Assento
Acórdão
Acordam, em sessão plenária, no Supremo Tribunal de Justiça:
Com base no art.º 668.º do Código de Processo Penal, o digno procurador-geral-adjunto neste Supremo Tribunal interpôs recurso para o tribunal pleno do Acórdão de 3 de Julho de 1985 (fls. 10 e seguintes), com o fundamento de estar em oposição com o Acórdão de 21 de Junho de 1983 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 328, p. 383), ambos deste Supremo Tribunal.
O aludido digno magistrado concretizou do seguinte modo a invocada oposição:
Em processos por crimes de emissão de cheques sem provisão, perante a mesma factualidade e no domínio da mesma legislação, o Acórdão de 21 de Junho de 1983, transitado em julgado, decidiu que a lei reguladora do perdão de parte é sempre a vigente à data da apresentação da declaração do perdão, ainda que seja menos favorável ao réu do que a existente à data da prática do crime, e o acórdão recorrido decidiu que a lei reguladora do perdão de parte é a que vigorar à data da comissão do ilícito a que o perdão respeita, se for mais favorável ao réu.
O acórdão de fl. 21 a fl. 22 reconheceu preliminarmente a existência da invocada oposição.
Ainda o digno procurador-geral-adjunto deu parecer sobre a solução a dar ao conflito de jurisprudência, pronunciando-se favoravelmente à tese do acórdão recorrido e propondo a seguinte redacção do assento:
Em crime de emissão de cheque sem provisão cometido antes da entrada em vigor do Código Penal de 1982 o perdão de parte concedido após ela extingue a responsabilidade criminal do réu, excepto se já tiver transitado em julgado a respectiva sentença condenatória.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
O acórdão, que reconheceu a existência da oposição, não impede que o tribunal pleno decida em contrário (artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 668.º, § único, do Código de Processo Penal).
Reexaminando a questão, é de concluir que a oposição existe.
Com efeito, os Acórdãos de 21 de Junho de 1983 e de 3 de Julho de 1985 foram proferidos relativamente a crimes de emissão de cheques sem provisão cometidos antes da entrada em vigor do Código Penal de 1982; depois dessa entrada em vigor, e posteriormente à publicação das decisões condenatórias da 1.ª instância, houve, no processo em que foi lavrado o primeiro desses acórdãos, declaração de perdão do ofendido e, no processo em que, foi lavrado o segundo, declaração do ofendido a desistir da queixa e a conceder o perdão; os mencionados acórdãos decidiram em sentido oposto: o primeiro não deu qualquer relevância ao perdão e o segundo, em face da aludida declaração do respectivo ofendido, julgou extinto o procedimento criminal.
Encontrando-se, deste modo, justificado o recurso para o tribunal pleno, há que apreciar o seu objecto.
A questão em debate resulta de a uma lei que aceitava a eficácia do perdão de parte, nos casos em que podia ter lugar, exercido até ao trânsito em julgado de condenação, ter sucedido outra que só admite a desistência da queixa, nos casos em que, igualmente, pode ter lugar, até à publicação da decisão da 1.ª instância.
Dispunha, na verdade, o artigo 125.º do Código Penal de 1886:
O procedimento criminal, as penas e as medidas de segurança acabam não só nos casos previstos no artigo 6.º, mas também:
...
4.º Pelo perdão da parte ou pela renúncia ao direito da queixa em juízo, quando tenham lugar:
...
§ 6.º O perdão da parte só extingue a responsabilidade criminal do réu quando não há procedimento criminal sem denúncia ou sem acusação particular, excepto se já tiver transitado em julgado a respectiva sentença condenatória, e ainda nos casos especiais declarados na lei.
O Código Penal de 1982, depois de dispor, no n.º 1 do artigo 111.º:
Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, a pessoa ofendida, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação.
passou a preceituar no n.º 2 do artigo 114.º:
O queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença de 1.ª instância. A desistência impede que a queixa seja renovada.
A desistência a que se refere este preceito tem de ser havida como equivalente ao perdão da parte a que aludiam o n.º 4.º e o § 6.º do artigo 125.º do Código Penal de 1886, dado que muito bem se disse no acórdão recorrido:
[...] no-lo autoriza o autor do código actual («o perdão de parte está contido, como deve, na matéria respeitante à queixa» - disse no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 151, p. 33) e porque foi essa a nomenclatura utilizada no Decreto-Lei 223/83, de 27 de Maio {«o réu pagará imposto de justiça:[...] quando for isento de pena em virtude de perdão[...]»}.
(Não está em causa a possibilidade do perdão da parte e da desistência da queixa quanto aos crimes de emissão de cheques sem cobertura, uma vez que o respectivo procedimento criminal só pode ser instaurado a pedido dos portadores dos cheques - artigo 24.º do Decreto-Lei 13004, de 12 de Janeiro de 1927, quer na redacção inicial, quer na dada pelo artigo 6.º da Lei 25/81, de 21 de Agosto, e pelo artigo 5.º do Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro.)
Conquanto tivesse chegado a ser dominante na Secção Criminal deste Supremo Tribunal o entendimento que orientou, entre outros, o Acórdão de 21 de Junho de 1983, tal entendimento foi-se tornando evanescente.
E com fundadas razões.
Estabelece o n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal de 1982:
Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, será sempre aplicado o regime que concretamente se mostre mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado.
Viu-se na expressão «disposições penais» uma referência unicamente a normas incriminadoras e sancionatórias.
Mas tal expressão não pode sofrer uma limitação dessa natureza.
Trata-se, genericamente, de «disposições penais», em consonância com o artigo 29.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, que se refere a «leis penais».
Muito bem se disse também no acórdão recorrido:
Era este espírito de abertura que Eduardo Correia transmitia à comissão revisora (Boletim do Ministério da Justiça 141, 137), depois de o beber nos códigos estrangeiros. Lê-se no suíço, fonte confessa do nosso, que ele (le code) será aplicado aos crimes anteriores, se for (le code, repete) mais favorável ao agente que a lei então vigente.
Repare-se, é o «código», como conjunto sistemático de normas, que se aplica.
Também se viu no perdão da parte e na desistência da queixa uma natureza jurídica situada no plano do direito processual de aplicação imediata.
Tal natureza jurídica é controvertida.
Mantovani, in Diritto penale, parte generale, 1886, p. 44, pronuncia-se no sentido da natureza processual da desistência da queixa, dizendo que, «embora o Código a enumere entre as causas extintivas do crime, a remissão da queixa (remissione di querela) é geralmente considerada como causa de improcedibilidade superveniente e, juntamente com a querela, tratada no âmbito do processo penal».
Também Antolisei, in Manuale di diritto penale, parte generale (n.º 7), p. 603, se pronuncia no mesmo sentido, argumentando que, «sendo a querela um instituto de natureza puramente processual, a lógica impõe considerar da mesma forma a remissão».
Porém, Bettiol, in Direito Penal, parte geral, t. IV, trad. port., pp. 276 e 277, defende a natureza substantiva do instituto da desistência da queixa ou perdão da parte, dizendo que se trata de uma causa de extinção do crime - «a remissão, como manifestação de vontade, é um negócio jurídico pelo qual a parte ofendida por um crime perseguível mediante acusação particular extingue a pretensão punitiva já accionada pelo Ministério Público, a quem, através da querela, foi aberto o caminho à promoção da acção penal».
Mas, ainda que, porventura, o n.º 2 do artigo 114.º do Código Penal de 1982 tivesse natureza processual, isso não invalidaria a tese acolhida no acórdão recorrido.
A tendência moderna está orientada no sentido de se não aplicar a lei processual nova aos processos pendentes, principalmente quando ela possa contender com efeitos do acto praticado no domínio da lei antiga (aqui a queixa) ou agravar a punição do agente do crime (aqui tirando-lhe uma expectativa de perdão).
Neste sentido se está encaminhando a doutrina (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, p. 112, e J. Barreiros, Processo Penal, vol. I, p. 207).
E é o que já resulta do artigo 52.º do Decreto-Lei 402/82, de 23 de Setembro, e do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei 78/87, de 17 de Fevereiro, que aprovou o novo Código de Processo Penal, a entrar brevemente em vigor.
Acresce que:
O caminho correcto não está [...] em discutir a natureza jurídica de um instituto e daí extrair consequências para solucionar as questões decorrentes da aplicação da lei no tempo. Este seria sempre um caminho tributário de um pensamento conceitualista, que, como é sabido, pode conduzir a resultados falsos ou injustos. Disse, a este propósito, Manuel de Andrade, Sentido e Valor da Jurisprudência (oração de sapiência lida em 30 de Outubro de 1953), Coimbra, 1973, pp. 35 e 36: «[...] trata-se da demasiada intensificação da actividade conceitualizadora, ao que pode chamar-se intemperança conceitual ou construtiva, e da tendência para como que substantivar os conceitos, utilizando-os como premissas para a dedução de novas soluções - de conteúdos normativos não previamente apurados pela interpretação ou integração das leis. Desses males, que tanto a afligiram no século transacto, ainda hoje não está inteiramente sanada a jurisprudência.» Na verdade - disse ainda aquele saudoso mestre (Noções Fundamentais de Direito Civil, vol. I, p. 188) -, «o direito [...] tem uma função prática que consiste em descobrir a solução mais justa e conveniente para os diversos conflitos. Tal solução não deve procurar-se na construção jurídica, reduzindo-se o juiz a «pura máquina de subsunção», regida pelas leis da lógica formal. Diz-se que a doutrina conceitualista traz consigo mais certeza do direito, pois procura as soluções jurídicas dentro das leis imutáveis, precisas e objectivas da lógica. Admitindo que assim seja, também é verdade que [...] maiores possibilidades da realização da ideia de justiça e de equidade deve ser, afinal, a suprema ambição do direito. Os conceitos, submetidos às leis de uma lógica inflexível, sacrificam à generalização a vida real e os interesses concretos que o direito pretende tutelar.» (Figueiredo Dias e Anabela Miranda Rodrigues, a fls. 44 e 44 v.º dos autos.)
Consequentemente, em face do maior favor para o réu da aplicação do § 6.º do artigo 125.º do Código Penal de 1886 e do mais exposto, é de confirmar a decisão recorrida e de lavrar o correspondente assento.
Nestes termos, decidem negar provimento ao recurso e lavrar o seguinte assento:
No crime de emissão de cheque sem provisão cometido antes da entrada em vigor do Código Penal de 1982 a desistência da queixa, verificada após essa entrada em vigor, extingue a responsabilidade criminal do réu, excepto se já tiver transitado em julgado a respectiva decisão condenatória.
Sem imposto de justiça.
Lisboa, 16 de Dezembro de 1987. - Silvino Alberto Villa-Nova - Licínio Adalberto Vieira de Castro Caseiro - Augusto Tinoco de Almeida - Aurélio Pires Fernandes Vieira - Frederico Carvalho de Almeida Baptista - Júlio Carlos Gomes dos Santos - José Alfredo Soares Manso Preto - Fernando Pinto Gomes - Manuel Augusto Gama Prazeres - José Manuel Menéres Sampaio Pimentel - Cláudio César Gama Vieira - António de Almeida Simões - António Alexandre Soares Tomé - Abel Pereira Delgado - Salviano Francisco de Sousa - Joaquim José Rodrigues Gonçalves - Cesário Dias Alves - Mário Sereno Cura Mariano - Jorge de Araújo Fernandes Fugas - José Saraiva - José Isolino Enes Calejo - António Poças - José Manuel de Oliveira Domingues - João de Deus Pinheiro Farinha - João Augusto Pacheco e Melo Franco - João Solano Viana - Joaquim Augusto Roseira de Figueiredo - Pedro Augusto Lisboa de Lima Cluny - João Alcides de Almeida.