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Acórdão 358/2005/T, de 20 de Outubro

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Texto do documento

Acórdão 358/2005/T. Const. - Processo 138/2005. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - 1 - Ferrero Ibérica, S. A., deduziu, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Franca de Xira, impugnação judicial de uma apreensão de bens por si produzidos, ordenada pela Inspecção-Geral das Actividades Económicas (fls. 5 e seguintes), tendo invocado, entre o mais, a inconstitucionalidade material e orgânica do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril.

Por decisão de 7 de Janeiro de 2005 (fls. 343 e seguintes), o juiz do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Vila Franca de Xira viria a considerar procedente esse recurso.

A decisão proferida, que assentou no juízo de inconstitucionalidade dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril, concluiu assim:

"[...]

Em face do exposto, resulta que o diploma legal em apreço, o Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril, é orgânica e materialmente inconstitucional, nos termos do artigo 277.º da CRP, por violação, respectivamente, dos artigos 165.º, n.º 1, alínea b), 13.º, 18.º, 26.º, 29.º, 32.º, n.º 10, 61.º, 62.º e 268.º, todos da Constituição da República Portuguesa, pelo que, nos termos do artigo 280.º, n.º 1, alínea a), da lei fundamental, não aplico o diploma legal em apreço e, em consequência, impõe-se o levantamento da apreensão efectuada em 18 de Maio de 2004.

Saliente-se que, em face do exposto, não se analisam os demais fundamentos invocados pela recorrente, por desnecessidade, e, considerando, ainda, a restrição do objecto do recurso apenso a estes autos, não nos pronunciamos quanto às apreensões de produtos da Ferrero efectuadas em datas diversas, quanto à sua legitimidade, mas apenas quanto à questão concretamente suscitada, a qual é, como se viu, supra, improcedente.

[...]

Pelo exposto, e em conformidade:

a) Julga-se procedente, porque provado, o presente recurso de impugnação judicial da apreensão efectuada, pela Inspecção-Geral das Actividades Económicas, em 18 de Maio de 2004, no armazém da sociedade SDF Portugal, Lda., pessoa colectiva n.º 503440523, sito na Quinta das Drogas e da Verdelha, armazém E, fracção D, 2615 Alverca, interposto pela recorrente Ferrero Ibérica, S. A., e, em consequência, determina-se o levantamento daquela apreensão, em virtude de se basear em violação dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril, os quais são orgânica e materialmente inconstitucionais por violação dos artigos 165.º, n.º 1, alínea b), 13.º, 18.º, 26.º, 29.º, 32.º, n.º 10, 61.º, 62.º e 268.º, todos da CRP, e a entrega imediata dos produtos apreendidos à recorrente;

[...]."

2 - O magistrado do Ministério Público na comarca de Vila Franca de Xira interpôs recurso obrigatório desta sentença para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, das normas dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril (fl. 393).

Admitido o recurso no efeito suspensivo, por despacho a fl. 395, viria a Ferrero Ibérica, S. A., a requerer que ao recurso fosse fixado o efeito meramente devolutivo e, bem assim, que fosse revogada a medida de apreensão de bens e ordenada a restituição, à requerente, dos produtos apreendidos (fls. 398 e seguintes).

Por despacho a fls. 406 e seguintes, foi indeferido o requerimento, no que diz respeito à modificação do efeito do recurso, e esclarecida a requerente de que cabia à entidade administrativa a decisão de levantamento da apreensão.

3 - Nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional (fls. 412 e seguintes), concluiu o Ministério Público:

"1.º A liberdade de iniciativa económica, proclamada pelo artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa, não pode perspectivar-se, atenta a sua amplíssima indeterminação constitucional, como um 'direito fundamental', totalmente sujeito ao regime plasmado nos artigos 18.º e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa.

2.º Na verdade, sendo tal 'direito' conferido nos termos previstos na Constituição e na lei, não revestem natureza restritiva, mas antes meramente delimitadora, as normas que regulam o âmbito da autonomia na realização das actividades empresariais e respectiva promoção publicitária ou comercial.

3.º As restrições ao uso, para fins publicitários ou comerciais, de certas designações ou símbolos, legalmente reservados a terceiros, não afectam o núcleo essencial, constitucionalmente garantido, da liberdade de iniciativa económica.

4.º Não ofende os princípios da tipicidade e da legalidade a previsão de certo tipo contra-ordenacional com alguma latitude ou indeterminação, bastando que se possa extrair claramente do tipo legal o núcleo essencial da proibição - preenchendo tal requisito o tipo que proíbe e sanciona a utilização 'directa ou indirecta' de determinados símbolos ou sinais, de modo a criar um risco de confundibilidade ou 'falsa impressão' de associação de quem os utiliza a certo evento desportivo nacional.

5.º Não pode considerar-se violadora do princípio da igualdade a referida restrição de utilização a um determinado círculo de sujeitos, já que ela tem como causa a compensação de uma comparticipação nos custos, suportados pelos beneficiários, com a organização e promoção de certo evento desportivo nacional.

6.º A norma proibitiva e sancionatória, constante dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 86/2004, não é retroactiva, enquanto aplicável a actos autónomos de utilização ilegal de certos símbolos ou denominações, consumados em momento ulterior à vigência de tal diploma legal.

7.º As restrições à utilização, directa ou indirecta, de símbolos ou sinais que sejam susceptíveis de criar no público a 'falsa impressão' de que certa empresa está associada ao evento desportivo que aqueles representam, instituída pelo Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril, não se configura como violadora de expectativas legítimas e consolidadas na plena utilização de tais elementos distintivos, atento, nomeadamente, o princípio da reserva de utilização que já constava do n.º 3 do artigo 10.º do Decreto-Lei 268/2001 - e radicando a edição do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril, na prossecução de relevantes interesses públicos, garantindo a organização e imagem do evento desportivo em causa e permitindo o seu aproveitamento apenas às entidades que suportaram os custos da sua organização e promoção.

8.º Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com um juízo de constitucionalidade das normas desaplicadas na sentença recorrida."

Quanto ao efeito do recurso, o Ministério Público sustentou o seguinte:

"Relativamente à questão do efeito a atribuir ao recurso de constitucionalidade, parece-nos evidente que não é aplicável o estatuído no n.º 2 do artigo 78.º da Lei do Tribunal Constitucional: efectivamente, a previsão normativa aí contida conexiona-se com o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82 e com a questão do esgotamento dos recursos ordinários possíveis. Na verdade, se a parte optar pela preclusão do recurso ordinário possível - não o interpondo, no prazo legal, ou evitando o seu seguimento, por motivos de ordem processual, nos termos previstos no artigo 70.º, n.º 4 - o efeito de tal recurso de constitucionalidade é o que corresponderia ao 'recurso ordinário' precludido pela vontade do recorrente.

A situação dos autos é completamente diversa: tratando-se de recurso obrigatório para o Ministério Público, ele é necessariamente interposto, em via directa, para o Tribunal Constitucional, estando excluída a utilização de qualquer outro meio impugnatório ordinário: deste modo, a não interposição deste recurso ordinário possível não radica na vontade do recorrente, na estratégia processual por ele delineada, decorrendo antes directamente da lei - o que determina a aplicação do regime-regra, estabelecido no n.º 4 do artigo 78.º"

4 - A Ferrero Ibérica, S. A., contra-alegou (fls. 426 e seguintes), tendo formulado as seguintes conclusões:

"A - Na medida em que o recurso admitido a fl. 395 foi interposto de uma sentença absolutória, por não se inscrever em nenhuma outra previsão do mencionado artigo 408.º do CPP, tal recurso não tem efeito suspensivo, como lhe foi fixado, mas sim efeito meramente devolutivo, nos termos dos artigos 666.º, n.º 3, e 669.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º do CPP.

B - No que ao fundo da questão respeita, com todo o respeito, não assiste qualquer razão ao recorrente, desde logo porque tanto a liberdade de iniciativa privada como o direito à propriedade privada são direitos fundamentais análogos aos direitos, liberdades e garantias.

C - Sendo uma lei reguladora da concorrência quanto à utilização de um evento público, condicionando a organização do mercado e a liberdade de actuação das empresas, que vai mais além da simples defesa de patentes e símbolos e denominações existentes, o Decreto-Lei 86/2004 toca, no seu âmbito de aplicação, naqueles dois direitos fundamentais.

D - Acontece que o bem jurídico que o legislador do Decreto-Lei 86/2004 pretendeu proteger - as designações e símbolos do Campeonato Europeu de Futebol de 2004 - já se encontra protegido por lei anterior àquele diploma, em concreto, no Código da Propriedade Industrial, no Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos e no Código da Publicidade, como de resto resulta da interpretação do n.º 5 do artigo 5.º, que prevê a aplicação das normas daqueles Códigos, o que permite desde logo imputar ao Decreto-Lei 86/2004 um juízo de violação do princípio da igualdade, vertido no artigo 13.º da CRP.

E - O Decreto-Lei 86/2004 prevê uma regulamentação especial para a situação bastante concreta da realização do evento do Campeonato Europeu de Futebol de 2004 e fá-lo de forma indubitavelmente mais restrita do que já resultaria da aplicação das normas gerais acima indicadas, através da previsão, nos artigos 4.º e 5.º, n.º 1, de um ilícito contra-ordenacional susceptível de abarcar uma infinidade de situações, atenta a sua formulação tão genérica e a utilização de conceitos completamente indeterminados.

F - O mencionado diploma efectua, por conseguinte, uma efectiva restrição do direito fundamental à iniciativa económica privada e do direito fundamental de propriedade, acolhidos, respectivamente, nos artigos 61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, análogos aos direitos, liberdades e garantias, nos termos e para os efeitos do artigo 17.º, bem como do direito à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação e do direito à liberdade e segurança, consagrados nos artigos 26.º, n.º 1, e 29.º, n.º 1, e aplicáveis nos termos do artigo 12.º, n.º 2, todos da CRP, sem que para tanto exista autorização constitucional.

G - Apesar da redacção do artigo 2.º do Decreto-Lei 86/2004, o certo é que estão manifestamente determinadas, por lei, as entidades que têm a seu cargo a 'organização, a promoção, a realização ou a gestão de bens, equipamentos ou estruturas necessários a este evento desportivo' - a sociedade Euro 2004, S. A., e a UEFA - e, por conseguinte, gozam da reserva das designações e símbolos do Euro 2004 e da protecção que o Decreto-Lei 86/2004 lhes pretende conferir.

H - Ou seja, as normas restritivas de direitos, liberdades e garantias do Decreto-Lei 86/2004 que consagram um novo tipo de ilícito contra-ordenacional não são gerais e abstractas como impõe o artigo 18.º, n.º 3, da CRP.

I - O Decreto-Lei 86/2004 não respeita, de todo, o princípio da proibição do excesso, que, estabelecido na parte final do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, constitui um limite constitucional à liberdade de conformação do legislador, antes apresentando nos seus artigos 4.º e 5.º, n.º 1, verdadeiras normas penais em branco, ao consagrar expressões como 'utilização, directa ou indirecta, por qualquer meio'; 'sugira ou crie a falsa impressão'; 'passível de criar um risco de associação'; 'utilização, directa ou indirecta'; 'susceptível de criar a falsa impressão'.

J - Efectivamente, as leis sancionatórias devem ser redigidas com a maior clareza possível para que tanto o seu conteúdo como os seus limites se possam deduzir, o mais exactamente possível, do texto legal, isto é, o tipo de infracção deve estar suficientemente especificado, não sendo lícito o recurso à analogia para definir infracções, e deve estar determinado o tipo de sanção que cabe a cada uma delas, razão pela qual viola também o Decreto-Lei 86/2004 o princípio da legalidade e da tipicidade protegido pelo artigo 29.º da CRP.

K - Em termos de ponderação de interesses, o Decreto-Lei 86/2004, criando uma clara desigualdade no mercado, é desproporcional e desadequado.

L - Há ainda que salientar que, conforme ficou provado nos autos, a campanha promocional da Ferrero ora em questão começou a ser delineada e foi lançada muito antes da entrada em vigor do Decreto-Lei 86/2004, o que torna retroactiva a aplicação das normas restritivas aí consagradas, em violação do artigo 2.º do RGCO e do n.º 1 do artigo 29.º da CRP.

M - Finalmente, o Decreto-Lei 86/2004 não foi publicado no uso de qualquer autorização legislativa, violando também o artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP, pelo que enferma, além de inconstitucionalidade material, com os fundamentos supra-indicados, de inconstitucionalidade orgânica.

[...]."

Cumpre apreciar e decidir.

II - 5 - No requerimento a fls. 398 e seguintes (supra, 2), pretende a recorrida que ao presente recurso seja fixado o efeito meramente devolutivo e, desse modo, alterado o despacho a fl. 395, que lhe fixou o efeito suspensivo.

Não tem, porém, razão a recorrida. Na verdade, ao presente recurso não são aplicáveis as regras dos n.os 1 a 3 do artigo 78.º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que só pode ser aplicada a regra do n.º 4, que estabelece o efeito suspensivo do recurso.

Na verdade, o presente recurso não é um recurso de uma decisão que não admita recurso por razões de valor ou alçada, não é um recurso de uma decisão da qual coubesse recurso ordinário, não interposto ou declarado extinto, e, finalmente, não é um recurso de decisão proferida já em fase de recurso. O presente recurso, obrigatório para o Ministério Público, é necessariamente interposto, em via directa, para o Tribunal Constitucional, estando excluída a utilização de qualquer outro meio impugnatório ordinário. A hipótese dos autos insere-se num dos "restantes casos" a que alude o artigo 78.º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, tendo consequentemente o recurso efeito suspensivo.

É de manter, portanto, o efeito que lhe foi fixado.

6 - Constituem objecto do presente recurso de constitucionalidade as normas dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril, que o tribunal recorrido recusou aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea b), 13.º, 18.º, 26.º, 29.º, 32.º, n.º 10, 61.º, 62.º e 268.º, todos da Constituição.

É o seguinte o teor dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril:

"Artigo 4.º

Proibições

1 - É proibida a utilização, directa ou indirecta, por qualquer meio, de uma firma, denominação, marca ou outro sinal distintivo do comércio por quem não tenha obtido autorização das entidades responsáveis pela realização da fase final do Campeonato Europeu de Futebol de 2004 que sugira ou crie a falsa impressão de que está autorizada ou que está, de alguma forma, associada ao evento.

2 - A proibição contida no número anterior aplica-se, também, nos casos em que a promoção de produtos, serviços ou estabelecimentos por entidade que, não utilizando qualquer meio previsto no artigo 3.º e ainda que reconhecendo não estar associada ao Euro 2004, seja, ainda assim, passível de criar um risco de associação ao evento ou às respectivas entidades promotoras, independentemente do local ou momento em que ocorrem.

Artigo 5.º

Ilícito contra-ordenacional

1 - A utilização das designações e símbolos reservados ao Euro 2004 ou qualquer utilização, directa ou indirecta, de um sinal que seja susceptível de criar a falsa impressão de que se trata de um sinal associado ao evento, se efectuada com fins publicitários ou comerciais e sem autorização da entidade ou entidades referidas no artigo 1.º, constitui contra-ordenação punível com coima de Euro 1000 a Euro 3740, se se tratar de pessoa singular, ou com coima de Euro 4000 a Euro 44 890, se o infractor for uma pessoa colectiva.

2 - A negligência é punível.

3 - A fiscalização do presente diploma compete à Inspecção-Geral das Actividades Económicas, à Inspecção-Geral das Actividades Culturais e ao Instituto do Consumidor, no âmbito das respectivas competências.

4 - A instrução dos processos de contra-ordenação compete:

a) Em matéria de publicidade, ao Instituto do Consumidor;

b) Em matéria de direitos de autor e dos direitos conexos, à Inspecção-Geral das Actividades Culturais;

c) Nas restantes matérias, nomeadamente as relacionadas com a propriedade industrial, à Inspecção-Geral das Actividades Económicas.

5 - Para a aplicação de coimas são competentes:

a) O Instituto Nacional da Propriedade Industrial para as infracções previstas conjuntamente neste diploma e no Código da Propriedade Industrial, sem prejuízo do disposto na alínea c) do número anterior;

b) A Inspecção-Geral das Actividades Culturais para as infracções previstas no Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos;

c) A Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade (CACMEP), para as restantes infracções, nomeadamente as previstas no Código da Publicidade.

6 - A sanção prevista no n.º 1 do presente artigo é aplicada se outra mais grave lhe não couber nos termos da lei aplicável."

7 - Analisemos, antes de mais, a questão da eventual violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição - a alínea d) deste preceito (como, aliás, se refere na sentença recorrida) não está evidentemente em discussão, atendendo a que o diploma em causa não respeita ao regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.

Ora, de acordo com aquela alínea b), "é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: [...] b) Direitos, liberdades e garantias".

As normas em apreciação constam de um diploma emitido pelo Governo sem credencial parlamentar, pois que foi decretado nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição. Seria tal credencial exigível, por versarem as normas em causa sobre direitos, liberdades e garantias?

Os únicos direitos fundamentais que poderiam estar em causa e a que se faz alusão na sentença recorrida - são o direito de iniciativa económica privada (artigo 61.º, n.º 1, da Constituição) e o direito de propriedade privada (artigo 62.º da Constituição). O Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril, "estabelece o regime de protecção jurídica a que ficam sujeitas as designações do Campeonato Europeu de Futebol de 2004, abreviadamente designado por Euro 2004, e reforça os mecanismos de combate a qualquer forma de aproveitamento ilícito dos benefícios decorrentes daquele evento desportivo" (artigo 1.º). Ora, a aqui recorrida usou tais designações precisamente no exercício de uma actividade económica privada.

7.1 - Perspectivemos primeiro a questão à luz do direito de iniciativa económica privada.

Como salientam Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, t. I, Coimbra Editora, 2005, pp. 620-621), o direito de iniciativa económica privada consiste, num primeiro momento, na liberdade de estabelecimento, que é "o direito de iniciar uma actividade económica; o direito de constituir uma empresa; o direito, que pode ser individual e que pode ser institucional, de organização de certos meios de produção para um determinado fim económico" e, num segundo momento, na liberdade de empresa, que é o "direito da empresa de praticar os actos correspondentes aos meios e fins predispostos e de reger livremente a organização em que tem de assentar".

As normas em apreciação não estão, como é evidente, conexionadas com a liberdade de estabelecimento, nos moldes que ficaram descritos. Podem porventura afectar apenas a liberdade de empresa, pois que, ao proibirem o uso de sinais associados ao Euro 2004, interferem simultaneamente no modo de comercialização de certos produtos e, por esta via, conformam o "direito da empresa de praticar os actos correspondentes aos meios e fins predispostos".

Significará isto que as normas dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril, na medida em que de algum modo se prendem com a liberdade de empresa, versam sobre as matérias a que alude o artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição?

A resposta deve ser negativa.

Na verdade, nem todas as matérias relacionadas com a liberdade de empresa se inserem na competência legislativa reservada da Assembleia da República. Seguramente não o são a matéria da publicidade nem a regulamentação global da concorrência, diferentemente do que parece sustentar a sentença recorrida.

Assim, ainda que se aceite que as normas dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril, interferem com a publicidade e com a disciplina da concorrência, tais normas não podem ser qualificadas como normas atinentes a direitos, liberdades e garantias, no sentido em que esta trilogia aparece protegida no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.

Com efeito, as normas em apreço no presente recurso não versam directamente sobre a liberdade de iniciativa económica privada. E, de todo o modo, este tribunal tem entendido que a lei a que se refere o artigo 61.º, n.º 1, da Constituição só tem de ser uma lei parlamentar ou parlamentarmente autorizada no que se refere aos quadros gerais e aos aspectos garantísticos daquela liberdade (v. o Acórdão 329/99, de 2 de Junho, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 167, de 20 de Julho de 1999, pp. 10 576 e seguintes).

7.2 - Perspectivemos agora a questão à luz do direito de propriedade privada (artigo 62.º da Constituição). Dele decorre que "os particulares, sejam pessoas singulares ou colectivas, gozam do direito de ter bens em propriedade e, em geral, do direito de se tornar, por actos inter vivos ou mortis causa, titulares de quaisquer direitos de valor pecuniário - direitos reais, direitos de crédito, direitos materiais de autor, direitos sociais ou outros" (Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., p. 627).

Será que as normas dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril - especialmente as do artigo 4.º -, na medida em que vedam a utilização de certos sinais distintivos do comércio, afectam o direito de propriedade privada daquele que os pretende utilizar e, consequentemente, deviam ter sido emitidas ao abrigo de autorização legislativa, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição?

A resposta é negativa. Como o Tribunal Constitucional afirmou no já mencionado Acórdão 329/99, embora o direito de propriedade possa ser qualificado como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, na reserva parlamentar apenas se inclui o núcleo essencial do direito: e a esse núcleo essencial não pertencem, por exemplo, os direitos de urbanizar, lotear e edificar.

No caso das normas ora em apreciação, não só o núcleo essencial do direito de propriedade não é atingido como o próprio direito de propriedade não é atingido.

Com efeito, a tutela constitucional do direito de propriedade não contempla a possibilidade de usufruir, sem qualquer restrição, de um bem de natureza patrimonial. E a tese que considera necessária a autorização parlamentar para a regulação do uso de certos sinais associados ao Euro 2004 parte do pressuposto de que qualquer pessoa é, por natureza, titular do direito de utilizar esses sinais, representando a exigência de autorização uma regulação desse direito preexistente. Ora a Constituição não tutela semelhante direito, quando protege a propriedade. A autorização do uso de sinais distintivos do comércio não é regulação de direito preexistente; a própria existência do direito decorre de tal autorização.

Não pode, assim, considerar-se que as normas ora em apreciação violem o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.

8 - O que acabou de dizer-se significa também que - contrariamente ao que se sustentou na decisão recorrida - as normas dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril, não representam qualquer restrição do direito de propriedade, susceptível de ofender o disposto no artigo 62.º da Constituição.

Desnecessário se torna, portanto, averiguar se as normas questionadas se conformam com os parâmetros constitucionais a que devem obedecer as restrições do direito de propriedade.

9 - E representarão as normas em causa uma restrição constitucionalmente inadmissível do direito à iniciativa económica privada (artigos 18.º e 61.º da Constituição)?

9.1 - A este respeito, é evidente que, na situação dos autos, o núcleo essencial da iniciativa económica privada não foi afectado. Como assinala o Ministério Público nas suas contra-alegações (supra, 3; fls. 415-416), nada impediu a recorrida de "exercer plena e livremente o objecto da sua actividade comercial, colocando no mercado os géneros alimentícios que produzia: a única restrição, decorrente das normas desaplicadas, incide sobre determinado limite legal quanto ao conteúdo de certas e determinadas mensagens publicitárias ou comerciais incluídas nos produtos transaccionados".

Ainda que se admitisse que, no caso, se está perante verdadeiras restrições, o limite previsto no artigo 18.º, n.º 3, parte final, da Constituição encontrar-se-ia, assim, manifestamente verificado.

Importa todavia assinalar, quanto a este ponto que, de acordo com o artigo 61.º, n.º 1, da Constituição, a iniciativa económica privada se exerce livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei.

Ora, sendo o direito de iniciativa económica privada balizado, por natureza, por esses quadros, é evidente que as normas ora em apreciação, mesmo a admitir-se que constituam restrições, sempre encontrariam cobertura no disposto no próprio artigo 61.º, n.º 1. Ou seja: a asserção, constante da sentença recorrida, de que "não se vislumbra qualquer autorização constitucional para essa restrição" (fl. 375), do que decorreria a violação do disposto no artigo 18.º, n.º 2, 1.ª parte, da Constituição, não pode aceitar-se, pois que a própria Constituição concebe a liberdade de iniciativa económica privada como um direito que está sujeito, no seu exercício, ao enquadramento legalmente definido (quanto a este ponto, v., por exemplo, o que o Tribunal Constitucional afirmou no Acórdão 474/89, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 25, de 30 de Janeiro de 1990, pp. 1025 e seguintes).

9.2 - Considera a sentença recorrida que não existe, no caso, "necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, porquanto os direitos que se pretendem salvaguardar já se encontravam tutelados, de modo geral e abstracto, em outros diplomas legais, designadamente [em diversas disposições, que enumera, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, do Código da Propriedade Industrial e do Código da Publicidade]" (fl. 375 da sentença), o que redundaria em violação do disposto no artigo 18.º, n.º 2, 2.ª parte, da Constituição.

Não pode igualmente aceitar-se este entendimento da decisão recorrida. As condutas a que se referem as normas dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril, não se encontram forçosamente previstas no Código da Publicidade (na verdade, o artigo 5.º, n.º 1, prevê expressamente a possibilidade de a utilização dos sinais ter fins publicitários, o que significa que pode não os ter), nem no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos ou no Código da Propriedade Industrial, pois que tais normas não exigem o uso de um sinal cujo direito de uso esteja atribuído a um terceiro.

9.3 - Invoca depois a sentença recorrida que o Decreto-Lei 86/2004 não se configura como uma lei de carácter geral ou abstracto, não apenas porque exclui do seu âmbito de aplicação determinadas entidades, em violação do princípio da igualdade expresso no artigo 13.º da CRP, mas também porque viola os princípios da legalidade e da tipicidade das contra-ordenações, visando aplicar-se a situações concretas, cujo conteúdo não descreve com precisão, pretendendo solucionar uma situação definida.

No que diz respeito à violação do princípio da igualdade, é manifesta a improcedência do argumento, já que a discriminação imputada às normas em causa, a existir, não se apresenta como infundamentada ou carecida de suporte material adequado: com efeito, a utilização de certas designações ou símbolos, representativos do evento desportivo em causa, exclusivamente pelas respectivas entidades organizadoras e patrocinadoras surge como a contrapartida da sua participação nos custos associados à organização, promoção e realização de tal evento desportivo.

Também não procede o argumento que consiste em atribuir carácter retroactivo às normas dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 86/2004, em violação do artigo 29.º da Constituição. Com efeito, a tipificação das proibições constantes do artigo 4.º é obviamente desprovida de natureza retroactiva. Tal norma apenas é aplicável aos actos de utilização que tenham ocorrido após a vigência do diploma em que se insere (18 de Abril de 2004). No caso dos autos, o que está em causa é o facto - imputado à aqui recorrida - de, em dado momento, posterior à data da entrada em vigor do diploma (concretamente, em 18 de Maio de 2004), estarem a ser comercializados determinados produtos em que eram utilizados, de modo ilegítimo, certas denominações ou símbolos.

Não ocorre, pois, qualquer violação dos artigos 18.º, n.os 2 e 3, e 13.º da Constituição, nem dos artigos 29.º e 32.º, n.º 10, na parte em que estas disposições constitucionais proíbem a retroactividade em matéria de contra-ordenações.

9.4 - Problema diferente do da retroactividade das normas ora em apreciação (e, aliás, só lateralmente tratado na sentença recorrida: fl. 380, in fine) seria o de saber se essas mesmas normas violam o princípio da confiança. Na verdade, pode perguntar-se se a proibição delas constante frustrou legítimas expectativas da recorrida, por lhe ter impedido, já após o lançamento da campanha publicitária, o uso de certos símbolos e denominações.

A resposta deve ser, também aqui, negativa: como, em síntese, refere o Ministério Público, "'a restrição' constante do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril, já tinha [...] a sua origem básica e matriz essencial em diploma legal anteriormente editado [o Decreto-Lei 268/2001, de 4 de Outubro], limitando-se o Decreto-Lei 86/2004 a explicitar e concretizar a 'reserva' de utilização proclamada em 2001, pelo artigo 10.º, n.º 3, do citado diploma legal" (fls. 419-420).

10 - Considera ainda a sentença recorrida que as normas ora em apreciação violam o disposto no artigo 26.º da Constituição, na parte em que a todos reconhece o direito à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação (cf. conclusão da sentença e fl. 371).

Não se alcança, porém, a razão de ser de tal entendimento. De qualquer modo, se ele se prende com a invocada violação do princípio da igualdade, valem aqui as considerações anteriormente feitas a propósito de tal princípio.

11 - Afirma-se na sentença recorrida que as normas ora em apreciação violam o disposto no artigo 268.º da Constituição (direitos e garantias dos administrados).

A sentença recorrida não fundamenta tal asserção, nem, aliás, se vê como podem estas normas contrariar o artigo 268.º da Constituição.

12 - Finalmente, lê-se na sentença recorrida que "o decreto-lei em apreço é inconstitucional nos seus artigos 4.º e 5.º por definir ilícitos contra-ordenacionais mediante a utilização de conceitos vagos e indeterminados, o que está em clara violação do artigo 29.º da CRP, como também a interpretação efectuada pelos inspectores do IGAE no sentido de que qualquer menção a futebol em publicidade estava vedada por virtude da entrada em vigor do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril, é inconstitucional por violação do artigo 18.º da CRP, designadamente na sua vertente de proibição do excesso" (cf. fl. 387).

A mencionada interpretação dos inspectores do IGAE - que, aliás, a sentença recorrida não reporta a qualquer preceito legal em concreto - não constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade, definido no respectivo requerimento de interposição (fl. 393, supra, 2.), e, desde logo por esse motivo, dela não se tomará conhecimento.

Quanto à utilização de conceitos vagos e indeterminados nos referidos artigos 4.º e 5.º, que a sentença recorrida censurou, é certo que o Tribunal Constitucional vem considerando que "o princípio da tipicidade subentende a garantia constitucional de uma especificação dos factos que integram o tipo legal de crime, mostrando-se, nessa medida, avesso a definições vagas ou incertas que, nomeadamente, permitam ou proporcionem a via analógica".

A este propósito, ponderou-se no Acórdão 93/2001 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 130, de 5 de Junho de 2001, pp. 9479 e seguintes):

"[...] o princípio da tipicidade subentende a garantia constitucional de uma suficiente especificação dos factos que integram o tipo legal de crime, sendo, como tal, avesso a definições vagas ou incertas que proporcionem ou admitam a via analógica.

Só que, se a norma deve ser formulada de modo ao seu conteúdo se poder impor autónoma e suficientemente, permitindo um controlo objectivo na sua aplicação individualizada e concreta (cf. António Castanheira Neves, 'O Princípio de legalidade criminal. O seu problema jurídico e o seu critério dogmático', in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, Coimbra, 1984, p. 334), nem sempre é possível alcançar uma total determinação - nem será, porventura, desejável -, bastando que o facto punível seja definido com suficiente certeza: a própria natureza da linguagem impede uma determinação integral, sendo certo que pode representar-se negativamente uma enumeração demasiado casuística, a multiplicar a eventualidade das lacunas e a dificultar a determinação do que é essencial em cada caso.

A este respeito, escreveu um autor nunca ser o caso concreto um puro facto, 'mas uma unidade de sentidos socialmente relevante, mais ou menos complexa e normalmente integrados por elementos culturais difíceis de definir', de modo que a descrição de previsão legal contém muitas vezes expressões que não se deixam reduzir a conceitos precisos (cf. José de Sousa e Brito, 'A lei penal na Constituição', in Estudos sobre a Constituição, vol. 2.º, Lisboa, 1978, pp. 243-244).

A necessidade de, na definição de crimes, se usar uma linguagem precisa e delimitadora, com repúdio de preceitos abertos ou vagos, tem vindo a ser jurisprudencialmente reconhecida, nomeadamente na matriz jurídico-constitucional.

Desde logo, a Comissão Constitucional reconheceu que o princípio do nullum crimen sine lege seria inoperante se fosse dada ao legislador ordinário a possibilidade de não determinar com um mínimo de rigor, através do tipo legal, o facto voluntário a considerar punível, sem prejuízo de admitir a inviabilidade de uma total determinação e a eventual contraprocedência de um demasiado casuísmo (assim, o Parecer 19/78, publicado in Pareceres da Comissão Constitucional, 6.º vol., Lisboa, 1979, p. 89).

Em linha consonante, o Parecer 32/80 (in Pareceres cit., 14.º vol., 1983, p. 60), após se interrogar sobre o grau admissível de indeterminação ou flexibilidade normativa para os efeitos em causa, reconhece que uma relativa indeterminação dos tipos legais de crime pode mostrar-se justificada, sem que isso signifique violação dos princípios da legalidade e da tipicidade.

De igual modo vem ponderando o Tribunal Constitucional, como são exemplo os Acórdãos n.os 147/99, 168/99 e 179/99, inédito o segundo, publicados os demais no Diário da República, 2.ª série, de 5 e 9 de Julho de 1999, respectivamente.

Retira-se dos lugares jurisprudenciais citados que, não sendo possível a determinação absoluta - o que a doutrina igualmente corrobora - é constitucionalmente compatível um certo grau de indeterminação.

No citado Acórdão 168/99 escreveu-se, a certo passo:

'Averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objecto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima.'

Reconhece-se a impossibilidade de uma predeterminação integral, dada a dimensão pragmática da linguagem jurídica, a intenção normativa das prescrições jurídicas, a índole problemático-concreta do decisório juízo jurisdicional (A. Castanheira Neves, ob. cit., p. 377), para, no entanto, se concluir por se pedir à norma penal, em síntese, 'que obedeça a um grau de determinação suficiente para não pôr em causa os fundamentos do princípio da legalidade'.

Assim, pode a modelação do tipo não dispensar o recurso a técnicas exemplificativas que nem por isso, necessariamente, se pode considerar afrontada a exigência constitucional da lege certa que o princípio da tipicidade implica.

Decerto, a valoração jurídico-criminal dos comportamentos há-de ser formulada de maneira tanto quanto possível precisa, de modo a não restarem dúvidas quanto aos valores protegidos e à clara definição dos elementos da infracção, como se ponderou, por exemplo, nos citados Acórdãos n.os 179/99 e 383/2000, ainda inédito.

Ponto é que haja um 'completamento normativo' (Maria Fernanda Palma, Direito Penal - Parte Especial - Crimes contra as Pessoas, sumários policopiados, Lisboa, 1983, p. 49), de modo que o critério decisivo para aferir do respeito pelo princípio da legalidade '[...] residirá sempre em saber se, apesar da indeterminação inevitável resultante da utilização desses elementos (elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas e fórmulas gerais), do conjunto da regulamentação típica deriva ou não uma área e um fim de protecção claramente determinados', nas palavras de Jorge Figueiredo Dias (Direito Penal - Questões Fundamentais - A Doutrina Geral do Crime, apontamentos policopiados, 1996, p. 173).

[...]."

As considerações expendidas neste acórdão são transponíveis para o presente caso. Com efeito, nem sempre é possível - nem será mesmo desejável - uma determinação do tipo de tal modo acabada que se possa libertar de conceitos "algo imprecisos". Aliás, em certos casos, uma rigorosa enumeração casuística poderia revelar-se contraproducente, dada a multiplicação de espaços lacunares que inevitavelmente comportaria.

Ora, a verificação de "uma relativa indeterminação tipológica" não significa violação dos princípios da legalidade e da tipicidade, como o Tribunal Constitucional sublinhou no Acórdão 338/2003 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 245, de 22 de Outubro de 2003, pp. 15 922 e seguintes).

De todo o modo, sempre terá de existir um mínimo de determinabilidade que permita identificar os tipos de comportamentos descritos, na medida em que integram noções correntes da vida social, aferidas pelos padrões em vigor. Correspondem a essa exigência conceitos como "utilização, directa ou indirecta, por qualquer meio", "sugira ou crie a falsa impressão", "passível de criar um risco de associação" ou "susceptível de criar a falsa impressão", utilizados no preceito em análise.

Acolhem-se, assim, as considerações que, a este propósito, constam das contra-alegações do Ministério Público (cf. fls. 417-418):

"[...] No caso dos autos, não vemos que a 'indeterminação' subjacente aos conceitos legais seja sequer superior à que - quer no direito penal quer no domínio das contra-ordenações - o legislador utiliza frequentemente (v., por exemplo, em matéria conexa com a situação controvertida no presente processo, a tipificação do ilícito criminal de contrafacção, imitação ou uso ilegal de marca constante do artigo 323.º do Código da Propriedade Industrial).

Na realidade - e face ao bem jurídico tutelado -, o elemento essencial do tipo terá necessariamente a ver com a 'confundibilidade' de certa marca ou sinal, efectivamente utilizada pelo arguido, com determinado símbolo, representativo de certa realidade ou evento, a valorar naturalmente em função da criação de uma 'falsa impressão' no destinatário da mensagem publicitária - pelo que não vemos que a tipificação, apesar do seu carácter amplo e genérico, afecte a percepção, pelos destinatários da norma, do núcleo essencial da conduta punível, do seu conteúdo de desvalor a respeito da lesão ou colocação em perigo de bens jurídicos.

Por outro lado, é irrelevante o facto, notado pela sentença recorrida, de que o grau de indeterminação da norma pode possibilitar uma conduta errónea ou abusiva da Administração: estando asseguradas as garantias de defesa e o direito ao recurso, tem naturalmente o arguido a plena possibilidade de fazer sindicar - e corrigir judicialmente o eventual erro ou abuso cometido, fazendo repercutir na interpretação da norma a correcta ponderação do valor ou bem jurídico tutelado.

[...]."

As normas em apreço não violam, pois, os princípios da tipicidade e da legalidade consagrados no artigo 29.º da Constituição.

III - 13 - Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 86/2004, de 17 de Abril;

b) Consequentemente, conceder provimento ao presente recurso, determinando a reforma da sentença recorrida em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.

Lisboa, 6 de Julho de 2005. - Maria Helena Brito - Pamplona de Oliveira - Maria João Antunes - Rui Moura Ramos - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2346280.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 2001-10-04 - Decreto-Lei 268/2001 - Ministério da Juventude e do Desporto

    Constitui a sociedade anónima Portugal 2004 - Sociedade de Acompanhamento e Fiscalização do Programa de Construção dos Estádios e Outras Infra-Estruturas para a Fase Final do Campeonato Europeu de Futebol de 2004, S. A., e aprova os respectivos estatutos, publicados em anexo.

  • Tem documento Em vigor 2004-04-17 - Decreto-Lei 86/2004 - Presidência do Conselho de Ministros

    Estabelece o regime de protecção jurídica a que ficam sujeitas as designações do Campeonato Europeu de Futebol de 2004, bem como os mecanismos que reforçam o combate a qualquer forma, directa ou indirecta, de aproveitamento ilícito dos benefícios decorrentes deste evento desportivo.

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