Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - Por sentença de 18 de Novembro de 2008, o 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ourém recusou a aplicação da norma do artigo 2.º, n.º 1, da Lei 75/98, de 19 de Novembro, por ser contrária ao estabelecido nos artigos l3.º, 26.º e 69.º da Constituição da República e, em consequência, fixou a prestação a pagar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, nos termos dessa disposição e ainda do artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, do Decreto-Lei 164/99, de 13 deMaio, em (euro) 125 para cada menor.
Considerou, em síntese, que, sendo imposto ao Estado o dever de assegurar a garantia da dignidade da criança e a sua protecção em vista a um desenvolvimento integral, a norma do artigo 2.º, n.º 1, da Lei 75/98, ao estabelecer uma limitação nas prestações mensais em 4 UC por devedor, viola os referidos preceitos constitucionais, e desde logo, o princípio da igualdade previsto no artigo 13.º, ao discriminar as crianças cujo progenitor infractor tenha um maior número de filhos ou dependentesmenores.
O Ministério Público interpôs recurso obrigatório ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, vindo, no seguimento do processo, aapresentar as seguintes alegações:
1 - Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da decisão, proferida no Tribunal Judicial de Ourém, nos autos de incumprimento do poder paternal, na parte em que foi recusada aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, à norma constante do artigo 2.º, n.º 1, da Lei 75/98, de 19 de Novembro na parte em que estabelece um limite, por cada devedor, às prestações em que se consubstancia a garantia dos alimentos devidos a menores.
Ao presente recurso foi atribuído o regime de subida em separado e com efeito meramente devolutivo, com invocação do disposto no artigo 78.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, conjugada com as normas adjectivos reguladores do recurso de agravo aos procedimentos regidos pela Organização Tutelar de Menores.
Não nos parece, porém, que a norma do citado n.º 2 do artigo 78.º seja invocável no âmbito de um recurso obrigatório, fundado na alínea a) do n.º 1 do artigo 75.º: na verdade, como é inquestionável, tal recurso tem de ser interposto, logo e directamente, para o Tribunal Constitucional, não havendo, deste modo, que considerar relevante o recurso ordinário "não interposto ou declarado extinto", cuja interposição estava vedada ao Ministério Público recorrente (a nosso ver, tal norma conexiona-se, não com os recursos obrigatórios, mas com os recursos fundados na alínea b) do n.º 1 daquele artigo 70.º, face ao preceituado no n.º 4 desse preceito, que se basta com a exaustão ou preclusão dos normais meios impugnatórios existentes).
Tal implica a aplicabilidade da regra constante do n.º 4 do artigo 78.º da Lei do Tribunal Constitucional, devendo fixar-se ao presente recurso obrigatório o regime de subida nos próprios autos e o efeito suspensivo.
Nos casos em que a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor não satisfizer as quantias em dívida e o alimentado não puder beneficiar de rendimento líquido superior ao salário mínimo, o Estado assegura as prestações em débito, sendo estas fixadas pelo tribunal - mas não podendo exceder, mensalmente, por cada devedor o montante de 4 UC, independentemente do número de menores credores da
prestação alimentar.
Violará esta limitação legal, como sustenta a decisão recorrida, os princípios constitucionais da igualdade e da garantia de um mínimo de existência condigna, inferivel, desde logo, do artigo 69.º da Constituição da República Portuguesa? Parece-nos claramente improcedente o argumento constante em invocar a violação do princípio da igualdade, já que a restrição dos montantes pecuniários disponíveis, no caso de pluralidade de menores titulares activos do direito a alimentos, radica, por assim dizer, na própria "natureza das coisas" - não traduzindo situação substancialmente diversa da que ocorre nos casos em que o progenitor preste, ele próprio, os alimentos, sendo a medida destes condicionada pelos meios pecuniários ao dispor daquele que houver de prestá-los: não sendo obviamente ilimitadas as capacidades financeiras do devedor de alimentos, é evidente que a circunstância de serem plúrimos os titulares do direito alimentar acabará por influenciar os valores efectivamente disponíveis por cada um dos co-interessados, sem que tal traduza qualquer discriminaçãoconstitucionalmente censurável.
Mais complexa é a questão da compatibilização da dita restrição legal com o direito a um mínimo de existência condigna, inferível, neste caso, da norma do artigo 69.º da Constituição da República Portuguesa, na parte em que prescreve que os menores têm direito à protecção da sociedade do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, sendo devida "especial protecção" às crianças por qualquer forma privadas de umambiente familiar normal.
Implicará tal direito "social" a possibilidade de exigir do Estado um conteúdo prestacional, inviabilizador da aplicabilidade da restrição quantitativa constante danorma desaplicada?
Propendemos para uma resposta negativa, afigurando-se ser necessária uma especial cautela do aplicador do direito na área dos direitos sociais, envolvendo prestações pecuniárias directas do Estado - uma vez que, como é evidente, o cumprimento do programa constitucional ínsito, no caso, no citado artigo 69.º depende fundamentalmente de factores financeiros e materiais que o Estado está longe de dominar integralmente, valendo aqui a "cláusula do possível".Ou seja: mesmo admitindo que o direito a um mínimo de existência condigna comporta também uma vertente prestacional, direccionada contra o Estado (como parece admitir o Acórdão 509/02, a propósito da figura do rendimento social de inserção) - o que nos conduzirá a outorgar tutela e assento constitucional ao regime genérico da garantia dos alimentos devidos a menores - não parece viável extrair de tal direito social uma concreta determinação dos montantes aplicáveis, bem como a proscrição da inexistência de qualquer limite máximo às prestações pecuniárias a cargo do Estado.
Não pode, na realidade, o intérprete e aplicador da lei sobrepor os seus próprios e pessoais critérios às valorações realizadas pelo legislador, democraticamente legitimado, e a que incumbe naturalmente - face à natural insuficiência dos meios financeiros públicos para ocorrer a todas as situações de necessidade ou carência - realizar as opções legislativas fundamentais, articulando ou "rateando" os montantes
disponíveis pelo universo dos carenciados.
A opção legislativa plasmada na norma desaplicada não se revela, deste modo, violadora do referido direito, cabendo ainda o estabelecimento de um limite máximo à responsabilidade subsidiária do Estado pelo débitos alimentares não espontaneamente satisfeitos, no âmbito das opções político-legislativas consentidas pela Lei Fundamental.
2 - Conclusão.
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1.º Não é aplicável a um recurso obrigatório do Ministério Público - sujeito ao regime de imediata e necessária interposição directa para o Tribunal Constitucional - o estatuído no n.º 2 do artigo 78.º da Lei 28/82, cabendo tal situação na regraenunciada no n.º 4 de tal preceito.
2.º A norma constante do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 75/98, de 19 de Novembro, enquanto prescreve um limite máximo à responsabilidade subsidiária do Estado pelas prestações alimentares a menores, não espontaneamente satisfeitas pelo obrigado, estabelecido em função da identidade do devedor (e independentemente do número de interessados, titulares de alimentos), não viola o princípio da igualdade nem o direito a um mínimo de existência condigna, situando-se ainda no âmbito da livrediscricionariedade legislativa.
3.º Termos em que deverá proceder o presente recurso.
Cabe apreciar e decidir.
I - Fundamentação
Efeito do recurso
2 - O tribunal recorrido atribuiu ao recurso efeito meramente devolutivo, com invocação do disposto no artigo 78.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, e no artigo 185.º, n.º 1, da Lei Tutelar de Menores.O Ministério Público, na sua alegação, considerou que a norma que rege o efeito do recurso é, no caso, a do n.º 4 do citado artigo 78.º, por se tratar de recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), que não está dependente da prévia exaustão dos recursos ordinários, e requereu, nesse sentido, a fixação de efeito suspensivo.
De facto, a norma do artigo 185.º, n.º 1, da Lei Tutelar de Menores atribui aos recursos de quaisquer decisões proferidas nos processos previstos nessa lei, incluindo os relativos a alimentos devidos a menores, o efeito meramente devolutivo. E o artigo 78.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional manda seguir, no recurso para o Tribunal Constitucional «interposto de decisão da qual coubesse recurso ordinário, não interposto ou declarado extinto», o efeito que deva ser atribuído a esse recurso. O que poderia conduzir, por interpretação literal desse preceito, a que se devesse manter, no recurso de constitucionalidade, o efeito meramente devolutivo que caberia ao recurso
ordinário, caso este fosse interposto.
A norma, no entanto, pretende referir-se aos recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, relativamente aos quais se exige o prévio esgotamento dos recursos ordinários, e que abarca as situações em que, havendo recurso ordinário, tenha havido renúncia, ou haja decorrido o respectivo prazo de interposição, ou o recurso não tenha tido seguimento por razões de ordem processual (cf. artigo 70.º, n.os No caso, porém, de recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, e em todos os outros casos em que o recurso para o Tribunal Constitucional é obrigatório [artigos 70.º, n.º 1, alíneas a), c), g), h) e i), e 72.º, n.º 2, da LTC], não funciona a regra da exaustão dos recursos ordinários (nem se justifica que se aguarde o decurso do prazo de interposição do recurso ordinário ou a ocorrência de qualquer causa extintiva), sendo desde logo exigível que o recurso seja imediata e directamente interposto para o Tribunal Constitucional.Neste contexto, a alusão, no artigo 78.º, n.º 2, a recurso ordinário não interposto ou declarado extinto apenas faz sentido se se reportar a um recurso de constitucionalidade que apenas pudesse ser admitido após o esgotamento dos recursos ordinários (aqui se incluindo, por força da citada regra do n.º 4 desse artigo 70.º, as situações de não interposição ou extinção do recurso por razões processuais).
Em qualquer outra situação (não contemplada no artigo 78.º, n.º 2), em que haja lugar a recurso ordinário, e ele tenha prosseguido, o efeito do recurso de constitucionalidade da decisão proferida nessa instância de recurso é o previsto no artigo 78.º, n.º 3, correspondendo-lhe o efeito que tiver sido atribuído ao recurso ordinário que teve
seguimento.
O caso dos recursos obrigatórios cai na regra residual do n.º 4 do artigo 78.º, sendo aplicável o efeito suspensivo com subida nos próprios autos; o que é consentâneo com a circunstância de a lei prever a interposição imediata do recurso em vista à apreciação da questão de constitucionalidade, diferindo para momento ulterior a prolação de decisão definitiva, na ordem judiciária comum, sobre a matéria da causa.Justifica-se, por isso, alterar, conforme o requerido, o efeito atribuído ao recurso, no exercício dos poderes atribuídos ao tribunal superior pelo artigo 703.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável.
Mérito do recurso
3 - A questão que vem discutida é a de saber se o limite superior de 4 unidades de conta estabelecido no artigo 2.º, n.º 1, da Lei 75/98, de 19 de Novembro, relativamente ao montante das prestações de alimentos que ao Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores cabe assegurar, é desconforme à Constituição por violação do disposto nos artigos 13.º, 26.º e 69.º da Lei Fundamental, tal como seconsiderou na decisão recorrida.
O regime jurídico de garantia dos alimentos devidos a menores foi instituído pela referida Lei 75/98 e regulamentado pelo Decreto-Lei 164/99, de 13 de Maio, e tem em vista, através de um Fundo constituído no âmbito do Ministério do Trabalho e da Solidariedade, assegurar o pagamento de alimentos a menor residente em território nacional, quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer coactivamente essa obrigação, e se verifique, cumulativamente, que o alimentado não tem rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficia nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre (artigos 1.º da Lei 75/98 e 3.ºdo Decreto-Lei 164/99).
É ao Ministério Público ou àqueles a quem a prestação de alimentos deveria ser entregue que compete requerer nos respectivos autos de incumprimento que o tribunal fixe o montante que o Estado, em substituição do devedor, deve prestar, cabendo ao tribunal, para esse efeito, proceder às diligências que entenda indispensáveis e a inquérito sobre as necessidades do menor (artigo 3.º, n.os 1, 2 e 3, da Lei 75/98).Por sua vez, o montante fixado pelo tribunal perdura enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor originário se encontra obrigado (artigo 3.º, n.º 4, da Lei 75/98), ficando o Fundo subrogado em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas as prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso (artigo 5.º do Decreto-Lei n.º
164/99).
A norma aqui particularmente em foco é, porém, a do artigo 2.º da Lei 75/98, que, sob a epígrafe «Fixação e montante das prestações», estabelece o seguinte:1 - As prestações atribuídas nos termos da presente lei são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC.
2 - Para a determinação do montante referido no número anterior, o tribunal atenderá à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.
Entretanto, o artigo 3.º do Decreto-Lei 164/99, que regulamentou os pressupostos e requisitos de atribuição da prestação, no seu n.º 3, reproduziu praticamente o que
consta daquele artigo 2.º
4 - Como se deixou entrever através do contexto legal esquematicamente descrito, a garantia de alimentos devidos a menor surge como uma prestação social do regime não contributivo, a cargo do Estado, destinada a suprir o incumprimento por parte daquele que se encontre sujeito à obrigação alimentar familiar, traduzindo-se, por isso, numa prestação social de natureza subsidiária, que visa concretizar, no plano legislativo, o direito das crianças à protecção, tal como consagrado no artigo 69.º, n.º 1, daConstituição.
É isso mesmo que é reconhecido no preâmbulo do Decreto-Lei 164/99, em que se faz expressa menção à exigência constitucional do artigo 69.º, como implicando, em especial no caso das crianças, «a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna», e em que se caracteriza a garantia de alimentos devidos a menores, instituída pela Lei 75/98, como uma nova prestação social, «que traduz um avanço qualitativo inovador na política social desenvolvida pelo Estado» e que «dá cumprimento ao objectivo de reforço daprotecção social devida a menores».
Bem se compreende, neste plano, que as prestações sociais assim caracterizadas não constituam um direito subjectivo prima facie dos menores a quem se dirigem (ao contrário do que sucede com todas as demais prestações sociais do regime contributivo), mas representem antes um recurso subsidiário, fundado na solidariedade estadual, que se destina a dar resposta imediata à satisfação de necessidades de menores que se encontrem numa situação de carência, e que, por isso, não pode, desligar-se da concreta situação familiar do titular da prestação (neste sentido, Remédio Marques, Algumas Notas sobre Alimentos (Devidos a Menores), 2.ª ed., CoimbraEditora, 2007, pp. 214-215).
Como se fez notar num recente aresto do Supremo Tribunal de Justiça, o incumprimento da prestação de alimentos por parte do primitivo devedor é que funciona como pressuposto justificativo da intervenção subsidiária do Estado para satisfação de uma necessidade actual do menor, e, consequentemente, o Estado não se substitui incondicionalmente ao devedor originário dos alimentos e apenas se limita a assegurar os alimentos de que o menor carece, enquanto o devedor primitivo não pague, devendo ser reembolsado do que pagar (Acórdão de 10 de Julho de 2008, no Assim se explica que, para a determinação do montante da prestação social, como determina o transcrito artigo 2.º, n.º 2, da Lei 75/98, o tribunal deva atender, não só à capacidade económica do agregado familiar e às necessidades específicas do menor, mas também ao montante da prestação de alimentos que fora anteriormente fixada e que está em dívida. Certo é que o tribunal, por efeito da actividade jurisdicional que é levado a realizar na sequência do pedido formulado nos termos desse diploma, não está impedido de fixar um montante superior ou inferior à prestação de alimentos que impendia sobre o devedor (ainda que com o questionado limite de 4 UC), mas isso deve-se apenas ao facto de o legislador ter considerado ser exigível, nessa circunstância, uma reponderação pelo juiz da situação do menor à luz da qual foi fixadaa pensão de alimentos.
Em todo o caso, não há dúvida de que o montante da prestação de alimentos incumprida constitui um índice para o julgador fixar a prestação social a cargo do Fundo e esta será em regra equivalente à anteriomente fixada (Remédio Marques, ob.cit., pp. 234 e 239). Isso porque o que está essencialmente em causa é a reposição do rendimento que deixou de ser auferido por falta de pagamento voluntário de alimentos por parte de quem se encontrava obrigado a prestá-los.
Numa aproximação à resolução da questão de constitucionalidade suscitada, deve começar por dizer-se que estamos aqui perante um direito social, cuja concretização e actualização depende de certos condicionalismos sócio-económicos, culturais e políticos que só o legislador poderá, em primeira linha, avaliar, e que não pode ser efectivado pelo juiz por simples interpretação aplicativa do direito (cf. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed.,
Coimbra, p. 192).
Como refere o autor agora citado, «a escassez dos recursos à disposição (material e também jurídica) do Estado para satisfazer as necessidades económicas, sociais e culturais de todos os cidadãos é um dado da experiência nas sociedades livres, pelo que não está em causa a mera repartição desses recursos segundo um princípio da igualdade, mas sim uma verdadeira opção quanto à respectiva afectação material». Por outro lado, essa opção decorre de uma ampla liberdade de conformação legislativa, não sendo possível definir através da Constituição o conteúdo exacto da prestação e o modo e condições ou pressupostos da sua atribuição, ou imputar-lhe uma intencionalidade que vá além de um conteúdo mínimo que possa directamente resultar das directrizes constitucionais (idem, pp. 190-191 e 398).Estando em causa, no caso concreto, uma prestação estadual subsidiária destinada a suprir o incumprimento da obrigação de alimentos familiar, afigura-se não ser possível invocar a violação do princípio da igualdade, a partir da fixação do limite estabelecido para o montante superior da prestação, com base na discriminação que possa existir entre as diversas situações concretas, designadamente em razão do maior ou menor número de menores a cargo daquele que estava obrigado à prestação de alimentos.
Importa notar que a determinação da medida ou extensão dos alimentos, por força do próprio critério legal consignado no artigo 2004.º do Código Civil, varia em função das possibilidades daquele que houver de prestá-los e das necessidades daquele que houver de recebê-los, pelo que a fixação do seu montante não pode basear-se no custo médio normal de subsistência do alimentando, mas em diversos outros factores em que entra em linha de conta, com especial relevo, a condição económica e social do obrigado. E não é indiferente, para esse efeito, que o vínculo respeite não a um único, mas a vários menores carecidos de alimentos, como ocorre no caso vertente.
Nestes termos, a capacidade económica do progenitor em função do número de menores a quem deve prover ao sustento não pode deixar de constituir um critério objectivo de quantificação dos alimentos, e influenciar o montante da pensão a atribuir a
cada um dos alimentandos.
E, como vimos, a prestação social prevista na Lei 75/98, visando substituir a obrigação legal de alimentos em caso de incumprimento, corresponde tendencialmente àquela que foi judicialmente fixada e deixou de ser paga, e reflecte, nessa medida, as particularidades do caso concreto e as vicissitudes que condicionaram a fixação do montante da obrigação alimentar originária.Tratando-se uma prestação autónoma de segurança social, não há dúvida que ela é atribuída de acordo com certos critérios objectivos que são aplicáveis a todas as crianças que se encontrem na mesma situação: existência de sentença que fixe os alimentos; residência do devedor em território nacional; inexistência de rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional de que o menor possa beneficiar; não pagamento pelo devedor da obrigação de alimentos. Mas pelo seu carácter de subsidiariedade, o montante da prestação substitutiva do Estado está necessariamente dependente da situação económica e familiar em que se encontra inserido o menor, aí relevando, também, o valor da prestação de alimentos que foi fixada judicialmente, as possibilidades económicas do progenitor e a possível pluralidade de vínculos.
Em todo este contexto, a situação de desigualdade gerada pela limitação do montante da prestação social a 4 UC por cada devedor, quando se torne necessário efectuar o rateio desse valor máximo entre diversos menores que sejam filhos de um mesmo devedor (no confronto com quaisquer outros casos em que a um devedor corrresponda um único credor), decorre da própria situação de vida concretamente considerada, e não propriamente de um critério normativo fixado legislativamente.
O que poderia discutir-se é se é constitucionalmente aceitável o estabelecimento desse limite ou se o critério de determinação do montante máximo da prestação não deveria antes ter por base a pessoa do credor dos alimentos, e não a do devedor.
Valem aqui, no entanto, as considerações já anteriormente expendidas sobre a tutela jurídico-constitucional dos direitos sociais. Estando em causa direitos a prestações, que, como tal, devam caracterizar-se como actuações positivas do Estado, a sua concretização, para além de um conteúdo mínimo que se torne determinável através dos próprios preceitos constitucionais, depende de conformação político-legislativa e, em muitos casos, da existência e disponibilidade de meios materiais, que, em qualquer caso, não pode ser objecto de reexame ou controlo jurisdicional.
Não se vê, por outro lado, em que termos podem considerar-se violadas, no caso, as disposições dos artigos 26.º e 69.º da Constituição.
Este último preceito consagra um direito das crianças à protecção da sociedade e do Estado, que se dirige não apenas aos poderes públicos, em geral, mas também aos cidadãos e às instituições sociais, e que necessariamente envolve, antes de mais, o dever de protecção pela própria família, incluindo os progenitores. Em articulação com esse princípio, o artigo 36.º, n.º 5, consigna o direito e o dever dos pais em relação à educação e manutenção dos filhos, permitindo caracterizar um verdadeiro direito-dever subjectivo, e que implica especialmente o dever de prover ao sustento dos filhos.
Qualquer dessas disposições destinam-se a assegurar o desenvolvimento integral da criança e, nessa medida, dão cobertura ao direito ao desenvolvimento da personalidade a que se refere o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., Coimbra Editora, pp. 565 e
869).
No caso, o Estado, através da Lei 75/98 e do seu diploma regulamentar, veio justamente instituir uma garantia dos alimentos devidos a menores, atribuindo uma prestação social destinada a suprir as situações de carência decorrentes do incumprimento por parte da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos, dando assim concretização prática ao direito de protecção às crianças que deriva daquele artigo 69.º e, mediatamente, ao direito ao desenvolvimento da personalidade a quealude o também citado artigo 26.º
Não é possível, por isso, imputar à questionada norma do artigo 2.º, n.º 1, a violação de qualquer dos referidos preceitos constitucionais.
Nestes termos, decide-se:
a) Atribuir efeito suspensivo ao recurso de constitucionalidade, nos termos do artigo 78.º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional;b) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo 2.º da Lei 75/98, de 19 de Novembro, com fundamento em violação do disposto nos artigos 13.º, 26.º e 69.º da
Constituição;
c) E, consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da sentença recorrida em conformidade com o julgado quanto à questão deconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 22 de Junho de 2009. - Carlos Fernandes Cadilha - Ana Maria Guerra Martins - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Gil Galvão.
202045188