1 - O Sr. Procurador-Geral-Adjunto na Relação de Coimbra, ao abrigo dos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, veio interpor recurso extraordinário do Acórdão dessa Relação de 16 de Maio de 1990, com o n.º 195.
Alega que esse acórdão está em oposição com o Acórdão da mesma Relação de 28 de Junho de 1989, publicado na Colectânea de Jurisprudência, t. 3.º, a p.
105.
Em conferência foi decidido que o recurso devia prosseguir, porquanto se verifica que se trata de acórdãos da mesma Relação proferidos no domínio da mesma legislação, em que o primeiro transitou em julgado, e que não admitem recurso ordinário. E, por outro lado, que eles estão em oposição um com o outro.
No Acórdão de 28 de Junho de 1989 foi decidido que o atestado médico, para justificar uma falta de comparecimento, tem de indicar o motivo concreto que impossibilitou a comparência, ou seja, o motivo concreto da impossibilidade;
que a expressão constante do artigo 117.º, n.º 3, do Código de Processo Penal tem de ser interpretada no sentido de que se tem de esclarecer nele o motivo concreto da impossibilidade de comparecimento, com a indicação da doença ou outra qualquer causa, como trauma psicológico derivado de estar em perigo de vida ou ter falecido um ente querido, por exemplo.
Em suma, como foi sumariado na Colectânea de Jurisprudência, nesse acórdão foi decidido que «o atestado médico, para justificar a falta, tem de indicar o motivo concreto que impossibilita a comparência, para sobre ele recair uma apreciação do julgador e poder concluir se a falta deve ou não ser justificada e a indicação do tempo provável da duração do impedimento».
Por seu lado, no Acórdão de 16 de Maio de 1990, aliás como a mesma Relação tinha já decidido no Acórdão de 2 de Novembro de 1989, publicado também na Colectânea de Jurisprudência, t. 5.º, a p. 70, foi decidido, para o mesmo efeito, que basta que o atestado refira que o faltoso «se encontra doente e que tal doença o impossibilita de comparecer no dia designado», que a lei apenas impõe que o atestado certifique o estado de doente e especifique que a doença o impossibilite ou torna em grave inconveniência o comparecimento do doente em tribunal; que não carece, assim, o atestado de concretizar a doença do faltoso.
2 - O arguido também se manifestou pela existência de oposição e entende que a solução que se justifica é esta última, porque o n.º 3 do artigo 117.º nada mais exige, o juiz não tem que ter conhecimentos que o habilitem a formular o juízo de impossibilidade de comparência, que só o médico poderá dizer se o doente está ou não em condições de enfrentar o julgamento e o estado emotivo que este lhe pode determinar; que o artigo 77.º do Código Deontológico dos Médicos, que entrou em vigor em Junho de 1981, elaborado pelo Conselho Nacional de Deontologia Médica, nos termos das atribuições conferidas pelo artigo 8.º do Estatuto das Ordem dos Médicos, proíbe os médicos de especificarem nos atestados o mal de que o doente sofre; que o segredo profissional se impõe a todos os médicos, em princípio reafirmado na resolução 27 da Associação Médica Mundial, aprovada na Conferência de Munique de 17 e 18 de Outubro de 1973; e que também na Conferência Internacional das Ordens e Organizações Similares, realizada em Paris em 6 de Janeiro de 1987, foi reafirmado o mesmo princípio.
Nas suas doutas alegações o Sr. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça, depois de brilhante análise da situação, entende que deve ser proferido assento no sentido de que nos atestados médicos exibidos para os fins do artigo 117.º, n.º 3, do Código de Processo Penal não deve o médico mencionar a doença concreta causadora da impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento do faltoso.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
3 - Como noticia o conselheiro Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado, p. 204), «no direito anterior não havia disposição expressa no sentido de a justificação das faltas por doença dever ser feita por atestado médico;
todavia, isso decorria já dos princípios gerais».
Em consequência, não era dada qualquer ideia dos requisitos dos atestados; o elenco desses requisitos era deixado para legislação própria.
Um dos diplomas aproveitados era o Decreto com força de lei 19478, de 18 de Março de 1931, que regulamentava o regime de faltas de funcionários aos serviços; aí era exigido que o atestado médico fosse feito sob compromisso de honra, ser reconhecida a assinatura do médico, ser indicado o número do bilhete de identidade do funcionário e se declarasse a necessidade de ausência para tratamento.
O Decreto-Lei 32171, de 29 de Julho de 1942, no seu artigo 7.º, estabelecia a punição com prisão até seis meses para o médico que sem justa causa violasse segredo que viesse ao seu conhecimento por razão da sua profissão.
Mais tarde foi publicado o Estatuto da Ordem dos Médicos e no Decreto-Lei 40651, que o aprovou, no seu artigo 96.º, referia-se expressamente que os atestados médicos «não devem especificar o mal de que se sofre, limitando-se a afirmar a existência de doença, os impedimentos que ela determina e a sua duração» (Decreto-Lei 40651, de 21 de Junho de 1956).
No novo Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Decreto-Lei 282/77, de 5 de Julho, é referido, no seu artigo 13.º, como um dos deveres dos médicos «guardar segredo profissional»; e, no seu artigo 80.º prescreve que é atribuição do Conselho Disciplinar «elaborar, em conformidade com o Estatuto, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos».
Efectivamente, esse Código veio a ser elaborado e publicado na Revista da Ordem dos Médicos, n.º 6, de Junho de 1981. Nos artigos 70.º a 91.º trata em pormenor do segredo profissional e dos atestados médicos. Este Código Deontológico nunca foi publicado no Diário da República, condição essencial para a sua eficácia jurídica, nos termos do artigo 122.º, n.os 1, alínea h), e 2, da Constituição. Por esse motivo o parecer da Procuradoria-Geral da República de 14 de Junho de 1982, homologado pelo Ministro da Justiça, por despacho publicado no Boletim, n.º 321, p. 199, veio entender que ele era juridicamente inexistente.
Finalmente, é publicado o Código Deontológico «definitivo em 1985», na Revista da Ordem dos Médicos, n.º 3/85, de Março.
Refere, curiosamente, no seu relatório:
Frente a uma degradação de valores morais cada vez mais acentuada e às tentativas de eliminar na nossa sociedade as noções de bem e de mal, impunha-se, de facto, relembrar aos médicos os princípios fundamentais que sempre têm norteado a sua profissão. É isso que este Código pretende fazer, e, se ele não é decreto-lei, é porque se considerou bem mais importante a ética médica e o valor dos direitos humanos do que a própria lei emanada dos governos.
No seu artigo 74.º prescreve, quanto ao ponto que nos interessa:
1 - Dos atestados deve constar que foram emitidos a pedido do interessado ou seu representante legal, a existência de doença, a data do seu início, os impedimentos e o tempo provável da incapacidade que determina.
...
3 - O atestado ou certificado não deve especificar o mal de que o doente sofre, salvo por solicitação expressa deste.
Com esta resenha facilmente se conclui que nos atestados médicos nunca foi exigida a especificação da doença de que o interessado sofre; e, mais do que isso, essa indicação era e é proibida ao médico, sob pena de violação do segredo profissional, quer por imposição legal, quer, ao menos, deontológica e disciplinar.
4 - Perante este regime, tão sobejamente conhecido, veio o novo Código de Processo Penal fazer uma inflexão tão grande, exigindo para a justificação de uma falta a um acto judicial a revelação da doença de que o faltoso sofre? Temos que responder afoitamente que não.
Seria necessário que a lei, por motivos compreensíveis, o afirmasse de forma bem explícita, o que de forma alguma acontece.
O n.º 3 do artigo 117.º apenas exige que o atestado especifique a impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento e o tempo provável de duração do impedimento.
Especificar a impossibilidade é apenas referir concretamente que o faltoso está impossibilitado de comparecer e, evidentemente, por doença (por isso é atestado médico). O preceito não fala em especificação da natureza ou da causa da impossibilidade, mas apenas no estado ou conclusão de que se verifica uma situação de ser impossível o comparecimento.
De resto, a lei fala, indistintamente, em impossibilidade de comparecimento ou grave inconveniente de comparecimento e, de forma alguma, a especificação de grave inconveniente de comparecimento deve ser feita pela menção da doença concreta ou dos motivos concretos. Essa será a causa, enquanto que a lei apenas exige a consignação do seu efeito.
Aliás, basta considerar a situação de o médico ter dúvidas sobre a doença de que o faltoso sofre - até por estar à espera de resultados de meios complementares de diagnóstico - e, no entanto, ter a certeza de que ele se encontra doente. Teria então que inventar uma doença ou não passar o atestado? Por outro lado, na impossibilidade de se conseguir atestado médico, o n.º 4 desse artigo 117.º permite a utilização de qualquer outro meio de prova para justificar a falta.
Ora, evidentemente que esse outro meio de prova, máxime por testemunhas, em consciência e na maioria das situações, não tem competência e conhecimentos para saber qual a doença que levou a pessoa a ter que faltar.
Conhecedor do anterior regime, da situação em que os médicos se encontram de cometerem infracção criminal e disciplinar se violarem o segredo profissional, não era, de certeza, com aquela fórmula que o legislador processual penal iria tornar-se assim tão exigente e criterioso.
Apesar do desejo que tantas vezes se sente nos tribunais de maiores exigências nas justificações das faltas, dada a constante frequência com que as pessoas chamadas adoecem nesses dias e a regularidade com que são apresentados atestados médicos, o certo é que a lei continua a confiar neles.
Talvez por sentir esta situação o legislador, na parte final do n.º 3 do artigo 117.º, vem referir expressamente que «o valor probatório do atestado pode, porém, ser abalado ou contrariado por qualquer outro meio de prova admissível».
5 - Refere, expressamente, o artigo 135.º do Código de Processo Penal que aos médicos é imposto que guardem segredo profissional e que, havendo dúvidas sobre a legitimidade da escusa, a questão será decidida pelo tribunal ou autoridades judiciárias, depois de «ouvida a organização representativa da profissão relacionada com o segredo profissional em causa».
Quer isto significar que na dispensa do segredo profissional dos médicos, embora da competência do tribunal, tem uma palavra a Ordem dos Médicos.
E, como se referiu já, no caso dos atestados, de forma geral e abstracta, já ela se pronunciou no sentido de não ser permitida essa violação, sob pena de procedimento disciplinar.
Desta situação resulta consequência extrardinariamente importante: o médico deve recusar-se a especificar o motivo concreto da impossibilidade de comparência nos atestados, porque já sabe que esse é o entendimento da Ordem dos Médicos.
Ora, a seguir-se o entendimento do Acórdão de 28 de Junho de 1989 em análise, sucederia que iria deixar de haver justificação das faltas por atestados médicos, já que os atestados que viessem a ser apresentados não podiam obedecer aos requisitos que entende necessários.
Mesmo que o tribunal quisesse mandar completar o atestado com a menção do motivo concreto da impossibilidade de comparecimento, o médico iria recusar-se a fazê-lo, no que viria a ser apoiado pela sua Ordem dos Médicos.
Nenhum fundamento legal tinha o tribunal para o obrigar numa situação destas e, pela tentativa de lutar contra atestados falsos ou levianos, passariam a ter que ser usados os outros meios de prova referidos no n.º 3 do artigo 114.º Mas seguramente que mesmo com esses meios de prova - máxime testemunhas - sucederia na maioria dos casos que não podia ser indicado o motivo concreto que originava a falta de comparecimento, pois que esses outros meios de prova não teriam a competência necessária para conhecer essa causa.
De qualquer forma, as razões que obrigam o médico ao segredo profissional mantêm-se sempre e em qualquer caso; é desprestigiante para o doente a publicidade dos seus males, a divulgação podia prejudicar a sua recuperação, pela intranquilidade psíquica que podia causar e podia ter origem em hesitação do médico no diagnóstico.
A revelação de que uma pessoa sofre de doença contagiosa, venérea ou até sida, seria situação impensável e inadmissível; a revelação de doença grave ou fatal, como de natureza cancerosa, seria fonte de grande intranquilidade e ansiedade, que não iria colaborar na recuperação, ou melhor, bem-estar do doente, e a hesitação do médico quanto à indicação da doença concreta, por dúvidas sobre o diagnóstico, teria que ser revelada publicamente, a poder fazer suspeitar de incompetência, que nem existiria.
Estes prejuízos, bem possíveis, de forma alguma são correspondentes ou estão no mesmo plano que a justificação de uma falta a um acto judicial, especialmente quando a lei permite a possibilidade de controlo do que é atestado.
Desta forma, dúvidas não temos de que a lei não exige nos atestados médicos justificativos da falta de comparecimento a indicação do motivo concreto da impossibilidade de comparecimento.
6 - Porém, com o novo artigo 117.º, n.º 3, não terá pretendido o legislador que, embora não especificando a doença, causa da impossibilidade de comparecimento, sejam, todavia, especificados os seus efeitos, também causa dessa impossibilidade de comparecimento, embora de natureza mais imediata e sem os inconvenientes apontados? No sentido de que o médico, certificando que o faltoso está doente, teria que acrescentar que essa doença o impossibilitaria de comparecer por ter de ficar retido no leito, internado em estabelecimento hospitalar, não poder sair de casa, não poder andar, não poder falar, não poder contactar com outras pessoas, etc.? Continuamos a entender que não.
Em primeiro lugar, porque não se vê que a lei faça essa exigência; no n.º 3 do artigo 117.º fala-se em «especificar a impossibilidade ou grave inconveniência», em alternativa de igual força.
E, se é possível pensar-se que «especificar a impossibilidade» seria concretizá-la, mesmo nestes termos, já «especificar grave inconveniência», nada tem a ver com isso, nunca poderia ter esse sentido.
O vocábulo «especificar» nitidamente que está empregado no sentido de no atestado ter que constar expressamente, nomeadamente, especificamente, para além de outros elementos, essa impossibilidade ou grave inconveniência.
O grave inconveniente de comparecimento nunca poderia ser mais especificado do que isso mesmo.
Ao cometer ao médico a competência para ajuizar da grave inconveniência, nitidamente que a lei lhe entregou também o juízo sobre a própria impossibilidade.
Em segundo lugar, porque não teria qualquer interesse a especificação desse efeito da doença, na medida em que ele tem sempre que assentar no juízo do próprio médico; e tanto faz que este certifique que a pessoa está impossibilitada de comparecer como indique uma qualquer situação, por si prescrita, de que resulta essa impossibilidade.
Ainda que se pense que a lei pretendeu conceder ao juiz um controlo sobre a conduta do doente, o certo é que os efeitos práticos seriam sempre os mesmos: prescrevendo ou verificando uma situação de impossibilidade de comparecimento, o juízo de valor será sempre feito pelo médico e a violação pelo doente pode suceder da mesma forma.
O médico podia dizer ao doente que, dada a sua doença, devia ficar retido no leito, passar, por isso, o atestado e, apesar de tudo, o doente sair de casa, para qualquer lado, em prejuízo da sua saúde.
O controlo pelo juiz podia ser feito da mesma forma: porque se verificou a falta, por pessoa em relação à qual o médico dizia que não podia comparecer por doença, era igual que tivesse sido acrescentada a impossibilidade de sair do leito ou a simples impossibilidade de comparência.
Aliás, pense-se na hipótese contrária de o doente estar doente e internado em hospital, por exemplo, e, apesar disso, o médico entender que a sua situação não o impossibilitava de comparecer.
Nestes termos, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.
Em consequência, para os efeitos do artigo 445.º do Código de Processo Penal, lavra-se a seguinte decisão:
O atestado médico, para justificar a falta de comparecimento perante os serviços de justiça de pessoa regularmente convocada ou notificada, referido no artigo 117.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não tem que indicar o motivo concreto que impossibilita essa comparência ou a torna gravemente inconveniente, mas apenas atestar que o faltoso se encontra doente e impossibilitado ou em situação de grave inconveniência, por doença, de comparecer.
Sem tributação.
Cumpra o artigo 444.º do Código de Processo Penal.
Lisboa, 3 de Abril de 1991. - Armando Pinto Bastos - José Alfredo Soares Manso Preto - Manuel Lopes Maia Gonçalves - José Saraiva - Fernando Faria Pimentel Lopes de Melo - José Henriques Ferreira Vidigal - Manuel da Rosa Ferreira Dias - António Cerqueira Vahia - António Manuel Tavares Santos - Agostinho Pereira dos Santos - Fernando Ferreira de Sousa Sequeira.