Assento de 11 de Julho de 1972
Assento de 11 de Julho de 1972, formulado no acórdão proferido nos autos de
recurso para o tribunal pleno com o processo 63766, em que é recorrente
Jorge Justino e recorrida a Câmara Municipal de Santarém.
Acordam em tribunal pleno os do Supremo Tribunal de Justiça:
O industrial de Santarém Jorge Justino recorre, nos termos do artigo 764.º do Código de Processo Civil, do Acórdão da Relação de Lisboa de 26 de Março de 1971.
Invoca oposição com o Acórdão da Relação de Coimbra de 30 de Outubro de 1968.
O aresto recorrido julgou que a actividade da escola de condutores de automóveis, pertença do recorrente, está sujeita ao imposto municipal de comércio e indústria.
Pelo invocado Acórdão de 1968 decidira a Relação de Coimbra estar isenta desse imposto a actividade de tais escolas.
Fundamentaram-se esses arestos nas seguintes disposições:
Decreto-Lei 37191, de 24 de Novembro de 1948, artigo 1.º Decreto 37272, de 31 de Dezembro de 1948, artigo 201.º Decreto-Lei 44954, de 2 de Abril de 1963, artigo único.
Decreto-Lei 45331, de 28 de Outubro de 1963, artigo 28.º A contradição relativa à mesma questão fundamental de direito, aliás evidente, foi expressamente reconhecida pela recorrida, Câmara Municipal de Santarém, verificada pelo acórdão da secção e é também afirmada pelo douto parecer do ilustre magistrado do Ministério Público.
O acórdão recorrido era insusceptível de agravo ou revista por motivo estranho à alçada. O trânsito em julgado do aresto anterior não foi posto em dúvida, pelo que é de presumir, conforme o n.º 4 do artigo 763.º do Código de Processo Civil.
Isento, assim, de censura o decidido pela secção quanto ao seguimento do recurso.
E deste cumpre conhecer, como se segue:
As escolas de condutores de automóveis são tributadas em contribuição industrial, conforme os artigos 1.º e 2.º do respectivo Código, aprovado pelo Decreto-Lei 45103, de 1 de Julho de 1963.
Portanto, e salvo isenção especial, são tributáveis pelo discutido imposto municipal, por imperativo do artigo 710.º do Código Administrativo, actualizado pelo Decreto-Lei 45676, de 24 de Abril de 1964.
Invocando os já citados diplomas de 1948 e 1963, a Relação de Lisboa nega a existência dessa isenção, que, por seu turno, a Relação de Coimbra afirma.
Foi o Decreto 17813, de 30 de Dezembro de 1929, que aboliu o imposto de viação relativo a automóveis e motocicletas e proibiu «aos corpos administrativos o lançamento de impostos ou taxas pelo uso, estacionamento, passagem ou por qualquer outro título sobre os veículos mencionados [...], e sobre a venda ou consumo de gasolina, pneumáticos e câmaras-de-ar, sendo abolidos os actualmente existentes».
O relatório desse diploma retrata a situação caótica a que estava dando lugar «o imposto de trânsito [...], e as taxas, múltiplas nalguns pontos do País, criadas pelas câmaras municipais sobre o uso, a passagem e o estacionamento dos mesmos veículos, ainda quando se lhes não juntam pesados impostos de consumo sobre a gasolina. E opinou (o Ministério do Comércio) a sua substituição pela elevação correspondente dos direitos da gasolina, dos pneumáticos e câmaras-de-ar, compensando-se os municípios das receitas que poderiam perceber razoàvelmente da existência dos mesmos factos tributáveis».
Depois de concretizar as desvantagens da situação existente, prossegue o relatório do decreto:
A nossa imaginação, fácil em complicações tributárias, criou já nada menos de nove imposições diferentes nalguns concelhos para o caso simples da licença de automóvel.
Depois aponta as vantagens do sistema então instituído, dizendo:
É escusado pôr em relevo os benefícios que resultam de acabar o imposto de trânsito para o Estado, duplicado de licenças camarárias, bem como da proibição aos municípios de lançarem, sob qualquer pretexto, impostos ou taxas que embaracem a circulação de veículos automóveis. (Sublinhamos.) O que se quis salientar foi que se não trata de lançar qualquer novo imposto, mas de cobrar por modo diferente a carga tributária actual, e só esta, desaparecendo pois, não dizemos já motivo, mas sequer o pretexto para qualquer alteração das condições actuais destes transportes. Ao imposto pago em prestações pesadas substitui-se o mesmo imposto pago a pouco e pouco, conforme o dispêndio que dos artigos taxados vai fazendo com o uso dos veículos.
Para compensação das receitas que assim deixavam de cobrar, o artigo 3.º do citado diploma atribuiu às câmaras uma importância por cada veículo que circulasse e pertencesse aos domiciliados no concelho.
O conteúdo de tais preceitos transitou para o Decreto-Lei 37191, de 24 de Novembro de 1948 (artigo 1.º), e Decreto 37272, de 31 do mês imediato (artigo 201.º).
Ali se prescreveu:
É da exclusiva competência do Governo o lançamento e a cobrança de quaisquer impostos, taxas, contribuições ou multas relativas ao uso, circulação ou estacionamento ou a qualquer outro assunto que se relacione com veículos automóveis e respectivos condutores e bem assim com a gasolina, protectores e câmaras-de-ar.
Em parágrafo único estabeleceram-se sanções para os municípios que infringissem tais preceitos.
Tendo-se estabelecido divergências na interpretação de tais preceitos, por se tratar de assuntos que tinham sido havidos - por alguns tribunais - como relacionados com automóveis, gasolina, protectores e câmaras-de-ar, foi publicado o Decreto-Lei 44954, de 2 de Abril de 1963, cujo artigo único é do seguinte teor:
O comércio de gasolina ou quaisquer outros combustíveis e de veículos automóveis e seus acessórios, bem como a indústria de reparação dos mesmos veículos, ficam sujeitos ao imposto municipal denominado «licença de estabelecimento comercial ou industrial», actualmente designado por «imposto de comércio e indústria», desde que foi dada nova redacção ao já citado artigo 710.º do Código Administrativo.
A 28 de Outubro do mesmo ano de 1963 foi publicado o Decreto-Lei 45331, que, no artigo 38.º revogaria as correspondentes disposições do Decreto-Lei 37191 e prescreveu:
Art. 28.º Salvo o disposto no Decreto-Lei 44954, de 2 de Abril de 1963 [até pela data se manifesta o erro com que no Diário do Governo se indicou o n.º 44959], é da exclusiva competência do Governo o lançamento de quaisquer impostos, taxas e contribuições relativos ao uso, circulação e estacionamento de veículos automóveis ou a quaisquer outras matérias que se relacionem com os mesmos e os respectivos condutores ou com gasolina, protectores e câmaras-de-ar. Também nenhum órgão da Administração, salvo o Governo, nem nenhum corpo administrativo poderá estabelecer quaisquer multas relativas tais matérias.
§ único. A violação desde preceito por parte dos corpos administrativos envolve a perda da compensação estabelecida pelo Decreto 17813, de 30 de Dezembro de 1929, e a dedução das importâncias por eles indevidamente cobradas nas entregas do produto dos adicionais sobre as contribuições e impostos arrecadados pelo Estado.
Os diplomas legais que desde 1929 vêm sendo publicados, proibindo os corpos administrativos de tributar os automóveis, com ligeiríssimas variantes de redacção, têm-se mantido fiéis ao princípio inicialmente proclamado de libertar tais veículos das múltiplas sobrecargas fiscais, a que chegaram a estar sujeitos, impeditivas de sua circulação, buscando antes facilitar a sua expansão como rápido meio de comunicação.
Como se alcança das transcrições que fizemos, há em todos esses diplomas expressões que, por menos precisas, têm tornado possíveis divergências jurisprudenciais a que, pelo Decreto-Lei 44954 - diploma evidentemente interpretativo como logo resulta do seu relatório e foi proclamado pelo Assento de 26 de Maio de 1946 -, o legislador se sentira forçado a pôr cobro.
Efectivamente, o artigo 28.º do Decreto-Lei 45331, depois de ressalvar «o disposto no Decreto-Lei 44954», reserva para a competência exclusiva do Governo toda a tributação relativa ao uso, circulação e estacionamento de automóveis «Ou a quaisquer outras matérias que se relacionem com os mesmos e os respectivos condutores ...» Se fora lícito cingir-nos à letra da lei - o que é proibido pelo n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil -, poderia admitir-se a tese do recorrente, sancionada pelo invocado acórdão da Relação de Coimbra. Há, porém, que, partindo do texto, reconstituir o pensamento legislativo, considerando sobretudo a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias da elaboração da lei e as condições específicas do tempo em que é aplicada - citado preceito.
Ora o Decreto 17813 proibiu os corpos administrativos de lançar «impostos ou taxas pelo uso, estacionamento, passagem ou por qualquer outro título sobre os veículos mencionados (automóveis) ...» Depois, os Decretos n.os 37191 e 37272 - aquele com força de lei - afirmaram da competência exclusiva do Governo o lançamento e cobrança de todos os impostos, taxas, contribuições e multas «relativas ao uso, circulação ou estacionamento ou a qualquer outro assunto que se relacione com veículos automóveis e respectivos condutores e bem assim com a gasolina, protectores e câmaras-de-ar».
As dúvidas que, entretanto, surgiram vieram a ser esclarecidas pelo Decreto-Lei - interpretativo, e não derrogatório - n.º 44954, que disse sujeitos ao imposto municipal «o comércio de gasolina ou quaisquer outros combustíveis e de veículos automóveis e seus acessórios, bem como a indústria de reparação dos mesmos veículos».
Porque o artigo 28.º do Decreto-Lei 45331 substituiu os correspondentes preceitos dos dois anteriores diplomas, com diferente redacção, mas sem modificação da doutrina bem pode considerar-se autenticamente interpretado pelo Decreto-Lei 44954, que, aliás, expressamente ressalva, em fórmula pouco feliz por pode dar a impressão de que só as actividades neste mencionadas estariam sujeitas ao imposto de comércio e indústria.
Se, como foi afirmado nos transcritos passos do relatório do Decreto 18713, o regime ali iniciado e até hoje mantido, visou libertar a viação automóvel de sobrecargas fiscais que a dificultassem - se não a impedissem - e facilitar a sua expansão, como rápido meio de comunicação, é evidente que a discutida tributação das escolas de condução, nem de perto, nem de longe, poderia afectar a prossecução de tais fins.
Pois se o legislador do Decreto-Lei 44954 claramente enuncia que tal finalidade não é prejudicada pela tributação municipal do comércio de gasolina, automóveis e acessórios e da indústria de reparação de tais veículos, cujos objectos são - sem possibilidade de dúvida - «assuntos» ou «matérias» muito mais intimamente relacionados com os veículos, seus condutores, combustível e borrachas, do que as escolas de preparação para exame de futuros condutores! Forçoso parece, pois, concluir que a jurisprudência da Relação de Coimbra, possìvelmente conforme com uma das interpretações admitidas pelo texto da lei, é repudiada pelo pensamento legislativo reconstituído a partir dos textos, tendo em boa conta o sistema jurídico, na sua unidade, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas da actualidade.
Tal como na tributação das actividades específicas no citado diploma interpretativo, com o discutido imposto municipal, o que se tributa são os lucros obtidos na exploração do ensino de quem pretende vir a habilitar-se a legalmente conduzir veículos automóveis. Nada que perturbe a expansão da viação automóvel.
Por tudo o exposto, se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
Uniformizando a jurisprudência, é tirado o seguinte assento:
As escolas de condutores de automóveis estão sujeitas ao imposto de comércio e indústria em conformidade com o artigo 710.º do Código Administrativo.
Lisboa, 11 de Julho de 1972. - Albuquerque Rocha - Ludovico da Costa - Oliveira Carvalho - Adriano Vera Jardim - J. Santos Carvalho Júnior - Eduardo Correia Guedes - Adriano de Campos de Carvalho - Alberto Nogueira - João Moura - Falcão Garcia - Eduardo Arala Chaves - José António Fernandes (entendo que o Decreto-Lei 45331, de 28 de Outubro de 1933, retirou a competência às câmaras municipais para tributar as escolas de condução de automóveis) - Manuel José Fernandes Costa (vencido: a tributação da actividade exercida pelas escolas de condução de automóveis é da exclusiva competência do Governo, pelo que não estão sujeitas ao imposto camarário de comércio e indústria).
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Julho de 1972. - Pelo Secretário, Fernando Policarpo da Silva Nunes.