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Acórdão 320/2016, de 22 de Junho

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma constante do artigo 16.º, n.º 1, da Portaria n.º 385/2004, de 16 de abril (aprova a tabela de honorários e encargos da atividade notarial)

Texto do documento

Acórdão 320/2016

Processo 107/2014

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional I. Relatório

1 - Manuel Fontoura Carneiro e outros, Notários de profissão, impugnaram junto do Tribunal Tributário de Lisboa os indeferimentos dos pedidos, que haviam apresentado ao Instituto de Gestão Financeira e de Infraestruturas da Justiça, de revisão oficiosa das autoliquidações de tributos efetuadas ao abrigo do disposto no artigo 16.º da Portaria 385/2004, de 16 de abril. Pediam os impugnantes, além a anulação dos atos impugnados, a restituição dos montantes pagos bem como o recebimento dos respetivos juros.

A 30 de novembro de 2012 julgou o Tribunal Tributário de Lisboa improcedente a impugnação, absolvendo a entidade demandada (o Instituto de Gestão Financeira e de Infraestruturas da Justiça; adiante IGFIEJ). Inconformados, recorreram Manuel Fountoura Carneiro e outros para o Tribunal Administrativo Central Sul, alegando, nas conclusões do respetivo recurso, que

«

A. O tributo previsto no artigo 16.º, n.º 1, da Portaria 385/2004, de 16 de abril, é manifestamente [...] inconstitucional, pelo que deve a sentença recorrida ser revogada na íntegra.

[...] E. No que respeita aos sistemas de comunicação, de tratamento e de armazenamento da informação do Ministério da Justiça - que seria, nos termos do artigo 16.º da Portaria 385/2004, uma contraprestação pública enquadrada na taxa em causa-, a inconstitucionalidade é evidente, visto que o Estado nunca conferiu aos Notários o acesso a qualquer sistema que justificasse o pagamento de uma taxa.

F. A utilização dos sistemas que, no entender do Secretário de Estado da Justiça, justifica o pagamento do tributo só foram disponibilizados muitos anos depois do início do pagamento do tributo e, o que é mais grave, são disponibilizados gratuitamente [sublinhado no original] a todos os cidadãos e empresas.

G. Ou se considera que as quantias previstas no artigo 16.º da Portaria 385/2004 são também imputáveis à utilização desse serviços ou sistemas (o que apenas se admite por dever de patrocínio e não resulta da factualidade assente) e então a taxa é inconstitucional por violação grosseira do princípio da igualdade, ou não se considera que tais quantias são imputáveis à utilização desses serviços, e então a taxa não terá qualquer causa ou serviço concreto que a justifique, e será consequentemente um imposto, logo, inconstitucional por violação do princípio da legalidade fiscal, previsto no artigo 165.º, 1, alínea i), da CRP.

H. Não há forma de escapar a um dos vícios sem cair no outro, ou então mais vale assumir, parafraseando o nome de um livro de Gomes Canotilho, que os princípios constitucionais nem sempre são para ser tomados a sério.

I. O próprio Governo que, reconhecendo tardiamente a iniquidade desta suposta “taxa”, procedeu à sua revogação, pela Portaria 574/2008, de 4 de julho.

J. No que diz respeito aos Serviços de Auditoria e Inspeção, que também se encontram elencados no artigo 16.º da Portaria, também aqui não há qualquer prestação de serviços, pelo que, também nesta parte, a “taxa” do artigo 16.º da Portaria 385/2004 não consubstancia um tributo causal, mas um verdadeiro imposto “travestido” de taxa, que, nos termos da Constituição, só poderia ser criado por Lei da Assembleia da República, violando-se assim o artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental.

K. Na parte que se reporta aos serviços de auditoria e inspeção, esta taxa, se não for - como parece - puramente artificial, destina-se, ao máximo, a financiar as estruturas orgânicas do Estado dedicadas a tais serviços, se é que elas existem, sendo que este financiamento torna o tributo num imposto (ac. do TC n.º 473/99).

L. Tal como a inspeção tributária não justifica o pagamento de uma taxa aos potenciais inspecionados, também a inspeção dos notários não o pode justificar.

M. A suposta utilização do Arquivo Público também não justifica o pagamento de uma taxa, visto que a guarda e conservação do arquivo material é um dever dos notários, tal como dispõe a alínea m) do n.º 2 do artigo 4.º do Código do Notariado.

N. Pretender cobrar uma taxa aos Notários pela utilização do arquivo notarial tem a mesma lógica do de cobrar uma taxa aos Tribunais por estes guardarem e utilizarem os processos judiciais ou às entidades particulares certificadoras da inspeção automóvel por guardarem os processos administrativos.

O. Se a referência a “arquivo público” constante do artigo 16.º da Portaria dissesse (também ou apenas) respeito ao acervo documental que constava dos cartórios notariais públicos que foram objeto do processo de privatização e que ficaram à guarda dos Notários privados, vislumbrar-se-iam duas inconstitucionalidades:

a primeira, resultante da cumulação das despesas no património do particular (do Notário), da despesa com a taxa e da despesa com a manutenção do Arquivo, em grosseira violação do princípio da proporcionalidade (artigo 266.º 2, da CRP); a segunda, resultante de, também aqui, nesta parte do Arquivo Público, não haver qualquer prestação de serviço público. P. Uma demonstração de que esta “taxa” é um imposto (uma “taxa” desligada de qualquer utilização especial de um serviço público) é o modo e critério do apuramento do seu valor, pois recai sobre todos os Notários, independentemente de qualquer outro facto.

Q. Mesmo que assim não se considere (o que se não vê como), a taxa em apreço sempre seria manifesta e gritantemente desproporcional - e é tanto mais desproporcional quanto mais se desse por inexistentes as diferentes causas que supostamente a justificam, elencadas no artigo 16.º da Portaria 385/2004.

R. Se o Governo criou uma taxa devida supostamente por três contraprestações públicas e lhes fez corresponder um montante proporcional de € 10 por cada escritura e de €3 por cada um dos demais atos que o Notário pratica, essa taxa é inevitavelmente inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, mesmo que afinal se constate que afinal há uma contraprestação pública - não se vê qual-, então os montantes em causa, estabelecidos para as três contraprestações, são necessariamente desajustados à realidade, pecando por excesso.

S. A desproporcionalidade elimina ou desvirtua a correspectividade inerente ao conceito de taxa, de onde se conclui que o tributo em causa nos autos constitui um imposto

»

.

2 - Por Acórdão datado de 12 de dezembro de 2013, decidiu o Tribunal Central Administrativo Sul negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.

Desta decisão recorreram os impugnantes para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 25/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, doravante LTC), pedindo que o Tribunal apreciasse a inconstitucionalidade (

«

orgânica

» e
«

material

»

) da norma constante do artigo 16.º, n.º 1, da Portaria 385/2004, de 16 de abril, por violação dos princípios constitucionais da legalidade tributária [artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP], da igualdade (artigo 13.º), da proporcionalidade (artigos 18.º e 266.º, n.º 2), da proteção da confiança (artigo 2.º), da equivalência jurídica e económica (artigo 13.º) e da capacidade contributiva (arti-gos 13.º e 104.º).

Já no Tribunal Constitucional foi proferido o Acórdão 48/2015, em que, ao abrigo das disposições conjugadas dos n.os 1, 3 e 4 do artigo 78.º-A da LTC, se decidiu revogar a decisão sumária reclamada - que não conhecera do objeto do recurso por falta de indicação da

«

norma

» impugnada - e, em consequência, ordenar o prosseguimento dos autos.

3 - Notificados deste Acórdão, apresentaram alegações os recorrentes e contraalegou, na qualidade de recorrido, o IGFIEJ.

Retomaram os primeiros, fundamentalmente, os argumentos que já haviam apresentado, em recurso, perante o Tribunal Administrativo Sul. Apesar do nomen que lhe havia sido conferido pelo legislador, o tributo em causa não configurava uma verdadeira taxa, correspondendo antes a um imposto. A sua criação por via de regulamento administrativo seria portanto inconstitucional, uma vez que violaria a reserva de lei parlamentar exigida para a criação dos impostos e para a definição dos seus elementos essenciais, nos termos conjuntos dos artigos 165. º, n.º 1, alínea i) e 103.º, n.º 2, da CRP. E assim seria - continuaram os recorrentes - por se não poder encontrar qualquer correspectividade ou sinalagmaticidade entre os serviços públicos identificados pela norma impugnada (acesso ao sistema de comunicação, tratamento e armazenamento de informação do Ministério da Justiça; utilização do Arquivo Público e serviços de auditoria e inspeção) e a atividade profissional desenvolvida pelos Notários. Quer por esses serviços não existirem ou nunca terem chegado a ser criados, como sucederia com o

«

sistema integrado de informações

» do Ministério da Justiça, quer por não justificarem em si mesmos a imposição de uma contrapartida a título de taxa, como sucederia tanto com o Arquivo Público - cujos custos de conservação e manutenção correriam já, em certa parte, por conta dos próprios Notários - quanto com os serviços de auditoria e de inspeção, que, assim globalmente considerados, não poderiam ser tidos como uma contrapartida individual e concreta, que fosse proporcionada aos profissionais do notariado pela prestação especial e dividida de um certo e determinado serviço público.

Mais acrescentaram que, quanto aos serviços de informação já existentes e já disponibilizados -

«

registos on line

»

,

«

empresa on line

»

,

«

cer-tidão permanente

» e
«

automóvel on line

»

- o seu acesso em condições de gratuitidade seria garantido a advogados, solicitadores, advogados, empresas e cidadãos. Não existindo, ostensivamente, qualquer

«

bilate-ralidade

» ou correspectividade entre a atividade dos sujeitos passivos da
«

taxa

» e a prestação destes serviços, o caráter oneroso que o seu acesso teria apenas para o grupo profissional dos Notários configuraria portanto um tratamento desigual ou discriminatório, não permitido pelos artigos 13.º e 266.º, n.º 2, da CRP. Além disso, e ainda que se não concordasse com os argumentos anteriores, a manifesta desproporção existente entre o [contestado] acesso aos serviços disponibilizados aos Notários e o montante da
«

taxa

» que lhes seria exigida como
«

contra-partida

»

- € 10 por cada escritura, €3 por cada um dos demais atos praticados - sempre transformaria o tributo em causa em verdadeiro imposto, apesar da designação que lhe havia sido dada pela portaria. Negando-se assim a sua natureza de taxa, demonstrada ficaria a inconstitucionalidade da sua criação, visto deverem ser os impostos instituídos por lei parlamentar [artigo 165.º n.º 1, alínea i) da CRP].

Terminaram os recorrentes, alegando ainda que a norma constante do artigo 16.º, n.º 1, da Portaria 385/2004, de 16 de abril, violava também os princípios da proteção da confiança (artigo 2.º da CRP) e da capacidade contributiva (artigos 13.º e 104.º da CRP). Quanto à primeira alegação, sustentaram que o Estado, ao omitir, durante anos, a oneração do acesso de todos os cidadãos aos serviços disponíveis on line, criara a legítima expectativa de que essa gratuitidade permaneceria também para os Notários; que estes tinham boas razões para crer que tal sucederia e que haviam traçado projetos de vida dependentes na sua confiança na manutenção do Direito; e que se não vislumbravam razões de interesse público que, em ponderação, justificassem a

«

descontinuidade

» do
«

comportamento

» estadual. Quanto à segunda alegação, sustentaram basicamente os recorrentes que, sendo os Notários já tributados nos termos do artigo 104.º n.º 1, da CRP, a previsão de um novo tributos sobre os seus rendimentos configuraria uma dupla tributação, que, por exceder manifestamente a capacidade contributiva dos sujeitos passivos da dita
«

taxa

»

, implicaria a violação do princípio resultante da leitura combinada dos artigos 13.º e 104.º da CRP. Contraalegou o IGFIEJ, sustentando basicamente que o nomen dado pelo legislador ao tributo em causa correspondia, no caso, à sua substân-cia. Recordando a distinção conceitual entre imposto e taxa, concluiu que o n.º 1 do artigo 16.º da Portaria 385/2004 criava verdadeiramente uma taxa, uma vez que dele decorria

«

que as quantias pagas ao abrigo do mesmo consubstancia[riam] uma contraprestação (bilateralidade) pelo acesso aos sistemas de comunicação, tratamento e armazenamento da informação do Ministério da Justiça, pela utilização do Arquivo Público e pelos serviços de Auditoria e Inspeção

»

, uma vez que

«

o tributo em questão [seria] devido pela utilização global dos sistemas e serviços

»

, o que tornaria juridicamente irrelevante o facto de esses mesmos serviços não terem sido imediatamente disponibilizados, e de o acesso a eles só ter sido assegurado de forma progressiva.

Além disso, alegou o recorrido IGFIEJ que não ocorria no caso, e no que ao acesso a estes serviços dizia respeito, qualquer tratamento desigual ou discriminatório dos profissionais do notariado, uma vez que a diferença especifica da intervenção destes últimos - a garantia da fé pública - justificava que

«

o benefício, ou utilidade, que os notários retiram da prestação dos serviços em causa [seja] superior ao dos restantes cidadãos

»

. Do mesmo modo, entendeu não estar demonstrada a manifesta desproporção entre a taxa prevista no artigo 16.º da Portaria 385/2004 e o benefício retirado, ou possível de retirar, do acesso aos serviços identificados no mesmo preceito. Por tudo isto concluiu que não haveria, in casu, qualquer motivo que justificasse a censura constitucional da norma impugnada.

II - Fundamentação

4 - A Portaria 385/2004, de 16 de abril, que aprova a tabela de honorários e encargos aplicável à atividade notarial exercida ao abrigo do Estatuto do Notariado, determina, no seu artigo 16.º (Ministério da Justiça) 1 - Pelo acesso aos sistemas de comunicação, de tratamento e de armazenamento da informação do Ministério da Justiça, pela utilização do Arquivo Público e pelos Serviços de Auditoria e Inspeção, o notário por sua conta entrega ao Ministério da Justiça:

a) Por cada escritura-E 10;

b) Por cada um dos demais atos que pratica-E 3.

2 - A receita proveniente da cobrança a que se referem o número anterior e o artigo 15.º será depositada mensalmente até ao dia 10 do mês seguinte àquele a que a conta encerrada disser respeito, à ordem do Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial, do Ministério da Justiça.

A questão de saber se o tributo que esta norma impõe aos Notários corresponde à figura conceptual da taxa ou do imposto constitui o problema nuclear que o presente recurso coloca ao Tribunal. No entanto, e apesar da sua centralidade, a discussão em torno da

«

natureza

» do tributo não pode redundar em uma estrita disputa conceitual, alheia, naturalmente, à competência própria da jurisdição constitucional. Cabendo a esta última a administração da justiça em matérias jurídicoconstitucionais, interes-sará por isso, e antes do mais, esclarecer por que motivo a controvérsia sobre a qualificação jurídica do tributo, criado pela norma sob juízo, se ergue em problema primeiro da decisão a tomar - decisão essa que, por ser precisamente de ordem jurídicoconstitucional, não pode ser obtida por intermédio da simples evocação das definições dadas pela lei ordinária aos conceitos de
«

imposto

» e de
«

taxa

»

(artigo 4.º, n.os 1 e 2 da Lei Geral Tributária), e pela consequente subsunção do caso a estas definições legais. Assim, e para o método a seguir na fundamentação do juízo, determinante será a dilucidação, não dos conceitos legais de imposto e de taxa, mas dos correspondentes conceitos constitucionais; como determinante é o esclarecimento das razões pelas quais a resolução do problema depende da correspondência do tributo criado pela norma impugnada a um ou outro destes conceitos.

Ora estas questões, assim equacionadas, têm sido consabidamente abordadas e resolvidas pelo Tribunal, num lastro de jurisprudência que remonta praticamente ao início da sua atividade.

Nos Acórdãos n.os 348/86, 76/88, 497/89, 1108/96, 558/98, 621/98, 369/99, 370/99, 473/99, 410/2000, 515/2000, 346/2001, 143/2002, 336/2002, 415/2002, e 610/2003, por exemplo, o Tribunal definiu e sedimentou quanto a elas um sistema hermenêutico que pode ser resumido em cinco pontos fundamentais.

Em primeiro lugar (i), e quanto ao conceito constitucional de imposto, disse-se sempre que o seu traço distintivo residiria na característica da unilateralidade. O imposto seria assim a prestação coactivamente exigida pelo Estado (ou por outros entes públicos) em ordem à prossecução de uma finalidade pública geral (maxime, financeira), destituída de natureza sancionatória e à qual não correspondesse qualquer contrapartida específica. (ii) diversamente, a característica distintiva da taxa resultaria da sua estrutural bilateralidade. Esta categoria de tributos seria identificada por, nelas, a prestação do particular a favor do Estado (ou de demais entes públicos) dever corresponder sempre à contraprestação de uma certa atividade pública (do Estado ou dos demais entes públicos) especialmente dirigida ao mesmo particular, sujeito passivo da imposição do tributo.

Em terceiro lugar (iii), a jurisprudência sublinhou que se deveria entender que o

«

sistema fiscal

»

- cujos traços gerais a CRP desenha nos artigos 103.º e 104.º-era, essencialmente, o sistema dos impostos. Os impostos, que não as taxas (aliás somente identificadas no texto da constituição após 1997), estariam sujeitos aos princípios formais, da legalidade e da tipicidade, contidos no artigo 103.º Os impostos, que não as taxas, estariam sujeitos aos princípios substanciais, orientadores do sistema fiscal, consagrados no artigo 104.º A criação dos impostos, que não a das taxas, estaria sujeita à reserva de lei parlamentar prevista na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º

No entanto (iv), o nomen atribuído pelo legislador a um certo tributo (pelo mesmo legislador criado como

«

imposto

» ou
«

taxa

»

), não poderia deixar de se sujeitar ao escrutínio da jurisdição constitucional. Sendo a exigente disciplina da CRP reservada aos impostos - que só para a sua criação previra, de acordo com um princípio matricial do constitucionalismo [no taxation without representation], a reserva de lei parlamentar - não poderia o Tribunal deixar de controlar se a qualificação formal de taxa - dada pelo legislador (empregando o termo em sentido lato) a um certo tributo, por ele criado - corresponderia ou não ao sentido substancial que a Constituição lhe dava. É que, a não ser assim, poderia bem acontecer que o mesmo legislador impusesse sob as vestes de taxas obrigações que, partilhando embora a natureza dos impostos, se furtariam na sua criação às exigências da tipicidade (ar-tigo 103.º) e da reserva de lei parlamentar [artigo 165.º, n.º 1, alínea i)]. Impedir que tal ocorresse era, portanto, parte integrante das competências próprias do Tribunal.

Finalmente, (v), para levar a cabo tais competências, ou para poder determinar com rigor qual a natureza substancial de certo tributo, o Tribunal desenvolveu dois testes, decorrentes de toda a jurisprudência que acima se referiu. De acordo com o primeiro teste, qualquer tributo que fosse formalmente identificado pelo seu autor como

«

taxa

»

, mas no qual se não vislumbrasse nenhuma bilateralidade ou sinalagmaticidade - isto é, no qual se não identificasse qualquer atividade do ente público, titular ativo da relação tributária, que, sendo especialmente dirigida ao sujeito passivo dessa mesma relação, justificasse a imposição do tributo enquanto contraprestação da atividade pública desenvolvida-, seria qualificado, para efeitos constitucionais, como imposto, com as consequências jurídicas daí decorrentes. Por seu turno, e de acordo com o segundo teste, qualquer tributo, formalmente identificado pelo seu autor como

«

taxa

»

, mas através do qual se exigisse ao sujeito passivo da relação tributária uma prestação pecuniária que, pelo seu montante, se mostrasse ostensivamente desproporcionada face ao benefício obtido pelo particular em virtude da atividade pública que lhe fora especialmente dirigida, mereceria, igualmente, censura jurídicoconstitucional, por extravasar da noção substancial de taxa, decorrente da CRP.

5 - No entanto, o Tribunal foi claro em advertir que o modo de aplicação destes dois testes aos casos concretos não poderia nunca radicar-se numa conceção estrita (ou privatística) de

«

sinalagmaticidade

» ou
«

bilateralidade

»

.

Assim, e em relação à equivalência - existente entre a utilidade obtida pelos privados graças à atividade pública que lhes fosse especialmente dirigida e o montante da taxa paga em sua contrapartida - sempre se disse que

«

[...] a qualificação como taxa de um dado tributo não depende da verificação de uma equivalência económica rigorosa entre o valor do serviço e o montante da quantia a prestar pelo utente desse serviço. [...] O que é exigível é que, de um ponto de vista jurídico, o pagamento do tributo tenha a sua causa e justificação - material, e não meramente formal - na perceção de um dado serviço [pois] é esta a fundamentação que justifica a subtração das taxas ao princípio da lega-lidade..[...] Assim, não basta uma qualquer desproporção entre a quantia a pagar e o valor do serviço prestado, para que ao tributo falte o caráter sinalagmático. Será necessário que essa desproporção seja manifesta e comprometa, de modo inequívoco, a correspectividade pressuposta na relação sinalagmática.

»

E ainda:

«

Encontra-se implícita, nesta conceção, que a aferição do montante da taxa não decorre tanto do seu “custo” mas, essencialmente, da utilidade que do serviço se extrai.

»

(Acórdão 115/2002, ponto 3.3. e 4.1. Sublinhado no original).

Do mesmo modo sempre se disse, e agora em relação ao próprio conceito de

«

tributo bilateral

»

, que tal não poderia ser confundido com a relação obrigacional e sinalagmática que, sendo necessariamente atual e, por isso, não só individualizável como perfeitamente individualizada, unisse em certo momento um determinado sujeito ativo e um determinado sujeito passivo. A existência de tributos de estrutura bilateral grupal não seria, assim, algo que se situasse fora do conceito constitucional de

«

taxa

»

(Acórdão 410/2000;

José Casalta Nabais,

«

Sobre o regime jurídico das taxas

»

, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 145. º, n.º 3994, SetembroOutubro de 2015, pp. 25-45 [30]). Como se não situaria fora desse conceito a

«

taxa

» devida em função da possibilidade de utilização de um bem público - sem que se exigisse a sua utilização efetiva e atual - desde que se provasse a relação existente entre o tributo devido e a especial utilidade que tal bem teria (no seu acesso efetivo ou potencial) para o particular sujeito passivo da imposição (Acórdão 473/1999, ponto 3.1.). Como finalmente não estaria fora desse conceito o tributo que, sendo a contrapartida da prestação de um serviço, implicasse para o entre público prestador uma receita em parte afetada a financiar os encargos resultantes da manutenção e gestão daquele mesmo serviço. Dizendo de outro modo e evocando as palavras do Acórdão 115/2002 (4.2.):
«

A natureza do tributo, ainda que a correspectividade se medisse apenas em função do custo do serviço, não seria abalada mesmo que no montante a pagar não se repercutisse apenas o custo atomizado do serviço prestado, mas também, o conjunto das despesas inerentes ao funcionamento das entidades que realizam o serviço, recaindo sobre os utentes uma percentagem dos custos globais do funcionamento da respetiva atividade da Administração Pública - sempre sob ressalva da desproporção manifesta

»

.

6 - O Decreto Lei 26/2004, de 4 de fevereiro, aprovou, no uso de uma autorização legislativa, o Estatuto do Notariado.

Com tal aprovação pretendeu, fundamentalmente, o legislador, adotando

«

o sistema do notariado latino

»

, consagrar em Portugal uma nova figura do notário, figura essa que passaria doravante a revestir

«

uma dupla condição, a de oficial, enquanto depositário da fé pública delegada pelo Estado, e a de profissional liberal, que exerce a sua atividade num quadro independente.

»

(Exposição de motivos do decreto-lei). Neste contexto, determina o Estatuto do Notariado que

«

[o] notário é o jurista a cujos documentos escritos, elaborados no exercício da sua função, é conferida fé pública

»

, sendo

«

simultaneamente um oficial público que confere autenticidade aos documentos e assegura o seu arquivamento e um profissional liberal que atua de forma independente, imparcial e por livre escolha dos interessados

»

(artigo 1.º, n.os 1 e 2, do Estatuto). Além disso, sendo ainda, de acordo com o n.º 3 do artigo 1.º do Estatuto,

«

[a] natureza pública e privada da função notarial incindível

»

, o notário está simultaneamente sujeito à fiscalização e ação disciplinar do Ministro da Justiça e dos órgãos competentes da Ordem dos Notários (artigo 3.º), competindolhe em geral

«

redigir o instrumento público conforme a vontade dos interessados, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendoos do seu valor e alcance

»

(artigo 4.º, n.º 1 do Estatutos)

Perante esta condição estatutária, onde avultam, tanto a dupla condição que é hoje marca distintiva da função notarial (função própria de um oficial público que atua de forma independente, como profissional libe-ral), quanto as competências que nessa função vêm incluídas (resumidas em uma competência geral de redigir o instrumento público conforme a vontade dos interessados), duas conclusões há que podem desde já ser retiradas. Em primeiro lugar, uma diferença visível separa nestes domínios os Notários de profissão, por um lado, e os cidadãos, os advogados e solicitadores, por outro. É certo que todos necessitarão de recorrer a serviços prestados pelos sistemas de comunicação, de tratamento e de armazenamento da informação do Ministério da Justiça, estejam esses serviços integrados num só

«

sistema

» ou sejam separadamente fornecidos pelo
«

registo on line

»

,

«

certidão permanente

» ou
«

empresa on line

»

. Mas enquanto para os segundos o acesso à informação assim disponibilizada será instrumental face à atividade profissional desenvolvida (solicitadores e advogados) ou face a qualquer outro fim (cidadãos), para o Notário do acesso à informação disponibilizada dependerá a possibilidade de exercício da própria profissão, que tem, como vimos, como elemento competencial nuclear, o

«

redigir o instrumento público conforme a vontade dos interessados

»

. Sendo hoje o Notário um oficial público que atua como profissional independente, as informações disponibilizadas pelos serviços existentes de justiça constituem - ou recte:

o acesso ou a possibilidade de acesso a essas informações constitui - uma utilidade que lhe será exclusiva, uma vez que é dela que depende o desenvolvimento da própria atividade liberal que o distingue. O core business da atividade notarial depende da existência destes serviços e do acesso do profissional a eles. E depende de forma única e exclusiva, uma vez que o Notário e só o Notário é, nos termos do nosso direito,

«

o jurista a cujos documentos escritos, elaborados no exercício da sua função, é conferida fé pública

»

.

Sendo assim as coisas, nenhuma razão há para que se considere - como o fazem os recorrentes - que o tributo em causa é discriminatório para os Notários, uma vez que só estes pagam para aceder a serviços que os demais cidadãos podem obter gratuitamente. A razão pela qual se pode afirmar que a diferença introduzida pelo direito entre estes dois grupos de pessoas - cidadãos em geral, por um lado, profissionais do notariado, por outro - não configura uma discriminação, ou uma diferença constitucionalmente proibida, está justamente no facto de só os notários de profissão desenvolverem uma atividade independente que, pela sua própria condição e natureza, depende constantemente do acesso ou da possibilidade de acesso à informação prestada. Uma vez que esta profissão, com estas características, não pode ser exercida por um qualquer outro grupo de pessoas, a utilidade que para o Notário detém a prestação desses serviços por parte do Estado não é comparável à utilidade que a mesma pode ter para quem mais quer que seja. O tratamento diferente que é reservado, neste domínio, ao notariado profissional tem assim um fundamento perfeitamente inteligível, pelo que se não pode sustentar que a solução aqui encontrada pelo legislador mereça censura face ao princípio consagrado no artigo 13.º da CRP.

A questão de saber se o tributo imposto pela norma impugnada é, estruturalmente,

«

unilateral

» ou
«

bilateral

» há de resolver-se em harmonia com o que acaba de ser dito. Tal como alegam os recorrentes, a
«

sorte

» dos dois argumentos - o argumento relativo ao caráter igualitário ou discriminatório do tributo, e o outro relativo à sua estrutura bilateral ou unilateral - está estreitamente ligada:

da resposta que se der a um dependerá a resposta que se dará a outro.

Na verdade, se o acesso ou a possibilidade constante de acesso aos serviços públicos prestados pela organização e informação de documentos do Ministério da Justiça tem para o Notário de profissão uma utilidade exclusiva, não compartilhada nem pelo cidadão comum nem por qualquer grupo profissional, parece certo que entre a prestação desse serviço por parte da entidade pública estadual e o referido Notário haverá uma correspectividade tal que será em si mesma bastante para que se descubra no tributo as características de

«

bilateralidade

» e de
«

sinalagmaticidade

» que, como vimos, formam o conceito constitucional de taxa. Aliás, sinal visível de que assim é confere-o o disposto no n.º 2 do artigo 16.º da Portaria, acima transcrito, e que determina o depósito das quantias cobradas a título de
«

taxa

» à ordem do Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial do Ministério da Justiça. A afetação da receita tributária, assim obtida, não à prossecução de uma finalidade pública geral de índole especialmente financeira (como é próprio dos impostos), mas ao património da concreta entidade pública prestadora dos serviços de que são exclusivos beneficiários os profissionais do notariado justifica-se, precisamente, pela estrutura
«

bilateral

» que apresenta a relação que aqui se estabelece entre a atividade do ente público e o seu beneficiário. O facto de essa
«

bilateralidade

» não implicar, necessariamente, a existência a todo o tempo e em qualquer momento de uma relação perfeitamente individualizada entre cada notário, por um lado, e cada serviço prestado pelo administração estadual - seja ele o registo de documentos e de informação disponibilizados pelas estruturas já existentes [v.g.
«

registo on line

»

,

«

empresa on line

»

,

«

certidão permanente

»

,

«

automóvel on line

»

], seja ele o decorrente da existência de um Arquivo Público, ou seja ele, finalmente, o prestado pelos Serviços de Auditoria e Inspeção - é, em si mesmo, irrelevante. Relevante é o facto da existência de tais serviços proporcionar a cada profissional do notariado uma utilidade exclusiva, em virtude da atividade simultaneamente oficial e pública que é marca distintiva da sua condição estatutária. Uma vez que o exercício de tal atividade depende sempre do acesso ou da possibilidade de acesso aos documentos e informações disponibilizados e (ou) arquivados; uma vez que o exercício de tal atividade está sujeita - e está sujeita em termos exclusivos - tanto à fiscalização e ação disciplinar do Ministro da Justiça quanto à dos órgãos competentes da Ordem dos Notários, a simples disponibilização dos serviços aos notários, e a existência em si mesma dos serviços, que lhe são especialmente dirigidos, de Auditoria e de Inspeção, constituem prestação pública correspetiva da atividade privada, e independente, que exercem. Tanto mais que, como já se disse,

«

[a] natureza do tributo, ainda que a correspectividade se medisse apenas em função do custo do serviço, não seria abalada mesmo que no montante a pagar não se repercutisse apenas o custo atomizado do serviço prestado, mas também, o conjunto das despesas inerentes ao funcionamento das entidades que realizam o serviço, recaindo sobre os utentes uma percentagem dos custos globais do funcionamento da respetiva atividade da Administração Pública - sempre sob ressalva da desproporção manifesta.

»

(Acórdão 115/2002, cit.).

7 - Do que vem de dizer-se resulta que não é inconstitucional, face ao disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea i) e 103.º, n.º 2, da CRP, que o tributo tenha sido criado através de regulamento administrativo e não através de lei parlamentar. Tratando-se, como se trata, de um tributo bilateral, coincidente com o conceito constitucional de taxa e marginal ao conceito constitucional de imposto, a sua criação não fica reservada - como sucede com os impostos - à função legislativa do Estado, a exercer sob as vestes de ato legislativo parlamentar.

É certo que, como vimos, esta conclusão pode vir a ser infirmada, se se concluir que o montante devido pelo particular a título nominal ou formal de

«

taxa

» se revelar tão manifestamente desproporcionado - face à utilidade exclusiva que o mesmo particular retira do serviço público que lhe é prestado - que se torne por esse motivo impossível ver no tributo imposto, ou na estrutura da relação obrigacional que dele emerge, qualquer substancial traço de
«

sinalagmaticidade

» ou
«

bilateralidade

»

. Se tal suceder, outra via não haverá que não a que se consubstancie na conclusão segundo a qual o legislador, ao criar a imposição tributária, conferiu a forma de

«

taxa

» a algo que na realidade das coisas é um
«

imposto

»

, a lançar por decisão exclusiva do parlamento ou por ato legislativo governamental pelo mesmo parlamento autorizado.

Todavia, a tal conclusão se não pode, no caso presente, chegar. Dado que

«

[...] a qualificação como taxa de um dado tributo não depende da verificação de uma equivalência económica rigorosa entre o valor do serviço e o montante da quantia a prestar pelo utente desse serviço

»

, sendo antes apenas exigível que, de um ponto de vista jurídico, o pagamento do tributo tenha a sua causa e justificação - material, e não meramente formal - na perceção desse mesmo serviço (cf. supra, Acórdão 115/2002), não basta, para que ao tribute falte o caráter sinalagmático, uma qualquer desproporção entre a quantia a pagar e o valor do serviço prestado. O que é necessário é que essa desproporção seja de tal ordem manifesta que só por si comprometa a correspectividade pressuposta na relação sinalagmática. No caso, tal manifesta e inequívoca desproporção não pode ser demonstrada. A norma impugnada exige que cada notário pague por cada escritura € 10, e por cada demais ato que pratique €3. Inscrevendo-se a prática de tais atos no âmago das funções notariais, o tributo devido será tanto mais elevado quanto mais intenso for o volume de negócios que o Notário, oficial público mas também profissional independente, a seu cargo tiver. Também por este motivo, fica por demonstrar a disparidade existente entre o montante devido a título de taxa e a capacidade contributiva de cada profissional do notariado, uma vez que o tributo devido crescerá, em montante, à medida que for crescendo, em intensidade, a atividade liberal desempenhada.

8 - Resta finalmente responder à alegação, também apresentada pelos recorrentes, segundo a qual a norma impugnada seria inconstitucional por violar o princípio da proteção da confiança, decorrente do artigo 2.º da CRP.

Como atrás se relatou, esta alegação sustentamna os recorrentes na aplicação, ao caso, do modelo de

«

testes

» que a jurisprudência constitucional tem vindo a utilizar para concluir se, face a certa norma infraconstitucional, ocorre ou não lesão da confiança legítima que os particulares depositavam na manutenção de um certo quadro jurídico que lhes fosse aplicável, ou na continuidade das soluções encontradas pelo legislador na conformação de direitos de que fossem titulares. Baseados neste modelo de
«

testes

»

, concluem os mesmos recorrentes que, in casu:

(i) o legislador manteve, com perspetivas de continuidade, a política de gratuitidade do acesso aos serviços públicos em causa por parte de diversos grupos de profissionais e dos demais cidadãos;

(ii) os profissionais do notariado tinham boas e legítimas razões para crer que tal política de gratuitidade se viria a manter, no futuro, de forma universal, isto é, de forma a abranger todos os grupos sociais incluindo o dos Notários;

(iii) os profissionais do notariado teceram planos de vida contando com a universalidade de tal política;

(iv) não se vê que razões de interesse público podem justificar, em ponderação, a rutura existente na continuidade de tal

«

comportamento

» legislativo, rutura essa que se traduz na imposição, só ao grupo dos notários, de uma
«

taxa

» a pagar para o acesso a serviços que, antes, eram gratuitos.

Deve no entanto dizer-se que à aplicação ao caso deste

«

modelo de testes

»

, assim feita pelos recorrentes, falta um pressuposto essencial. O contexto em que o Tribunal afere da lesão ou não lesão do princípio da proteção da confiança inscreve-se sempre - como decorre de toda a jurisprudência que sobre a interpretação deste princípio constitucional se debruça, de tal ordem numerosa e conhecida que não vale a pena agora repetir a sua invocação - nos limites à autorevisibilidade dos atos normativos estaduais.

Como se sabe, e como constantemente a jurisprudência tem repetido, a função estadual de normação (através de atos legislativos ou através de atos regulamentares) é exercida por intermédio de competências, constitucionalmente fixadas, mas que trazem inscritas no seu âmago a não apenas possível, mas por vezes necessária, revisão do sentido de atos pela mesma função no passado praticados. Ao poder normativo do Estado pede - e por vezes exige - a Constituição que acompanhe o devir histórico, mudando em adequação a ele o sentido antes impresso à regulação das relações sociais. É certo que esta característica estrutural que a função normativa do Estado detém - e que se traduz no poder de rever livremente o sentido dos atos antes praticados - está naturalmente sujeita aos limites que a própria Constituição fixa. Assim, alterações legislativas que contendam com normas constitucionais que consagrem direitos fundamentais, ou que contrariem regras de repartição de competências, constitucionalmente fixadas, entre os diferentes órgãos

«

legiferantes

»

, não serão naturalmente alterações legítimas, que o princípio da autorrevisibilidade possa em si mesmo justificar; como não serão legítimas, por exemplo, aquelas alterações legislativas cujos efeitos se pretendam, de forma intolerável, fazer repercutir sobre o passado. Fora destas circunstâncias, porém, a regra é a da autorrevisibilidade do sentido das normas emitidas pelos órgãos constitucionais competentes; no contexto da qual não tem aplicação o princípio da proteção da confiança.

Ora, no caso, do que se trata é precisamente do exercício comum deste poder de

«

autorrevisbilidade

» do sentido de atos estaduais anteriormente praticados, poder esse exercido quer pelo legislador, através da definição de um novo regime jurídico a aplicar aos profissionais de notariado, quer pela normação administrativa, através da emissão de um regulamento que visava a concretização do novo regime legislativo. Na verdade, e na sequência do novo Estatuto do Notariado - onde o legislador, em reforma profunda, prevê que, para o futuro, a profissão de notário terá a componente privada, independente ou liberal que antes lhe era desconhecida - a norma impugnada apenas estipula que seja pelos novos profissionais devida uma taxa pela utilização de serviços públicos que lhes são especialmente dirigidos (que esta última decisão do
«

legislador

» tenha vindo a ser, posteriormente, revogada, apenas demonstra que ela integra o exercício de uma função estadual matricialmente orientada pela autorrevisibilidade dos atos praticados). Por este motivo - e porque nenhuma expectativa legítima poderiam ter desde logo os profissionais de notariado na não modificação do Direito que lhes fosse aplicado - não colhe a invocação, para o caso, do princípio constitucional da
«

proteção da confiança legítima

»

.

III - Decisão Nestes termos, decide-se:

a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 16.º, n.º 1, da Portaria 385/2004, de 16 de abril, e, consequentemente, b) Não conceder provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida quanto à questão de constitucionalidade.

Custas pelos recorrentes, fixadas em 25 unidades de conta da taxa de justiça.

Lisboa, 19 de maio de 2016. - Maria Lúcia Amaral - Teles Pereira - Maria de Fátima MataMouros (vencida, de acordo com a declaração junta) - João Pedro Caupers (vencido nos termos da declaração de voto da Senhora Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros) - Joaquim de Sousa Ribeiro.

Declaração de voto Vencida. 1 - Tenho, desde logo, objeções formais quanto ao presente acórdão. O presente recurso para o Tribunal Constitucional começou por ser objeto da Decisão Sumária n.º 430/2014. Nesta decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto, por falta de indicação da norma pretensamente inconstitucional. Tal decisão foi objeto de reclamação para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3, do artigo 78.º-A, da LTC. Nesse âmbito, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão 48/2015, veio a deferir a reclamação, revogando a decisão sumária e, em con-sequência, ordenou o prosseguimento do recurso. Naquele acórdão o Tribunal Constitucional referiu que era possível identificar a norma impugnada como a

«

norma constante do artigo 16.º, n.º 1, da Portaria 385/2004, de 16 de abril

»

, dizendo respeito ao

«

dever de o notário, por sua conta, entregar ao Ministério da Justiça € 10 por cada escritura e € 3 por cada um dos demais atos que pratica, independentemente de aceder aos sistemas de comunicação, de tratamento e de armazenamento da informação do Ministério da Justiça, utilizar o Arquivo Público e beneficiar dos Serviços de Auditoria e Inspeção

»

(n.º 6). Esta definição da norma objeto de recurso é ignorada no presente acórdão.

Não obstante o pedido incidir apenas sobre o artigo 16.º, n.º 1, da Portaria 385/2004, de 16 de abril, o presente acórdão considera o preceito na sua integralidade, apesar de este conter diversas dimensões normativas que excedem o objeto de fiscalização.

2 - A causa principal de me afastar do presente acórdão, no entanto, é outra. A minha convicção da inconstitucionalidade da norma em causa, pelos motivos que exponho de seguida.

O Tribunal Constitucional tem uma vasta jurisprudência sobre a matéria dos tributos e, em especial, sobre as taxas (cf., por exemplo, o Acórdão 846/2014, da 1.ª Secção, n.º 7). É esta jurisprudência que o presente acórdão pretende condensar quando refere a existência de

«

dois testes

»

, sendo o primeiro a sua

«

bilateralidade ou sinalagmatici-dade

» e o segundo teste que o montante da
«

prestação pecuniária

» em causa não
«

se mostrasse ostensivamente desproporcionad[o] face ao benefício obtido pelo particular em virtude da atividade pública que lhe fora especialmente dirigida

»

(cf. n.º 4 do acórdão). Neste contexto, de acordo com o presente aresto, o preenchimento do primeiro teste estaria assegurado, pois o

«

acesso ou a possibilidade de acesso aos documentos e informações disponibilizados e (ou) arquivados

»

, o facto de o exercício da atividade notarial estar sujeita

«

em termos exclusivos - tanto à fiscalização e ação disciplinar do Ministro da Justiça quanto à dos órgãos competentes da Ordem dos Notários

» e a
«

simples disponibilização dos serviços aos notários, e a existência em si mesma dos serviços, que lhe são especialmente dirigidos, de Auditoria e de Inspeção, constituem prestação pública correspetiva da atividade privada, e independente, que exercem

»

. Assim,

«

haverá uma correspetividade tal que será em si mesma bastante para que se descubra no tributo as características de “bilateralidade” e de “sinalagmaticidade”

»

(n.º 6 do acórdão).

No entanto, para analisar a verificação do teste relativo à

«

bilateralidade ou sinalagmaticidade

» da taxa é preciso analisar a contraprestação apresentada. Ora, o artigo 16.º, n.º 1, da Portaria 385/2004 refere neste âmbito o
«

acesso aos sistemas de comunicação, de tratamento e de armazenamento da informação do Ministério da Justiça

»

, a

«

utilização do Arquivo Público

» e os
«

Serviços de Auditoria e Inspeção

» como contraprestaçãoo. Basta esta enumeração para perceber que no caso em presença, atento o respetivo regime, não é possível descortinar qualquer “bilateralidade”. A análise tem de partir do facto de que o tributo em análise deve ser pago
«

por cada escritura

» e
«

por cada um dos demais atos que pratica

» o notário, independentemente de este aceder, de facto, aos sistemas de bases de dados do Ministério da Justiça, ou da prestação de qualquer serviço em concreto relativamente ao arquivo ou pela atuação dos
«

Serviços de Auditoria e Inspeção

»

. O facto gerador do tributo não é a prestação (individualizada ou não) de um serviço público, mas a mera prática de um ato pelo próprio notário, sendo o valor da taxa fixo, dependendo apenas de se tratar de um reconhecimento de assinatura ou de outro ato e não do custo ou encargo que as atividades administrativas que alegadamente correspondem à contraprestação acarretam. O acórdão ficciona a

«

bilateralidade ou sinalagmaticidade

» da taxa, assentando-a na simples existência ou disponibilização dos serviços em causa aos notários, serviços esses que considera essenciais à sua atividade e que lhes conferem
«

uma utilidade exclusiva

»

. Ignora, desta forma, a inexistência de qualquer relação entre o facto gerador do tributo (a prática de factos notariais) e as contraprestações em causa. As alegadas contrapartidas têm uma natureza genérica, independente da prática dos atos que dão origem ao dever de pagamento do tributo - estando relacionadas com a própria atividade geral de notário. De facto, a relação que se estabelece entre o tributo e as prestações que aparentemente justificariam a sua incidência é de tal modo difusa que inviabiliza a identificação de uma efetiva relação comutativa entre ambas, caso em que se torna impossível discernir a existência de qualquer tipo de bilateralidade. Nesse sentido, a alegada

«

utilidade exclusiva

» destes serviços para os notários é irrelevante - pois o pagamento da taxa não depende da sua efetiva prestação. O acórdão também fundamenta a sua argumentação no facto de o n.º 2, do artigo 16.º, da Portaria determinar o depósito das quantias cobradas à ordem do Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial do Ministério da Justiça. Esta afetação
«

não à prossecução de uma finalidade pública geral de índole especialmente financeira (como é próprio dos impostos), mas ao património da concreta entidade pública prestadora dos serviços de que são exclusivos beneficiários os profissionais do notariado justifica-se, precisamente, pela estrutura

«

bilateral

» que apresenta a relação que aqui se estabelece
»

(n.º 6 do acórdão). Nesta lógica, a alegada consignação (indireta ou orgânica) da receita do tributo à entidade encarregue da contraprestação seria um

«

sinal visível

» da
«

bilateralidade

» e da
«

sinalagmaticidade

»

.

Não acompanho esta argumentação. Desde logo porque a premissa em que assenta é falsa. O Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça, entidade à qual a receita em causa está consignada, não é a

«

concreta entidade pública prestadora dos serviços de que são exclusivos beneficiários os profissionais do notariado

»

. As alegadas contraprestações (o

«

acesso aos sistemas de comunicação, de tratamento e de armazenamento da informação do Ministério da Justiça

»

, a

«

utilização do Arquivo Público

» e os
«

Serviços de Auditoria e Inspeção

»

) não são prestadas por este Instituto, regulado, à época, pelo Decreto Lei 156/2001, de 11 de maio. Nem, aliás, poderiam ser, pois não correspondem às suas atribuições.

Aliás, o próprio acórdão evidencia a fragilidade deste argumento ao admitir que a

«

fiscalização e ação disciplinar

»

, alegadas contraprestações do tributo, são exercidas pelo

«

Ministro da Justiça

» e pelos
«

órgãos competentes da Ordem dos Notários

»

(n.º 6 do acórdão) - entidades às quais a receita não está consignada. Fica, assim, claro que as entidades que prestam as referidas contraprestações são distintas daquela à qual é consignada a receita do tributo, o que afasta a figura de uma consignação indireta da receita de uma taxa. No mesmo sentido milita a letra do preceito. De acordo com o artigo 16.º, n.º 1, da Portaria, os

«

sistemas de comunicação, de tratamento e de armazenamento da informação

» que, na tese do acórdão servem de contraprestaçãoo, são
«

do Ministério da Justiça

»

, não do Instituto, referido no n.º 2 do mesmo preceito. O acórdão parece, pois, confundir o Instituto, que tinha e tem autonomia administrativa e financeira, com o Ministério da Justiça ou com a Ordem dos Notários. Neste contexto, não faz sentido utilizar a consignação da receita como um argumento favorável à

«

bilateralidade

» e de
«

sinalagmaticidade

» do tributo. Trata-se, aliás, de um argumento frágil à partida, por ser apenas um indicador, entre vários, que pode ser utilizado, não sendo determinante. Em conclusão:

não é possível considerar que o tributo previsto no artigo 16.º da Portaria 385/2004 constitui uma verdadeira taxa porque não incide sobre uma qualquer prestação administrativa de que o sujeito passivo seja efetivo causador ou beneficiário. Será, então, de classificar como imposto?

3 - A configuração de imposto traduz-se na sua

«

unilateralidade

»

, assentando a respetiva

«

relação obrigacional estabelecida com o ente público credor

» no facto de não estar conexionado com uma atividade determinada, a cargo da entidade que o fixa, de que seja concretamente destinatário o contribuinte
» e visando as suas receitas
«

o financiamento geral dos serviços públicos de que os cidadãos indiferenciadamente usufruem.

»

(Acórdão 177/2010, n.º 6).

Como acima já referido, ao analisar-se o artigo 16.º da Portaria 385/2004, constata-se a inexistência de uma relação sinalagmática entre o tributo que se presta e a utilidade privada que se retira. De facto, o objetivo da tributação será o financiamento dos

«

sistemas de comunicação, de tratamento e de armazenamento da informação do Ministério da Justiça

»

, a

«

utilização do Arquivo Público

» e os
«

Serviços de Auditoria e Inspeção

» através de um tributo, sem contraprestação, imposto aos notários - que representam apenas alguns dos beneficiários destes serviços públicos. O fim do tributo é permitir a arrecadação de receita pelo Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça, seu credor, independentemente de contraprestação.

Trata-se, por isso, do financiamento genérico da atividade do Estado no setor da Justiça. Nessa medida, develhe ser aplicado o regime constitucional dos impostos, nomeadamente a reserva de competência de emissão de ato legislativo (da Assembleia da República ou, em caso de autorização, do Governo) para a sua criação, prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição, cujo âmbito decorre claramente delimitado do artigo 103.º da Constituição, nomeadamente do princípio da legalidade fiscal consagrado no seu n.º 2.

Ora, tendo em conta que este tributo foi criado através de uma portaria, tem de se concluir pela sua inconstitucionalidade por violação da reserva relativa de competência legislativa prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição. - Maria de Fátima MataMouros. 209658744

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2640712.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-09-08 - Lei 25/82 - Assembleia da República

    Autorização do Governo para legislar em matéria de organização e competência dos tribunais, processo criminal e isenção de selo.

  • Tem documento Em vigor 2001-05-11 - Decreto-Lei 156/2001 - Ministério da Justiça

    Aprova os Estatutos do Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça.

  • Tem documento Em vigor 2004-02-04 - Decreto-Lei 26/2004 - Ministério da Justiça

    Aprova o Estatuto do Notariado.

Aviso

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