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Assento DD83, de 16 de Fevereiro

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Sumário

Formulado no acórdão proferido nos autos de recurso para o tribunal pleno com o n.º 33053, em que é recorrente o Ministério Público.

Texto do documento

Assento de 27 de Janeiro de 1971
Assento de 27 de Janeiro de 1971, formulado no acórdão proferido nos autos de recurso para o tribunal pleno com o n.º 33053, em que é recorrente o Ministério Público.

O Sr. Procurador da República junto do Tribunal da Relação de Lisboa recorre para o tribunal pleno do Acórdão do mesmo Tribunal de 11 de Junho de 1969, certificado a fl. ..., pois, alega, o mesmo se encontra em nítida oposição com o Acórdão de 23 de Fevereiro de 1968, do mesmo Tribunal, certificado a fl. ..., sobre a mesma questão de direito, dado que, enquanto o primeiro decidiu que a caça por qualquer meio ou processo proibido punido no artigo 210.º do Regulamento de Caça (Decreto 47847, de 14 de Agosto de 1967) constitui crime e não simples contravenção, o segundo julgou em sentido contrário, ou seja, que a referida infracção constitui simples contravenção.

Decidido pela secção a existência da invocada oposição e dos demais pressupostos legais, produziu o Exmo. Representante do Ministério Público a sua alegação, na qual, depois de expor os critérios de distinção entre crimes e contravenções, passa a examinar a disposição legal em causa para concluir que a infracção se enquadra melhor no conceito de contravenção, uma vez que a lei não lhe atribui a natureza de crime.

Efectivamente - afirma-se -, sabe-se que o bem jurídico defendido pelas disposições da Lei 2132, n.º 1 da base XLVIII, e Decreto 47847, artigo 210.º, n.º 1, é a conservação e fomento das espécies cinegéticas; das espécies cinegéticas em geral, e não de um determinado exemplar de espécie, daqui se intuindo que a violação dos preceitos legais que impedem o exercício da caça em época de defeso ou com meios proibidos põe em perigo a conservação e o fomento das espécies cinegéticas, mas, quando se trata de actos isolados, não são estes susceptíveis de provocar o extermínio, nem porão em perigo imediato a sobrevivência das aludidas espécies.

Por outro lado, no parecer da Câmara Corporativa e na proposta do Governo entendia-se que a caça em época de defeso ou com o emprego de meios proibidos constituía crime, entendido que suscitou controvérsia na discussão da proposta na Assembleia Nacional, pelo que este órgão legislativo entendeu que não devia tomar posição expressa ou implícita no problema da qualificação da infracção, deixando a solução ao critério da doutrina e da jurisprudência.

Além disto, a perda dos instrumentos e produtos da infracção, cominada na disposição legal em apreciação, faz inculcar a sua natureza contravencional, pois, se se tratasse de um crime, sempre essa perda resultaria da lei - artigo 75.º, n.º 1, do Código Penal -, resultando o comando legal, quanto à perda, precisamente de se tratar de contravenção, e em vista do disposto no § único do artigo 486.º do mesmo Código.

Finalmente, parece-lhe operante considerar que, tendo a infracção natureza contravencional no regime anterior, não deverá ser-lhe atribuída outra natureza sem segura indicação da lei nesse sentido - e tal indicação não existe, tudo se concitando no sentido da manutenção dessa natureza.

Termina por concluir que deve solucionar-se o conflito de jurisprudência, firmando-se o seguinte assento: a infracção prevista no n.º 1 do artigo 210.º do Decreto 47847, de 14 de Agosto de 1967, tem natureza contravencional.

Embora verificada pela secção, como se disse, a existência da invocada oposição, o que era, a par da existência dos demais pressupostos legais, fundamento para o prosseguimento do recurso, daí não decorre que o tribunal pleno deva acatar a decisão - artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil -, cabendo-lhe, portanto, fiscalizar esta.

Basta, no entanto, o enunciado da questão posta e a simples leitura dos mencionados acórdãos do Tribunal da Relação para se haver de concluir pela alegada oposição, na qual se funda o recurso.

Assim, e uma vez que não podem pôr-se dúvidas sobre ela, deve o tribunal pleno resolver o conflito de jurisprudência.

Como bem faz notar, na sua douta alegação, o ilustre representante do Ministério Público, o critério de distinção entre crimes e contravenções é uma difícil e delicada questão do direito criminal.

Difícil, acrescentaremos, porquanto os critérios doutrinais são díspares e, por vezes, imprecisos; delicada, porque a disciplina a que estão submetidas aquelas duas espécies de infracções não é sempre a mesma, tendo, por isso, decisivo interesse o determinar se o facto ilícito reveste a natureza de crime ou de contravenção.

O nosso Código Penal, que, como se sabe, adoptou aquela classificação bipartida, decidiu-se pela formulação do conceito relativamente a cada uma das infracções - artigos 1.º e 3.º do Código Penal -, contràriamente a outros códigos penais, que partem da natureza da pena para definir a infracção (Código Penal Francês, artigo 1.º, Código Penal Belga, artigo 1.º, Código Penal Italiano, artigo 39.º, e Código Penal Alemão, artigo 1.º).

Efectivamente, o nosso Código Penal, depois de definir, no seu artigo 1.º, crime ou delito como sendo o facto voluntário declarado punível pela lei penal, diz no seu artigo 3.º que se considera contravenção o facto voluntário punível, que ùnicamente consiste na violação ou na falta de observância das disposições preventivas das leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção maléfica.

A lei, como se vê, fornece-nos, pois, um conceito de contravenção - e será, portanto, servindo-se do mesmo que o intérprete deve, em cada caso, tomar posição quanto à natureza da infracção.

Mas aquele conceito não deixa de ser ambíguo, na medida em que se refere a disposições preventivas, sabido como é que não há unanimidade de opiniões quanto ao conceito de normas preventivas e, portanto, quanto ao critério de distinção entre estas e as normas repressivas.

Efectivamente, o critério de distinção parece estar, precisamente, como faz notar Pereira do Vale (Anotações ao Código Penal, p. 18), em verificar se a disposição penal é preventiva ou repressiva. No primeiro caso, a infracção dessa disposição é contravenção, e, no segundo, deve considerar-se como crime.

A chave do problema parece, pois, encontrar-se no modo ou critério de distinção daquelas normas.

Mas aí reside a dificuldade - e pela razão já enunciada.
Aquele comentador, seguindo, aliás, a Revista de Legislação e Jurisprudência (ano 24, p. 456), entende que por disposição preventiva se deve considerar a que pune um facto, o qual, não sendo intrìnsecamente imoral e ofensivo de um direito, pode ser causa ocasional de lesão ou dano individual ou social.

Outros opinam que por normas repressivas se devem entender aquelas que defendem interesses jurídicos, punindo aqueles factos que atacam ou põem em perigo, directa e imediatamente, certos interesses, sendo preventivas aquelas que protegem interesses indeterminados.

Outros, ainda, opinam que a distinção se baseia nos próprios fins que o Estado se propõe realizar, ligando o conceito de contravenção à actividade administrativa e financeira do Estado.

Destas orientações, e não são todas, parece poder concluir-se, como refere o Exmo. Representante do Ministério Público no seu citado parecer, que os autores não se afastam da posição de que são normas preventivas as que protegem imediatamente interesses penalmente tutelados e repressivas as que estabelecem a sua protecção próxima ou imediata.

A primeira actividade do intérprete não está, porém, em escolher um dos critérios, mas antes em averiguar se a própria norma punitiva define, expressa ou tàcitamente, a natureza da infracção, e por isso que, perante uma posição legal desse género, devem ser abandonados aqueles critérios, pois se a lei define tal natureza já não é possível a dúvida.

Vamos, então, ver se é a própria lei que define a natureza da infracção em causa.

Antes, porém, de entrarmos no exame deste ponto, vejamos como os acórdãos em causa encararam e resolveram a questão.

O Acórdão de 23 de Fevereiro de 1968 decidiu-se pela solução de que a inobservância das leis e regulamentos de caça constitui contravenção e não crime. E isto porque: a todas as pessoas é concedido o direito de caçar (artigo 2.º do Decreto 47847). Em princípio, portanto, não é proibido esperar, procurar, perseguir, apanhar ou matar os animais bravios que se encontrem em liberdade natural (artigo 1.º do referido decreto). A perseguição dos animais selvagens não é, em si, à face da lei, reprovável.

Simplesmente, o exercício do direito de caçar está regulamentado e só pode exercer-se em determinadas condições, que são as estabelecidas em ordem a serem evitadas inúmeras consequências danosas que poderiam advir da inteira liberdade de caçar e que poderiam afectar não só a integridade física e patrimonial de outrem, como a própria conservação dos animais bravios, de modo que as espécies de interesse cinegético fossem dizimadas total ou excessivamente.

No sentido de se evitarem tais riscos se promulgaram diversas normas em que se estabelecem as condições em que a caça se pode praticar.

É, pois, óbvio que o Regulamento da Caça contém disposições preventivas.
Consequentemente, as infracções a tais disposições constituem contravenções.
Por seu lado, o Acórdão de 11 de Junho de 1969 fundamenta a decisão essencialmente no seguinte: enquanto no artigo 210.º do Decreto 47847 não se classificou a infracção, nos artigos seguintes chama-se-lhe contravenção. Ora, sendo a pena do artigo 210.º mais severa do que as dos artigos seguintes, isso leva à conclusão de que a infracção descrita naquele artigo é crime e não contravenção.

Por outro lado, a disposição do artigo 210.º corresponde à do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto 47226 e aí expressamente se declarava constituir crime a caça no defeso ou com meios proibidos.

Além disto, no artigo 208.º permite-se às comissões venatórias constituírem-se assistentes nos processos-crimes previstos no artigo 210.º - e nos processos de contravenções não cabe a constituição de assistente.

O primeiro dos Acórdãos afasta-se da discussão sobre normas preventivas e repressivas, parecendo, no entanto, que considera a disposição em análise de carácter preventivo, ao passo que o segundo, pondo em realce a falta de unidade de critérios para fazer tal distinção, cinge-se à análise da lei para chegar à solução apontada.

Os caminhos escolhidos foram, pois, diferentes. Não cremos, porém, que o do Acórdão de 11 de Junho de 1969 possa conduzir à solução por ele encontrada.

Vamos ver porquê.
A Lei 2132, ao tratar no capítulo V, base XLVI, da responsabilidade penal, emprega a expressão "infracções à disciplina da caça», estabelecendo as penalidades.

Mas enquanto na base XLVIII, ao determinar a penalidade para a caça em época de defeso ou com o emprego de meios proibidos ou relativamente a espécies não permitidas, não classifica a infracção, logo na base XLIX afirma que a caça em locais proibidos constitui contravenção punível com a multa de 500$00 a 5000$00.

No Decreto 47847 foi adoptada a mesma orientação.
Efectivamente, quanto à infracção do artigo 210.º, n.º 1, limita-se a indicar a penalidade, mas logo nos artigos seguintes (211.º a 215.º) classifica as infracções aí descritas como contravenções.

Isto poderia levar a concluir que a infracção descrita no artigo 210.º seria um crime e não, como as infracções descritas nos artigos seguintes, uma contravenção.

Na verdade, se a lei classifica estas como contravenções e nada diz quanto àquela, para a qual a penalidade é sensìvelmente mais grave (prisão de um a seis meses e multa de 500$00 a 10000$00, quando para as dos artigos 211.º e seguintes a pena de prisão não pode ser superior a três meses e o montante da multa não vai além de 5000$00); parece que quer afastar a simples natureza contravencional quanto à infracção do artigo 210.º, considerando apenas contravenções as infracções menos graves.

Mas esta solução, que não deixa de ter lógica, é logo contrariada pelo n.º 3 do artigo 211.º

Com efeito, diz-se no n.º 1 deste artigo que a caça com inobservância das proibições e limitações estabelecidas nos artigos 85.º e 86.º e nas alíneas c) e g) do n.º 1 do artigo 89.º constitui contravenção punível com multa de 200$00 a 1000$00, salvo o disposto no n.º 3.

Ora, neste prescreve-se que, se a inobservância da alínea g) do n.º 1 do artigo 89.º implicar violação da limitação estabelecida na sua alínea b), será aplicada a pena cominada no artigo 210.º

Temos assim que a penalidade desta última disposição é também aplicável, por força do n.º 3 do artigo 211.º, a uma infracção que esta disposição expressamente classifica como contravenção. Logo aquele raciocínio, que, como se disse, não deixa de ter lógica, não colhe, pois é a própria lei que classifica como contravenção uma infracção para a qual prescreve penalidade igual à da infracção descrita no artigo 210.º

Consequentemente, não se pode chegar por aquele caminho à conclusão de que a infracção do artigo 210.º é crime e não contravenção, dado que a penalidade aí prescrita é também aplicável a uma infracção que expressamente, como se disse, se classifica como contravenção.

Parece, então, que o raciocínio contrário é que estará certo.
Efectivamente, se, como se demonstrou, a lei manda aplicar ao que classifica de contravenção a pena do artigo 210.º, parece claro que não quis fazer uma distinção entre crimes e contravenções conforme a gravidade das penalidades prescritas. Logo, e se a uma contravenção corresponde a penalidade do artigo 210.º, não está afastado, antes se confirma, que o tipo descrito nesta última disposição é também uma contravenção.

E o contrário seria, na verdade, absurdo.
Com efeito, se a penalidade corresponde à gravidade da infracção cometida e se, segundo o critério legal, é contravenção uma infracção a que corresponde a mesma pena do artigo 210.º, não se vê qualquer razão para atribuir natureza diferente a infracções para as quais a lei comina a mesma penalidade e que, portanto, considera de igual gravidade.

Desta forma, a lei, ao estabelecer para qualquer das infracções referidas a mesma penalidade, e depois de atribuir a natureza de contravenção a uma delas, veio, afinal, a definir a natureza de ambas.

Mal se compreenderia, de resto, que tivesse querido atribuir a cada uma natureza diferente, não só pelo que vem de ser dito, como também porque os interesses que a lei quis proteger, através de qualquer das citadas disposições, são os mesmos.

E se os interesses são, na verdade, os mesmos, é perfeitamente lógico, e tècnicamente correcto, que a lei tivesse seguido, para defesa de ambos, uma orientação uniforme, atribuindo, pois, a mesma natureza a qualquer das infracções.

Ora, quando é a própria lei a atribuir esta, inútil é ao intérprete socorrer-se de qualquer critério fornecido pela doutrina para chegar à definição que deve seguir, como se deixou dito de princípio.

Quando esta argumentação não fosse válida, ainda assim era de concluir pela natureza contravencional da referida infracção, pois a lei não lhe atribuiu a natureza de crime - o que, aliás, e em vista do que se expôs, seria um tanto contraditório -, sendo certo, por outro lado, que a norma tem, sem sombra de dúvida, e segundo os critérios doutrinais citados, natureza preventiva.

Aliás, não é argumento válido o dizer-se que outro diploma legal anterior expressamente declarava constituir crime a infracção em causa, pois é certo que também por diploma legal (Decreto 23461, de 17 de Janeiro de 1934, artigos 86.º e 90.º) a mesma constituía simples contravenção.

Em vista de tudo o que fica exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em, decidindo o conflito de jurisprudência, firmar o seguinte assento: a infracção prevista no n.º 1 do artigo 210.º do Decreto 47847, de 14 de Agosto de 1967, tem natureza contravencional.

Não é devido imposto de justiça.
Lisboa, 27 de Janeiro de 1971. - Adriano Vera Jardim - J. Santos Carvalho Júnior - Eduardo Correia Guedes - Adriano Campos de Carvalho - António Pedro Sameiro - Alberto Nogueira - Albuquerque Rocha - Ludovico da Costa - Fernando Bernardes de Miranda - José António Fernandes - João Moura - Arala Chaves - Manuel Falcão Nunes Garcia.

Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 3 de Fevereiro de 1971. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

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NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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