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Acórdão 24/2016, de 7 de Março

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Sumário

Não julga inconstitucional o artigo 356.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de que «a leitura dos depoimentos testemunhais prestados no inquérito perante o Ministério Público é admitida, sem ser necessário o consentimento dos arguidos, quando aquela leitura se destine a avivar a memória de quem declare na audiência já não se lembrar de certos factos, ou quando existir entre elas e as feitas na audiência discrepâncias ou contradições»; não conhece do objeto do recurso quanto às restantes questões de inconstitucionalidade

Texto do documento

Acórdão 24/2016

Processo 1014/15

(retificado pelo Acórdão 88/2016)

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1 - Pedro do Carmo Costa, Sofia Cardoso Miguel, Rui Manuel Cardoso Costa, Orlanda Soraia Fernandes Garcia, Nivaldo Cardoso Costa e Laura Domingas Savedra, recorrentes nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, foram condenados, por acórdão da 2.ª Secção das Varas Mistas de Coimbra, pela prática de diversos crimes, em penas de prisão fixadas entre os cinco e os sete anos de prisão. Desta decisão apelaram para a Relação de Coimbra (fls. 5127 e ss.). Por acórdão de 17 de dezembro de 2014, a Relação julgou improcedentes as nulidades decorrentes das proibições de prova e processuais invocadas pelos então recorrentes. Determinou, contudo, a anulação do acórdão recorrido (por falta de fundamentação e omissão de pronúncia), e a sua substituição por outro, que colmatasse as lacunas apontadas.

Inconformados, os ora recorrentes interpuseram recurso de constitucionalidade desta decisão, recurso esse que viria a ser rejeitado por decisão sumária, posteriormente confirmada pelo Acórdão 173/2015 deste Tribunal (disponível, assim como os demais adiante citados, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), tendo em conta que:

«Como sublinhado pelo Tribunal recorrido, por força da anulação da decisão do tribunal de primeira instância, não se sabe se os arguidos virão a ser absolvidos ou condenados e, neste último caso, em que termos, sendo que disso decisivamente depende a própria aferição dos pressupostos processuais do recurso de constitucionalidade previstos nos artigos 70.º, n.º 2, e 72.º, n.º 1, alínea b), da LTC [a Lei 28/82, de 15 de novembro]. E, não tendo sido, ainda, proferida qualquer decisão final, todas as possibilidades estão em aberto, designadamente a da prolação, pela relação, de decisão absolutória, caso em que os arguidos não terão legitimidade para interpor recurso de constitucionalidade, ou de decisão condenatória, em recurso interposto pelo Ministério Público, que preencha os pressupostos do recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça previstos no artigo 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), do CPP, a contrario, por não confirmativa da decisão do tribunal de primeira instância, caso em que o juízo ora sindicado, por reversível, não se assumirá como definitivo.

Assim sendo, nesse desconhecimento, afigura-se efetivamente precipitado o recurso de constitucionalidade ora interposto pelos arguidos, sendo de confirmar a decisão, ora em reclamação, que não admitiu o recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.»

Seguindo a determinação do Tribunal da Relação de Coimbra, o Tribunal da Comarca de Coimbra proferiu novo acórdão, suprindo as insuficiências anteriormente detetadas, e voltou a condenar os arguidos em penas de prisão entre os cinco e os sete anos de prisão.

De novo inconformados, voltaram a apelar os ora recorrentes, retomando, designadamente, as nulidades que haviam suscitado anteriormente. Por acórdão de 9 de setembro de 2015, a Relação negou provimento ao recurso.

2 - É deste aresto que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, com fundamento na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, seguidamente abreviada como «LTC»).

No requerimento de recurso (fls. 6720 e ss.), os recorrentes salientam pretender interpor recurso de constitucionalidade «em relação a todas as questões de constitucionalidade invocadas ao longo de todo o processo, nomeadamente, em relação às questões decididas por acórdão da Relação de Coimbra proferido em 17 de dezembro de 2014, pois antes não lhes foi permitido recorrer das mesmas por ser ainda precipitado» e que «todas as inconstitucionalidades já [foram] invocadas/suscitadas nos Recursos interpostos para o Tribunal da Relação de Coimbra (recursos interpostos em 2 e 7 de julho de 2014 e em 24 de junho de 2015)». São as seguintes as questões de constitucionalidade autonomizadas pelos recorrentes:

«ARTIGO 170.º DO CPP - quando interpretado, como fez o Tribunal da Relação de Coimbra, no sentido de que cai sobre o arguido o ónus de indicar meios de prova e requerer diligências por forma a habilitar o julgador a decidir pela falsidade do conteúdo material do ato judicial praticado no inquérito pelo MP. Tal interpretação deve ter-se por inconstitucional, por violação da presunção de inocência vertida no art.º 32.º n.º 2 CRP hem como demais garantias de defesa plasmadas no n.º 1. Os arguidos suscitaram, em sede de julgamento, aquando da inquirição de certas testemunhas, a questão da veracidade do conteúdo do auto de inquirição dessas mesmas testemunhas aquando do seu depoimento perante o Magistrado do MP. Obtendo das mesmas a confirmação de que efetivamente não disseram o que lá se encontra registado. O MP não procedeu a qualquer inquirição de testemunhas tendo-se limitado a "cortar" e a "colar" as declarações que aquelas testemunhas tinham já anteriormente prestado perante a PJ. Uma vez levantada a questão da falsidade, das três, uma: Ou o Tribunal se convencia de que o mesmo é verdadeiro e o declarava na sentença, ou assumia que o mesmo era falso e assim o proclama, ou suspeita da falsidade e, oficiosamente, ordenava a produção de prova que considera necessária a fim de resolver tal dúvida num sentido positivo ou negativo. Esta questão já foi suscitada em sede de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.

ARTIGO 275.º, N.º 1 DO CPP - quando interpretado, como fez o Tribunal da Relação de Coimbra, no sentido de que como cabe ao MP redigir a súmula das declarações prestadas pelas testemunhas em sede de inquérito nada o impede (MP) que recorra exclusivamente, como é o caso, às funções do "corta" e "cola", podendo, segundo interpretação do Tribunal da Relação, pura e simplesmente cortar na integra o depoimento que consta do auto de inquirição da PJ e "colá-lo" na íntegra no auto das declarações prestadas perante o MP. Ora, o facto da documentação das alegadas declarações de testemunhas se traduzir num "corta" e "cola" dos depoimentos anteriormente prestados perante a polícia Judiciária (o que é evidente nos presentes autos basta comparar os autos dos depoimentos prestado perante a polícia judiciária e os autos das declarações prestadas perante o MP) e atendendo a que tais declarações prestadas perante o MP, em determinadas circunstâncias, poderão ser lidas em sede de julgamento (como o foram no caso em concreto), entendemos que a interpretação feita pelo Tribunal da Relação de Coimbra do art.º 275.º, n.º 1 é, sem dúvida, inconstitucional, por contrária à Lei fundamental e demais diplomas de Direito internacional, desde logo por violação do art.º 32.º n.º 2 CRP. Esta questão foi suscitada já em sede de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.

ARTIGO 356.º, N.º3 DO CPP - quando interpretada no sentido de que a leitura dos depoimentos testemunhais prestados no inquérito perante autoridade judiciária é admitida, sem ser necessário o consentimento dos arguidos, quando aquela leitura se destine a avivar a memória de quem declare na audiência já não se lembrar de certos factos, ou quando existir entre elas e as feitas na audiência discrepâncias ou contradições. Tal interpretação é inconstitucional por violação do disposto no n.º 4 do art.º 20.º da CRP, art.º 32.º, n.º 1, 2 e 5 da CRP. Esta questão foi suscitada já em sede de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.

ARTIGO 127.º DO CPP - quando interpretada no sentido de que o Tribunal poderá formar a sua convicção com base nas declarações prestadas por uma testemunha em sede de inquérito (declarações prestadas perante MP e que foram depois lidas em sede Julgamento) em detrimento daquelas que essa mesma testemunha prestou em sede de audiência de discussão e julgamento. Isto porque as declarações cuja leitura o tribunal permitiu, sem a concordância dos arguidos, não foram prestadas com observância das formalidades estabelecidas para a audiência ou perante Juiz, não existindo quanto a elas as garantias dialéticas de contraditoriedade constitucionalmente asseguradas. Assim, tal interpretação deve ser declarada inconstitucional por violar o direito do arguido a um julgamento equitativo e justo, e, portanto, violar a garantia da defesa nos termos referidos no artigo 32.º n.º 1 da CRP.

ARTIGO 356.º, N.º4 DO CPP - quando interpretado no sentido de que [o] simples facto da testemunha estar ausente no estrangeiro se enquadra, por si só, na situação de impossibilidade duradoura prevista naquela disposição legal. Tal interpretação deve ser tida como Inconstitucional, por violar o princípio do contraditório e, em consequência, do direito de defesa do arguido - direito constitucionalmente reconhecido no art.º 32.º da CRP. Esta questão foi suscitada em sede de julgamento por através de requerimento ditado para ata e em sede de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.

ARTIGO 368.º-A DO CP - quando interpretado no sentido de que o simples depósito de quantias em dinheiro provenientes do tráfico de estupefacientes em conta bancária dos próprios arguidos é suscetível, sem mais de integrar o elemento subjetivo do crime branqueamento de capitais. Tal interpretação deve ser tida como Inconstitucional, por violar o princípio da presunção da inocência, e, em consequência, do direito de defesa do arguido - direito constitucionalmente reconhecido no art.º 32.º da CRP. Esta questão foi suscitada em sede de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.»

Subidos os autos a este Tribunal Constitucional, o relator proferiu o seguinte despacho:

«Considerando a tramitação do presente processo, nomeadamente a prolação do Acórdão 173/2015 deste Tribunal de fls. 5862 e ss. e, bem assim, a concreta intenção do impulso dos recorrentes, tem-se por assente que o objeto formal do recurso de constitucionalidade integra os acórdãos de 17 de dezembro de 2014 e de 9 de setembro de 2015, ambos proferidos pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

Notifique para alegações, alertando as partes para a eventualidade de não conhecimento do objeto material do recurso quanto às seguintes questões de constitucionalidade enunciadas no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade (v. fls. 6720 e ss.):

- Questões referentes aos artigos 170.º e 275.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambas por não suscitação adequada e, subsidiariamente, por não integrarem a ratio decidendi do acórdão de 17 de dezembro de 2014;

- Questão referentes ao artigo 127.º do Código de Processo Penal, por inidoneidade do objeto e não suscitação adequada;

- Questão referente ao artigo 356.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, por inidoneidade do objeto, por não suscitação adequada e, subsidiariamente, por não integrar a ratio decidendi do acórdão de 17 de dezembro de 2014;

- Questão referente ao artigo 368.º-A do Código Penal, por não suscitação adequada e, subsidiariamente, por não integrar a ratio decidendi do acórdão de 9 de setembro de 2015.

Prazo: 15 dias (artigos 43.º, n.º 3, e 79.º, n.º 2, da LTC).»

(fls. 6736)

3 - Os recorrentes e os recorridos apresentaram alegações.

3.1 - Os recorrentes concluíram as suas alegações do seguinte modo:

«1 - DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DA NORMA CONSTANTE DO artigo 356.º N.º 4 DO CPP, quando interpretada no sentido em que foi interpretado pelo Tribunal a quo, ou seja, no sentido de que o simples facto da testemunha estar ausente no estrangeiro, apesar de se encontrar em parte certa e com regresso a Portugal em data determinada, consubstancia impossibilidade duradoura nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4 do art. 356.º do CPP, sendo, assim, permitida a leitura - em julgamento - das declarações prestadas por aquela testemunha perante o Ministério Público no decurso do inquérito - estamos a referir-nos, no caso em apreço e em concreto, à leitura que foi feita em audiência das declarações prestadas pela testemunha JORGE MANUEL GRILO MATOS RIBEIRO GOMES perante o MP em sede de inquérito.

2 - O Tribunal a quo ao permitir a leitura do depoimento da testemunha Jorge Gomes (depoimento prestado perante magistrado do MP de fls. 2674 a 2677), Violou grosseiramente o disposto no art.º 356.º n.º 4 do CPP por não estarmos perante uma situação de impossibilidade duradoura e ter havido, por tal motivo, oposição à leitura daquelas declarações por parte dos arguidos, ora Recorrentes.

3 - Estando a testemunha a residir e a trabalhar no estrangeiro, mas em morada conhecida pelo Tribunal e tendo a testemunha informado os autos de regressaria a Portugal no dia 11 de maio de 2014, não consubstancia tal situação uma situação de impossibilidade duradoura por parte da testemunha em prestar o seu depoimento em sede de julgamento, nos termos do art. 356.º, n.º 4!

4 - Pelo que o depoimento prestado por aquela testemunha em sede de inquérito jamais poderia ser lida em sede de julgamento sem o consentimento dos arguidos (aliás sem o consentimento de todos os sujeitos processuais)

5 - Não consubstanciando tal situação uma situação de impossibilidade duradoura, e não tendo todos os sujeitos processuais dado o seu consentimento para a leitura das declarações que a referida testemunha prestou em sede de inquérito, as mesmas não podiam ter sido reproduzidas em audiência.

6 - Carecendo de cobertura legal a leitura do depoimento prestado por aquela testemunha em sede de inquérito, a sua valoração no acórdão recorrido, para efeito da formação da convicção do Tribunal Coletivo, recai no âmbito da proibição prescrita pelo n.º 1 do art.º 355.º do CPP.

7 - Não poderia desta forma o tribunal valorar tal depoimento, devendo o mesmo ser inválido, por violação do art.º 355.º do CPP. O Tribunal a quo violou, desta forma, o princípio da imediação, que nos diz que são inutilizáveis as provas que não tiverem sido produzidas em audiência, com exceção das previstas no art.º 356.º e 357.º CPP.

8 - Assim, para formar decisivamente a sua Convicção quanto à participação dos recorrentes nos factos que deu como provado, o Tribunal a quo serviu-se de provas nulas e proibidas pelas segs. normas legais art.º 125.º, 128.º, 355.ºe 356.º todas do CPP.

9 - Foram violadas para além das normas citadas anteriormente, as garantias de defesa dos aqui recorrentes e os princípios da imediação, da oralidade e do contraditório, constitucionalmente consagrados nos artigos 32.º n.º 1 da CRP, bem como o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do CPP, uma vez que constituem limites a este princípio as normas legais que estabelecem proibições de prova.

10 - Deve ser declarada a inconstitucionalidade, por violar as garantias de defesa do arguido, o disposto no artigo 356.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido em que foi interpretado pelo Tribunal a quo, ou seja, no sentido de que o simples facto da testemunha estar ausente no estrangeiro, em parte certa e com regresso a Portugal em data determinada, consubstanciar impossibilidade duradoura desta testemunha prestar o seu depoimento em sede de julgamento sendo, assim, permitida a leitura em audiência de declarações prestadas por aquela testemunha perante o Ministério Público no decurso do inquérito.

11 - Tal interpretação de[ve] ser tida como inconstitucional, por violar o princípio do contraditório e, em consequência, do direito de defesa do arguido - direito constitucionalmente reconhecido no art.º 32.º da CRP.

12 - Tal interpretação viola o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, na medida em que permite a leitura em audiência de julgamento de depoimento de testemunha de acusação que não compareceu naquela audiência e a qual o arguido não teve previamente a possibilidade jurídica de interrogar ou fazer interrogar.

13 - Não só o princípio do contraditório mas também os princípios da oralidade e da imediação são colocados irremediavelmente em causa.

14 - Quando em Tribunal se lê o depoimento de uma testemunha de acusação que ainda poderia ter sido ouvida oralmente, como é o caso, e quando, para mais, o depoimento tenha sido obtido em condições que não permitiram à defesa estar presente ou, inclusivamente, interrogá-la - quando isto suceda, tem de concluir-se que a interpretação que o tribunal a quo fez de impossibilidade duradoura encurta inadmissivelmente e sem justificação bastante, as garantias de defesa do arguido e, nesta medida, viola o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

15 - DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DA NORMA CONSTANTE DO artigo 356.º N.º 3 DO CPP, quando interpretada no sentido de que não é exigida a Concordância do arguido para que sejam lidas em audiência as declarações prestadas pelas testemunhas em sede de inquérito perante magistrado do MP quando entre elas e as feitas em audiência existam contradições Ou discrepâncias ou a sua leitura seja necessária para o avivamento da memória (no caso em concreto da admissibilidade da leitura em audiência das declarações prestadas - em inquérito e perante o MP e sem a Concordância dos ora Arguidos - pelas testemunhas PAULO MANUEL MOREIRA DINIS, LUÍS FILIPE FERREIRA MARQUES, HUGO RENATO SIMÕES MATEUS E ROBERTO CARLOS COSTA NUNES).

16 - A grande questão é a de saber se poderão ser lidas em julgamento, sem a concordância do arguido, as declarações prestadas por uma testemunha em sede de inquérito quando prestadas perante Magistrado do MP, e a sua leitura tenha sido requerida com o fundamento de existirem discrepâncias entre elas e as feitas em audiência ou a sua leitura seja necessária para o avivamento da memória.

17 - O Tribunal Recorrido entendeu que para tais declarações serem lidas em julgamento não é necessário a concordância do Arguido, pura e simplesmente porque tinham sido prestadas perante Magistrado do MP e isso basta para que fossem reproduzidas em audiência.

18 - Tal interpretação do art. 356.º N.º 3 DO CPP é inconstitucional contrário à Constituição, violando claramente o disposto no art. 356.º, n.º 1, n.º 2, alínea b) e n.º 5 do CPP e, claramente, o disposto no art. 20.º e do art. 32.º da CRP.

19 - Os despachos de admissão de leitura das declarações prestadas pelas testemunhas PAULO MANUEL MOREIRA DINIS, LUÍS FILIPE FERREIR.A MARQUES, HUGO RENATO SIMÕES MATEUS E ROBERTO CARLOS COSTA NUNES em sede de inquérito perante Magistrado do MP, são NULOS porque não houve a concordância por parte dos arguidos na leitura daquelas declarações como exigido pelo disposto no art. 356.º, n.º 2, alínea b) e n.º 5 do CPP e conforme é imposto pelos princípios basilares do contraditório, da imediação e da oralidade, tudo em violação dos referidos já preceitos constitucionais do art. 20.º e 32.º da CRP.

20 - O Tribunal recorrido esqueceu-se que o art. 356.º do CPP tem 9 números e que antes de mais qualquer disposição legal deve ser analisada desde o seu início (desde do seu n.º 1) e em conjugação com outras que com a primeira estejam relacionadas.

21 - No caso em concreto deverá ser analisado todo o art.º 356.º do CPP - artigo que regula, todo ele, quais os autos que podem ser lidos em Audiência de Discussão e Julgamento, e começa, como é evidente, pelo seu n.º 1.

[...]

28 - Ora, tendo em conta o n.º 1 e o n.º 2 do referido artigo, este n.º 3 deverá ser interpretado no sentido de que quando as declarações das testemunhas em sede de inquérito tenham sido prestadas perante autoridade judiciária (MP) estas só podem ser lidas em sede de julgamento quando:

. Haja concordância prevista no n.º 2 alínea b) do CPP, ou seja a concordância de todos os sujeitos processuais, nomeadamente do arguido

. Tal leitura seja necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos ou quando houver entre elas e as feitas em audiência contradições ou discrepâncias e não com qualquer outro fundamento.

29 - Ou seja, quando as declarações das testemunhas em sede de inquérito tenham sido prestadas perante juiz, estas podem ser lidas em sede de julgamento, bastando para o efeito a concordância de todos os sujeitos processuais, não se exigindo qualquer fundamento para ser requerida a leitura de tais declarações. Podem ser pedidas sem mais!

30 - Quando as declarações das testemunhas em sede de inquérito tenham sido prestadas perante MP, estas só podem ser lidas em sede de julgamento com a concordância de todos os sujeitos processuais e desde que tal leitura seja necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos ou quando houver entre elas e as feitas em audiência contradições ou discrepâncias e não com qualquer outro fundamento.

31 - Aqui a admissão da leitura de tais declarações tem que ter, para além da concordância de todos os sujeitos processuais, a fundamentação de que tal leitura é necessária para o avivamento da memória da testemunha ou porque se verificaram as referidas contradições ou discrepâncias.

32 - Esta exigência de concordância de todos os sujeitos processuais na leitura das declarações prestadas em sede de inquérito perante MP resulta não só do art. 356.º n.º 2 alínea b) do CPP (se é necessário a concordância do arguido quando prestadas tais declarações são prestadas perante juiz, por maioria de razão será necessário essa concordância quando prestadas perante MP), mas também do n.º 5 do mesmo artigo.

[...]

35 - Por sua vez, o n.º 4 do art.º 356.º do CPP abre o leque das declarações que podem ser lidas àquelas declarações que foram prestadas perante o Ministério Público e o Juiz em sede de Inquérito, mas apenas nos casos em que "os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoura". Esta disposição permite o reaproveitar de declarações que não podem de todo ser repetidas em audiência devido a factos não previsíveis antes da sua realização e, embora atalhando ao contraditório, realiza a procura da verdade material, mas apenas quando a contradita da prova se torna absolutamente impossível.

36 - Em suma, podemos dividir as permissões de leitura em três categorias diversas:

1) Declarações prestadas com as formalidades estabelecidas para a audiência (as prestadas nos termos dos arts. 271.º, 294.º, 318.º, 319.º e 3200 do CPP);

2) Declarações cuja leitura todas as partes tenham acordado permitir - perante o juiz sem qualquer fundamento e quando prestadas perante o MP apenas com o fundamento na necessidade de avivar a memória do declarante ou a esclarecer contradições;

3) Declarações cujo conteúdo se tornou impossível de repetir em julgamento.

37 - A leitura ou reprodução em audiência das declarações anteriormente prestadas pelas testemunhas perante o Ministério Público nos termos do 356.º, n.º 3 (quer seja para o avivamento da memória, quer seja quando houver discrepâncias, entre elas e as feitas em audiência), exige necessariamente, nos termos do n.º 5 a concordância do arguido (exigência da alínea b) do n.º 2 para a qual remete a parte inicial do n.º 5), SOB PENA DE ESTARMOS PERANTE PROIBIÇÃO DA PROVA OBTIDA.

38 - O Tribunal a quo ao admitir a leitura daquelas anteriores declarações - que não são objeto de prova - perante a não obtenção prévia da concordância de quem tinha legal poder para o permitir ou impedir, por entender que tal concordância não era legalmente necessária e ou exigível, violou o disposto no n.º 4 do art.º 20.º da CRP e o art. 32.º da CRP.

39 - Por todo o exposto, e atento o disposto no art.º 32.º, n.os 1, 2 e 5 da CRP e nos artigos 127.º, 355.º,356.º, n.os 1, 2, alínea b) e 5 e 323.º, alínea f), estes do CPP, mal andou o Tribunal a quo ao ter procedido à leitura em audiência de julgamento das declarações prestadas pelas testemunhas PAULO MANUEL MOREIRA DINIS, LUÍS FILIPE FERREIRA MARQUES, HUGO RENATO SIMÕES MATEUS E ROBERTO CARLOS COSTA NUNES perante o Ministério Público, porquanto, não tendo havido acordo para as referidas leituras entre os sujeitos processuais, estava-lhe vedado (ao Coletivo de primeira instância), por ser legalmente inadmissível, a leitura das mesmas.

40 - Assim sendo, o acórdão recorrido deveria ter adotado um entendimento normativo do art.º 356.º no 2, alínea b) e n.º 5 do C.P.P., em consonância com o disposto no art.º n.º 355.ºn.º 1 do C.P.P., no sentido de que não tendo os arguidos dado o seu consentimento à leitura, requerida pelo MP, de declarações produzidas, em inquérito, por testemunhas perante o MP, não pode - em nenhuma das situações previstas no art. 356.º, n.º 3 do CPP - ser admitida a sua leitura em audiência de julgamento e subsequente confronto de tais testemunhas com essas declarações.

41 - Ao ter um entendimento totalmente oposto àquele, tal entendimento normativo é inconstitucional, por violação das garantias de defesa consagradas pelo art.º 32.º n.º 1 da C.R.P. e o princípio do processo equitativo salvaguardado pelo art. 20.º n.º 4 da C.R.P. e pelo art.º 6.º da C.E.D.H.

42 - Tendo estes argumentos em conta, não podemos deixar de anotar que acima deles está a lógica interna do CPP que limita a valoração de prova adquirida de forma ilegal e reproduzida (ou examinada) em audiência quando a sua reprodução não é legalmente permitida.

43 - Assim sendo, e para além de todo o exposto, toda a prova extraída da leitura efetuada em julgamento das declarações prestadas por aquelas testemunhas em sede de inquérito são legalmente inadmissíveis, nos termos do art.º 125.º do CPP, por tal leitura ser inadmissível, nos termos do art.º 356.º, n.º 2 alínea b) e no 5 do CPP sem a necessária concordância do arguido.

44 - Não poderia desta forma o tribunal recorrido valorar tais depoimentos, devendo osmesmos serem declarados inválido, por violação do art.º 355.º do CPP violou desta forma o princípio da imediação, que nos diz que são inutilizáveis as provas que não tiverem sido produzidas em audiência, com exceção das previstas no art.º 356.º e 357.º CPP

45 - Assim, para formar decisivamente a sua convicção quanto à participação dos recorrentes nos factos que deu como provado, o Tribunal a quo serviu-se de provas nulas e proibidas pelas segs. normas legais art.º 125.º, 128.º, 355.ºe 356.º todos do CPP.

46 - Por todo o exposto, o Tribunal a quo não poderia dar como provado (e deu) que a atividade de narcotráfico desenvolvida pelos membros da família Costa Cardoso [...] prosseguiu e progrediu através da venda de produto estupefaciente a número de consumidores não concretamente apurado entre os quais PAULO MANUEL MOREIRA DINIS, LUÍS FILIPE FERREIRA MARQUES, HUGO RENATO SIMÕES MATEUS E ROBERTO CARLOS COSTA NUNES.

47 - Face ao supraexposto e sem necessidade de mais considerandos, deve a norma constante do art.º 356.º n.º 3 do CPP ser declarada inconstitucional, quando interpretada no sentido de que a leitura dos depoimentos testemunhais prestados em sede de inquérito perante autoridade judiciária é admitida, sem ser necessário o consentimento dos arguidos, quando aquela leitura de destine a avivar a memória de quem declare na audiência já não se lembrar de certos factos, ou quando existir entres elas e as feitas na audiência discrepâncias ou considerações.

48 - Tal interpretação deve ser declarada inconstitucional, por violação do disposto no art.º 20.º n.º 4 da CRP, art.º 32.º n.º 1, 2 e 5 da CRP.

49 - DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DA NORMA CONSTANTE DO artigo 356.º N.º 3 DO CPP e do art. 127.º do CPP, quando Conjugadas entre si, e quando interpretadas no sentido em que foram interpretados pelo Tribunal a quo, ou seja, no sentido de que as declarações prestadas em sede de inquérito e lidas e sede de audiência nos termos do art. 356.º, n.º 3 e por força do disposto no art. 127.º do CPP (livre apreciação da prova) podem ser valoradas em detrimento das declarações prestadas pelas mesmas testemunha, em sentido completamente oposto, em sede de julgamento.

50 - Neste ponto referimo-nos à valoração que o Tribunal a quo fez das declarações que as testemunhas PAULO MANUEL MOREIRA DINIS, LUÍS FILIPE FERREIRA MARQUES, HUGO RENATO SIMÕES MATEUS E ROBERTO CARLOS COSTA NUNES prestaram e sede de inquérito e que foram lidas em audiência em prejuízo das declarações que estas mesmas testemunhas prestaram em julgamento.

51 - As testemunhas PAULO MANUEL MOREIRA DINIS, LUÍS FILIPE FERREIRA MARQUES, HUGO RENATO SIMÕES MATEUS E ROBERTO CARLOS COSTA NUNES em sede de inquérito prestaram as suas declarações num determinado sentido, mas em sede de julgamento as suas declarações foram num sentido completamente oposto. Perguntadas em que momento falaram com verdade, as testemunhas referiram que era ali, em julgamento, que estavam a dizer a verdade.

52 - A questão que se coloca é a de saber se perante tal realidade o Tribunal a quo poderia, com base no art. 127.º do CPP, dar como verdadeiras as declarações que foram prestadas em sede de inquérito em vez de dar como verdadeiras as foram prestadas em sede de julgamento?

53 - Os Recorrentes entendem que o Tribunal a quo jamais poderia dar como verdadeiras as declarações que foram prestadas em sede de inquérito em detrimento das que foram prestadas em sede julgamento quando tais declarações são opostas entre si e partem do mesmo declarante. Tendo-o feito, o Tribunal a quo fez uma interpretação inconstitucional do disposto no art. 127.º do CPP, na medida em que o princípio da livre apreciação da prova não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável, arbitrária da prova produzida - que foi exatamente o que o Tribunal a quo fez ao considerar como bom um depoimento que determinada testemunha prestou em sede de inquérito quando, em julgamento, essa mesma testemunha disse precisamente o inverso daquilo que disse quando ouvida em inquérito.

54 - O Tribunal a quo ao ter dado como verdadeiras as declarações prestadas por aquelas testemunhas em sede de inquérito (e lidas e julgamento) em prejuízo das declarações que estas mesmas testemunhas prestaram em sede de julgamento e que as mesmas afirmaram perentoriamente corresponderem à verdade, justificando que tomou aquelas como verdadeiras ao abrigo do disposto no art. 127.º do CPP, deu uma interpretação ao princípio previsto nesta norma legal muito para além do seu sentido real, de tal forma, procedendo a uma apreciação completamente arbitrária do depoimento daquela testemunha, violando com tal apreciação o principio da presunção de inocência e do in dubio pro reu, art. 32.º,n.º 2 da CRP.

55 - A leitura de declarações de testemunhas presentes em audiência de julgamento, quando legalmente permitidas, "tem apenas por finalidade suprir lacunas" ou "averiguar da credibilidade das declarações prestadas em audiência" pelas próprias testemunhas. O próprio art.º 356.º, n.º 3 fala em "avivamento da memória" "discrepâncias ou contradições" entre as declarações prestadas pela testemunha em sede de inquérito e as prestadas em sede de julgamento.

56 - "Esta leitura não permite uma utilização direta das declarações anteriormente prestadas", o que leva a que não sejam objeto de prova e, como tal, não possam constituir base para a formação da convicção do tribunal, pois não se conseguiu apurar em que momento a testemunha disse a verdade, sendo, até normal, a extração de certidão requerida pelo MP para instauração do respetivo procedimento criminal por falsidade de depoimento.

57 - Por outro lado, na pureza do princípio do contraditório (como contraditório na produção da prova) a prova resultante das declarações colhidas antes do julgamento prestadas por testemunhas que se encontram presentes em sede de julgamento não podem ser por qualquer forma admitida em julgamento como fundamento da convicção do julgador, pois as declarações cuja leitura o tribunal a quo permitiu, sem a concordância dos arguidos, não foram prestadas com observância das formalidades estabelecidas para a audiência ou perante Juiz, não existindo quanto a elas as garantias dialéticas de contraditoriedade constitucionalmente asseguradas.

58 - Por outro lado, achando-se presente na audiência as testemunhas em causa, e tendo as suas declarações em sede de julgamento sido divergentes das que prestaram em se e de inquérito, jamais poderão estas e aquelas declarações servirem para formar a convicção do Tribunal.

59 - O direito do arguido a um julgamento equitativo e justo, constitui, neste sentido, uma garantia da defesa nos termos referidos no artigo 20.ºe 32.º n.º 1 da CRP.

[...]

63 - Interpretação feita pelo Tribunal recorrido violou claramente e sem qualquer dúvida, a nosso ver, e mais uma vez, as garantias de defesa dos arguidos consagradas pelo art.º 32.º n.º 1 da C.R.P. e o princípio do processo equitativo salvaguardado pelo art.º 20.º n.º 4 da C.R.P. e pelo art.º 6.º da C.E.D.H. - o que desde já se alega para todos os efeitos legais.

64 - Mais deve ser declarada inconstitucional da norma constante do art.º 127.º do CPP, quando interpretada no sentido de que o Tribunal poderá formar a sua convicção com base nas declarações prestadas por uma testemunha em sede de inquérito (declarações prestadas perante MP e que foram depois lidas em sede de julgamento) em detrimento daquelas que essa mesma testemunha prestou em sede de audiência de discussão e julgamento.

65 - Isto porque, sendo as duas versões apresentadas completamente opostas, não pode o Tribunal aferir em que momento a testemunha falou com verdade - se em inquérito se em julgamento - nem sequer com o recurso ao normal acontecer e à livre convicção do Tribunal. Optar-se por uma das versões é uma decisão totalmente arbitrária, e como tal inconstitucional por violar as disposições suprarreferidas da nossa Constituição.

66 - DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS CONSTANTE 275.º DO CPP, do art. 138.º do CPP, também por remissão para a livre convicção do Tribunal ao abrigo do tão amplo artigo 170.º do CPP.

67 - Interpretar como o Tribunal recorrido interpretou, sob a "capa", mais uma vez do tão amplo princípio consagrado no art. 127.º do CPP, que o MP ao dar como reproduzidas no auto de inquirição de testemunhas as declarações que estas mesmas testemunhas prestaram anteriormente perante OPC - sem verdadeiramente as voltar a interrogar sobre os factos em investigação, sem ler as declarações anteriormente prestadas pelas testemunhas, limitando-se a perguntar às testemunhas se confirmam as declarações que anteriormente prestaram e após isso, sem mais, cortar e colar naquele ato as declarações que já constam nos autos e que tinham sido prestadas perante OPC - respeitou as regras de inquirição das testemunhas em sede de inquérito que se encontram previstas no art. 138.º do CPP, que respeitou o previsto no art. 275.º do CPP quanto ao que deve constar e quanto à forma como devem ser elaborados os autos de inquérito, o Tribunal recorrido fez uma interpretação inconstitucional das referidas normas por violação grosseira do art.º 32 n.º 2 da CRP, bem como as demais garantias de defesa plasmadas no n.º 1.

68 - No caso em concreto estamos a referir-nos às declarações prestadas em inquérito, perante o MP, pelas testemunhas PAULO MANUEL MOREIRA DINIS, LUÍS FILIPE FERREIRA MARQUES, HUGO RENATO SIMÕES MATEUS E ROBERTO CARLOS COSTA NUNES perante o MP:

69 - Portanto, não restam dúvidas, pelo menos aos Arguidos, ora Recorrentes, de que os autos de declarações elaborados pelo MP relativamente a todas as testemunhas supraidentificadas são nulos porque o lá exarado não retrata o que efetivamente se passou quando tais testemunhas se dirigiram ao DIAP a fim de prestarem o seu depoimento. AS TESTEMUNHAS EM CAUSA NÃO PRESTARAM DECLARAÇÕES PERANTE O MP. Na boa verdade o MP limitou-se a "cortar" as declarações que aquelas testemunhas prestaram na PJ e a "colá-las" no auto de declarações elaborado pelo MP.

70 - E isto não são declarações prestadas perante o MP nem podem ser valoradas como tal...

71 - Todas as regras de inquirição foram violadas... A testemunha em causa, na boa verdade, nem sequer foi inquirida, na verdadeira aceção da palavra, pelo MP! O MP limitou-se a "cortar" e a "colar" as declarações anteriormente prestadas pela testemunha, sem qualquer respeito pelas regras da inquirição de testemunhas.

72 - Assim, e por todo o exposto, entendemos que os autos de inquirição de fls. 2803 a 2804; de fls. 2800 a 2802; de fls. 3176 a 3178 e, ainda, o auto de inquirição de fls. 2810 a 2812 são nulos, pelas seguintes razões: [...].

73 - O entendimento do Tribunal a quo de que a inquirição em causa por parte do MP respeitou todas as regras de "inquirição" de testemunhas e que a "repetição" "reprodução" das declarações daquelas testemunhas nos moldes em que foi feita "corta e cola" das declarações prestadas na PJ não são contrárias à lei viola clara e grosseiramente, a nosso ver, o disposto nos artigos:

. Art.º 138.º do CPP, na medida em que no caso em apreço o auto de inquirição de fls. 2674 não corresponde a uma declaração pessoal prestada pela testemunha perante o magistrado do MP, mas apenas e tão só à reprodução ipsis verbis do que consta do auto de inquirição daquela mesma testemunha quando interrogada pela policia judiciária - que não tem, como sabemos e reconhecido pelo Acórdão recorrido, a mesma genuinidade e fidedignidade que teria se efetivamente tivesse sido prestado perante o magistrado do MP.

. Art. 32.º da CRP, na medida que tal entendimento não garante, bem pelo contrário viola, as garantias de defesa dos arguidos, uma vez que, como sabemos a leitura em audiência das declarações prestadas por testemunhas, nos casos previstos no art. 356.º, n.º 4 do CPP (falecimento da testemunha, anomalia psíquica superveniente, impossibilidade duradoura), mesmo com a Oposição dos arguidos, permitida quando tais declarações são prestadas perante o MP, já não o sendo (havendo a tal Oposição) quando prestadas perante OPC.

74 - Sendo, em consequência, tal entendimento do Tribunal a quo um entendimento inconstitucional, por violação clara do disposto no art.º 32.º da CRP.

75 - Face ao supraexposto e sem necessidade de mais considerandos deve o art.º 170.º do CPP, quando interpretado como fez o Tribunal da Relação de Coimbra, no sentido de que cai sobre o arguido o ónus de indicar meios de prova e requerer diligências por forma a habilitar o julgador a decidir pela falsidade do conteúdo material do ato judicial praticado no inquérito pelo MP. Tal interpretação deve ter-se por inconstitucional, por violação do art.º 32 n.º 2 da CRP, bem como as demais garantias de defesa plasmadas no n.º 1.

76 - Deve ainda o art.º 275.º n.º 1 do CPP ser declarado inconstitucional quando interpretado no sentido de que cabe ao MP redigir a súmula das declarações prestadas pelas testemunhas em sede de inquérito nada o impede (MP) que recorra exclusivamente, como é o caso, às funções do "corta e cola", podendo, segundo a interpretação do Tribunal da Relação, pura e simplesmente cortar na íntegra o depoimento que Consta do auto de inquirição da PJ e "colá-lo" na íntegra no auto das declarações prestadas perante o MP. Ora o facto da documentação das alegadas declarações de testemunhas se traduzir num "corta"e "cola" dos depoimentos anteriormente prestados perante a policia judiciária (o que é evidente nos presentes autos basta comparar os autos dos depoimentos prestado perante a policia judiciária e os autos das declarações prestadas perante o MP) e atendendo a que tais declarações prestadas perante o MP, em determinadas circunstancias, poderão ser lidas em sede de julgamento (como o foram no caso concreto), entendemos que a interpretação feita pelo Tribunal da Relação de Coimbra do art.º 275.º n.º 1 é sem duvida, inconstitucional, por contrária à lei fundamental e demais diplomas de Direito Internacional, desde logo por violação do art.º 32.º n.º 2 da CRP.

77 - DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DA NORMA CONSTANTE DO artigo 368.º-A DO CÓDIGO PENAL, da forma como foi interpretada pelo Tribunal a quo, na medida em que o Tribunal Recorrido interpretou aquele artigo no sentido de que os meros depósitos bancários em conta bancária de determinada pessoa, integram a previsão do crime branqueamento.

78 - Tal entendimento, a nosso ver, não é correto porque o simples depósito em conta bancária não prova um plano finalisticamente dirigido a ocultar ou dissimular bens de origem ilícita (bem pelo contrário diríamos nós.) e por de tal facto não resulta a violação do bem jurídico subjacente.

79 - Deve o art.º 368.º-A do CP, ser declarado inconstitucional, quando interpretado no sentido de que o simples depósito de quantias em dinheiros provenientes do tráfico de estupefacientes em conta bancária dos próprios arguidos é suscetível, sem mais, de integrar o elemento subjetivo do crime de branqueamento de capitais.

80 - Tal interpretação deve ser tida como Inconstitucional, por violar o princípio da presunção de inocência, e em consequência, do direito de defesa do arguido - direito constitucionalmente reconhecido no art.º 32.º da CRP.»

3.2 - Em contra-alegações, concluiu o Ministério Público o seguinte:

«1.ª O presente recurso, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da LOFPTC, tal como vem manifestado no respetivo requerimento de interposição, toma como objeto seis questões: (i) "Artigo 170.º do CPP - quando interpretado [...] no sentido de que cai sobre o arguido o ónus de indicar os meios de prova e requerer diligências por forma a habilitar o julgador a decidir pela falsidade do conteúdo do ato judicial praticado no inquérito pelo MP. Tal interpretação deve ter-se por inconstitucional, por violação da presunção de inocência vertida no art.º 37.º n.º 2 CRP bem como demais garantias de defesa plasmadas no n.º l."; (ii) "Artigo 275.º, n.º 1 do CPP - quando interpretado [...] no sentido de como cabe ao MP redigir a súmula das declarações prestadas pelas testemunhas em sede de inquérito nada o impede (MP) que recorra exclusivamente, como é caso, às funções do 'corta e cola' [...] sem dúvida, inconstitucional, por contrária à Lei Fundamental e demais diplomas de Direito internacional, desde logo por violação do art.º 32.º n.º 2 CRP"; (iii) "Artigo 356.º, n.º 3 do CPP - quando interpretado no sentido de que a leitura dos depoimentos testemunhais prestadas no inquérito perante autoridade judiciária é admitida, sem ser necessário o consentimento dos arguidos [...] Tal interpretação é inconstitucional por violação do disposto no n.º 4 do art.º 20.º da CRP, art.º 32º, n.º 1, 2 e 5 da CRP"; (iv) "Artigo 127.º do CPP - quando interpretado no sentido de que o Tribunal poderá formar a sua convicção com base nas declarações prestadas por uma testemunha em sede de inquérito (declarações prestadas perante MP e que foram depois lidas em sede de Julgamento) em detrimento daquelas que essa mesma testemunha prestou em sede de audiência de discussão e julgamento. [...] tal interpretação deve ser declarada inconstitucional por violar o direito do arguido a um julgamento equitativo e justo, e, portanto, violar a garantia da defesa nos termos artigo 32.º n.º 1 da CRP"; (v) "Artigo 356.º, n.º 4 do CPP - quando interpretado no sentido de que o simples facto da testemunha estar ausente no estrangeiro se enquadra, por si só, na situação de impossibilidade duradoura prevista naquela disposição legal. Tal interpretação deve ser tida como Inconstitucional, por violar o princípio do contraditório e, em consequência, do direito de defesa do arguido - direito constitucionalmente reconhecido no art.º 32º da CRP"; (vi) "Artigo 368.º-A do CP - quando interpretado no sentido de que o simples depósito de quantias em dinheiro provenientes do tráfico de estupefacientes em conta bancária dos próprios arguidos é suscetível, sem mais de integrar o elemento subjetivo do crime de branqueamento de capitais. Tal interpretação deve ser tida como inconstitucional, por violar o princípio da presunção da inocência, e, em consequência, do direito de defesa do arguido - direito constitucionalmente reconhecido no art.º 32º da CRP".

2.ª Apenas a última questão de constitucionalidade respeita ao Acórdão final da Relação de Coimbra, de 9 de setembro de 2015. Todas as demais reportam-se ao Acórdão interlocutório da mesma Relação, de 17 de março de 2014.

3.ª Considerada a função instrumental do presente recurso de constitucionalidade [LOFPTC, arts 70.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 2], não deverá liminarmente dele conhecer-se quanto às questões i, ii, iv, v e vi.

4.ª O recurso, quanto às duas primeiras questões, padece de inidoneidade de objeto, pois a interpretação normativa dos arts. 170.º e 275.º, n.º 1 do CPP oferecida pelos recorrentes, para efeitos de sindicância da respetiva constitucionalidade, não corresponde à manifestada na decisão recorrida, não se verificando sequer identidade nos fundamentos fácticos.

5.ª Ademais, não tendo a arguição processual das subjacentes nulidades ocorrido em tempo útil, com a consequente consolidação destas no processo, qualquer que pudesse vir a ser o resultado do controlo de constitucionalidade normativa peticionado pelos recorrentes na matéria, nenhum alcance teria quanto ao sentido da decisão recorrida - recurso inútil, em suma.

6.ª Relativamente à questão iv (art. 127.º do CPP), não está agregadamente em exame a constitucionalidade do regime contido no n.º 3 do art. 356.º do CPP, quanto à leitura em audiência de declarações anteriormente prestadas perante autoridade judiciária, objeto de questão autónoma no presente recurso - questão iii - e adiante versada (conclusões 13.ª e ss.).

7.ª O recurso, quanto a esta quarta questão, além dela não ter sido adequadamente suscitada no processo aquando do julgamento em 1.ª instância, mostra-se igualmente viciado por inidoneidade de objeto, aqui de modo manifesto, já que a dimensão normativa alinhada pelos recorrentes, assente numa dada representação fáctica, não encontra correspondência no Acórdão da Relação.

8.ª Relativamente à questão v (art. 356.º, n.º 4 do CPP), também o recurso claramente se revela inidóneo, pois visa diretamente o concreto ajuizamento dos factos e a subsunção dos mesmos à situação de "impossibilidade duradoura", abstratamente prevista no n.º 4 do art. 356.º do CPP, tal como a matéria foi reexaminada na decisão recorrida, exorbitando do controlo normativo próprio do recurso de constitucionalidade (CRP, art. 280.º, n.º 6; LOFPTC, art. 71.º, n.º 1).

9.ª Verifica-se, ademais, que a questão não foi suscitada de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, nem a decisão recorrida fez aplicação, como sua ratio decidendi, da dimensão normativa arguida de inconstitucional pelos recorrentes.

10.ª Relativamente à questão vi (art. 368.º-A do Código Penal), os recorrentes, nas conclusões 64 a 70 do anterior recurso interposto para a Relação, quanto à sua condenação em 1.ª instância pela prática de crime de branqueamento de capitais, apenas haviam impugnado a matéria de facto e a operada qualificação jurídica, em termos de que "nenhuma prova foi produzida e nenhuma é indicada para justificar/fundamentar a verificação do elemento subjetivo do tipo legal de crime em análise", não tendo suscitada a questão da constitucionalidade (daí que não tenha podido ela ser conhecida pela decisão aqui recorrida).

11.ª O conteúdo da interpretação normativa agora impugnada pelos recorrentes não corresponde ao desenvolvidamente expresso no Acórdão da Relação - falta de correspondência grosseira, já que o Acórdão acentua a exigência e configuração do elemento doloso no tipo legal de crime em causa e a sua fundamentada verificação no caso dos autos.

12.ª Não pode, também quanto a esta última questão, conhecer-se do objeto do presente recurso [LOFPTC, arts. 70.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 2].

13.ª A única questão de constitucionalidade que caberá conhecer no presente recurso respeita, pois, ao art. 356.º, n.º 3 do CPP, nos termos expressos na petição de recurso, "quando interpretado no sentido de que a leitura dos depoimentos testemunhais prestadas no inquérito perante autoridade judiciária é admitida, sem ser necessário o consentimento dos arguidos, quando aquela leitura se destine a avivar a memória de quem declare na audiência já não se lembrar de certos factos, ou quando existir entre elas e as feitas na audiência discrepâncias ou contradições. Tal interpretação é inconstitucional por violação do disposto no n.º 4 do art.º 20.º da CRP, art.º 32º, n.º 1, 2 e 5 da CRP".

14.ª Os recorrentes impugnam demoradamente a interpretação acolhida no Acórdão, no que respeita à aplicação do n.º 3 do art. 356.º do CPP, no sentido de que no mesmo preceito normativo não vem exigida a concordância do arguido e demais sujeitos processuais - subquestão, quanto ao seu acerto infraconstitucional, não sindicável no presente recurso. Já quanto à alegada desconformidade constitucional do preceito, na dimensão normativa enunciada - e efetivamente aplicada na decisão recorrida -, limitam-se genericamente a remeter para os arts. 20.º, n.º 4 e 32.º, n.os 1, 2 e 5 da Constituição (conclusões n.os 18, 19, 38, 41, 48).

15.ª A questão da admissibilidade de valoração e utilização, em audiência de julgamento, de depoimentos de sujeitos processuais prestados em fase anterior, tal como vem regida no art. 356.º do CPP - questão constitucionalmente enquadrada à luz da exigência de um processo equitativo, de deverem ser asseguradas todas as garantias de defesa no processo criminal de estrutura acusatória (art. 20.º, n.º 4 da CRP e art. 6.º da CEDH; art. 32.º, n.os 1 e 5 da CRP), bem como dos princípios da oralidade e imediação -, foi já objeto de jurisprudência do Tribunal Constitucional (vejam-se, designadamente, excertos dos Acórdãos 1052/96, 90/13 e 399/15, transcritos no corpo das presentes alegações).

16.ª Poder-se-á, em síntese, reter (Ac. 399/15): "[...] o núcleo essencial do contraditório reconduz-se, de acordo com a jurisprudência constitucional, ao facto de que 'nenhuma prova deve ser aceite na audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efetiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar'. Com efeito, 'não se garante uma defesa efetiva se não houver possibilidade real de serem contrariadas e contestadas todas as afirmações ou elementos trazidos aos autos pela acusação' [...] Por seu turno, a oralidade e o seu corolário - a imediação - surgem como princípios de forma instrumentais relativamente ao princípio da investigação, o qual, não obstante enxertado numa estrutura acusatória, tem valor ou dignidade constitucional [...] Partem do pressuposto de que a decisão jurisdicional só deve ser proferida por quem tenha assistido à produção das provas e à discussão da causa pela acusação e pela defesa, através de um debate oral. Estima-se que as vantagens epistemológicas trazidas pelo contacto instantâneo do juiz do julgamento com os meios de prova permitam alcançar mais facilmente a verdade dos factos [...]"

17.ª A Lei 20/2013, com a nova redação dada ao n.º 3 do art. 356.º do CPP - leitura (agora, também, reprodução) em audiência de declarações anteriormente prestadas no processo (i) na parte necessária, ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos ou (ii) quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias -, veio alargar o campo da admissibilidade, para os efeitos aí previstos, da leitura em audiência: declarações anteriormente prestadas não apenas perante o juiz, mas perante autoridade judiciária [aquele nesta categoria englobado - art. 1.º, n.º 1, alínea b) do CPP].

18.ª Subjacente, na generalidade, à Reforma de 2013 a concordância prática dos diversos interesses em jogo, muitas vezes conflituantes (n.º 1 da Exposição de Motivos da Proposta de Lei 77/XII).

19.ª O alargamento de âmbito do n.º 3 do art. 256.º do CPP é assim justificado (n.º 4 da Exposição de Motivos): "Sendo residuais os casos em que as testemunhas são efetivamente inquiridas por um juiz nas fases preliminares do processo, deve ser assegurada a possibilidade de reprodução ou leitura de declarações anteriormente prestadas perante o Ministério Público em caso de necessidade de avivamento da memória e no caso de contradições com o depoimento prestado anteriormente".

20.ª Não se vê como o alargamento do regime contido no n.º 3 do art. 256.º do CPP - que visa, aliás, possibilitar a sua aplicação com real significado, até aí limitada a franjas de casos - possa razoavelmente contender, à luz da jurisprudência constitucional acima considerada, com as garantias de defesa do arguido, com as exigências de um processo equitativo e com a adequada aplicação dos princípios do contraditório, oralidade e imediação.

21.ª Tal alargamento de regime limita-se inovatoriamente à desnecessidade de concordância de todos os sujeitos processuais para a prática do ato em causa (antes exigida).

22.ª Como se observou no Acórdão 90/13, a modelação sobre a admissibilidade ou a proibição da leitura na audiência das anteriores declarações prestadas no processo, seja como meio de prova, seja como mero instrumento auxiliar de valoração da prova testemunhal produzida na audiência de julgamento, porventura justificada pelo risco de contaminação por essa leitura, "é uma discussão inserida na área de liberdade de conformação do legislador na compatibilização de interesses conflituantes, não competindo a este Tribunal pronunciar-se sobre qual é a melhor solução ao nível infraconstitucional".

23.ª Deve anotar-se, em termos de direito comparado, que o disposto no n.º 3 do art. 256.º do CPP, na atual redação emergente da Lei 20/2013, identifica-se ou assemelha-se com o regime vigente em demais ordenamentos europeus, designadamente, na Alemanha, Itália e Espanha.

24.ª Também, neste sentido, a jurisprudência do TEDH: devendo os elementos de prova, em princípio, ser produzidos em audiência pública, tal não impede a utilização das provas recolhidas na fase de instrução do processo, desde que as regras do contraditório tenham sido observadas, podendo isso acontecer no momento da sua produção ou mais tarde, no momento da sua valoração em julgamento.

25.ª As declarações anteriormente prestadas perante autoridade judiciária e lidas em julgamento, nos termos e com os estritos objetivos assinalados no n.º 3 do art. 356.º do CPP, embora prestadas sob juramento e vinculadas à verdade [arts. 91.º, n.º 3, 132.º, n.º 1, alíneas b) e d) do mesmo código], como tal constantes do processo e passíveis de ser publicitadas, não constituem meio de prova substitutivo da inquirição em audiência: são mero instrumento auxiliar de valoração da prova testemunhal.

26.ª É sobre o depoimento da testemunha, objeto de contraditório, produzido em audiência de julgamento, que, em termos de prova, se vai formar a convicção do tribunal: não subversão do contraditório, mas alargamento e aprofundamento, em vista de maior rigor no apuramento dos factos e do melhor convencimento - endo e extraprocessual - sobre a justiça da decisão.

27.ª Improcede, deste modo, a suscitada questão de inconstitucionalidade.»

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

A) Quanto ao objeto do recurso e à sua admissibilidade

4 - Cumpre recordar que, em razão do despacho do relator de fls. 6736, o objeto formal do presente recurso integra os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de dezembro de 2014 (fls. 5671-5848, que integram o 23.º volume) e de 9 de setembro de 2015 (fls. 6445-6706, que integram o 26.º volume). Ambos constituem nos presentes autos "a decisão recorrida", sendo que, como bem notou o Ministério Público nas suas contra-alegações, as cinco primeiras questões de constitucionalidade indicadas no requerimento de interposição de recurso se reportam ao primeiro daqueles arestos e a última ao segundo (cfr. a conclusão 2.ª).

5 - No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. O objeto material do recurso de constitucionalidade deve, por isso, e sob pena de inidoneidade, revestir um caráter normativo.

Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador - não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional as figuras do recurso de amparo ou da queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que, na primeira hipótese, é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com caráter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações; enquanto, na segunda hipótese, está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto (cfr. o Acórdão 138/2006).

Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC - como ocorre no presente processo -, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.

Consistindo a competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, na faculdade de revisão, em via de recurso, de decisões judiciais, compreende-se que a questão de constitucionalidade deva, em princípio, ter sido colocada ao tribunal a quo, além de que permitir o acesso a este Tribunal com base numa invocação da inconstitucionalidade unicamente após a prolação da decisão recorrida, abriria o indesejável caminho à sua utilização como expediente dilatório. Daí que só tenha legitimidade para pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização de constitucionalidade de uma norma quem tenha suscitada previamente essa questão ao tribunal recorrido, em termos de o vincular à sua apreciação, face às normas procedimentais que regem o processo em que se enxerta o recurso constitucional (cfr. o artigo 72.º, n.º 2, da LTC).

Suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa de modo processualmente adequado impõe que, por um lado, o recorrente enuncie um critério de decisão suscetível de generalização, como se salientou no Acórdão 501/2004. Por outro lado, este pressuposto «só é, em regra, de considerar preenchido quando o interessado, pelo menos, identifica a norma que reputa de inconstitucional, menciona a norma ou princípio constitucional que considera infringido e justifica, ainda que de forma sumária, mas de modo claro e preciso, as razões que, no plano constitucional, invalidam a norma e impõem a sua 'não aplicação' pelo tribunal da causa, ao abrigo do disposto no artigo 204.º da Constituição» (Acórdão 710/2004). Ou, como se refere no Acórdão 590/94 - e constitui jurisprudência uniforme e constante:

«[A] inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo, quando tal questão se coloca perante o tribunal recorrido a tempo de ele a poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver - o que, obviamente, exige que quem tem o ónus da suscitação da questão de constitucionalidade a coloque de forma clara e percetível.

Bem se compreende que assim seja, pois que, se o tribunal recorrido não for confrontado com a questão de constitucionalidade, não tem o dever de a decidir. E, não a decidindo, o Tribunal Constitucional, se interviesse em via de recurso, em vez de ir reapreciar uma questão que o tribunal recorrido julgara, iria conhecer dela ex novo.

A exigência de um cabal cumprimento do ónus da suscitação atempada - e processualmente adequada - da questão de constitucionalidade não é, pois - [...] -, uma "mera questão de forma secundária". É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade e para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão.»

Além disso, considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.

Refira-se ainda que o objeto do recurso constitucional é definido, em primeiro lugar, pelos termos do requerimento de interposição de recurso. Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção de uma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza.

Finalmente, cumpre recordar que o convite ao aperfeiçoamento ou correção do requerimento de interposição de recurso previsto no artigo 75.º-A, n.º 6, da LTC tem a ver estritamente com a satisfação dos requisitos do próprio requerimento, e, por isso, «só é possível se a omissão for sanável, ou seja, se consistir numa falta do próprio requerimento, não tendo cabimento para o suprimento de falta de pressupostos de admissibilidade do recurso que seja insanável» (Acórdão 99/2000).

Expostos, sumariamente, os pressupostos essenciais ao conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, cumpre verificar o seu preenchimento, relativamente às questões colocadas pelos recorrentes neste processo.

6 - No despacho que determinou a produção de alegações, os recorrentes foram alertados para a possibilidade de verificação da ausência de pressupostos obstativa de uma pronúncia de mérito, em relação a algumas das questões de constitucionalidade por si identificadas no requerimento de interposição do recurso (cfr. supra o n.º 2). Nas suas contra-alegações, o Ministério Público suscitou e substanciou as suas objeções ao conhecimento das mesmas questões. Importa, pois, começar por apreciar a admissibilidade do conhecimento do respetivo mérito.

6.1 - No requerimento de interposição de recurso, os recorrentes começam por invocar a inconstitucionalidade do artigo 170.º do Código de Processo Penal ("CPP"), quando interpretado no sentido de que recai sobre o arguido o ónus de indicar os meios de prova e requerer diligências por forma a habilitar o julgador a decidir pela falsidade do conteúdo material do ato judicial praticado no inquérito pelo Ministério Público, por violação do disposto no artigo 32.º, n.os 1 e 2, da Constituição (cfr. também a conclusão 75 das alegações de recurso).

Como mencionado, foram os recorrentes oportunamente advertidos de que, quanto a esta questão, poderiam existir dois fundamentos distintos de não conhecimento do objeto do recurso: em primeiro lugar, a omissão de suscitação adequada da questão durante o processo; e, em segundo lugar, a título subsidiário, a não coincidência da norma a sindicar com a ratio decidendi da decisão recorrida, assim falecendo o requisito da utilidade do recurso de constitucionalidade.

Em resposta às questões prévias, os recorrentes sustentam apenas que, embora a questão de constitucionalidade pudesse ter sido suscitada de forma mais «autónoma» e «destacada» das restantes questões de constitucionalidade, sempre lograram enunciá-la «no seu requerimento de recurso para este Altíssimo Tribunal» (cfr. fls. 6823, f. e v.º).

6.1.1 - Contudo, no que se refere ao fundamento invocado a título principal, está em causa um pressuposto que se deve ter por preenchido em momento anterior ao da interposição do recurso de constitucionalidade: o teor do requerimento de recurso de constitucionalidade apenas vale para a aferição da observância dos elementos obrigatórios dessa mesma peça processual, mas não é apto a lograr suprir pressupostos que se reportam a momento processual anterior, o qual culminou com a prolação da decisão recorrida e, consequentemente, com o esgotamento do poder jurisdicional do tribunal a quo.

Ora, durante o processo, designadamente no primeiro recurso apresentado no Tribunal da Relação de Coimbra, os recorrentes limitaram-se a invocar que o que constava exarado no auto de declarações de certas testemunhas não retratava com fidedignidade as declarações que as mesmas haviam, efetivamente, prestado. Contudo, nada enunciaram, quanto a esta matéria, relativamente à aplicação de qualquer critério normativo alegadamente inconstitucional, designadamente um qualquer critério extraído do artigo 170.º do CPP relativo ao ónus de impulso processual e de prova a cargo dos recorrentes quando invocam a falsidade de conteúdo material do ato praticado no inquérito pelo Ministério Público. Por isso, ao contrário do que indicam no seu requerimento de recurso, esta questão de constitucionalidade normativa não foi adequadamente suscitada no recurso que interpuseram para o Tribunal da Relação de Coimbra.

6.1.2 - Acresce que falha igualmente o requisito atinente à coincidência da norma fiscalizanda com a ratio decidendi da pronúncia recorrida. Quanto a este aspeto concreto, a ratio decidendi do aresto recorrido consta de fls. 5781 e ss., e é mais complexa e diferente do alegado pelos recorrentes.

Considerou o tribunal a quo que a força probatória de um documento autêntico, como é o caso de um auto de inquirição de testemunhas, só pode ser ilidida com base na falsidade do documento em si ou na falta de correspondência do seu conteúdo com a realidade, isto é, na falta de autenticidade ou na falta de verdade:

«A força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na falsidade, sendo que um documento é falso quando nele se atesta como tendo sido objeto de perceção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou (art. 372.º, n.º 1 e 2, do Código Civil).

Chegados aqui, a questão que se coloca é a de saber qual o meio processual adequado para ilidir a presunção de veracidade do conteúdo do documento - um ato judicial - de forma a colocá-la "funda[da]mente em causa" (art. 169.º, n.º 1): se o previsto no art. 170.º [do CPP], ou as regras do processo civil.

Quanto a nós acolhemos a primeira posição, porquanto perante o preceituado no art. 170.º, não se pode falar na verdadeira lacuna a que alude o art. 4.º do Código de Processo Penal.

[...]

No caso dos autos, seja qual for a posição que se assuma perante esta questão, o certo é que os recorrentes não provocaram uma decisão judicial com vista à declaração de falsidade do conteúdo material do auto de inquirição de testemunhas, não indicaram meios de prova, nem requereram qualquer diligência por forma a habilitar o julgador da primeira instância a decidir pela falsidade do conteúdo material do ato judicial praticado no inquérito pelo Ministério Público.

O mesmo é dizer que inexiste decisão a declarar que cada uma das testemunhas inquiridas não pronunciou, de viva voz e perante o Ministério Público, as declarações transcritas que seguem à expressão "confirma na íntegra as declarações prestadas perante a Polícia Judiciária de Coimbra em [...]."

De igual modo, inexiste qualquer decisão a declarar que não é verdade que tenham sido exibidas às testemunhas as fotografias referenciadas em cada um dos autos.

E, a ser, assim, mais não nos resta do que conferir a cada um dos autos, a força probatória a que alude a primeira parte do n.º1, do art. 169.º [do CPP], julgando que a inquirição de cada uma das testemunhas ouvidas se realizou nos exatos termos em que se encontra documentado nos respetivos autos de inquirição.»

(itálicos aditados; fls. 5783-5784, ponto 4.2. do acórdão recorrido, pp. 113-114)

Entendeu o tribunal a quo, portanto, e independentemente da questão de saber se, nestas situações, tem aplicabilidade o incidente de falsidade previsto no Código de Processo Civil ou um procedimento diferenciado, extraível do disposto no artigo 170.º do CPP - enquanto regulamentação específica -, que sempre caberia aos recorrentes terem desenvolvido um qualquer impulso processual junto da instância então recorrida, de modo a suscitar uma autónoma decisão recorrível, nos termos do artigo 170.º, n.º 2, do CPP. Nesse sentido, teriam os recorrentes de ter assumido uma iniciativa processual tendente a provocar uma decisão judicial sobre a falsidade do conteúdo material do auto de inquirição de testemunhas, seja indicando meios de prova, seja requerendo a produção de qualquer diligência apta a habilitar o julgador de primeira instância a decidir pela falsidade do conteúdo do ato impugnado. Trata-se, portanto, de fundamentação mais complexa do que a de o tribunal a quo ter considerado como critério normativo de decisão apenas que incumbiria aos recorrentes indicar meios de prova e requerer diligências: incumbia-lhes, na verdade, provocar uma decisão judicial que fosse no sentido da referida falsidade, designadamente indicando provas e requerendo diligências.

6.2 - Quanto à alegada inconstitucionalidade do artigo 275.º, n.º 1, do CPP, interpretado no sentido de que nada impede o Ministério Público que recorra exclusivamente «às funções do "corta e cola"», de pura e simplesmente «cortar» na íntegra o depoimento que consta do auto de inquirição da Polícia Judiciária e «colá-lo» na íntegra no auto das declarações perante si prestadas, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição.

Preliminarmente, cumpre recordar que o objeto material do recurso de constitucionalidade se define no requerimento de interposição de recurso, não podendo vir a ser modificado ou aumentado nas alegações. In casu verifica-se que as conclusões 66 a 74 das alegações dos recorrentes se reportam a uma questão normativa resultante da articulação do citado artigo 275.º do CPP com o artigo 138.º do mesmo Código, e bem assim, com a «remissão para a livre convicção do Tribunal ao abrigo do tão amplo artigo 170.º do CPP», questão essa diferente da enunciada no requerimento de recurso com referência ao artigo 275.º do CPP e posteriormente retomada na conclusão 76 das alegações. Assim, só em relação a esta última questão cumpre apreciar se se encontram reunidos os pressupostos necessários ao mérito do recurso, designadamente aqueles cuja falta foi indicada no despacho do relator de fls. 6736 (não suscitação adequada e não coincidência com a ratio decidendi do acórdão recorrido).

A resposta às questões prévias dada pelos recorrentes reconduz-se ao que acima foi referido a propósito da questão de constitucionalidade referente ao artigo 170.º do CPP, pelo que valem também aqui, as considerações então expendidas sobre a pertinência e procedência de tais argumentos (cfr. supra os n.os 6.1. e 6.1.1.).

6.2.1 - Relativamente ao problema da suscitação prévia da questão de constitucionalidade, verifica-se que no primeiro recurso apresentado no Tribunal da Relação de Coimbra - aquele que aqui releva, atenta a decisão recorrida a considerar - os recorrentes se limitaram a invocar que «o entendimento do Tribunal a quo de que a "inquirição" em causa por parte do MP respeitou todas as regras de inquirição de testemunhas e que a "repetição" "reprodução" das declarações daquela testemunha nos moldes em que foi feita "corta e cola" das declarações prestadas na PJ [...] viola clara e grosseiramente o disposto nos artigos 138.º CPP [...]; [e] 32.º da CRP» (cfr. fls. 5041, 5145 e 5209). Não destacaram, portanto, um qualquer critério normativo, autónomo da ponderação casuística concreta, tendo reconduzido a sua estratégia processual, nesta matéria, à contestação da própria decisão então recorrida - ao ter valorado a inquirição em causa como legalmente admissível - e não de uma qualquer norma de potencial aplicação genérica a outras situações concretas.

6.2.2 - No tocante ao fundamento de não conhecimento da questão ora em análise invocado subsidiariamente, os recorrentes nada disseram. De qualquer modo, resulta claramente do teor do acórdão de 17 de dezembro de 2014 que a interpretação do artigo 275.º, n.º 1, do CPP, agora sindicada, não coincide com o critério normativo então aplicado.

Recorde-se que, segundo os recorrentes, o preceito em análise terá sido interpretado no sentido de ser admissível que, para efeitos de documentação da inquirição de testemunhas, o Ministério Público se limite a reproduzir as declarações antes prestadas perante a Polícia Judiciária, mediante uma operação de "corta" e "cola" (cut-paste ou, porventura, mais exatamente, de "cópia" e "cola" ou copy-paste...). Com efeito, os recorrentes fundam a sua questão numa pretensa violação das regras formais de inquirição com referência ao artigo 275.º, n.º 1, do CPP. Conforme se refere no acórdão recorrido:

«Os recorrentes [...] invocam a nulidade das declarações que as testemunhas acima identificadas prestaram no inquérito, perante o Ministério Público, porquanto:

"[...] a inquirição das testemunhas foi algo muito informal que demorou 2 ou 3 minutos e que as testemunhas se limitaram a confirmar as declarações que as mesmas tinham prestado na PJ, sem nunca o MP ter lido as declarações que as testemunhas tinham prestado anteriormente. Algumas testemunhas referiram que não lhes foram exibidas quaisquer fotografias, apesar de constar dos respetivos autos de inquirição que naquele momento lhe foram exibidas várias fotografias [...]".

Portanto, não restam dúvidas, pelos menos aos Recorrentes, de que os autos de declarações elaborados pelo Ministério Público relativamente a todas as testemunhas supraidentificadas são nulos, porque o lá exarado não retrata o que o que efetivamente se passou, quando tais testemunhas se dirigiram ao DIAP a fim de prestaram o seu depoimento. As testemunhas em causa não prestaram declarações perante o MP. Na boa verdade, o MP limitou-se a "cortar" as declarações que aquelas testemunhas prestaram na PJ e a "colá-las" no auto de declarações elaborado pelo Ministério Público (sublinhados nossos).»

(fls. 5779, ponto 4.1. do acórdão recorrido, p. 109)

Todavia, o tribunal recorrido, tendo analisando os autos, não aceita este ponto de vista dos recorrentes:

«[A]fastada fica a conclusão dos Recorrentes de que, no decurso do inquérito, as testemunhas não prestaram declarações perante o Ministério Público.

E, nem se diga, que a tal obsta a circunstância da documentação das declarações se traduzir num "corta" e "cola" dos depoimentos anteriormente prestados ante a polícia judiciária.

Com efeito, resulta de cada um dos autos, que as testemunhas inquiridas confirmaram, naquele ato e perante a senhora Procuradora Adjunta, que as declarações orais prestadas correspondem às que constam detalhadamente transcritas no respetivo auto, tendo-o, por isso, assinado, depois de lido.

Assim sendo - se a testemunha leu e confirmou que as declarações que foram "coladas" no auto correspondem às que, naquele ato foram prestadas oralmente - o teor e conteúdo dos depoimentos não ficaram minimamente afetados, com a forma como foram documentados em auto - "cortadas" das anteriormente prestadas na PJ e "coladas" no auto de inquirição.

Em suma, não havendo dúvidas - porque assim o retrata o auto de inquirição e inexiste decisão judicial a infirmá-lo - que as testemunhas: a) estiveram presentes perante o Ministério Público e prestaram, elas mesmas, por sua voz (e não através de um terceiro) declarações (cf. no n.º 1 do art. 138.º), e b) confirmaram a exatidão das declarações documentadas com as que, naquele ato e oralmente, prestaram - não se pode concluir que os depoimentos que constam em cada um dos autos não foram relatados perante o Ministério Público.»

(fls. 5785-5786, ponto 4.2. do acórdão recorrido, pp. 115-116)

Daí a conclusão retirada quanto ao artigo 275.º, n.º 1, do CPP:

«As declarações das testemunhas ouvidas no inquérito, enquanto meio de prova, são, nos termos do supramencionado art. 275.º, n.º 1, reduzidos a auto, que pode ser reduzido a escrito por súmula.

Nestes casos de redação por súmula, compete à entidade que presidir ao ato - no caso o Ministério Público - velar por que a súmula corresponda ao essencial do que se tiver passado ou das declarações prestadas, podendo para o efeito ditar o conteúdo do auto, ou delegar, oficiosamente ou a requerimento, nos participantes processuais ou nos seus representantes (art. 100.º, n.º 2).

Não impondo a lei, qualquer forma a que há de obedecer a documentação escrita, por súmula, das declarações orais - para além do que é previsto no art. 94.º (redação de modo perfeitamente legível) - e cabendo ao Ministério Público redigir a súmula das declarações, nada impede (embora, a nosso ver, não seja de todo aconselhável), o recurso às funções "corta" e "cola" do programa informático na redação da súmula das declarações orais.

Essencial é, que a súmula redigida corresponda ao que oralmente foi declarado naquele ato.

E, quanto a este aspeto, pelos motivos que constam no ponto anterior, tem-se por certo que o registo das declarações de cada uma das testemunhas inquiridas tem total correspondência com o que foi realmente dito.

Assim sendo, da mera coincidência entre as declarações orais que uma testemunha prestou na polícia judiciária e no Ministério Público, não se pode concluir, como o fazem os recorrentes, que os inquiridos não reproduziram, de viva voz e em detalhe, o que consta no auto.

Ou que, em boa verdade, não prestaram declarações perante o Ministério Público.»

(fls. 5786-5787, ponto 4.3. do acórdão recorrido, pp. 116-117)

Ou seja, de acordo com o acórdão recorrido, o preceito em causa não admite que o Ministério Público se limite a reproduzir declarações anteriormente prestadas; podendo reproduzir tais declarações, o Ministério Público tem de assegurar que o auto de inquirição das testemunhas que ouviu, corresponda ao que nessa mesma ocasião foi efetivamente declarado. Assim, a forma ou o modo adotado para a elaboração do auto em apreço, uma vez garantida tal correspondência, é secundário.

6.3 - Quanto à inconstitucionalidade do artigo 127.º do CPP, interpretado no sentido de que o tribunal poderá formar a sua convicção com base nas declarações prestadas por uma testemunha perante o Ministério Público em sede de inquérito e posteriormente lidas na audiência de discussão e julgamento em detrimento daquelas que a mesma testemunha prestou nessa mesma ocasião, ou seja, em sede de audiência de discussão e julgamento, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

Também no caso desta questão se verifica que as conclusões das alegações dos recorrentes - nomeadamente, as conclusões 49 a 65 - se reportam a uma dimensão normativa diferente - ademais ancorada também no artigo 356.º, n.º 3, do CPP, preceito omitido no requerimento de recurso quando é indicada a questão relativa ao artigo 127.º do CPP - da que foi enunciada no requerimento de recurso, em especial quando referem uma oposição total das declarações em causa («declarações prestadas pela mesma testemunha, em sentido completamente oposto»). Pelo que cumpre apreciar tão somente a viabilidade do conhecimento da constitucionalidade da interpretação normativa originariamente indicada.

Sustentam os recorrentes que a norma ora em análise obstou a que o respetivo julgamento tivesse sido justo e equitativo, porquanto as declarações cuja leitura o tribunal permitiu, sem a concordância dos arguidos, não foram prestadas com observância das formalidades estabelecidas para a audiência ou perante o juiz, não existindo quanto a elas as garantias dialéticas de contraditoriedade constitucionalmente asseguradas.

Mas, igualmente quanto a este aspeto, se comprova que os recorrentes, durante o processo, não suscitaram qualquer problema de inconstitucionalidade normativa, tendo-se limitado a afirmar que haviam sido violadas normas legais e que isso se traduziu na valoração, pelo tribunal, de provas nulas (i. e. de um meio de prova proibido). Invocaram ainda violação das garantias de defesa e dos princípios da imediação, da oralidade e do contraditório, abrangidos pelas garantias de defesa previstas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, bem como do princípio da livre apreciação da prova (cfr. fls. 5052-5054; 5136-5142; 5206-5207 e 5222). Contudo, não reconduziram tais conclusões no sentido da inconstitucionalidade a um problema de desconformidade de norma, enunciando especificadamente o critério que pretendiam ver desaplicado, neste aspeto, pelo tribunal recorrido. Perante o tribunal a quo, suscitaram apenas a inconstitucionalidade do «entendimento» do tribunal então recorrido que levou a dar como provados determinados factos, em função de um alegado maior peso das declarações prestadas em face de inquérito em detrimento das declarações prestadas em audiência, focando, portanto, o seu dissídio, na própria atividade judicial de valoração da prova em detrimento de uma qualquer norma mobilizada enquanto critério decisório.

Defendem-se os recorrentes dizendo, por um lado, que, «sob a capa» da livre apreciação da prova e da livre convicção do Tribunal, se fez uma interpretação inconstitucional da norma, entendendo-se que, com base nesse princípio, o tribunal poderia decidir de forma totalmente arbitrária; e, por outro, e na esteira do que alegaram quanto à questão prévia já analisada, que lograram enunciar corretamente a interpretação normativa no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.

Quanto a este segundo aspeto, crê-se que é suficiente remeter para o que já se disse supra a propósito de a interposição do recurso não ser momento processualmente adequado para se dar cumprimento ao ónus em apreço. Já no que se refere ao primeiro, a resposta dos recorrentes acaba por incorrer no próprio vício de inidoneidade de objeto que vinha apontado: continuam sem identificar um critério normativo aplicado e sim a atacar a própria decisão recorrida, acusando-a de arbitrariedade, por ter dado preferência a umas declarações em detrimento de outras, ao abrigo da livre apreciação da prova. O recurso de constitucionalidade não versa as decisões dos tribunais, limitando-se a avaliar da compatibilidade jusconstitucional de normas ou interpretações normativas - objeto este que, quanto a esta questão, é absolutamente ausente.

Pelo exposto, a impossibilidade de conhecimento do mérito do recurso quanto a esta questão, funda-se tanto na inidoneidade do objeto, como na omissão de suscitação prévia adequada.

6.4 - Invocam ainda os recorrentes a inconstitucionalidade do artigo 356.º, n.º 4, do CPP, quando interpretado no sentido de que o simples facto da testemunha estar ausente no estrangeiro se enquadra, por si só, na situação de impossibilidade duradoura aí prevista, por violação do princípio do contraditório e, em consequência dos direitos de defesa consagrados no artigo 32.º da Constituição.

Mais uma vez se constata que, quanto a este aspeto, os recorrentes não formularam, perante o tribunal recorrido, um qualquer problema de inconstitucionalidade normativa, tendo-se limitado a sustentar que, neste aspeto, ocorrera a violação de diversas normas legais e que isso se traduziu na valoração, pelo tribunal, de provas nulas. Não enunciaram um qualquer critério normativo que pudesse ser escrutinado, pela instância a quo, quanto à respetiva conformidade constitucional, o que também justifica que, quanto a este aspeto, não se vislumbre na decisão recorrida uma qualquer decisão a propósito da ora suscitada inconstitucionalidade normativa, como se conclui da análise de fls. 5799-5805. De resto, nem a questão enunciada no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade reveste caráter normativo: em causa está apenas a subsunção de uma dada circunstância factual a um conceito legal indeterminado - inidoneidade do objeto, portanto.

Confirma-se, assim, a falta de pressupostos indispensáveis à admissão do recurso quanto à questão de inconstitucionalidade em análise: inidoneidade do objeto e não suscitação prévia adequada.

De qualquer modo, acrescente-se, a ratio determinante para a decisão recorrida subsumir a factualidade concreta à previsão da situação de impossibilidade duradoura, apta a permitir a recolha de depoimento para memória futura, foi não só a circunstância de a testemunha se ir encontrar, a breve trecho, ausente no estrangeiro, mas também - e estes aspetos não são de somenos importância na economia da decisão recorrida - o facto de a mesma se encontrar a residir e a trabalhar, desde 2002, na República Popular do Congo (sendo, portanto, a sua presença física em Portugal uma circunstância fortuita, tratando-se a regra a da ausência naquele mesmo país) e de, concomitantemente, não ser possível «a realização de videoconferência, por ausência de meios adequados para o efeito», salientando-se ainda a não adequação da carta rogatória que «pela forma a que deve obedecer, nunca seria cumprida e muito menos devolvida, nos ditos 30 dias» (fls. 5805).

6.5 - Finalmente, no que se refere à questão de constitucionalidade relacionada com o artigo 368.º-A do Código Penal, ou seja, a alegação de que a interpretação deste preceito feita no acórdão de 9 de setembro de 2015, no sentido de que o simples depósito de quantias em dinheiro provenientes do tráfico de estupefacientes em conta bancária dos próprios arguidos é suscetível, sem mais, de integrar o elemento subjetivo do crime de branqueamento de capitais viola o princípio da presunção de inocência e os direitos de defesa do arguido (artigo 32.º da Constituição).

Confirma-se, quanto a esta questão, a falta dos pressupostos indicados no despacho do relator de fls. 6736. Nas suas alegações, os recorrentes limitam-se a sustentar que enunciaram a questão no requerimento de recurso, o que, remetendo-se para o que já ficou supra-abundantemente referido, tal não apresenta qualquer relevância para os presentes efeitos.

6.5.1 - Na verdade, não ocorreu durante o processo suscitação de inconstitucionalidade normativa relacionada com o preceito em análise. Os recorrentes Pedro do Carmo Costa e Sofia Cardoso Miguel limitaram-se a sustentar que não havia sido feita prova do ilícito, quanto à intenção de dissimularem quaisquer proventos económicos (fls. 6272, v.º, e 6321 e ss.). Alegaram ainda ter ocorrido uma errada qualificação jurídica dos factos e que o tipo em causa depende não apenas do preenchimento do tipo objetivo mas também do tipo subjetivo (a intenção de dissimular a origem ilícita das vantagens).

Ou seja, os recorrentes não enunciaram um qualquer critério normativo suscetível de fundamentar uma decisão a este propósito, passível de um juízo de inconstitucionalidade, o que igualmente justifica, também quanto a esta questão, que o tribunal recorrido não tenha apreciado um qualquer problema de inconstitucionalidade normativa.

6.5.2 - Acrescente-se ainda que, também neste aspeto, a ratio decidendi do acórdão recorrido não corresponde ao critério que vem identificado no presente recurso. Com efeito, como resulta claramente de fls. 6654, o tribunal a quo não prescindiu de um qualquer preenchimento do tipo subjetivo. Inversamente, afirmou que «[n]o que toca ao elemento subjetivo, é um crime doloso, exigindo-se que o agente saiba que os produtos são provenientes de certo tipo de atividade criminosa.» (itálico aditado). Tanto basta para afastar a utilidade do recurso quanto a esta questão.

7 - No requerimento de interposição do presente recurso de constitucionalidade vem ainda sindicado o artigo 356.º, n.º 3, do CPP, quando interpretado no sentido de que «a leitura dos depoimentos testemunhais prestados no inquérito perante a autoridade judiciária é admitida, sem ser necessário o consentimento dos arguidos, quando aquela leitura se destine a avivar a memória de quem declare na audiência já não se lembrar de certos factos, ou quando existir entre elas e as feitas na audiência discrepâncias ou contradições», por violação do disposto nos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.os 1, 2 e 5, da Constituição (itálico aditado). Esta questão foi depois retomada nas alegações oportunamente apresentadas, especificando-se que a autoridade judiciária em causa é o Ministério Público (cfr. as respetivas conclusões 15 a 48, em especial, as conclusões 15 a 17; v. também, quanto à noção de autoridade judiciária, o artigo 1.º, alínea b), do CPP).

Nas mesmas alegações, os recorrentes mencionaram também uma dimensão normativa do artigo 356.º, n.º 3, do CPP conexa mas diferente, em especial quando se referem à formação da convicção do julgador a que se reporta o artigo 127.º do mesmo Código, sem tradução no requerimento de recurso (cfr. as respetivas conclusões 49 a 65), Com efeito, perspetivando o artigo 356.º, n.º 3, isoladamente, a questão de constitucionalidade suscitada centra-se na desnecessidade de concordância do arguido, enquanto mero requisito de admissibilidade da leitura de declarações anteriormente prestadas (in casu por testemunhas) perante autoridade judiciária - isto é, como pressuposto da validade de produção de um dado meio de prova; a conexão do mesmo preceito com o artigo 127.º do CPP implica, adicionalmente, uma consideração da relevância das declarações anteriores, sobretudo se discrepantes ou contraditórias com as declarações presentes, para a formação da convicção do julgador, eventualmente limitando ou condicionando a liberdade da sua formação (por exemplo, e como pretendido pelos recorrentes na conclusão 60, impedindo que as segundas, ou seja, as declarações presenciais, sejam secundarizadas pelas primeiras, isto é, pelas declarações anteriores constantes do auto lido na presença do próprio declarante durante a audiência de discussão e julgamento).

Uma vez que o objeto material do recurso de constitucionalidade se fixa no respetivo requerimento de interposição, cumpre apreciar tão-somente a constitucionalidade da interpretação normativa originariamente indicada no requerimento de recurso e que, no essencial, corresponde ao sentido literal do preceito em causa, ainda que, atentas as conclusões 15 a 17 das alegações dos recorrentes, referenciado ao Ministério Público, enquanto autoridade judiciária.

B) Quanto ao mérito do recurso

8 - É o seguinte o teor do artigo 356.º, n.º 3, do CPP:

«É também permitida a reprodução ou leitura [em audiência] de declarações anteriormente prestadas perante autoridade judiciária:

Na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos; ou

Quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias.»

Conforme referido no acórdão recorrido - o acórdão de 17 de dezembro de 2014 -, no caso sujeito verificou-se o seguinte:

«No decurso do inquérito, as testemunhas, Paulo Manuel Pinto Pereira Luís, Luís Filipe Ferreira Marques, Hugo Renato Simões Mateus, e Roberto Carlos Costa Nunes prestaram declarações perante o Ministério Público (cf. respetivamente, fls. 2803 e 2804; fls. 2800; fls. 3176 e fls. 2810);

Todas estas testemunhas estiveram presentes e foram ouvidas, na audiência de 27 de fevereiro de 2014 (cf. fls. 4416, 4419 e 4420).

No decorrer da inquirição de cada uma delas, o Ministério Público requereu, que fossem lidas as declarações que, anteriormente, tinham sido, prestadas por cada inquirido, com fundamento nas alíneas a) e b), do n.º 3, do art. 356.º [do CPP].

O tribunal a quo, sem acordo dos recorrentes, permitiu a leitura das declarações das duas primeiras e da última das testemunhas mencionadas "atentas as discrepâncias" que se verificam entre os testemunhos prestados perante o Ministério Público e os prestados em audiência.

Foi, também, permitida a leitura das declarações de Hugo Mateus, "atenta a perceção da testemunha, que refere não se recordar agora de tudo [...]".

Em face do relatado na ata de julgamento de 27 de fevereiro de 2014, inexistem dúvidas que, em audiência, foram lidas as declarações que as testemunhas em causa tinham prestado perante o Ministério Público, umas para avivamento de memória, outras, devido às discrepâncias existentes entre o que foi dito no inquérito diante do Ministério Público e o que foi exposto em audiência.

Estamos, assim, no âmbito da exceção prevista no n.º 3 do art. 356.º que, como já explicitámos, não exige a concordância do arguido.

Ademais, os recorrentes não colocam, sequer em causa, que tenha havido discrepâncias entre os depoimentos que cada uma das testemunhas, Paulo Manuel Pinto Pereira Luís, Luís Filipe Ferreira Marques e Roberto Carlos Costa Nunes, prestou no inquérito e os feitas em audiência, nem que a leitura da declarações de Hugo Renato Simões Mateus se destinou a avivar a memória deste por ter declarado que já não se recordava dos factos.»

(fls. 5794-5795, ponto 5.2. do acórdão recorrido, pp. 124-125)

Os recorrentes entendem que a interpretação do referido preceito, no sentido de o mesmo, sem a concordância do arguido, admitir a leitura em audiência dos autos de declarações prestadas em sede de inquérito perante o Ministério Público por determinadas testemunhas com fundamento na existência de contradições ou discrepâncias entre essas declarações e aquelas que foram feitas em audiência ou com fundamento na necessidade de avivamento da memória é errónea e ilegal. Do referido erro de interpretação (e da consequente ilegalidade) decorre, segundo os recorrentes, a nulidade dos despachos que admitiram tal leitura e a nulidade das próprias provas, pelo que o tribunal recorrido não poderia ter dado como provado que a atividade de narcotráfico desenvolvida pelos recorrentes prosseguiu e progrediu através da venda de produto estupefaciente a número de consumidores não concretamente apurado, entre os quais as testemunhas cujos depoimentos prestados perante o Ministério Público em sede de inquérito e registados em auto foram lidos em audiência (cfr. as conclusões 19 a 40 e 42 a 46 das alegações).

Porém, a questão de saber se a norma aplicada pelo tribunal a quo corresponde à melhor interpretação do direito extravasa do âmbito do presente recurso, uma vez que o Tribunal Constitucional, num recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, só pode julgar inconstitucional «a norma que a decisão recorrida tenha aplicado» (cfr. o artigo 79.º-C da LTC). Importa, isso sim, indagar da respetiva inconstitucionalidade. Aliás, foi isso que fez o tribunal recorrido e é isso que também pedem os recorrentes no presente recurso, ainda que, em termos argumentativos, e contrariamente ao que sucede quanto à legalidade da interpretação questionada, se limitem a referir genericamente os parâmetros que têm por violados (cfr. as conclusões 18, 19, 38, 41 e 48 das alegações; v. também a conclusão 14.ª das contra-alegações).

9 - O tribunal a quo analisou a questão da constitucionalidade do artigo 356.º, n.º 3, do CPP, nos seguintes termos:

«Para os recorrentes, a previsão do art. 356.º, n.º 3, é inconstitucional, quando interpretado no sentido de permitir a leitura das declarações prestadas perante o Ministério Público sem a concordância do arguido, por violação do art. 20.º, n.º 4 e 32.º, n.º 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa e art. 6.º da CEDH.

Porém, sem razão.

O art. 20.º da Constituição da República garante o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, assegurando, além do mais, no seu n.º 4, que "todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em um prazo razoável e mediante um processo equitativo".

"A exigência de um processo equitativo, constante do art. 20.º, n.º 4, se não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta estrutura do processo, impõe, antes de mais, que as normas processuais proporcionem aos interessados meios de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e paridade entre as partes na dialética que elas protagonizam no processo" (Acórdão 632/99). Um processo equitativo postula, por isso, a efetividade do direito de defesa no processo, bem como um dos princípios do contraditório e da igualdade de armas [Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, pág. 192].

O art. 32.º da Constituição da República Portuguesa dispõe, nos seus n.º 1 e 5, que "o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa", revestindo estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

"Quando aquele preceito se reporta a 'todas as garantias de defesa', considera indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados a defender a sua posição e a contrariar a acusação. O posicionamento do arguido num processo de tipo acusatório há de revestir-se numa situação de reciprocidade dialética face à acusação, pelo que, em conformidade, devem ser-lhes atribuídos aqueles meios legais de intervenção que compensem o desequilíbrio, que é pressuposto indispensável de uma correta administração da justiça" [Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1052/96].

Não podemos, contudo, esquecer, como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de março de 2007, porque "os princípios da publicidade, contraditório, imediação e oralidade [...] mais do que garantias de defesa, são instrumentos que conduzem à descoberta da verdade, na qual se tem de fundar a realização da justiça, só podem, por regra, valer em julgamento, "nomeadamente para o efeito da formação da convicção do tribunal" as provas que tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência (artigo 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

Excecionalmente, nos casos expressamente admitidos na lei [...] podem ser valoradas provas antecipadas ou pré-constituídas desde que as mesmas sejam introduzidas no debate através da sua leitura e, por essa via, sejam objeto do contraditório".

A leitura, em audiência das declarações das testemunhas prestadas diante do Ministério Público, sem o consentimento do arguido, ou do assistente, é expressamente admissível, nos casos em que, excecionalmente, se verifique um dos requisitos do n.º 3, do art. 356.º: quando existam discrepâncias ou contradições entre as anteriormente prestadas e as feitas em audiência [al. b)], ou na parte que é necessária ao avivamento de memória de quem declara que já não se recorda de certos factos [al. a)].

Pressupõe-se, assim, a presença da testemunha em audiência a prestar oral e validamente um depoimento.

Se, no decurso deste depoimento, a testemunha afirma que já não se recorda de certos factos ou apresenta uma versão discrepante ou contraditória com declarações anteriores que prestou perante a autoridade judiciária, pode o arguido exercer, neste momento, o pleno direito de defesa, não só, contrainterrogando a testemunha, mas também, oferecendo meios de prova que abalem o credibilidade do inquirido.

Esta circunstância confere ao arguido não só um exercício pleno do seu direito de defesa, como garante os princípios da imediação e do contraditório.

Foi aliás, este o entendimento do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais, quando, a propósito da assistência do arguido por defensor [Parecer pedido pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, sobre a proposta de Lei 77/XII/1.ª, que pode ser visualizado em www.idpcc.pt/xrns/files/Noticias_e_Eventos/IDPCC_Analise_das_propostas_de_revisao_do_Codigo_de_Processo_Penal_AR_ 19. 10..2012..pdf (nota de rodapé n.º 10)], explicou os motivos pelos quais não se pronunciou sobre os atos de inquirição de testemunha em fase de inquérito ou instrução que sejam ouvidas em audiência:

"Tendo em conta o atual quadro processual, não nos parece imprescindível a intervenção de defensor nestes atos, porquanto regra geral, tais declarações não podem ser valoradas em julgamento sem que a testemunha tenha comparecido e prestado declarações sujeitas ao contraditório e perante o juiz da causa."

Não se mostram, assim, violados nenhum dos princípios consagrados no arts. 20.º, n.º 4 e 32.º, da Constituição da República Portuguesa ou art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, improcedendo esta nulidade invocada pelos recorrentes, da família Cardoso Costa.»

(fls. 5797-5799, ponto 5.4. do acórdão recorrido, pp. 127-129)

Em suma, segundo o entendimento acolhido na decisão recorrida, a possibilidade de a defesa confrontar na audiência de discussão e julgamento a testemunha com as declarações feitas nesse momento e com eventuais discrepâncias resultantes da leitura de declarações proferidas em momento processual anterior perante o Ministério Público, contrainterrogando-a ou oferecendo meios de prova que abalem a sua credibilidade, é suficiente para acautelar os valores acolhidos nos parâmetros constitucionais invocados pelos recorrentes e, outrossim, os princípios da publicidade, do contraditório, da imediação e da oralidade, enquanto garantias de descoberta da verdade material.

10 - Está em causa a constitucionalidade de uma exceção à regra de que, para efeito de formação da convicção do tribunal, só devem poder ser utilizadas as provas produzidas ou examinadas em audiência, consagrada no artigo 355.º n.º 1, do CPP, e que é constitui um corolário do princípio da imediação da prova. Com efeito, conforme se pode ler num dos Acórdãos deste Tribunal citados pelo tribunal a quo - o Acórdão 1052/96 -,

«[O] o princípio retor de todas as regras sobre produção de prova na audiência de julgamento consta do artigo 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo o qual "não valem em julgamento nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tivessem sido produzidas ou examinadas em audiência".

Por influxo deste princípio, como aliás resulta do n.º 2 daquele dispositivo, a prova constante de atos processuais praticados anteriormente muito embora esteja à disposição do tribunal, não pode por este ser utilizada para efeitos de decisão se os respetivos autos não forem lidos em audiência.

A leitura dos autos e declarações autorizada pelo artigo 356.º representa uma emanação da oralidade e publicidade da audiência, traduzindo-se porém em exceção ao princípio da imediação da prova, exceção justificada pela impossibilidade ou grande dificuldade da sua produção direta ou por outras razões pertinentes.

Mas, nas situações que, a título taxativo, são previstas naquele preceito houve o evidente propósito de acautelar as garantias de defesa do arguido, nomeadamente o princípio do contraditório estabelecendo-se um regime diferenciado em função, não só da natureza dos atos processuais, como também da autoridade judiciária ou de polícia criminal perante quem foram praticados.

[...]

A diferenciação de tratamento estabelecida para a leitura em audiência dos diversos atos ali previstos radica na sua particular natureza e conteúdo mas também, e é esse um ponto que aqui importa sublinhar, nas maiores ou menores garantias processuais com que os mesmos foram praticados (com as formalidades estabelecidas para a audiência, levadas a cabo perante o juiz, perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal).

[...]

A norma posta em crise [- o artigo 356.º, n.os 2, alínea b), e 5 -] só consente a leitura do depoimento da testemunha - presente na audiência de julgamento - prestado no inquérito perante um órgão de polícia criminal, desde que se verifique acordo por parte do Ministério Público, do arguido e do assistente.

Este condicionamento acha-se fundado, desde logo, na circunstância de as declarações cuja leitura se pretende não terem sido prestadas com observância das formalidades estabelecidas para a audiência ou perante juiz, não existindo quanto a elas as garantias dialéticas de contraditoriedade constitucionalmente asseguradas.

Por outro lado, achando-se presente na audiência a testemunha em causa, há de dizer-se que quanto ao seu depoimento e à sua razão de ciência o arguido tem a possibilidade legal de exercer um pleno direito de defesa (the accused has the right [...] to meet witnesses face to face, como se escreve no artigo 1.º, secção 9, da Constituição dos Estados Unidos da América).

A exigência de um consentimento alargado ao Ministério Público, ao arguido e à defesa, para que a leitura das declarações seja possível não se apresenta como encurtamento ou restrição inadequada ou inadmissível das garantias de defesa, traduzindo-se, ao contrário, numa linha de concretização do princípio geral sobre a produção de prova em audiência constante do artigo 355.º, n.º 1, o qual visa essencialmente a garantia da posição processual do arguido.»

A redação vigente do artigo 356.º, n.º 3, do CPP, introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, veio admitir, nos casos e para os fins referidos nas respetivas alíneas a) e b), a leitura (ou a reprodução) em audiência de declarações anteriormente prestadas perante autoridade judiciária, e já não somente perante o juiz. No n.º 4 da exposição de motivos da correspondente proposta de lei - a Proposta de Lei 77/XII, de resto citada pelo tribunal a quo - pode ler-se, a propósito:

«Sendo residuais os casos em que as testemunhas são efetivamente inquiridas por um juiz nas fases preliminares do processo, deve ser assegurada a possibilidade de leitura ou reprodução das declarações anteriormente prestadas perante o Ministério Público em caso de necessidade de avivamento de memória e no caso de contradições com o depoimento anteriormente prestado.»

Esta alteração - que traduz um alargamento da possibilidade de utilização na audiência de julgamento de declarações anteriormente prestadas pelo assistente, por partes civis ou por testemunhas, mesmo na ausência de consenso entre Ministério Público, arguido e assistente - inscreve-se na linha geral da reforma de 2013: a conciliação prática entre, por um lado, a necessidade de celeridade e eficácia no combate ao crime e de defesa da sociedade; e, por outro lado, a garantia dos direitos de defesa do arguido (cfr. o n.º 1 da citada exposição de motivos).

11 - No Acórdão 90/2013, além de se fazer uma descrição sobre a evolução legislativa quanto à admissibilidade de leitura na audiência de julgamento de autos de declarações prestadas anteriormente por assistentes ou testemunhas, são analisadas as razões e o tipo de vinculação constitucional do regime limitativo constante do artigo 356.º do CPP, na versão anterior à Lei 20/2013, de 21 de fevereiro:

«[2.2. [...] O] sistema em vigor é severamente limitativo quanto à leitura, durante a audiência de julgamento, das declarações de testemunhas e assistentes proferidas em sede de inquérito, perante o Ministério Público ou órgãos de polícia criminal. Apenas as admite, independentemente da finalidade dessa leitura, quando exista um acordo nesse sentido que englobe o Ministério Público, o arguido e o assistente. Isto tem como resultado, inexistindo esse acordo, a impossibilidade da sua utilização por parte do tribunal, não só na formação da sua convicção, mas também como instrumento auxiliar no avivamento da memória de quem presta declarações em audiência ou na aferição da credibilidade desses depoimentos.

A esta solução preside a ideia inicial de que toda a prova em que se funde a convicção do julgador tem de ser realizada na audiência e segundo os princípios naturais de um processo de natureza acusatória (os princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção dessa prova), pelo que toda a derrogação a esta linha de pensamento só pode ser afirmada como exceção, justificada por um determinado circunstancialismo e regulada segundo um princípio de concordância prática dos valores conflituantes [...]. Daí que, sendo a prova testemunhal em sentido amplo, quanto à sua formação, uma prova constituenda, como regra geral se proíba a admissão em julgamento da leitura de anteriores declarações processuais. Na verdade, este tipo de prova, em fase de julgamento, só está imune a qualquer juízo de desconfiança, relativamente à sua autenticidade e credibilidade, quando ela é produzida perante o julgador, aos olhos do público e com o contributo dialético dos sujeitos processuais. É essa desconfiança que, na opção legislativa, não permite a transmissibilidade daquelas declarações para a fase de julgamento, sobretudo quando elas não foram prestadas perante um juiz, dado que, quando a entidade inquiridora foi o Ministério Público ou um órgão de polícia criminal se entende que as expectativas de quem procede à inquirição, que resultam da hipótese formulada para a investigação ou da convicção formada por outros indícios já recolhidos, têm influência sobre as declarações recolhidas [...].

O legislador, porém, não entendeu dotar esta proibição de prova duma força que a subtraísse ao funcionamento duma ideia, com problemática aceitação no processo penal, de autorresponsabilidade probatória das partes, numa dimensão que lhes confere poderes para disporem, por consenso, sobre a validade de determinadas provas [...]. Encontrando-se todos os sujeitos processuais de acordo quanto à admissibilidade da leitura de declarações prestadas por assistentes e testemunhas, em fase anterior à do julgamento, cessa a preocupação com as desconfianças que a valia de tais declarações poderia suscitar, uma vez que os eventuais afetados pela utilização dessa prova pré-constituída manifestam a sua vontade dela ser usada, sendo certo que o julgador avaliará sempre livremente da sua relevância, segundo as regras da experiência e a sua convicção (artigo 127.º, do Código de Processo Penal). Se os titulares de interesses juridicamente relevantes no processo penal reconhecem, numa opinião unânime, que, apesar das circunstâncias em que foi produzida aquela prova, ela pode ser útil para o julgamento do pleito, a suspeição que sobre ela recaía deixa de ter razões que impeçam a sua ponderação.

[...]

Já vimos que a regra da proibição de utilização de depoimentos prestados perante outras entidades que não um juiz, em fases do processo anteriores ao julgamento, mesmo como um mero instrumento auxiliar de valoração da prova produzida em audiência, tem o seu fundamento nas desconfianças sobre a fiabilidade dos depoimentos prestados à margem dos princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção da prova, e obtidos sob a direção de uma entidade que não disponha da garantia judicial. Se tais depoimentos podem suportar a decisão de deduzir uma acusação, as circunstâncias em que foram prestados suscitam naturais interrogações sobre a sua idoneidade para fundamentar uma decisão de condenação ou absolvição.

Tais desconfianças, perante tal circunstancialismo, são inteiramente legítimas, colocando em causa a credibilidade dos resultados deste modo de recolha de prova testemunhal em sentido amplo, pelo que não se revela arbitrária nem desproporcionada a proibição da leitura de tais declarações em julgamento, quer como meio de prova, quer como mero instrumento auxiliar de valoração da prova testemunhal em sentido amplo aí produzida, uma vez que há sempre o risco dessa leitura contaminar os depoimentos prestados na audiência de julgamento.

Sendo estes os fundamentos da proibição, ela tem necessariamente como destinatários todos os sujeitos processuais, incluindo o arguido. A suspeição que recai sobre uma prova devido ao modo como foi obtida é independente de quem dela se pretende servir. Saber até onde deve ir a severidade desta proibição ou quais as exceções que a mesma pode admitir é uma discussão inserida na área de liberdade de conformação do legislador na compatibilização de interesses conflituantes, não competindo a este Tribunal pronunciar-se sobre qual é a melhor solução ao nível infraconstitucional.

A opção pela relevância de um consenso entre os titulares de interesses juridicamente relevantes no processo penal para que uma prova deste tipo, cuja credibilidade está sob suspeita, devido ao modo como foi obtida, possa ser admitida em julgamento, insere-se nesse espaço de liberdade do legislador ordinário, não infringindo qualquer diretriz constitucional, designadamente o direito de defesa do arguido ou o direito a um processo equitativo.»

(itálicos aditados)

Portanto, o regime-regra de proibição de leitura em audiência de autos de declarações anteriormente prestadas pelo assistente, pelas partes civis ou por testemunhas perante outrem que não um juiz justifica-se em razão de um juízo de desconfiançasobre a fiabilidade desses depoimentos, fundado na ausência de garantias de contraditoriedade e de imparcialidade quanto às condições em que são prestados. Mas tal regime, enformado por princípios como os da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção da prova, não é, ele próprio, absoluto, sendo admissíveis exceções legalmente fixadas e fundadas, ou em circunstâncias em que aquela desconfiança já não se justifique - como sucede no caso da mencionada ideia de autorresponsabilidade probatória das partes -; ou em razão da necessidade de concordância prática com outros interesses e valores conflituantes. A Constituição, nomeadamente ao assegurar todas as garantias de defesa do arguido, a estrutura acusatória do processo criminal e o princípio do contraditório (cfr. o respetivo artigo 32.º, n.os 1, 2 e 5), impõe, por isso, como princípio, que toda a prova em que se funde a convicção do julgador seja produzida na audiência e segundo os princípios naturais de um processo de natureza acusatória (os princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção dessa prova); mas a respetiva concretização em regras processuais, incluindo as exceções a admitir, já é matéria que se insere no espaço da liberdade de conformação do legislador.

12 - No direito comparado, mormente no direito alemão e no direito italiano, e sem prejuízo do respeito pelo princípio da imediação da prova, encontram-se soluções diferenciadas para a questão do aproveitamento de depoimentos prestados em atos processuais anteriores à audiência de julgamento, em certos aspetos mais restritivos, noutros menos (v., por exemplo, as referências em PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª ed., Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, Nota prévia ao artigo 355.º", pp. 909-911).

Já o regime estabelecido para a mesma questão pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 6.º, parágrafo 3.º, alínea d), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem é menos exigente do que o previsto no CPP (cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., pp. 911-912). Em especial, no que se refere à garantia do contraditório e dos direitos de defesa quanto a depoimentos de testemunhas, aquele Tribunal considera que se, por princípio, os mesmos devem ser produzidas perante o arguido em audiência pública, com vista a um debate contraditório, tal não obsta a exceções, designadamente, e no caso em que as testemunhas não se encontram presentes na audiência, a leitura dos respetivos depoimentos prestados anteriormente na fase de inquérito ou de instrução, desde que se mostrem salvaguardados os direitos de defesa. Regra geral, estes últimos exigem que tenha sido dada ao arguido a possibilidade de interrogar, direta ou indiretamente, tais testemunhas, seja no momento em que as mesmas prestaram o seu depoimento, seja em momento posterior (cfr., entre muitos, Isgrò c. Italie, de 19 de fevereiro de 1991, § 34; Saïdi c. France, n.º 14647/89, de 20 de setembro de 1993, §§ 43-44; Trampevski c. ex-República jugoslava da Macedónia, n.º 4570/07, de 10 de julho de 2012, § 44; A.G. c. Suécia (dec.), n.º 315/09, de 10 de janeiro de 2012; Al-Khawaja e Tahery c. Reino Unido, n.os 26766/05 e 22228/06, de 15 de dezembro de 2011, § 118; e Schatschaschwili c. R.F. Alemanha, n.º 9154/10, 105; v. também IRENEU CABRAL BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2005, nota 9.5. ao artigo 6.º, p. 175) - está em causa a chamada "regra da prova única ou determinante", segundo a qual, um processo (penal) não é equitativo, caso a condenação se funde exclusivamente ou em medida decisiva em depoimentos de testemunhas que o arguido não tenha podido interrogar em nenhuma das fases do processo.

Porém, no seu acórdão Al-Khawaja e Tahery, o Tribunal flexibilizou a aplicação desta regra em função de uma série de critérios e princípios, vindo a admitir que, em determinadas circunstâncias, a mesma poderia ser afastada sem violação do artigo 6.º, parágrafo 3.º, alínea d), da Convenção, admitindo, portanto, a condenação do arguido com base em depoimentos de testemunhas lidos na audiência sem que as mesmas testemunhas tenham alguma vez sido interrogadas, direta ou indiretamente, pelo arguido (cfr. os §§ 119 e ss.). O acórdão Schatschaschwili confirmou esta orientação e precisou alguns desses critérios e princípios (cfr. os respetivos §§ 106 e ss.).

Estas indicações confirmam que o reconhecimento de um espaço de livre conformação quanto à disciplina legal da admissibilidade da leitura em audiência de depoimentos anteriormente prestados por testemunhas presentes nessa mesma audiência é corrente no panorama jurídico europeu, inexistindo soluções absolutas. Constantes são apenas a orientação geral correspondente à imediação e a exigência de salvaguarda dos direitos de defesa e do contraditório quanto aos depoimentos a apreciar na audiência.

13 - Como mencionado, a redação dada ao artigo 356.º, n.º 3, do CPP pela Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, alargando o campo da admissibilidade, para os efeitos aí previstos, da leitura em audiência de declarações anteriormente prestadas sem o assentimento de todos os sujeitos processuais - não apenas perante um juiz, mas também perante o Ministério Público -, visou, desde logo, possibilitar a aplicação com real significado do regime contido nesse preceito (cfr. o n.º 4 da exposição de motivos da Proposta de Lei 77/XII). Além disso, o legislador pretendeu objetivamente reforçar a importância da consistência e seriedade das declarações prestadas durante o inquérito perante magistrados do Ministério Público, destacando o papel destes por comparação com os órgãos de polícia criminal e prevenindo táticas de diversão ou de manipulação por parte dos declarantes. Recorde-se que as declarações prestadas perante autoridade judiciária são prestadas sob juramento e vinculadas à verdade (cfr. os artigos 91.º, n.º 3, e 132.º, n.º 1, alíneas b) e d), ambos do CPP).

Entende este Tribunal que o citado alargamento não afeta intoleravelmente nem a equidade do processo criminal nem as garantias de defesa do arguido e que, por isso, ainda se situa no âmbito da liberdade de conformação do legislador.

Com efeito, o alargamento em causa, além de respeitar apenas às diligências realizadas por magistrados que a própria lei processual qualifica como "autoridade judiciária" - magistrados esses que, não sendo juízes, nem por isso deixam de se encontrar estatutária e deontologicamente obrigados a deveres de legalidade e de imparcialidade -, encontra-se balizado - e, por isso, também justificado por razões atendíveis - pelas funções previstas nas alíneas a) e b), do n.º 3, do artigo 356.º do CPP: (i) o avivamento da memória de quem declarar em audiência que já não recorda certos factos; e (ii) o esclarecimento de contradições ou discrepâncias entre declarações anteriores e aquelas que são feitas em audiência. Trata-se, assim, de um importante instrumento auxiliar no avivamento da memória de quem presta declarações em audiência ou na aferição da credibilidade desses depoimentos (cfr. o Acórdão 90/2013), cuja importância para a descoberta da verdade material não pode ser desprezada.

Acresce que a solução legal não impede o arguido de, no exercício do contraditório, confrontar na audiência de julgamento a testemunha com as declarações feitas nesse momento e com eventuais contradições ou discrepâncias resultantes da leitura de declarações proferidas em momento processual anterior perante o Ministério Público, contrainterrogando-a ou oferecendo meios de prova que abalem a sua credibilidade. O princípio do contraditório, não é afastado nem a sua eficácia relativamente à formação da convicção do julgador se mostra diminuída. Por outro lado, mantém-se a salvaguarda estatuída no artigo 356.º, n.º 6, do CPP: proibição da leitura de depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.

Ou seja, a leitura de autos contendo declarações anteriormente prestadas perante o Ministério Público não é um meio de prova substitutivo da inquirição em audiência, mas releva como importante instrumento auxiliar de valoração da prova testemunhal produzida em audiência: é com base no depoimento da testemunha produzido na audiência e, portanto sujeito a contraditório, seja por parte da acusação, recordando o que anteriormente foi dito pela mesma testemunha; seja por parte da defesa, contrainterrogando ou questionado a credibilidade da testemunha, que o tribunal forma a sua convicção. Por isso, e como bem refere o Ministério Público, inexiste subversão ou ausência de contraditório, mas alargamento e aprofundamento, em vista de maior rigor na descoberta da verdade (cfr. a conclusão 26.ª das contra-alegações).

Deste modo, a solução consagrada no artigo 356.º, n.º 3, do CPP, além de contribuir para a busca da verdade no quadro do processo criminal e para a consequente maior eficácia no combate ao crime e defesa da sociedade, não subtrai ao arguido meios de defesa legítimos nem afeta as condições da sua participação paritária na dialética inerente ao processo na fase da audiência de julgamento - por isso, não viola o direito ao processo equitativo previsto no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição; nem, por outro lado, impede ou dificulta desproporcionadamente a defesa do arguido, já que este pode na audiência de julgamento exercer plenamente o contraditório relativamente às testemunhas cujas declarações tenham sido lidas nessa mesma audiência - daí não ocorrer violação nem das garantias de defesa nem do princípio do contraditório consignados no artigo 32.º, n.os 1, 2 e 5, da Constituição.

III. Decisão

Pelo exposto, decide-se:

a) Não julgar inconstitucional o artigo 356.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de que «a leitura dos depoimentos testemunhais prestados no inquérito perante o Ministério Público é admitida, sem ser necessário o consentimento dos arguidos, quando aquela leitura se destine a avivar a memória de quem declare na audiência já não se lembrar de certos factos, ou quando existir entre elas e as feitas na audiência discrepâncias ou contradições»;

b) Não conhecer do objeto do recurso quanto às seguintes questões de inconstitucionalidade:

- O artigo 170.º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que recai sobre o arguido o ónus de indicar os meios de prova e requerer diligências por forma a habilitar o julgador a decidir pela falsidade do conteúdo material do ato judicial praticado no inquérito pelo Ministério Público;

- O artigo 275.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que nada impede o Ministério Público que recorra exclusivamente «às funções do "corta e cola"», de pura e simplesmente "cortar" na íntegra o depoimento que consta do auto de inquirição da Polícia Judiciária e "colá-lo" na íntegra no auto das declarações perante si prestadas;

- O artigo 127.º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal poderá formar a sua convicção com base nas declarações prestadas por uma testemunha perante o Ministério Público em sede de inquérito e posteriormente lidas na audiência de discussão e julgamento em detrimento daquelas que a mesma testemunha prestou nessa mesma ocasião, ou seja, em sede de audiência de discussão e julgamento;

- O artigo 356.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o simples facto da testemunha estar ausente no estrangeiro se enquadra, por si só, na situação de impossibilidade duradoura aí prevista;

- O artigo 368.º-A do Código Penal, interpretado no sentido de que o simples depósito de quantias em dinheiro provenientes do tráfico de estupefacientes em conta bancária dos próprios arguidos é suscetível, sem mais, de integrar o elemento subjetivo do crime de branqueamento de capitais;

E, em consequência,

c) Negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UC, ponderados os critérios estabelecidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 6.º, n.º 2, do mesmo diploma).

Lisboa, 19 de janeiro de 2016. - Pedro Machete - João Cura Mariano - Ana Guerra Martins - Fernando Vaz Ventura - Joaquim de Sousa Ribeiro. (Acórdão retificado pelo Acórdão 88/2016, de 4 de fevereiro de 2016.)

209392886

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2526716.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1998-10-07 - Decreto-Lei 303/98 - Ministério da Justiça

    Dispõe sobre o regime de custas no Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2013-02-21 - Lei 20/2013 - Assembleia da República

    Altera (20ª alteração) ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de fevereiro.

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