Acórdão doutrinário
Processo 30453. - Autos de recurso extraordinário nos termos do artigo 669.º do Código de Processo Penal, vindos da Relação de Coimbra. Recorrente, Ministério Público.
Acordam em conferência do tribunal pleno no Supremo Tribunal de Justiça:
Por haverem infringido as regras da resinagem prescritas nos artigos 1.º, 4.º e 5.º do Decreto-Lei 41033, de 18 de Março de 1957, responderam na comarca de Mangualde, em processo de transgressão, o coronel Albertino José de Serpa Corte Real, a Socer - Sociedade Central de Resinas, Ricardo Augusto dos Santos, José Marques, José Monteiro dos Santos, António Loureiro e Augusto Lopes dos Santos. A infracção das citadas regras legais fora verificada em 2 e 4 de Dezembro de 1957 pela competente fiscalização.
Em julgamento o Exmo. Juiz concluiu das provas produzidas que nas datas em que os pinhais foram visitados pela fiscalização da Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas já tinha sido feita a exploração da resina, pois esta terminara em Novembro de 1957. Nestas condições, e porque os autos de notícia haviam entrado em juízo no dia 2 de Dezembro de 1959, extinto se achava o procedimento criminal, nos termos do artigo 32.º da Lei 300, de 3 de Fevereiro de 1915.
Inconformado o digno representante do Ministério Público com esta decisão, dela interpôs recurso para a Relação de Coimbra.
Por seu douto Acórdão de 3 de Maio de 1960, este tribunal decidiu que efectivamente o artigo 32.º da Lei 300, de 3 de Fevereiro de 1915, estava ainda em vigor, mas que, tendo a acção penal, exercida pelos agentes florestais, segundo o n.º 3 do artigo 2.º do Decreto-Lei 35007, início na data em que é levantado o auto de notícia, correspondendo a sua entrega em juízo à acusação em processo penal (§ único do artigo 2.º do Decreto-Lei 35007) e sendo os actos judiciais de que fala o § 4.º do artigo 125.º do Código Penal os actos de instrução praticados pelo Ministério Público ou pelas restantes entidades mencionadas no referido artigo 2.º do Decreto-Lei 35007, no caso sub judice não tinha prescrito o procedimento pelas contravenções a que os autos aludem.
Efectivamente, o processo evidenciava que os transgressores foram avisados pelos serviços florestais para pagarem as multas alguns meses antes de expirado o prazo de dois anos, contado das datas das infracções.
Por tais motivos, revogou o venerando tribunal a quo a sentença recorrida e mandou se designasse dia para o julgamento dos arguidos.
Com o fundamento de que a decisão proferida na parte em que resolveu que a expressão «acto judicial», utilizada no § 4.º do artigo 125.º do Código Penal como interruptiva da prescrição do procedimento criminal, abrangia todos os actos de instrução, com vista ao prosseguimento da acção penal, os actos, pois, praticados pelo Ministério Público e pelas outras entidades que por lei podem exercer a acção penal, estava em manifesta oposição com o que decidido fora no Acórdão da mesma Relação de 19 de Abril de 1960, junto por certidão, isto é, que «acto judicial», para os efeitos do § 4.º do citado artigo 125.º, é sòmente o acto praticado pela magistratura judicial, pelo juiz, interpôs o Exmo. Procurador da República junto da Relação recorrida o presente recurso, a fim de se fixar jurisprudência nos termos do artigo 669.º do Código de Processo Penal.
Das decisões proferidas, em oposição, em processos de transgressão não era possível interpor recurso ordinário para o Supremo (artigo 646.º, n.º 6.º, do Código de Processo Penal). O citado Acórdão de 19 de Abril de 1960 transitou em julgado e ambas as decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação.
Admitido o recurso e subido o processo a este Tribunal, deu o Exmo. Ajudante do Procurador-Geral junto da secção criminal o seu parecer, no sentido de que nada obstava a que se julgasse existente a alegada oposição e a que se mandasse prosseguir o recurso para o tribunal pleno.
Por acórdão a fl. 121 foi ordenado que o recurso prosseguisse para o tribunal pleno, por haver decisões explícitas sobre hipóteses precisamente idênticas por interpretação oposta da mesma disposição legal nos referidos acórdãos da Relação, dos quais não podia ser interposto recurso ordinário.
Na sua desenvolvida alegação de fls. 126 e seguintes sustentou o Exmo. Ajudante do Procurador-Geral, com doutos argumentos, que o conflito de jurisprudência se devia solucionar no sentido do resolvido no acórdão recorrido, cuja a doutrina é a que deve fixar-se em assento.
Corridos os vistos de todos os Exmos. Juízes Conselheiros do Tribunal, cumpre decidir.
O que tudo visto:
É indubitável a existência, já reconhecida nos termos expostos no referido acórdão da secção criminal, que mandou seguir o recurso, da oposição afirmada e dos restantes pressupostos legais para o conhecimento do presente recurso.
Está sub judice o problema, que consiste em se saber se os actos judiciais que, segundo o disposto no § 4.º do artigo 125.º do Código Penal, interrompem a prescrição do procedimento criminal são, restritamente, os actos do juiz ou, como maior amplitude, também os actos de instrução preparatória da competência do Ministério Público e das outras entidades com funções de fiscalização e de instrução, como, no caso, os funcionários florestais, cujo exercício da acção penal se inicia com o levantamento do respectivo auto de notícia, correspondendo a entrada desse auto em juízo à acusação em processo penal (artigo 2.º do Decreto-Lei 35007, de 13 de Outubro de 1945).
Interessa para a sua resolução começar por definir o conceito da prescrição da acção penal e por indicar a sua razão de ser.
O conceito que na doutrina anais se tem seguido, e o que efectivamente se considera de adoptar, é o que vê na prescrição penal a elevação à categoria de facto jurídico do facto natural do decurso do tempo, o reconhecimento de força jurídica dada a uma força natural (sic Manzini).
Há da parte do Estado a diminuição, ou até o desaparecimento, do interesse de punir, de perseguir, a anulação do uso do poder de repressão, no caso da prescrição do procedimento ou do crime, originada pelo decurso de determinado lapso de tempo fixado na lei penal substantiva.
Fundamenta-se essa orientação legal na incerteza da utilidade ou, até, na desnecessidade da repressão para a prevenção geral ou especial e demais fins das penas relacionada com o esquecimento do facto criminoso e com a sua não verificação actual.
Se durante o transcurso de certo período não foi praticado qualquer acto que ponha em movimento ou dê prosseguimento e continuação ao procedimento criminal, se se não efectuaram quaisquer diligências de instrução persecutória da infracção, é, certamente, de entender-se que, por parte do Estado, veio a reconhecer-se a inutilidade, se não até a inconveniência, da sua punição.
O ilustre penalista Pereira do Vale (Anotações, p. 425) disse que se o lesado com o crime ou a sociedade deixarem decorrer meses e anos sem promoverem a punição de um facto criminoso parecia terem renunciado implìcitamente ao direito de proceder contra o seu autor.
No direito penal positivo português consigna-se (citado § 4.º do artigo 125.º do Código Penal) que prescrição do procedimento criminal se conta sempre desde o dia em que foi cometido o crime ou, se antes dela algum acto judicial teve lugar a respeito do crime, desde o dia do último acto.
Até à vigência do Decreto-Lei 35007, quando a instrução do processo penal competia ao juiz, já se interpretava a aludida expressão - acto judicial - como abrangendo qualquer acto processual persecutório do crime, em harmonia com a noção e o fundamento que se referiu serem dados à prescrição do procedimento criminal.
Já então o citado jurisconsulto, nas Anotações, p. 432, interpretava as palavras «actos judiciais» empregadas no § 5.º do artigo 125.º como querendo referir sòmente aqueles actos que produzem o resultado de fazer prosseguir ùtilmente o processo para a acção da justiça.
Conta-se o prazo para a prescrição da acção desde o último acto judicial, isto é, do último dos actos de instrução, do processo ou de acusação ou de todos aqueles pelos quais o Ministério Público e a parte ofendida exercem ou põem em movimento a acção ou o procedimento criminal, porque todos esses actos conservam judicialmente a lembrança do crime e, por conseguinte, a necessidade do exemplo (cit. Anotações, p. 430).
Actos judiciais, também então se opinava na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 23.º, p. 376, para o efeito da interrupção da prescrição, eram os praticados pelo tribunal por autoridade da lei relativos aos trâmites necessários do processo, embora o juiz neles não interviesse.
De um modo geral, todos os actos legais que são, por si mesmo, elementos do processo.
Nesta orientação se integrou o Código de Processo Penal, publicado em 15 de Fevereiro de 1929, que, no capítulo 2.º, intitulado «Dos actos judiciais», considera, nos artigos 70.º e seguintes, como tais alguns actos não praticados pelo juiz.
Após a entrada em vigor do Decreto-Lei 35007, de 13 de Outubro de 1945, pelo qual passou a competir ao Ministério Público a instrução do processo, continuou, de início, a ser ampla a interpretação dada à expressão «actos judiciais» da lei substantiva, compreendendo-se nela, como do seu fundamento resultava dever ser, todos os actos processuais destinados a perseguir o crime, mostrando que este não está esquecido, como diz o Dr. V. Faveiro no Código Penal, p. 276.
Efectivamente, desde que no § 2.º do artigo 12.º desse decreto se atribuíram ao Ministério Público todos os poderes e funções que pelo Código de Processo Penal competiam ao juiz na fase da instrução do processo, sem quaisquer restrições, necessàriamente se reconheceu à sua realização a eficácia que tinha quando exercida pelo juiz, sob pena de ficar sem sentido o preceito, como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 25 de Janeiro deste ano, no Boletim n.º 103, p. 543.
No sentido de que a denúncia e a investigação que se lhe seguir interrompem a prescrição, com referência aos §§ 2.º e 4.º do artigo 125.º do Código Penal, se resolveu também do Supremo (Acórdão de 25 de Maio de 1955, no Boletim n.º 49, p. 191).
Sendo o Ministério Público órgão do Estado com a primacial função de verificar a existência das infracções, exercer a acção penal e perseguir os seus autores, não pode falar-se em diminuição ou desaparecimento da necessidade ou utilidade de perseguir e de punir ou de renúncia por parte do Estado ao poder de reprimir quando este, por intermédio desse órgão, está justamente, com a prática de actos de instrução do processo respectivo, investigando sobre a existência dos elementos da infracção e os seus sujeitos, demonstrando, assim, que ela não está esquecida.
Seguir a interpretação oposta levaria, de resto, a absurdos, como os de se considerar que até à pronúncia não haveria, em regra, interrupção da prescrição, de terem os que denunciaram o crime de contar com um prazo incerto e aleatório no necessário à instrução e de se considerar irrelevante para a interrupção da prescrição toda a actividade exercida durante a fase da instrução quando o processo ainda não tivesse passado dessa fase, findo que fosse o prazo designado para a prescrição.
Como o juiz frequentemente intervém na fase da instrução preparatória (artigos 28.º, 30.º e 50.º e seguintes do Decreto-Lei 35007, dependeria do acaso, muitas vezes, a verificação da prescrição. Se se desse a intervenção do juiz, havia a interrupção; se só o Ministério Público interviesse, actuaria a prescrição.
Não se compreenderia, para mais, que se exigisse ao denunciante e ao assistente o pagamento de determinadas taxas ou impostos por actividades exercidas na fase da instrução e, não obstante, se considerassem irrelevantes para a interrupção da prescrição essas actividades quando o processo não passasse dessa fase. Chega-se, assim, à conclusão racional de que, pelos fundamentos da instituição, seu conceito, argumento histórico, interpretação lógica da lei penal substantiva, harmónica com a lei do processo, e alcance que na doutrina e na jurisprudência lhe tem sido conferido, não pode dar-se à expressão «acto judicial» do § 4.º do artigo 125.º do Código Penal o sentido restrito - acto do juiz -, mas que deve ele entender-se no sentido amplo, abrangendo os actos de instrução preparatória efectuados pelo Ministério Público ou pelas entidades às quais a lei, para tanto, atribui competência, como doutamente conclui o Exmo. Ajudante do Procurador-Geral.
Pelo exposto se formula o seguinte assento, a fim de se fixar jurisprudência nos termos do artigo 669.º do Código de Processo Penal:
A expressão «actos judiciais» do § 4.º do artigo 125.º do Código Penal abrange também os actos de instrução e de acusação praticados pelos titulares da acção penal.
Sem imposto.
Lisboa, 17 de Maio de 1961. - Mário Cardoso - Eduardo Coimbra - F. Toscano Pessoa - Amorim Girão - Morais Cabral - José A. Moreira - Dá Mesquita - Alfredo José da Fonseca - Sousa Monteiro - Carlos de Miranda - Pinto de Vasconcelos - Amílcar Ribeiro - Lopes Cardoso (vencido. O problema resolvido pelo acórdão recorrido foi o de saber se deviam considerar-se actos judiciais interruptivos da Prescrição os praticados, não em juízo, pelas entidades cujos autos de notícia têm força de caso julgado, nos termos do artigo 166.º do Código de Processo Penal.
O mesmo acórdão disse: «a acção (penal), no caso dos autos, iniciou-se com a autuação pela polícia florestal».
Ora, quanto a mim, nem essa autuação constitui ainda acção penal, que só em juízo pode ser exercida, como resulta do artigo 2.º do Decreto-Lei 35007, nem tal autuação constitui acto judicial, posto que não é praticado em juízo.
Só considero actos judiciais os actos praticados, quer pelas partes, quer pelo juiz, em juízo.
Aos actos praticados pelo Ministério Público no exercício dos antigos poderes do juiz que o referido decreto para o Ministério Público transferiu considero-os tão interruptivos da prescrição como os que antes o juiz praticava. Mas isso não me permite votar o assento com a amplitude e a justificação que tem) - Bravo Serra (vencido, por entender que, por definição, actos judiciais são os praticados pelo juiz; e não é por fetichismo verbal o atingimento desta conclusão. A lei é a este respeito de clareza meridiana. Como bem salientou, a fl. ... o douto juiz de Mangualde, o exercício da acção penal e acto judicial são coisas inconfundíveis; com aquela dentro das atribuições de várias entidades dá-se impulso ao processo, mas só com o acto judicial se pode interromper o prazo da prescrição.
Impõe-se, a aceitação da ensinança do ilustre Prof. Cavaleiro de Ferreira, expressa no seu Curso de Processo Penal. Entendo, pois, e com ressalva de melhor respeito pelas doutas opiniões em contrário, que não é de reconhecer eficácia interruptiva dos actos de instrução preparatória) - Barbosa Viana (vencido. Votei nos termos do douto voto precedente).
Está conforme.
Lisboa, 30 de Maio de 1961. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.