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Assento , de 17 de Maio

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Sumário

O direito de preferência conferido pelo artigo 1380.º do Código Civil não depende da afinidade ou identidade de culturas nos prédios confinantes

Texto do documento

Assento

Acordam, em plenário, no Supremo Tribunal de Justiça:

António Maria da Silva Ilheu interpôs recurso para o plenário deste Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido em 12 de Julho de 1983, no processo 70205/1.ª deste Tribunal, alegando achar-se tal aresto em oposição com o Acórdão também deste Supremo Tribunal de 15 de Maio de 1980, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 297, p. 335, visto que, enquanto o aresto recorrido considera, expressamente, indispensável ao exercício do direito de preferência regulado nos artigos 1380.º e 1381.º do Código Civil uma afinidade de culturas predominantes dos terrenos confinantes, o citado Acórdão de 15 de Maio de 1980 sustenta, expressamente, que a lei não distingue entre os tipos de cultura, de modo a exigir a identidade desta entre os terrenos contíguos, unicamente excluindo na alínea a) do artigo 1381.º a hipótese de algum destes se destinar a fim que não seja a cultura.

O acórdão de fl. 34 a fl. 36 reconheceu que ocorrem todos os requisitos ou pressupostos do recurso, incluindo a invocada oposição.

Prosseguindo, por isso, o recurso, o recorrente apresentou alegação, ultimando-a com as seguintes conclusões:

1.ª Para o exercício do direito de preferência previsto no artigo 1380.º do Código Civil, nem a letra da lei nem o seu espírito distinguem entre os tipos de culturas dos terrenos confinantes, não sendo, assim, necessária qualquer identidade ou afinidade de cultura entre os terrenos confinantes;

2.ª Pelo contrário, é o próprio artigo 1381.º, alínea a), do mesmo Código Civil que unicamente proíbe o direito de preferência no caso de algum dos terrenos confinantes se destinar a algum fim que não seja a cultura;

3.ª E é o que se compenetra com a finalidade legal de evitar a fragmentação e a dispersão da propriedade rústica através do emparcelamento, com o fim de melhorar as condições técnicas e económicas da exploração agrícola, o que tanto ocorre com terrenos de regadio ou de sequeiro como de regadio e de sequeiro;

4.ª Por maioria de razão, não é necessária, para tal exercício do direito de preferência, qualquer identidade ou afinidade de culturas predominantes entre os terrenos confinantes;

5.ª Por outro lado, para efeito de apurar a unidade de cultura, a distinção entre terrenos de regadio e de sequeiro, arvenses e hortícolas mostra-se clara, não sendo necessário recorrer ao conceito de cultura predominante, que, de resto, a lei não acolhe;

6.ª Acresce que houve acordo das partes quanto a nenhum dos terrenos confinantes ser hortícola e quanto a ambos esses terrenos terem área inferior à unidade de cultura, o que, aliás, também resulta da identificação dos dois prédios (ambos terras de semeadura, de vinha e árvores de fruto) e das suas áreas (7356,75 m2 e 6952 m2, respectivamente).

A finalizar, o recorrente pede que se revogue o acórdão recorrido e se confirmem a sentença da 1.ª instância e o acórdão da Relação de Lisboa, firmando-se assento no sentido de que «para o exercício do direito de preferência e, nomeadamente, para o apuramento da unidade de cultura, previstos no artigo 1380.º do Código Civil, não é necessário provar as espécies de cultura predominantes em cada um dos terrenos confinantes, bastando que se prove que ambos os terrenos confinantes são de cultura, independentemente das suas espécies».

Os recorridos José Pedro Jorge Faria e mulher, Maria Ângela dos Ramos Morgado Faria, Tomás de Oliveira Lourencinho e mulher, Mariana da Conceição Barrosa, e Manuel Machado Fortunato Grilo e mulher, Maria Carolina Remexido Tavares, também alegaram, concluindo que se deve proferir assento decidindo que «para o exercício do direito de preferência do artigo 1380.º do Código Civil é requisito indispensável que entre os terrenos confinantes se verifique afinidade de culturas, que ocorrerá quando forem idênticas as culturas dominantes em ambos os prédios».

O Exmo. Representante do Ministério Público igualmente alegou, alvitrando para o assento o seguinte texto:

O direito de preferência previsto no artigo 1380.º do Código Civil não depende da identidade de cultura dos terrenos confinantes.

Após o acórdão de fl. 34 a fl. 36 ninguém veio pôr em crise a existência dos pressupostos processuais do recurso aí reconhecida, incluindo a oposição de julgados.

Corridos os vistos legais, cumpre, por isso, apreciar e resolver.

Dispõe o n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil que «os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou apuramento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante».

A questão submetida à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça consiste em decidir se tal direito de preferência só pode ser exercido quando exista afinidade ou identidade de culturas dos prédios rústicos confinantes - posição adoptada pelo acórdão recorrido - ou se, pelo contrário, não é necessária essa afinidade de culturas para o exercício do mesmo direito - posição assumida pelo Acórdão deste Supremo Tribunal de 15 de Maio de 1980.

O direito de preferência fundado na confinância de prédios rústicos insere-se num conjunto de disposições legais que têm por finalidade lutar contra a excessiva fragmentação da propriedade rústica, atendendo aos inconvenientes de ordem económica que dela resultam, designadamente a baixa produtividade de prédios de reduzida área.

Assim, o artigo 1376.º do Código Civil declara que os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior à unidade de cultura fixada para cada zona do País, estabelecendo o subsequente artigo 1377.º as excepções a tal proibição de fraccionamento.

O artigo 1378.º do mesmo diploma indica os casos em que é admissível a troca de terrenos, sendo proibida a que ocasione ficar algum dos prédios sem a área da respectiva unidade de cultura.

O artigo 1382.º do citado Código reporta-se ao emparcelamento, isto é, ao conjunto de operações de remodelação predial destinadas a pôr termo à fragmentação e dispersão dos prédios rústicos pertencentes ao mesmo titular, com o fim de melhorar as condições técnicas e económicas da exploração agrícola, sendo regulado o emparcelamento pela Lei 2116, de 14 de Agosto de 1962, e pelo Decreto 44647, de 26 de Outubro do mesmo ano.

Todas essas providências se destinam a impedir a excessiva divisão da propriedade rústica e a incentivar e facilitar o emparcelamento.

Em nenhuma delas, porém, se manifesta o propósito de subordinar o emparcelamento à homogeneidade de culturas, e o que a lei pretende é tão-somente diminuir a exagerada pulverização da propriedade fundiária.

Os mencionados artigos 1376.º, 1377.º, 1378.º e 1380.º do Código Civil tiveram por fonte as bases I, II, IV e VI da aludida Lei 2116, e nelas igualmente não se fazia depender o emparcelamento da identidade de culturas.

O que interessa é a área da unidade de cultura, e essa é a que se encontra fixada na Portaria 202/70, de 21 de Abril, segundo a qual, e no que concerne ao distrito de Setúbal, aquele onde se situam os prédios em causa, tal área é de 2,5000 ha quanto aos terrenos de regadio arvenses, de 0,5000 ha relativamente aos terrenos de regadio hortícolas e de 5 ha quanto aos terrenos de sequeiro.

A natureza das culturas só se reveste de interesse para a determinação dessa área, devendo atender-se aí, sim, à predominante.

Sendo a finalidade da lei evitar a dispersão da propriedade rústica através do emparcelamento, atinge-se esse objectivo tanto com terrenos de regadio ou de sequeiro, como com terrenos de regadio e de sequeiro.

Se o legislador quisesse que o emparcelamento fosse obtido sem prejuízo da monocultura tê-lo-ia dito de modo expresso, exigindo uma mesma e única cultura nos prédios a emparcelar, e o certo é que não o fez.

Acresce que o imediato artigo 1381.º menciona os casos em que não existe o direito de preferência em causa, não obstante a confinância de prédios, e nenhum deles se reporta à inexistência de homogeneidade de cultura.

Importa, pois, concluir, como o fizeram os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 15 de Maio de 1980 e de 1 de Junho de 1983, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, n.os 297, p. 335, e 328, p. 568, respectivamente, que, em contrário da doutrina adoptada no acórdão recorrido, não é necessária a afinidade ou identidade de cultura nos prédios confinantes para o proprietário de um deles exercer o direito de preferência na venda do outro.

Dessa forma o recurso procede, mas a sua procedência não implica a revogação da decisão final do aresto recorrido de julgar a acção improcedente e absolver os réus do pedido.

Com efeito, essa decisão fundamentou-se também na circunstância de, sendo indispensável conhecer-se as culturas predominantes em cada prédio para se determinar se a área de qualquer deles era inferior à unidade de cultura no distrito de Setúbal, não se ter feito prova dos factos concretos através dos quais se pudesse proceder a tal determinação, já que, a classificar-se qualquer dos terrenos como hortícola, teria área superior à unidade de cultura, nos termos da referida Portaria 202/70, matéria que não é objecto do presente recurso.

Assim, o assento a proferir sê-lo-á nos termos do n.º 3 do artigo 768.º do Código de Processo Civil.

De harmonia com o exposto, concede-se provimento ao recurso, mas não se altera a decisão final do acórdão recorrido, e formula-se o seguinte assento:

O direito de preferência conferido pelo artigo 1380.º do Código Civil não depende da afinidade ou identidade de culturas nos prédios confinantes.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 18 de Março de 1986. - Alves Cortez - Tinoco de Almeida - Góis Pinheiro - Senra Malgueiro - Luís Franqueira - Frederico Baptista - Júlio Santos - Aurélio Fernandes - Corte-Real - Moreira da Silva - Melo Franco - Solano Viana - Joaquim Figueiredo - Dias da Fonseca - Lima Cluny - Villa-Nova - Lopes Neves - Magalhães Baião - Almeida Ribeiro - Licínio Caseiro - Manso Preto - Miguel Caeiro - Sá Coimbra - Pereira de Miranda (não reconhecendo relevância ao invocado critério da cultura dominante, conforme Acórdão deste Supremo de 26 de Junho de 1985, D.º 348-414) - Correia de Paiva (vencido, conforme a declaração de voto que junto) - Alves Peixoto (votei segundo o voto do meu Exmo. Colega Correia de Paiva) - Campos Costa (vencido, quanto ao conhecimento do objecto do recurso, pelas razões constantes da declaração de voto que se anexa).

Declaração de voto

Comentando o artigo 1380.º do Código Civil, escreveram os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela: «A razão da alteração introduzida pelo Código está em não se justificar que a grande propriedade absorva a pequena propriedade que lhe é contígua. Desde que já está formada uma unidade de cultura, desaparece o interesse económico da absorção, ou, pelo menos, trata-se de um interesse que não justifica a restrição da preferência, que apresenta igualmente inconvenientes sob o ponto de vista social e económico.» (Código Civil Anotado, vol. III, p. 247.)

«A limitação relativa ao fraccionamento de prédios rústicos diz respeito apenas aos terrenos aptos para cultura.» (Ibid., p. 237.)

O artigo 1376.º, n.º 1, do Código Civil estabelece que «os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País.»

A Portaria 202/70 fixou as áreas de unidade de cultura consideradas viáveis relativamente a cada região ou zona do País.

A dita proibição visou garantir a existência de unidades de cultura viáveis.

Por sua vez, o artigo 1380.º previu o «emparcelamento», precisamente para «pôr termo à fragmentação e dispersão dos prédios rústicos pertencentes ao mesmo titular, com o fim de melhorar as condições técnicas da exploração agrícola».

Resulta do artigo 1380.º que o direito de preferência só pode ser reconhecido a «proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura».

Temos, portanto, de nos situar na linha divisória dos dois terrenos em causa e verificar se o emparcelamento que se visa alcançar permite o estabelecimento de unidade de cultura viável, já que um e outro terreno limítrofes devem ser de área inferior à unidade de cultura.

Se o objectivo legal é o de viabilizar certa unidade de cultura (pela adição, junção ou absorção dos dois terrenos em confronto), considero necessário que se trate de terreno com idêntica aptidão para essa cultura que se pretende favorecer e viabilizar.

Se a área de terreno de ambos ou algum deles for superior à unidade de cultura, deixa de existir a possibilidade de usar o direito de preferência.

Pode, por outro lado, verificar-se a hipótese de na parte em que a confrontação se verifica existirem culturas diversificadas (arvenses-hortícolas-sequeiro); há então que determinar, relativamente a cada uma delas, qual é a cultura predominante, para de seguida se poderem comparar e, depois, concluir se o resultado da junção é a constituição de unidade de cultura viável.

Sendo este, como julgo ser, o objectivo da lei, entendo ser fundamental a consideração da existência da afinidade ou identidade de culturas nos prédios confinantes, sem a qual se não pode alcançar a pretendida unidade, que o legislador visou.

Não está em causa se algum dos proprietários é latifundiário ou proletário, rico ou pobre, se tem outros prédios ou unidades de cultura ou não.

Se os terrenos em confronto, de área inferior à unidade de cultura prevista como adequada para o local de situação, podem, emparcelados, conduzir a uma unidade de certa cultura viável, há que favorecer a constituição.

O reconhecimento do direito de preferência a um dos proprietários tem precisamente essa finalidade.

Inclino-me, por isso, para a jurisprudência dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Outubro de 1979 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 290, p. 395) e de 12 de Julho de 1983 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 329).

Correia de Paiva.

Declaração de voto

1 - Da inconstitucionalidade dos assentos.

Continuo a entender que o artigo 2.º do Código Civil está ferido de inconstitucionalidade, só me causando surpresa que, após o notabilíssimo estudo de Castanheira Neves, O Instituto dos «Assentos» e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, e mesmo depois de o disposto no n.º 5 do artigo 115.º da Constituição da República haver entrado em vigor, nenhum particular interessado em defender orientação oposta à perfilhada por algum assento tenha ainda suscitado em juízo a questão do não acatamento da doutrina firmada nos assentos.

Como a jurisprudência deste Supremo Tribunal não me tem acompanhado (v., por todos, o Acórdão de 9 de Maio de 1985, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 347, p. 240), vai adoptar-se o caminho de refutar cada um dos argumentos que o Supremo Tribunal tem invocado em seu favor, não se curando aqui de apontar sequer os sérios inconvenientes que o regime actual dos assentos acarreta (acerca disto, v. Castanheira Neves, ob. cit., pp. 626 e segs., e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1.ª ed., p. 224).

2 - Argumento da necessidade dos assentos como meio de pôr fim à incerteza do direito.

O argumento acima referido é quase de nulo significado.

Em primeiro lugar, dir-se-á que, por mais vantagens que derivem dos assentos, tal nunca poderia constituir alicerce para se firmar a tese da plena constitucionalidade dos assentos. Na verdade, plasmadas com princípios de ordem social, económica, cultural e de filosofia política, as constituições brigam muitas vezes com leis ordinárias altamente benéficas para a comunidade, mas que se basearam em princípios e ideias de outra índole. Ora, sempre que uma colisão destas se verifica, a lei ordinária tem fatalmente de ser sacrificada, ainda que se trate de uma lei excelente. Por isso mesmo, o artigo 293.º da Constituição da República prescreve, sem quaisquer restrições, que se não mantém o direito anterior à entrada em vigor da Constituição que seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados. Logo, não podem ser trazidos à colação os benefícios que resultam da observância do artigo 2.º do Código Civil, uma vez que daí nada se pode inferir acerca da constitucionalidade do preceito.

Dando, porém, de barato que tem interesse, para o efeito, averiguar dos reais benefícios dos assentos, sempre se dirá que nas legislações dos outros países não figuram decisões com força obrigatória geral, e, apesar disso, aí também se faz sentir a conveniência de evitar a incerteza do direito ...

Por último, o artigo 728.º, n.º 3, do nosso Código de Processo Civil, devidamente interpretado e aplicado, prevê um magnífico remédio para assegurar a uniformidade da jurisprudência e impedir, por essa forma, a indesejada incerteza do direito. Com efeito, desde que algum projecto de acórdão do Supremo Tribunal se afaste de orientação perfilhada pelas secções cíveis reunidas o Presidente do Supremo Tribunal não poderá deixar de submeter o dito projecto à apreciação das secções reunidas; e, sabedores disto, os juízes que porventura discordem da doutrina firmada no quase-assento, em bom critério (a fim de evitarem que no processo intervenham inutilmente todos os colegas das secções cíveis), deverão abraçar a tese propugnada no quase-assento, embora com a declaração expressa de ser outro o seu entendimento - declaração que tem a virtualidade de provocar a sujeição do tema jurídico a nova reunião conjunta das secções quando, sobretudo mercê de alteração no quadro dos juízes do Supremo, se apresentar como viável uma modificação da tese sufragada no anterior quase-assento.

Não será isso bastante para impedir a incerteza do direito?

Bem parece que sim, e tanto que outros sistemas legislativos consagram regimes algo semelhantes.

Assim, o artigo 374.º do Código de Processo Civil italiano determina que o presidente do Supremo faça intervir todos os juízes das secções quando se esteja perante uma questão de direito já decidida de modo diferente por uma das secções ou se trate de questão de grande importância.

O artigo 16.º da Lei Federal de Organização Judiciária Suíça também prescreve que, sempre que uma secção do tribunal entenda ser de alterar a jurisprudência seguida por outra secção, pelas secções reunidas ou pelo plenário, a secção só o pode fazer com o acordo da outra secção ou depois de uma decisão das secções interessadas ou do plenário.

3 - Argumento de que o artigo 115.º, n.º 5, da Constituição não se aplica aos assentos em virtude de eles estarem há muito institucionalizados.

Como o n.º 5 do artigo 115.º apenas estabelece que «nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos», julga-se que o preceito se não observa quanto aos assentos, por já terem sido criados antes de publicada a Constituição da República.

Trata-se de consideração muito frouxa.

Por um lado, ela olvida que, por força do artigo 293.º da Constituição da República, se não mantém o direito ordinário que contrarie a Constituição, mesmo que seja anterior à entrada em vigor da dita Constituição.

Por outro lado, se o disposto no n.º 5 do artigo 115.º só valesse quanto às leis futuras, então continuariam válidos todos os chamados regulamentos delegados ou autorizados, desde que anteriores à Constituição, apesar de o preceito ter querido acabar com eles.

4 - Argumento de que a constitucionalidade dos assentos aparece confirmada na alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da Constituição.

Quando a dita alínea g) estabelece que «são publicadas no jornal oficial [...] as decisões do Tribunal Constitucional, bem como as dos outros tribunais a que a lei confira força obrigatória geral», parece efectivamente que se pressupõe a validade constitucional dos assentos.

A tal argumento, de inegável valia, já Castanheira Neves (ob. cit., p. 408) soube dar adequada resposta; e, por isso, quase bastaria remeter para a leitura dessa resposta.

Em todo o caso, permita-se que, por outras vias, se destrua o relevo que se tem dado à alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º

É certo e seguro que, assim como Jorge Miranda (Constituição e Democracia, pp. 321 e 322), Afonso Queiró (Lições de Direito Administrativo, p. 389) e muitos outros juristas sustentam ainda hoje a plena validade dos assentos, é bem possível que a maioria dos deputados que votou a Constituição partilhasse da mesma opinião; e daí que, muito coerentemente, não tivessem hesitado em consignar no artigo 122.º a obrigatoriedade de os assentos serem publicados no jornal oficial.

Simplesmente, o que deve ser objecto de discussão é saber se uma norma legal com a indicação dos actos que têm de ser publicados no Diário da República será suficiente para atribuir validade constitucional a regimes que, face a outras disposições, podem ser apodados de inconstitucionais.

Ora, a negativa impõe-se. Para o comprovar admita-se que o artigo 122.º estabelecia que deviam ser publicadas na folha oficial as decisões judiciais que tivessem aplicado a pena de morte; claro que essa determinação não teria certamente força bastante para considerar revogado o artigo 24.º, n.º 2. da Constituição, que não consente em caso algum a pena de morte.

Isto quer dizer que, desde que se reconheça que os assentos estão viciados de inconstitucionalidade, não é o preceituado na alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º que pode servir de base para se subscrever doutrina oposta.

De resto, mesmo que se julgasse haver aqui uma colisão directa entre a alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º e os preceitos que não autorizam os tribunais a exercer uma função legislativa, haveria ao menos que se reconhecer que aquela alínea g) se encontrava inquinada de inconstitucionalidade, na medida em que não repugna que semelhante vício atinja as próprias normas da Constituição (cf. Otto Bachof, Normas Constitucionais Inconstitucionais?).

5 - Argumento de que o disposto no artigo 115.º, n.º 5, não quis proibir a força obrigatória das decisões judiciais.

Antes de entrar na apreciação do argumento da epígrafe supra esclareça-se como era equacionado o problema da constitucionalidade dos assentos no tempo em que não existia norma alguma semelhante ao actual artigo 115.º, n.º 5.

Tudo se resumia em averiguar se os assentos resultavam de exercício de uma função legislativa, uma vez que, como se sabe, essa função não cabe aos tribunais.

Para Castanheira Neves (ob. cit., pp. 315 e segs.) os assentos são disposições materialmente legislativas. E a partir do momento em que os assentos passaram a ter força obrigatória geral (artigo 2.º do Código Civil), deixando de ser apenas obrigatórios para os tribunais (como sucedia na vigência do artigo 768.º do Código de Processo Civil, na versão de 1939), também Marcelo Caetano (Manual de Direito Administrativo, 9.ª ed., I, pp. 119 e 120) sustentou que, face à Constituição de 1933, o artigo 2.º do Código Civil atribuía afinal aos tribunais uma função legislativa.

Para estes autores os assentos eram, portanto, inconstitucionais, inconstitucionalidade que, segundo se me afigura, é mais patente quando os assentos são lavrados a coberto do artigo 770.º do Código de Processo Civil, visto nesse caso o Supremo Tribunal não exercer função jurisdicional alguma, tal como esta aparece definida no artigo 206.º da Constituição da República.

Diferentemente, para Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, VI, p. 315), Afonso Queiró (ob. cit., loc. cit.,) e Jorge Miranda (ob. cit., loc. cit.) os assentos não são lei, mas actos puramente jurisdicionais; e daí a sua constitucionalidade.

Coloque-se agora o problema no domínio da revisão da Constituição operada em 1982, onde figura pela primeira vez o seguinte texto:

Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos. (N.º 5 do artigo 115.º)

Não terá esta disposição força bastante para que se deva considerar inconstitucional o estatuído do artigo 2.º do Código Civil?

Nos acórdãos que sobre a matéria se têm pronunciado, o Supremo Tribunal tem optado por uma resposta negativa, fundando-se para tanto no parecer da Procuradoria-Geral da República, de 20 de Junho de 1984 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 341, p. 96), segundo o qual o n.º 5 do artigo 115.º teve por objectivo «proibir a interpretação autêntica de leis através de actos normativos não legislativos (ex.: os regulamentos), ou de actos administrativos (ex.: despachos, directivas, etc.)»

A este propósito convém reconhecer que, efectivamente, a vontade subjectiva do legislador foi a relatada na passagem acima transcrita do parecer da Procuradoria-Geral da República.

Só que, de há muito, está abandonada a doutrina de que a interpretação tem por objecto a determinação ou reconstituição da vontade ou do pensamento do legislador (voluntas ou mens legislatoris). Na verdade, o artigo 9.º do Código Civil, combatendo os excessos a que podem conduzir as doutrinas subjectivistas e objectivistas, consagra o regime híbrido pelo qual, na interpretação da lei, se tem de atender ao pensamento legislativo e ainda a elementos de cariz objectivo (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2.ª ed., I, p. 46).

Ora, sabido até que para Alberto dos Reis (ob. cit., loc. cit.) e Manuel de Andrade (ob. cit., loc. cit.) os assentos valem como uma interpretação autêntica da lei e que no já referido parecer da Procuradoria-Geral da República se declarou igualmente que no artigo 115.º, n.º 5, se pretendeu «proibir a interpretação autêntica das leis através de actos normativos não legislativos», parece de todo líquido que, perante a letra da lei e o seu espírito, o artigo 115.º, n.º 5, proíbe que actos de natureza não legislativa façam interpretação autêntica de preceitos de lei. Logo, se para os adeptos da constitucionalidade dos assentos estes traduzem um acto não legislativo e que, sem sombra de dúvida, interpreta, com eficácia externa, preceitos de lei, não se vislumbra como podem conciliar a tese que defendem com o preceituado no artigo 115.º, n.º 5.

E se, mesmo após uma análise atenta da letra e da ratio do artigo 115.º, n.º 5, os coriféus da tese criticada sustentem que os assentos escapam as malhas dessa disposição, então ficarão seriamente comprometidos com as absurdas consequências a que a sua doutrina conduz.

Na realidade, se o disposto no artigo 115.º, n.º 5, não abarca os assentos, e uma vez que só os artigos 763.º e 764.º do Código de Processo Civil esclarecem que os assentos são decisões do Supremo Tribunal com o objectivo de resolver conflitos entre acórdãos divergentes dos tribunais superiores, o artigo 115.º, n.º 5, já não poderia ser invocado para obstar que a lei adjectiva atribuísse a força obrigatória dos assentos, por exemplo, a decisões judiciais do Supremo Tribunal de Justiça que, em nome da unidade do sistema jurídico (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), alterassem ou revogassem qualquer preceito de lei (!) ou à decisão de um tribunal de comarca que, a título de ser injusta ou imoral, declarasse a suspensão de qualquer lei (!!!).

Em suma: mesmo que se admita que os assentos não resultam verdadeiramente do exercício de uma função legislativa, a verdade é que a partir da entrada em vigor do artigo 115.º, n.º 5, a Constituição passou a impedir, por forma bem expressa, que uma lei ordinária confira a actos não legislativos (rectius, a decisões judiciais) competência para interpretar preceitos legais, com força obrigatória geral.

Aliás, admite-se que, por terem presente o disposto no artigo 115.º, n.º 5, os que não acreditam nos benefícios dos assentos não se pronunciaram no debate parlamentar acerca da proposta de aditamento ao artigo 206.º da Constituição de um número, onde se precisaria que «aos tribunais incumbe igualmente fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral, nos casos previstos na lei de processo» [Diário da Assembleia da República, 2.ª série, de 5 de Maio de 1982, suplemento ao n.º 87, p. 1618-(27)]. Com tal silêncio - eficaz e inteligente método em reuniões de grupos de trabalho - é possível que tenham assim querido deixar porta aberta para agora poderem triunfantemente invocar a inconstitucionalidade dos assentos ...

Anote-se, ainda, que, não obstante a regra do artigo 115.º, n.º 5, se considera perfeitamente aceitável que o Tribunal Constitucional profira decisões com força obrigatória geral, porque aí é a própria Constituição que o determina (artigo 281.º), e não simples lei ordinária.

Como remate, cabe informar que Gomes Canotilho e Vital Moreira, no 2.º volume da 2.ª edição da Constituição da República Portuguesa Anotada, que acaba de vir a lume, também sustentam, sem a menor sombra de hesitação, «a inconstitucionalidade dos assentos em relação a normas legais, porque, independentemente da sua caracterização dogmática como legislatio ou jurisdictio, eles se arrogam ao direito de interpretação (ou integração) autêntica da lei».

Campos Costa.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2485524.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1962-08-14 - Lei 2116 - Presidência da República

    Promulga as bases do emparcelamento da propriedade rústica.

  • Tem documento Em vigor 1962-10-26 - Decreto 44647 - Ministério da Economia - Secretaria de Estado da Agricultura - Junta de Colonização Interna

    Regulamenta o emparcelamento da propriedade rústica.

  • Tem documento Em vigor 1970-04-21 - Portaria 202/70 - Ministério da Economia - Secretaria de Estado da Agricultura - Junta de Colonização Interna

    Aprova o regulamento que fixa a unidade de cultura para Portugal Continental.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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