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Acórdão 62/2016, de 7 de Março

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Sumário

Julga inconstitucional a norma do artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, na parte em que determina a suspensão de funções por efeito do despacho de pronúncia em processo penal por infração a que corresponda pena de prisão superior a três anos

Texto do documento

Acórdão 62/2016

Processo 457/2015

Acordam, na 3.ª secção, do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Licínio António Esteves Amaro, agente da Polícia de Segurança Púbica (PSP), interpôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra ação de impugnação contra o ato do Diretor Nacional da PSP, de 28 de junho de 2013, que, nos termos do artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da PSP, e na sequência da emissão de despacho de pronúncia em processo crime, determinou a suspensão de funções até à decisão final absolutória ou até à decisão final condenatória.

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra julgou a ação procedente e anulou o despacho impugnado, recusando a aplicação da referida disposição do artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da PSP, por violação do princípio da presunção da inocência do arguido, do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade.

Dessa decisão, o Ministério Público interpôs recurso obrigatório, ao abrigo da alínea a) do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional.

Tendo o processo prosseguido para conhecimento de mérito, o Procurador-Geral adjunto apresentou alegações, em que conclui pelo provimento do recurso e a consequente revogação da decisão recorrida com base, em síntese, nas seguintes considerações:

1 - A norma jurídica constante do artigo 38.º, n.º 1, do RDPSP, nomeadamente por não configurar pena disciplinar ou «antecipação de culpa», não infringe os direitos de defesa do arguido em sede do processo disciplinar, nomeadamente não é atentatória do princípio da presunção da inocência.

2 - A solução legal em apreço tem fundamento objetivo e é razoável, sendo certo que, em razão das exigências próprias das funções policiais, decorrentes da autoridade, prestígio e confiança pública que devem revestir, não concorre uma igualdade material de situações com os «trabalhadores que exercem funções públicas», não havendo aqui, portanto, tratamento desigual de situações materialmente idênticas, pelo que, no caso, não há violação do princípio constitucional da igualdade.

3 - A medida disciplinar prevista no artigo 74.º, n.os 1, alínea c), 6 e 7, do Regulamento Disciplinar da PSP, tem pressupostos e alcance diversos daquela prevista no artigo 38.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, pelo que aquela primeira não pode ser tomada como uma «alternativa menos restritiva» desta última, sendo certo que a privação de um sexto do vencimento, que dela decorre, não é de reputar como «excessivo».

4 - Tendo o interessado deduzido impugnação da decisão administrativa e requerida tutela cautelar, a justiça do caso decorrerá não de recusar a aplicação da norma impugnada mas, antes, de aplicar as normas jurídicas que regem a justiça administrativa, nomeadamente em matéria de providências cautelares, à luz dos factos pertinentes e segundo os critérios de ponderação estabelecidos na lei, para boa e legal composição dos interesses, privados e públicos, conflituantes no caso.

O autor, ora recorrido, contra-alegou, concluindo do seguinte modo:

I) O Recurso interposto pelo Ministério Público é desprovido de fundamento, porque nenhum vício enferma a decisão recorrida, que ao recusar a aplicação do artigo 38.º do Regulamento Disciplinar da PSP, fez correta interpretação do Direito e da Lei, bem como aplicou bem a Constituição da Republica Portuguesa.

II) Tal norma, como bem se decidiu, viola, de forma flagrante, os princípios de presunção de inocência, previsto no artigo 32.º da CRP; da igualdade, previsto no artigo 13.º, n.º 1 e 2, da CRP; da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º n.º 2 da CRP.

III) Esta norma, o referido artigo 38.º da CRP, cuja aplicação foi recusada, e bem, pela decisão recorrida, com fundamento na sua inconstitucionalidade, é grosseiramente inconstitucional, em face de prever aplicação cega, sem qualquer fundamento que não seja um despacho de pronúncia, quando, nomeadamente, se pelo mesmo facto, agente, crime e processo, não houver instrução, tal norma nem sequer se aplica e o agente vai para julgamento, será ou não condenado criminal e disciplinarmente, sem que a suspensão se verifique.

IV) Todos os demais casos paralelos, desde a GNR, Polícias Municipais, ASAE; funcionários e inspetores tributários; altos cargos de chefia e direção e organismos e serviços públicos, não têm no seu regime norma similar ou equivalente, com exceção da PJ, (que ainda igualmente se mantém, mas igualmente é inconstitucional), sendo que os trabalhos preparatórios dos novos regimes já nem preveem tal norma.

V) E assim, sem outros considerandos e remetendo para o que vai supra na alegação, conclui-se que o recurso não deve merecer provimento, devendo ser mantida a decisão recorrida, declarando-se aqui também que o artigo 38.º é inconstitucional por violação das normas e princípios constantes da decisão recorrida, que fez, louva-se boa aplicação do direito, mormente do direito constitucional.

Cabe apreciar e decidir.

II - Fundamentação. - 2 - A questão de constitucionalidade que vem colocada, e que originou a recusa de aplicação de norma pelo tribunal recorrido, reporta-se ao artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei 7/90, de 20 de fevereiro, e que dispõe do seguinte modo:

O despacho de pronúncia ou equivalente com trânsito em julgado em processo penal por infração a que corresponda pena de prisão superior a três anos determina a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória.

Norma de idêntico teor constava do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei 24/84, de 16 de janeiro (artigo 6.º) e já provinha do Estatuto Disciplinar de 1979 (artigo 6.º), do Estatuto Disciplinar de 1943 (artigo 6.º) e do Código Administrativo (artigo 562.º), ainda que, nesses casos, o efeito de suspensão de funções se encontrasse relacionado com a prolação de despacho de pronúncia em processo de querela ou por algum dos crimes enunciados no § único do artigo 71.º do Código Penal.

O Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, aprovado pela Lei 58/2008, de 9 de setembro, bem como o regime disciplinar que lhe sucedeu, inserido na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGT), e se encontra atualmente em vigor, já não contemplam a suspensão de exercício de funções como efeito do despacho de pronúncia, e limitaram-se a determinar a obrigatoriedade de comunicação do despacho de pronúncia, por parte do Ministério Público, ao órgão ou serviço em que o trabalhador desempenha funções (artigos 7.º, n.º 1, e 179.º, n.º 1, respetivamente).

O que significa que, no regime disciplinar geral atualmente vigente, o despacho de pronúncia proferido em processo penal, na medida em que pressupõe a recolha de indícios suficientes da prática de um crime, de que possa resultar uma probabilidade razoável de que ao arguido venha a ser aplicada uma pena, apenas justifica que se dê conhecimento ao dirigente do serviço com competência disciplinar para avaliar a conveniência da instauração de procedimento disciplinar, se os factos tiveram relevância nesse plano, e, eventualmente, se adotarem medidas cautelares, que poderão incluir a suspensão preventiva do exercício de funções do arguido quando a sua presença se revele inconveniente para o serviço (artigo 211.º da LGT).

A suspensão do exercício de funções nos termos do artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da PSP tem, no entanto, um diferente alcance, visto que se traduz numa necessária consequência da pronúncia e, por isso, num efeito que a lei faz derivar direta e automaticamente de um ato processual penal, independentemente de prévia instauração de procedimento disciplinar ou de audiência do arguido ou de qualquer outra ponderação sobre a oportunidade de afastamento do arguido da sua normal atividade profissional.

Em todo o caso, cabe fazer notar que a suspensão do exercício de funções, para além de se encontrar dependente da prova indiciária de que o arguido é responsável pelos factos que integram a prática de crime, apenas tem lugar quando a infração é punível com pena de prisão superior a três anos, tornando-se, por isso, exigível um especial índice de gravidade penal, que correspondia também ao preenchimento do requisito necessário para a imposição ao arguido de prisão preventiva ou para a aplicação de pena de prisão efetiva [artigos 202.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e 50.º, n.º 1, do Código Penal, na redação anterior à reforma de 2007, vigente à data da publicação do Regulamento Disciplinar da PSP].

Por outro lado, importa ter em consideração que, em face do específico estatuto disciplinar dos agentes da PSP, é a prática de certo tipo de crimes, e não de todo e qualquer crime, que conduz à aplicação de uma medida disciplinar expulsiva (artigo 47.º, n.º 2, alíneas b) e g)), pelo que a suspensão de exercício de funções prevista no falado artigo 38.º do Regulamento Disciplinar da PSP não pode ser vista como uma medida cautelar inerente à possível aplicação de uma pena de demissão ou de aposentação compulsiva que seja tendencial ou necessariamente decorrente da imputação dos factos pelos quais o arguido é pronunciado.

Não estamos aqui, em todo o caso, perante uma restrição de direitos que implique a antecipação da aplicação de uma pena ou um qualquer juízo ético-jurídico de censura sobre os factos criminalmente puníveis, assim como não se trata de uma pena acessória ou de um efeito que se encontre associado à condenação penal. A suspensão do exercício de funções decorrente da prolação do despacho de pronúncia constitui antes um efeito de direito que, sendo desencadeado por um mero ato processual penal, se repercute na relação de emprego público e representa, por isso, uma consequência jurídica de natureza estritamente disciplinar.

Isso é o que também resulta da inserção sistemática da norma no âmbito das disposições gerais atinentes à responsabilidade disciplinar e do facto de o mesmo preceito, concomitantemente, impor às entidades judiciárias o dever de comunicação do despacho de pronúncia ao órgão dirigente da PSP para efeitos disciplinares (n.º 3). E assim se compreende que, nos termos da mesma disposição, a suspensão de efeitos se mantenha até à decisão final absolutória ou até à decisão final condenatória, o que parece significar que, não se verificando a caducidade por efeito de uma sentença que absolva o arguido da prática do crime, a medida extingue-se pela sua substituição, em caso de sentença condenatória, por uma pena acessória de proibição do exercício de função, cuja aplicação depende da valoração feita pelo tribunal de julgamento segundo os critérios gerais da determinação da pena, ou pela suspensão do exercício da função durante o cumprimento da pena de prisão, como efeito conatural à própria restrição de liberdade inerente à execução da pena de prisão (artigos 66.º e 67.º do Código Penal).

E, sendo assim, só na sequência de uma condenação penal é que a proibição ou a suspensão do exercício de função pode ser tida como uma sanção penal ou como um efeito material de uma sanção penal (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição, Universidade Católica, págs. 259 e 261).

Ao contrário, a suspensão de exercício de funções como efeito automático da prolação do despacho de pronúncia, como prevê o artigo 38.º do Regulamento Disciplinar da PSP, tem incidência meramente disciplinar, refletindo-se apenas na relação laboral existente entre a entidade empregadora e o trabalhador.

3 - A garantia de audiência e defesa do arguido decorre, para os trabalhadores da Administração Pública, como um elemento central do estatuto da função pública, do disposto no artigo 269.º, n.º 3, da Constituição, mas que a revisão constitucional de 1989 tornou extensiva aos processos de contraordenação e aos demais processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10). No entanto, da garantia de audiência e defesa não é possível retirar uma extensão ao processo disciplinar da generalidade do regime substantivo em matéria penal. O preceito constitucional apenas releva no plano adjetivo e significa que é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 180/14).

Tem-se admitido, em todo o caso, que os princípios da constituição criminal, e especificamente os previstos nos artigos 29.º e 32.º da CRP, apesar de se restringirem no seu teor literal ao direito criminal, devam valer, no essencial, e por analogia, para todos os domínios sancionatórios: o princípio da legalidade das penas, o princípio da não retroatividade e o princípio da lei mais favorável ao arguido e o princípio da culpa (acórdãos do TC n.os 161/95, 227/92, 574/95 e 160/2004). A jurisprudência constitucional tem igualmente admitido, em processo disciplinar, o princípio da presunção de inocência do arguido, como decorrência do direito a um processo justo, não apenas na sua vertente probatória, correspondendo à aplicação do princípio in dubio pro reo, pelo qual é à Administração que cabe o ónus da prova dos factos que integram a infração, quer ao nível do próprio estatuto ou condição do arguido em termos de tornar ilegítima a imposição de qualquer ónus ou restrição de direitos que, de qualquer modo, representem e se traduzam numa antecipação da condenação (assim, o acórdão do TC n.º 123/92, que julgou inconstitucional a norma que determina, na sequência da prolação do despacho de pronúncia, e durante a suspensão do exercício de funções da mesma decorrente, a perda da totalidade do vencimento).

Analisando à luz desse parâmetro de constitucionalidade, a norma do artigo 6.º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar de 1984 (que tinha plena correspondência com a norma agora sindicada), o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 439/87, pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade, consignando, no essencial, o seguinte:

Mas essa garantia [a presunção de inocência do arguido] não torna ilegítima toda e qualquer suspensão de funções do arguido, que seja funcionário ou agente, aplicada antes do trânsito em julgado da sentença de condenação. A própria prisão preventiva é admitida pela Constituição, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», no caso de «flagrante delito» ou «por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena maior»(-). A suspensão só será constitucionalmente ilegítima quando viole o princípio da proporcionalidade, «o qual - como se lê no citado Acórdão 282/86 - encontra afloramento no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição e sempre há de reputar-se como componente essencial do princípio do Estado de direito democrático (cf. o artigo 2.º)».

Ora, fundando-se a suspensão de funções cominada no n.º 1 do artigo 6.º do Estatuto Disciplinar (-) na «defesa do prestígio dos serviços» (-), sendo ela consequência de «despacho de pronúncia em processo de querela com trânsito em julgado» e determinando tal suspensão apenas a suspensão do «vencimento de exercício» - que é constituído por um sexto do vencimento total (-), não se afigura que com ela saia violado o princípio da proporcionalidade.

Poderá dizer-se que as considerações de índole funcional que, na perspetiva desse acórdão, podem justificar o afastamento do serviço efetivo em relação ao trabalhador em funções públicas, por efeito da prolação do despacho de pronúncia em processo-crime, valem por maioria de razão para os agentes dos serviços e das forças de segurança.

Desde logo, porque esses agentes dispõem de um estatuto jurídico-constitucional próprio. O artigo 270.º da Constituição, na redação introduzida pela revisão constitucional de 2001, ainda que inserido no título referente à Administração Pública - o que permite pressupor a sua aplicação a uma categoria de pessoas que se integram ainda no conceito de trabalhadores da Administração Pública -, consagra expressamente, na estrita medida das exigências das suas funções próprias, a possibilidade de a lei estabelecer restrições a alguns direitos, liberdades e garantias, em relação a «militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efetivo», bem como «agentes dos serviços e das forças de segurança», embora com alguma diferença de grau entre estas diferentes categorias.

O que tem também reflexo, no que diz respeito ao pessoal policial, no respetivo estatuto profissional, que é caracterizado, não apenas pela restrição a alguns direitos e liberdades, mas também pela sujeição a um conjunto de princípios orientadores e deveres especiais, que justificam o reconhecimento da sua especificidade face aos demais trabalhadores da Administração Pública. O que permite compreender que o pessoal policial, para além da sujeição aos deveres gerais aplicáveis aos trabalhadores que exercem funções públicas, se encontre também subordinado a um código deontológico próprio e a estatuto disciplinar especial (artigos 4.º e 13.º do Decreto-Lei 299/2009, de 14 de outubro). Condicionamentos estes que estão associados naturalmente às atribuições próprias da PSP, entre as quais, se destaca a prevenção da criminalidade em geral e o desenvolvimento de ações de investigação criminal e contraordenacional [artigo 2.º, n.º 2, alíneas c) e e), da Lei 53/2007, de 31 de agosto].

A medida de suspensão automática de funções, em consequência da emissão do despacho de pronúncia em processo-crime instaurado contra um agente da PSP, pode ser encarada, por isso, como um medida cautelar destinada a preservar, independentemente de qualquer outra ponderação, a integridade e o prestígio da função policial na sua relação com os cidadãos e o público em geral.

Como se assinalou no Acórdão 123/92, o princípio da presunção da inocência do arguido não proíbe a antecipação de certas medidas cautelares e de investigação, e, como no caso do processo disciplinar, a suspensão provisória do exercício de funções.

A questão que no caso vertente se coloca é que uma tal medida surja como efeito automático da prolação do despacho de pronúncia, sem qualquer ponderação de um juízo de necessidade no contexto do caso concreto. A sujeição do arguido a uma medida, ainda que de natureza cautelar, que se baseie num juízo de probabilidade de futura condenação viola prima facie o princípio da presunção de inocência que se encontra constitucionalmente garantido até à sentença definitiva, pois que é aplicada com o exclusivo fundamento numa presunção de culpabilidade.

Por outro lado, não parece que uma tal medida, ainda que encontre a sua razão de ser em considerações de ordem funcional, se mostre justificada à luz do ordenamento jurídico, sendo possível divergir, neste estrito plano, do juízo que genericamente foi formulado no citado Acórdão 439/87.

Na verdade, a própria norma do artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da PSP, em consonância com o que também dispõe atualmente o regime disciplinar dos trabalhadores em funções públicas (artigo 179.º da LGT), prevê o dever de comunicação do despacho de pronúncia à entidade com competência disciplinar, que poderá com base nos mesmos factos instaurar procedimento disciplinar, e, nesse âmbito, instituir a medida cautelar de suspensão preventiva do arguido sempre que a sua manutenção em funções seja inconveniente para o serviço ou para o apuramento da verdade (artigo 74.º, n.º 1).

Por outro lado, a possibilidade de aplicação da suspensão preventiva por iniciativa da entidade administrativa que ordene a instauração do processo disciplinar, ou, no decurso desse processo, por proposta do instrutor (n.º 2) - e ainda que se encontre pendente um processo-crime pelos mesmos factos -, é a necessária decorrência do princípio da autonomia do processo disciplinar relativamente ao processo penal (cf. artigos 179.º, n.os 3 e 4, da LGT), e que tem, entre outras, as seguintes consequências: (a) é possível a aplicação de duas sanções - a disciplinar e a criminal - sem violação do princípio non bis in idem; (b) o caso julgado absolutório penal não impede que os mesmos factos sejam considerados provados em matéria disciplinar; (c) a Administração não está vinculada aos resultados probatórios obtidos em processo-crime, podendo decidir, segundo a sua livre convicção, em termos divergentes do caso julgado penal; (d) sendo imputado ao arguido em processo disciplinar os mesmos factos que constituem matéria de acusação em processo-crime, não há motivo para a suspensão do procedimento até que seja proferida decisão final no processo-crime (sobre todas estas questões, cf. os acórdãos do TC n.os 161/95 e 263/94 e os acórdãos do STA de 12 de maio de 2005, Processo 930/04, de 4 de dezembro de 1997, Processo 36390, de 21 de maio de 2008, Processo 989/07, de 21 de janeiro de 2011, Processo 1079/09, de 14 de outubro de 1993, Processo 31885 e de 9 de maio de 1995, Processo 35837).

Nada justifica, por conseguinte, mesmo à luz do princípio da proporcionalidade (numa dimensão da necessidade), que, em benefício dos interesses funcionais dos serviços, se verifique a suspensão do exercício de funções por efeito de um ato processual penal, quando está na disponibilidade da Administração, independentemente da prossecução do processo penal e da decisão final que nele venha a ser proferida, decretar uma medida cautelar instrumental de idêntico alcance e pela qual é possível atingir as mesmas finalidades de prevenção geral.

Não pode ignorar-se, por outro lado, que a obrigatoriedade do processo disciplinar, que se encontra consagrada na lei (artigos 194.º e 298.º da LGT), deve entender-se como uma das regras ou princípios que caracterizam o estatuto específico da função pública, com assento constitucional e que decorre essencialmente do disposto nos artigos 269.º e 271.º da Lei Fundamental (cf., neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 154/2010).

Ora, só por via do procedimento disciplinar, em que seja assegurada ao a garantia de audiência e defesa do arguido, é que é possível fazer cessar o vínculo de emprego público por motivo disciplinar, e só nessa sede é admissível a adoção de medidas cautelares que se destinem a proteger, na pendência do procedimento, a capacidade funcional da Administração, e que sempre depende, por aplicação de um princípio de proporcionalidade, de um juízo de ponderação da necessidade da medida nas circunstâncias do caso concreto.

Tudo leva a concluir no sentido da inconstitucionalidade da norma sub judicio por violação do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, entendido em articulação com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, ficando consequentemente prejudicada a apreciação do princípio da igualdade que serviu igualmente de parâmetro para o julgamento feito pelo tribunal recorrido.

III - Decisão. - Termos em que se decide:

a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, na parte em que determina a suspensão de funções por efeito do despacho de pronúncia em processo penal por infração a que corresponda pena de prisão superior a três anos, por violação do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2.

b) Negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Sem custas.

Lisboa, 3 de fevereiro de 2016. - Carlos Fernandes Cadilha - Maria José Rangel de Mesquita - Catarina Sarmento e Castro - Lino Rodrigues Ribeiro - Maria Lúcia Amaral.

209392918

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2526717.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1984-01-16 - Decreto-Lei 24/84 - Presidência do Conselho de Ministros e Ministério da Administração Interna

    Aprova o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local.

  • Tem documento Em vigor 1986-11-11 - Acórdão 282/86 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do corpo dos artigos 160.º do Código da Contribuição Industrial e 130.º do Código de Transacções, na parte em que determinam a suspensão dos direitos emergentes da inscrição dos técnicos de contas, por infracção do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, do § único dos artigos 160.º do Código da Contribuição Industrial e 130.º do Código do Imposto de Transacções, por ofensa do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição e dos artigos (...)

  • Tem documento Em vigor 1990-02-20 - Lei 7/90 - Assembleia da República

    Aprova o Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública (RDPSP), publicado em anexo.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-31 - Lei 53/2007 - Assembleia da República

    Aprova a orgânica da Polícia de Segurança Pública.

  • Tem documento Em vigor 2008-09-09 - Lei 58/2008 - Assembleia da República

    Aprova o Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas, publicado em anexo.

  • Tem documento Em vigor 2009-10-14 - Decreto-Lei 299/2009 - Ministério da Administração Interna

    Aprova o Estatuto do Pessoal Policial da Polícia de Segurança Pública.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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