do C.C. (esta opção não era seguida porém no artigo 51.º, do Anteprojecto de Pires de Lima, pub. no B.M.J. n.º 89, pág. 54, que não se distanciava do regime do Código de Seabra, e foi criticada por Vaz Serra, em "Observações do Autor à segunda revisão ministerial do Anteprojecto do Código Civil (Direito de Família)", defendendo a imprescritibilidade destas acções, conforme refere Guilherme

de Oliveira, na ob. cit, pág. 464-465).

O prazo-regra passou a ser de dois anos após o investigante ter atingido a maioridade

ou a emancipação (artigo 1817.º, n.º 1).

Excepcionalmente, transcorrido o referido prazo-regra, o Código Civil deu ainda a possibilidade ao filho: a) de reagir no prazo de um ano à destruição do registo da paternidade até então tido por verdadeiro e que inibia qualquer investigação de paternidade (artigo 1817.º, n.º 2); b) de utilizar o escrito do progenitor reconhecendo a paternidade, sendo aqui o prazo de seis meses a contar do conhecimento desse escrito (artigo 1817.º, n.º 3); c) e, existindo posse de estado, de investigar a paternidade no prazo de um ano a contar da data em que cessou o tratamento (artigo 1817.º, n.º 4).

A Lei 21/98, de 12 de Maio, veio clarificar certos aspectos do referido regime sem,

todavia, alterar os referidos prazos.

Este sistema, com um prazo-regra de caducidade muito curto, se já tinha sido alvo de ataques aquando da sua adopção, com os assinaláveis progressos verificados na obtenção científica da prova da paternidade passou a ser objecto de numerosas críticas (vide, Guilherme de Oliveira, em "Estabelecimento da filiação", pág. 40-41, da ed. de 1979, da Almedina, em "Critério jurídico da paternidade", pág. 470-471, e em "Caducidade das acções de investigação", em "Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977", vol. I, pág. 49-58, da ed. de 2004, da Coimbra Editora), tendo a Provedoria de Justiça, pela Recomendação 36/B/99, e o partido "Os Verdes", através do Projecto de Lei 92/IX, de 2002, defendido a alteração do artigo 1817.º, do C.C., de modo a não se imporem prazos de caducidade, desde que o investigante renunciasse aos eventuais efeitos patrimoniais do

estabelecimento do vínculo.

Recentemente, a Lei 14/2009, de 1 de Abril, alterou sensivelmente os prazos de caducidade das acções de investigação de paternidade. O prazo-regra passou a ser de 10 anos, contado a partir da maioridade ou emancipação do investigante, e os prazos excepcionais atrás aludidos, incluindo o prazo para a acção de investigação de paternidade, com fundamento na existência de escrito do progenitor reconhecendo a paternidade, foram todos elevados para três anos.

Por conseguinte, a lei civil portuguesa não adoptou a regra da "imprescritibilidade" do direito de investigação de paternidade e continua a insistir na necessidade de existência de limites temporais ao exercício desse direito, embora na última alteração tenha alargado consideravelmente esses limites temporais.

As razões avançadas para a previsão de prazos limitativos da acção de investigação da paternidade encontram-se há muito identificadas pela doutrina portuguesa e prendem-se com a segurança jurídica dos pretensos pais e seus herdeiros, o progressivo "envelhecimento" das provas e com a prevenção da "caça às fortunas"

(Vide Guilherme de Oliveira, em "Caducidade das acções de investigação", in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume I, pág. 49 e seg., da ed. de 2004, da Coimbra Editora).

2.4 - A jurisprudência constitucional portuguesa em matéria de prazos de caducidade das acções de investigação e de impugnação de paternidade A temática da existência de prazos de caducidade limitativos do direito de investigação de paternidade ocupou o Tribunal Constitucional logo na sua primeira década de

existência.

Numa primeira fase, dir-se-ia que o Tribunal Constitucional decidiu sempre no sentido da compatibilidade das normas que prevêem os referidos prazos com os princípios

constitucionais.

No Acórdão 99/88 (publicado em ATC, 11.º vol., pág. 785), o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucionais as normas dos n.º 3 e 4, do artigo 1817.º do C.C., na redacção do Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, enquanto aplicáveis às acções de investigação de paternidade por força do artigo 1873.º do mesmo Código (Vide, no mesmo sentido, o Acórdão 370/91, publicado em ATC,

20.º vol., pág. 321).

Por seu turno, no Acórdão 413/89 (publicado no B.M.J. n.º 387, pág. 362), o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do n.º 1, do artigo 1817.º, do C.C., na redacção do Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, enquanto aplicáveis às acções de investigação de paternidade por força do artigo 1873.º do mesmo Código (Vide, no mesmo sentido, os Acórdãos n.os 451/89, publicado em ATC, 13.º - II vol., pág. 1321; 311/95, disponível em www.tribunalconstitucional.pt;

506/99, publicado em ATC, 44.º vol., pág. 763, e 525/2003, disponível em

www.tribunalconstitucional.pt).

Em todos os referidos arestos, o Tribunal encarou os prazos de caducidade como meros condicionamentos do exercício do direito de investigação da paternidade, inerente ao direito à identidade pessoal, e não como verdadeiras restrições desse

direito fundamental.

No essencial, o Tribunal Constitucional entendeu invariavelmente que o regime jurídico da filiação em questão assegurava um equilíbrio adequado entre o direito do filho ao reconhecimento da paternidade e o interesse do pretenso progenitor a não ver protelada uma situação de incerteza - agravada pelo envelhecimento e aleatoriedade da prova - e ainda o interesse da paz da família conjugal do investigado.

A primeira viragem neste entendimento deu-se com a prolação do Acórdão 456/03 (publicado em ATC, 57.º vol., pág. 461) que julgou inconstitucional a norma constante do artigo 1817.º, n.º 2, do C.C., na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, enquanto impede a investigação da paternidade em função de um critério de prazos objectivos, nos casos em que os fundamentos e as razões para instaurar a acção de investigação surgem pela primeira vez em momento ulterior ao

termo daqueles prazos.

Este aresto não censurou a existência de limites temporais ao exercício do direito de instaurar acção de investigação, mas apenas a consagração de limites temporais que inviabilizam absolutamente a possibilidade do interessado averiguar o vínculo de filiação natural, nomeadamente aqueles que propiciam concretamente que uma filha com 31 anos de idade não possa investigar a paternidade biológica quando a mesma veja impugnada com sucesso a paternidade presumida em acção proposta pelo cônjuge da mãe após a investigante já ter perfeito 20 anos de idade.

Novo passo seria dado no Acórdão 486/2004 (publicado em ATC, 60.º vol., pág.

191), através do qual o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional o artigo 1817.º, n.º 1, do C.C., na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, ao prever a extinção do direito de investigar a paternidade, em regra, a

partir dos vinte anos de idade.

Porém, este último aresto também não censurou a existência de limites temporais ao exercício do direito de instaurar acção de investigação, mas apenas a consagração de limites temporais que dificultam seriamente ou inviabilizam a possibilidade do interessado averiguar o vínculo de filiação natural, nomeadamente a circunstância do prazo se esgotar num momento em que o investigante não é ainda uma pessoa inteiramente madura e em que o mesmo pode nem sequer ter qualquer justificação para a interposição da acção de investigação.

Esta última inconstitucionalidade - traduzida na reputada diminuição do alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família - viria a ser declarada com força obrigatória geral pelo Acórdão 23/2006 (publicado

em ATC, 64.º vol., pág. 81).

No ano imediatamente seguinte, desta feita no âmbito de uma acção de impugnação da paternidade presumida, o Tribunal Constitucional no Acórdão 589/2007 (publicado em ATC, 70.º vol., pág. 519) não julgou inconstitucional a norma prevista no artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do C.C., na redacção dada pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, na medida em que prevê, para a caducidade do direito do marido da mãe impugnar a sua própria paternidade presumida, o prazo de dois anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias donde se possa concluir a sua não paternidade. O referido prazo de dois anos, porque contado a partir de um facto subjectivo, foi então considerado como sendo razoável e adequado à ponderação do interesse acerca do exercício do direito de impugnar na medida em que permite avaliar todos os factores que podem condicionar a decisão.

Alguns dias depois, também no âmbito de uma acção de impugnação da paternidade presumida, o Tribunal Constitucional, no Acórdão 609/2007(publicado na 2.ª série do Diário da República, de 7 de Março de 2008) julgou inconstitucional a norma prevista no artigo 1842.º, n.º 1, alínea c), do C.C., na redacção dada pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, na medida em que prevê, para a caducidade do direito do filho maior ou emancipado de impugnar a paternidade presumida do marido da mãe, o prazo de um ano a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias donde possa concluir-se não ser o filho do marido da mãe, por violação dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição. O mencionado prazo de um ano foi então considerado manifestamente exíguo, particularmente nos casos em que o conhecimento das circunstâncias que indiciam a paternidade não biológica do marido da mãe ocorre em momento temporalmente próximo da data em que o interessado alcançou a maioridade e a sua autonomia.

2.5 - O direito fundamental à identidade pessoal O parâmetro constitucional mais relevante para a aferição da legitimidade da previsão legal de limitações temporais ao direito de investigar a paternidade encontra-se no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, nos termos do qual é reconhecido o direito à

identidade pessoal a todos os cidadãos.

A identidade pessoal consiste no conjunto de atributos e características que permitem individualizar cada pessoa na sociedade e que fazem com que cada indivíduo seja ele mesmo e não outro, diferente dos demais, isto é, "uma unidade individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas" (Jorge Miranda/Rui Medeiros, em «Constituição Portuguesa Anotada», Tomo I, pág. 284, da ed. de 2005, da Coimbra Editora).

Este direito fundamental pode ser visto numa perspectiva estática - onde avultam a identificação genética, a identificação física, o nome e a imagem - e numa perspectiva dinâmica - onde interessa cuidar da verdade biográfica e da relação do indivíduo com a

sociedade ao longo dos tempos.

Nunca suscitou qualquer oposição o entendimento de que deste direito fundamental se extrai um direito fundamental ao conhecimento e ao reconhecimento da ascendência biologicamente verdadeira (identidade biológica).

A importância da identidade biológica é fácil de alcançar já que o conhecimento dos progenitores significa o conhecimento do princípio da existência de cada indivíduo e responde ao interesse de todo o ser humano em saber donde provém a sua própria vida e quem o precedeu biológica e socialmente.

Isso não impede, contudo, que o legislador possa modelar o exercício de um tal direito em função de outros interesses ou valores constitucionalmente tutelados.

No actual ordenamento jurídico português, a acção de investigação de paternidade constitui precisamente o único meio destinado à efectivação do direito fundamental ao conhecimento da ascendência biologicamente verdadeira.

Em certos casos, por motivos de ordem social e para prevenir danos psíquicos graves, a lei proíbe a investigação da paternidade, nomeadamente a investigação da paternidade incestuosa (artigos 1809.º, al. a), e 1866.º, a), do C.C.), com isso acautelando o direito fundamental à integridade moral consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição (Vide João de Pina Cabral, "A lei e a paternidade: as leis de filiação portuguesas vistas à luz da antropologia social", in Análise Social, vol. XVIII, 1993 (4.º-5.º), pp. 983 e segs.; Paula Costa e Silva, "A realização coerciva de testes de ADN em acções de estabelecimento da filiação", in Estudos em homenagem à Prof.

Doutora Isabel de Magalhães Collaço, volume II, pp. 579-580).

Para além destas proibições de investigação, importa, pois, saber, se será admissível, à luz do n.º 1, do artigo 26.º da Constituição, a existência de prazos de caducidade para a investigação da paternidade, mais concretamente o prazo previsto no n.º 3, do artigo 1817.º, do C.C., na redacção do Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, nos termos do qual a acção de investigação de paternidade fundada em escrito de pai apenas pode ser intentada nos seis meses posteriores à data em que o investigante - com mais de 20 anos de idade - conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do

escrito.

Conforme já se tinha antecipado atrás, as razões avançadas para a previsão de prazos limitativos da acção de investigação da paternidade encontram-se há muito identificadas pela doutrina portuguesa e prendem-se com a segurança jurídica dos pretensos pais e seus herdeiros, o progressivo "envelhecimento" das provas e com a prevenção da "caça

às fortunas".

Estas justificações já foram reputadas atendíveis na jurisprudência constitucional (vide o

acima citado Acórdão 99/88).

Mas foi o próprio Tribunal Constitucional que inflectiu este entendimento, nomeadamente quando procedeu a uma nova reflexão, no Acórdão 486/04, nos

seguintes termos:

«[...] 15. Como se disse, invocam-se, para justificar o regime actual, os riscos de fraudes decorrentes de um "envelhecimento das provas".

Tal dificuldade de prova constituía uma justificação de peso, frequentemente invocada, para a limitação temporal prevista na lei, desde logo, porque contendia com a própria fiabilidade do resultado da acção, e, consequentemente, com a credibilidade do resultado quanto à identidade pessoal invocada.

Não parece, porém, que esta justificação possa actualmente ser considerada relevante.

É que os avanços científicos permitiram o emprego de testes de ADN com uma fiabilidade próxima da certeza - probabilidades bioestatísticas superiores a 99,5 % -, e, por esse meio, mesmo depois da morte é hoje muitas vezes possível estabelecer com grande segurança a maternidade ou a paternidade. Assim, a justificação relativa à prova perdeu quase todo o valor, com a eficácia e a generalização das provas científicas, podendo as acções ser julgadas com base em testes de ADN, que não envelhecem nunca. Como salienta Guilherme de Oliveira, Caducidade..., cit., pág. 11, "os exames podem fazer-se muitos anos depois da morte do suposto pai, ou na ausência do pai! Morrem as testemunhas, mudam os lugares, é certo, mas nada disso altera, verdadeiramente, o caminho que as acções seguem, e hão-de seguir cada vez mais, no

futuro".

16 - Não é, pois, o valor da certeza objectiva da identidade pessoal que está em causa, mas antes a segurança para sujeitos ou pessoas concretas - designadamente, o interesse do pretenso progenitor, que poderia ser investigado, em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza quanto à sua paternidade, bem como o interesse, sendo o caso, da paz e harmonia da família conjugal constituída pelo pretenso pai, a que se junta o argumento de que as acções de investigação visam frequentemente fins tão-só patrimoniais (de «caça à herança»).

Começando por este último, também ele não pode deixar de ser visto a outra luz. Se já anteriormente não era claro que acções antigas fossem necessariamente intentadas contra honestos cidadãos, com uma finalidade de cobiça, é certo que, hoje, quer o acesso ao direito quer a composição da riqueza mudaram, podendo mesmo muitas acções que poderiam beneficiar da imprescritibilidade decorrer hoje, provavelmente, entre autores e réus com meios de fortuna não muito diversos, com formação profissional e um emprego - Guilherme de Oliveira (ob. cit., pág. 11, nota 14) pergunta mesmo: «Seria concebível, nas leis contemporâneas, ler: "O filho ilegítimo [...] presume-se pobre, salvo prova em contrário"», como se lia no artigo 44.º, do Decreto 2, de 1910?". E o móbil do investigante pode bem ser apenas esclarecer a existência do vínculo familiar, chamar o progenitor a assumir a sua responsabilidade e descobrir o lugar no sistema de parentesco para deixar de estar só. Isto, mesmo em momentos em que não tenha pretensões patrimoniais, por não poder deduzir pretensões de natureza alimentar e não ter ainda previsivelmente expectativas

sucessórias.

Acresce que o argumento se situa num plano predominantemente patrimonial, não podendo ser decisivo ante o exercício de uma faculdade personalíssima, constituinte clara da identidade pessoal, como a de averiguar quem é o seu progenitor. Pode, aliás, deixar-se em aberto a questão de saber se a motivação, também patrimonial, da família do pretenso progenitor merece maior apreço do que a do investigante quando aquela pretende «proteger» a herança à protecção deste último, por se afigurar decisiva a impossibilidade de anular totalmente a possibilidade de exercer o «direito pessoal» a conhecer o progenitor, a partir dos vinte anos, com invocação de uma tal motivação de segurança patrimonial. Perante esta diferença, verdadeiramente qualitativa, dos interesses em presença, afigura-se, aliás, difícil que se possa sindicar a motivação do investigante - e, de toda a forma, se a motivação censurável pode fundar limitações em casos extremos (a aplicação do instrumento do abuso do direito ou de outro remédio expressamente previsto), não legitimará por certo uma exclusão geral e total do direito

a investigar a paternidade.

Poderá aceitar-se que o argumento da segurança possa eventualmente justificar um prazo de caducidade da investigação de paternidade. Mas o certo é que no presente caso está apenas em causa o concreto prazo previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, que conduz à caducidade da acção logo a partir dos vinte anos de idade.

17 - Quanto ao interesse do pretenso progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada a dúvida quanto à sua paternidade, não pode, desde logo, deixar de observar-se que, se o que está em questão é realmente a incerteza quanto à paternidade, esta pode hoje, com grande segurança, ser logo eliminada, com a concordância do próprio pretenso progenitor que nisso estiver realmente interessado, bastando, para tal, aceitar a realização de um vulgar teste genético de paternidade.

Não deve sobrevalorizar-se, no confronto com bens constitutivos da personalidade, a garantia de «segurança jurídica», que releva sobretudo no âmbito patrimonial. Note-se que a ordem jurídica não mostra uma preocupação absoluta com a segurança patrimonial dos herdeiros reconhecidos do progenitor, podendo qualquer herdeiro preterido intentar acção de «petição da herança», a todo o tempo, com sacrifício de quem tiver recebido os bens (artigo 2075.º do Código Civil).

E, de qualquer modo, pode duvidar-se de que o pretenso progenitor mereça uma protecção da segurança da sua vida patrimonial que justifique a regra de exclusão do direito do investigante, logo a partir dos vinte anos e sem consideração de outras circunstâncias, a saber que é o seu pai. É que não pode conceder-se a uma certeza ou segurança patrimonial de outros filhos, ou do pretenso progenitor, relevância decisiva para excluir o direito, eminentemente pessoal e que integra uma dimensão fundamental da personalidade, a saber quem é o pai ou a mãe biológicos.

Na verdade, afigura-se que a pretensão de satisfazer, através do sacrifício do direito do filho a saber quem é o pai, um puro interesse na tranquilidade - em "ser deixado em paz" - ou na eliminação rápida de dúvidas - em resolver o assunto - não é digna de tutela, se se tratar realmente do progenitor. Este tem uma responsabilidade para com o filho que não deve pretender extinguir pelo decurso do tempo, logo que aquele completa 20 anos, pela simples invocação de razões de segurança, confiança ou comodidade. E se, diversamente, não se tratar do verdadeiro progenitor, pode, como se disse, submeter-se a um teste genético sem nada a temer. Retomando as palavras de Guilherme de Oliveira (ob. cit., pág. 10), «se o suposto progenitor julga que é o progenitor, está nas suas mãos acabar com a insegurança - perfilhando - e se tem dúvidas pode mesmo promover a realização de testes científicos que as dissipem; se, pelo contrário, não tem a consciência de poder ser declarado como progenitor, não sente a própria insegurança. E se for um dia surpreendido pelas consequências de um «acidente» passado há muito tempo, dir-se-á que tem sempre o dever de assumir as responsabilidades, porque mais ninguém o pode fazer no lugar dele."

Também a circunstância, aduzida em defesa do regime actual, de o estabelecimento da filiação alegadamente dever ter lugar quando é mais necessário, e pode ser mais útil para o filho, não pode considerar-se decisiva, desde logo, porque - mesmo aceitando a lógica «assistencial» deste argumento - o dever de prestação de alimentos pelos pais aos filhos se prolonga bem para além da maioridade. E, de qualquer forma, a apreciação da conveniência em determinar a identidade do seu progenitor, como elemento da sua identidade pessoal, corresponde a uma faculdade eminentemente pessoal, em que apenas pode imperar o critério do próprio filho, e não qualquer «interpretação» externa do seu interesse ou utilidade deste na investigação da

paternidade.

E também não se vê que possa só por si a protecção do interesse na paz e harmonia da família conjugal que pode ter sido constituída pelo pretenso pai, considerar-se decisiva.

Ao que acresce especificamente, ainda, que o investigado casado não deve ou pode seguramente receber, por esse facto, maior protecção contra potenciais investigantes do que o solteiro. Tal tratamento desigual baseia-se numa circunstância irrelevante para o fim visado pelo investigante, com a acção de investigação de paternidade, para além de tais limitações específicas ao direito de agir contra supostos progenitores casados (ao tempo do nascimento ou apenas no momento do reconhecimento), embora com antecedentes no nosso sistema jurídico, se traduzirem em efeitos discriminatórios, constitucionalmente vedados, contra os filhos concebidos fora do casamento.

É certo que o investigado poderá também invocar direitos fundamentais, como o «direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar» (ou, mesmo, também, como se disse, o direito ao desenvolvimento da personalidade), que poderão ser afectados pela revelação de factos que o possam comprometer. Não se vê, porém, que se possa proteger tais interesses do eventual progenitor à custa do direito de investigar a própria paternidade. Uma alegada «liberdade-de-não-ser-considerado-pai», apenas por terem passado muitos anos sobre a concepção, ou um interesse em eximir-se à responsabilidade jurídica correspondente, determinada fundamentalmente pelo «princípio da verdade biológica» que inspira o nosso direito da filiação, não podem considerar-se dignos de tutela, pelo menos, a ponto de sacrificar o direito do filho a apurar e ver judicialmente declarado que é o seu pai (e lembre-se, aliás, que como se disse, não é de excluir que se possa chegar, mesmo fora de um processo judicial, mediante exames realizados no próprio Instituto Nacional de Medicina Legal, à conclusão de que certa pessoa é progenitora de outra, ficando, porém, a verdade biológica sem relevância simplesmente porque o progenitor não pretende perfilhar e o

filho já completou vinte anos).»

A desvalorização de todas as referidas razões que vinham justificando a previsão legal de limites temporais, relativamente ao exercício do direito de investigação e reconhecimento de paternidade, e a ausência de quaisquer outras razões reportadas a outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, determinou que se começasse a considerar insustentável continuar a alegar a não inconstitucionalidade dos prazos de caducidade estabelecidos nos artigos 1817.º e 1873.º do Código Civil (Vide, neste sentido Guilherme de Oliveira, em "Caducidade das acções de investigação", in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume I, pág. 57-58, J. P. Remédio Marques, em "Caducidade de acção de investigação da paternidade fundada no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil", in Jurisprudência Constitucional, n.º 4, Out-Dez 2004, p. 42, e Jorge Duarte Pinheiro, em «Direito da Família e das Sucessões», pág. 149 e seg., da 3.ª Edição, da

AAFDL).

Todavia, o prazo especial previsto no n.º 3, do artigo 1817.º, do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, apresenta uma diferença assinalável relativamente ao prazo-regra outrora consagrado no n.º 1 do mesmo artigo, quando aplicável às acções de investigação da paternidade.

Diversamente do que sucedia com o prazo-regra declarado inconstitucional, que começava a correr inexorável e ininterruptamente desde o nascimento do filho e se podia esgotar integralmente sem que o mesmo tivesse qualquer justificação para a instauração da acção de investigação de paternidade contra o pretenso pai, o prazo especial, ora sob análise, apenas começa a correr a partir do momento em que o investigante - com mais de vinte anos de idade - conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito de pai, o que, em princípio, viabilizará a instauração da acção de investigação de paternidade a todo o tempo ainda que sujeita à referida limitação

temporal.

Não estamos aqui perante um prazo "cego", que começa a correr independentemente de poder haver qualquer justificação para o exercício do direito pelo respectivo titular, como sucede com o prazo estabelecido no n.º 1, do artigo 1817.º, do C.C., mas sim perante um prazo cujo início de contagem coincide com o momento em que o titular do direito tem conhecimento do facto que o motiva a agir.

Nesta situação, pelo menos o direito à segurança jurídica, nomeadamente o direito do pretenso progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza quanto à sua paternidade, justifica que se condicione o exercício do direito do filho à investigação da paternidade, através do estabelecimento de um prazo para o

accionar.

Na verdade, tendo o titular deste direito conhecimento dos factos que lhe permitem exercê-lo é legítimo que o legislador estabeleça um prazo para a propositura da respectiva acção, após esse conhecimento, de modo a que o interesse da segurança jurídica não possa ser posto em causa por uma atitude desinteressada daquele.

O estabelecimento de um prazo de caducidade para o exercício do direito à investigação de paternidade nestes casos, revela-se, em abstracto, uma limitação adequada, necessária e proporcional deste direito, para satisfação do interesse da segurança jurídica, como elemento essencial de Estado de Direito (artigo 2.º, da

C.R.P.).

Contudo, para além do modo como se processa a contagem desse prazo, importa também saber se este permite, em concreto, o exercício do direito em tempo útil, ou se, pelo contrário, é de tal modo exíguo que inviabiliza ou dificulta gravemente esse exercício, tornando-se numa verdadeira restrição ao conteúdo daquele direito fundamental (Vide, fazendo este juízo, os Acórdãos n.º 140/94, 70/2000 e 247/2002, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

O prazo de caducidade de 6 meses em apreço, ainda que estabelecido relativamente à existência de um documento escrito no qual o pretenso pai reconhece inequivocamente a sua paternidade, apresenta-se objectivamente exíguo para efeito de serena avaliação e ponderação de todos os factores que podem condicionar a difícil tomada de decisão de investigar a paternidade por parte de quem até então não tinha quaisquer razões, ou pelo menos razões sérias, que justificassem a propositura de uma acção de investigação da paternidade contra uma determinada pessoa na qualidade de pretenso pai.

É óbvio que não se partirá imediata e directamente da descoberta do escrito de pai para a propositura da acção de investigação de paternidade, havendo, assim, que contar com tempos razoáveis para a habituação do filho com a revelação da novidade da pretensa ascendência biológica, para as necessárias tentativas de aproximação e de estabelecimento de contactos com o pretenso pai, para a eventual necessidade de superação da atitude de rejeição do reconhecimento da paternidade adoptada pelo pretenso pai, para a informação e patrocínio judiciários e, finalmente, para a assunção da decisão de estabelecer a paternidade pelos meios jurisdicionais, sendo certo que a caducidade relativa aos direitos indisponíveis em presença apenas é impedida pela instauração da própria acção de investigação.

A decisão de avançar para o estabelecimento da ascendência biologicamente verdadeira convoca uma reflexão prévia e profunda sobre aspectos pessoalíssimos da pessoa humana - e, secundariamente, também de ordem social e patrimonial - que não é seguramente compatível com a exigência legal do seu exercício judicial no prazo de 6 meses a contar do conhecimento da existência de escrito de pai.

Aliás, a lei civil portuguesa está bem provida de exemplos de previsão de prazos subjectivos de caducidade mais dilatados relativamente ao exercício de direitos de conteúdo estritamente patrimonial, sem a indiscutível ressonância ética inerente às acções de filiação, que revelam a exiguidade do prazo previsto para a investigação da

paternidade, designadamente:

Prevê-se um prazo de um ano para pedir a anulação dos negócios (artigo 287.º, n.º 1,

do C.C.);

Prevê-se um prazo de um ano para o doador revogar a doação por ingratidão do

donatário (artigo 976.º, n.º 1, do C.C.);

Prevê-se o prazo de um ano para o possuidor para pedir a restituição da posse (artigo

1282.º, n.º 1, do C.C.);

Prevê-se o prazo de dez anos para o sucessível aceitar a herança (artigo 2059.º, n.º 1,

do C.C.);

Prevê-se um prazo de dois anos para o interessado anular o testamento (artigo 2308.º,

n.º 2, do C.C.).

Regista-se também que a recente Lei 13/2009, de 1 de Abril, veio alterar o prazo ora sob análise de 6 meses para 3 anos, reconhecendo implicitamente a manifesta

exiguidade daquele.

Atentas as ponderações efectuadas conclui-se que o referido prazo de 6 dificulta de tal modo o exercício do direito à investigação de paternidade que resulta numa verdadeira restrição a este direito fundamental, não se revelando que o peso do interesse da segurança jurídica do investigado exija a imposição de tal dificuldade ao investigante, sendo por isso a duração de tal prazo claramente desproporcionada.

Assim sendo, importa concluir que a norma constante do n.º 3, do artigo 1817.º, do C.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei 496/77, quando interpretada no sentido de estabelecer um limite temporal de 6 meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade, para o exercício do direito de investigação da paternidade, padece de inconstitucionalidade material, por violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição, por consagrar uma restrição desproporcionado ao direito fundamental ao conhecimento dos ascendentes biológicos.

Mostrando-se alcançado o anterior juízo negativo de constitucionalidade, torna-se desnecessário o confronto da interpretação normativa desaplicada com outros parâmetros constitucionais que o presente recurso poderia suscitar, nomeadamente com o direito a constituir família consagrado no artigo 36.º, n.º 1, da Constituição.

Decisão

Pelo exposto, decide-se:

a) Não conhecer do recurso na parte em que o mesmo tem por objecto a norma constante do n.º 4, do artigo 1817.º, do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei

n.º 21/98, de 12 de Maio;

b) Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma constante do n.º 3, do artigo 1817.º, do Código Civil, na redacção conferida pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, quando interpretado no sentido de estabelecer um limite temporal de 6 meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade, para o exercício do direito de investigação da

paternidade;

c) E, consequentemente, confirmar o juízo de inconstitucionalidade adoptado na decisão recorrida, relativamente a esta norma, negando desta forma provimento ao

recurso.

Sem custas.

Lisboa, 2 de Dezembro de 2009. - João Cura Mariano - Benjamim Rodrigues - Joaquim de Sousa Ribeiro - Rui Manuel Moura Ramos. Assim revendo, após melhor estudo, a posição assumida em sede de conhecimento no Acórdão 579/2009, da

1.ª Secção.

202782978

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2010/01/18/plain-268359.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/268359.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1977-11-25 - Decreto-Lei 496/77 - Ministério da Justiça

    Revê o Código Civil aprovado pelo Decreto Lei 47344, de 25 de Novembro, nos domínios, e quanto à parte geral, do direito internacional privado, fixação da maioridade, regime do domicílio legal dos menores e aquisição da personalidade jurídica das associações. Revê ainda, no direito da família, a disciplina do casamento (e do divórcio), da filiação, da adopção e dos alimentos e, no direito sucessório, a posição do cônjuge sobrevivo.

  • Tem documento Em vigor 1998-05-12 - Lei 21/98 - Assembleia da República

    Altera o Código Civil, aprovado pelo Dec Lei 47344, de 25-Nov de 1966.

  • Tem documento Em vigor 2006-02-08 - Acórdão 23/2006 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante.

  • Tem documento Em vigor 2009-04-01 - Lei 13/2009 - Assembleia da República

    Altera (sétima alteração) o Decreto-Lei n.º 125/82, de 22 de Abril, que regula a composição, competência e regime de funcionamento do Conselho Nacional de Educação.

  • Tem documento Em vigor 2009-04-01 - Lei 14/2009 - Assembleia da República

    Altera os artigos 1817.º e 1842.º do Código Civil sobre investigação de paternidade e maternidade.

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