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Acórdão 351/2005/T, de 20 de Outubro

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Texto do documento

Acórdão 351/2005/T. Const. - Processo 372/2005. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - No Tribunal Judicial de Ponta Delgada, sob acusação do Ministério Público e perante o tribunal do júri, foram submetidos a julgamento (além de outros) os arguidos José Augusto Gouveia Moniz Pavão, José Luís Benzeiro Tavares, João Manuel Tavares Silva, Luís Manuel de Mendonça Arruda e José António Pacheco de Sousa pela prática, além do mais, de crimes de actos homossexuais com adolescentes, previstos e punidos pelo artigo 175.º do Código Penal.

Por Acórdão de 27 de Abril de 2005, o tribunal do júri decidiu absolver os referidos arguidos quanto a essa parte da acusação, com argumentação essencialmente construída por oposição à doutrina do Acórdão de 22 de Outubro de 2003, processo 2852/2003, 3.ª Secção, do Supremo Tribunal de Justiça, da qual se destaca o seguinte:

"4 - Inconstitucionalidade do artigo 175.º do Código Penal. - Um outro preceito deverá merecer a nossa especial atenção.

Dispõe o artigo 175.º do Código Penal que 'quem, sendo maior, praticar actos homossexuais de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que eles sejam por este praticados com outrem, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias'.

Alguns dos arguidos insurgiram-se contra a disciplina deste preceito, que reputam inconstitucional, ao punir mais severamente os actos homossexuais do que os actos heterossexuais.

Na verdade, se cotejarmos este preceito com o do artigo 174.º, verificamos três diferenças no tratamento legal dos actos homossexuais com adolescentes em cotejo com o dos heterossexuais: é também punido quem levar outrem à prática desses actos; são abrangidos todos os actos sexuais de relevo e não só a cópula e o coito anal ou oral; há sempre punição, mesmo que se não verifique abuso da inexperiência do adolescente.

O que poderá representar uma ofensa ao princípio da igualdade, tal como consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa:

[omitimos]

4.4 - A propósito de uma das diferenças de regime que o artigo 175.º estabelece para os actos homossexuais com adolescentes, por referência ao artigo 174.º, importa chamar à colação o bem jurídico que essencialmente se pretende proteger com a punição dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. Como já referimos, no que concerne aos crimes em que os menores são ofendidos, será ele o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual. Daí o já termos também esclarecido que é essa a justificação para o afastamento da punibilidade dos actos sexuais cometidos com adolescentes que não consubstanciem abuso da sua inexperiência.

Posto isto, como defender que sejam punidos os actos homossexuais contra adolescentes, mesmo que se não verifique esse abuso? Necessário será pois concluir que, mesmo que se admitisse a já repudiada diferenciação de tratamento dos actos homossexuais, por menos normais, nunca essa carência de normalidade poderia implicar a censura penal de acto que reconhecidamente não ofendeu o bem jurídico que se pretende proteger com a previsão punitiva.

Assim, ao não afastar a exclusão da punibilidade no caso de se não provar o abuso da inexperiência do adolescente com quem o agente praticou acto homossexual, estará o artigo 175.º a consagrar um regime que discrimina, aqui notoriamente sem qualquer fundamento, o acto homossexual em relação ao acto heterossexual.

4.5 - Por tudo o exposto, julga-se inconstitucional a norma do artigo 175.º do Código Penal, na medida em que estabelece regime que ofende a proibição de discriminação em razão da orientação sexual que emana do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, tal como consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa. Assim, nos termos e com o alcance definido nos artigos 18.º e 204.º do mesmo diploma, recusa-se este tribunal a aplicar o referido preceito.

4.6 - Ora, havendo concurso aparente entre as normas do artigo 175.º e do artigo 174.º (actos sexuais com adolescentes), por se encontrarem em uma relação de especialidade, vemo-nos revertidos para o tipo deste último crime, à luz do qual serão apreciados os factos que aos arguidos seriam imputados por força do respectivo preceito.

Na sequência do que deixam de ser punidos todos os actos homossexuais com maiores de 14 anos (ou com pelos arguidos supostos maiores de 14 anos) que não sejam de coito oral ou anal, bem como os que, embora o sejam, não se tenha provado consubstanciarem abuso da inexperiência dos menores.

No presente caso, na falta de prova deste último requisito relativamente aos actos homossexuais de coito oral ou anal com ofendidos daquelas idades, serão os arguidos absolvidos dos crimes que, por essa via, lhes eram imputados."

Fazendo aplicação desta doutrina, apesar de considerar provadas algumas das práticas de coito oral, coito anal e outros actos sexuais, designadamente masturbação ou outras manipulações de órgãos genitais, com rapazes entre os 14 e 16 anos, que haviam levado à pronúncia dos arguidos pela prática de crimes punidos pelo artigo 175.º do Código Penal, o acórdão recorrido absolveu-os nessa parte: relativamente às práticas de coito anal e de coito oral por "inconstitucionalidade do artigo 175.º e não verificação do requisito do artigo 174.º, abuso de inexperiência" e quanto aos demais actos sexuais por "inconstitucionalidade".

2 - O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e na alínea a) do n.º 1 e no n.º 3 do artigo 72.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), visando a apreciação da constitucionalidade da norma que consta do artigo 175.º do Código Penal.

Nas alegações, sustentou desenvolvidamente, com especial referência aos trabalhos legislativos de que emergiu a actual redacção do preceito, a constitucionalidade da norma desaplicada pelo tribunal a quo, tendo concluído nos termos seguintes:

"1 - Na definição dos tipos legais de crimes usufrui o legislador ordinário de ampla liberdade de conformação, estando-lhe, contudo, vedado optar por soluções arbitrárias ou discriminatórias, sem que haja fundamento material suficiente para a diferença de tratamento.

2 - A infracção criminal prevista e punida pelo artigo 175.º do Código Penal, relativo à homossexualidade com adolescentes, não viola o princípio constitucional da igualdade estabelecido no artigo 13.º da lei fundamental, quando cotejada com o tipo legal de crime do artigo antecedente do mesmo diploma legal, que abarca uma realidade diferente, menos exigente na punição de determinados comportamentos no âmbito da heterossexualidade.

3 - Nestes termos, deverá proceder o presente recurso."

Contra-alegaram os arguidos José António Pacheco de Sousa (de fl. 4752 a fl. 4755), Luís Manuel de Mendonça Arruda (de fl. 4757 a fl. 4760), José Luís Benzeiro Tavares e João Manuel Tavares Silva (de fl. 4762 a fl. 4777) e José Augusto Gouveia Moniz Pavão (de fl. 4778 a fl. 4780), todos sustentando a improcedência do recurso, no essencial pelas razões da decisão recorrida e do Acórdão 247/2005, deste Tribunal.

3 - Resulta da parte da decisão recorrida em que tratou a questão da inconstitucionalidade (a fls.109 e seguintes do acórdão) e da aplicação que faz desse entendimento em sede de "integração jurídico-penal da conduta dos arguidos" (a fls.120 e seguintes do acórdão) que o tribunal a quo recusou aplicação ao artigo 175.º do Código Penal ("Actos homossexuais com adolescentes") com fundamento em violação do princípio constitucional da igualdade consubstanciado no tratamento desigual, em termos incriminatórios, dos actos homossexuais face aos actos heterossexuais com adolescentes (artigo 174.º do Código Penal - "Actos sexuais com adolescentes").

Desigualdade que se manifestaria em três aspectos distintos:

Na previsão, nos dois tipos legais, de um distinto conteúdo da acção: nas relações heterossexuais punem-se (apenas) a cópula, o coito anal e o coito oral, enquanto nas relações homossexuais se punem (de modo mais abrangente) os actos sexuais de relevo, isto é, outros actos sexuais de relevo para além daqueles;

Na previsão da modalidade da acção: enquanto no artigo 175.º se incrimina o comportamento daquele que praticar actos homossexuais de relevo com menor entre 14 e 16 anos, bem como daquele que levar a que eles sejam por este praticados com outrem, no artigo 174.º pune-se quem tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor da mesma faixa etária;

A punição dos actos heterossexuais com adolescentes exige abuso da sua inexperiência, enquanto que a punição dos actos homossexuais não depende da verificação desse requisito.

Embora a argumentação do acórdão recorrido destinada a demonstrar a violação do princípio constitucional da igualdade se ocupe sobretudo do aspecto enunciado em terceiro lugar (abuso de inexperiência), o tribunal a quo recusou in totum a aplicação do artigo 175.º do Código Penal e é com o mesmo âmbito que a sua decisão vem impugnada. Assim, o recurso incide sobre a norma na sua totalidade, sem prejuízo de, se no mais vier a ser confirmado o juízo de inconstitucionalidade, poder considerar-se prejudicada a apreciação da conformidade constitucional da norma quanto à previsão de uma distinta modalidade de acção ("levar a que eles sejam por ele praticados com outrem"), que não teria reflexos na decisão do caso concreto.

4 - Sucede que, entretanto, pelo Acórdão 247/2005, proferido em 10 de Maio de 2005, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre a questão da constitucionalidade do artigo 175.º do Código Penal, na parte em que consiste em saber se é constitucionalmente legítimo que nele se punam os actos homossexuais aí previstos, ainda que não se abuse da inexperiência do menor, quando o artigo 174.º apenas pune os actos sexuais que enumera se forem cometidos com abuso da inexperiência do menor, tendo julgado inconstitucional, "por violação dos artigos 13.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 175.º do Código Penal, na parte em que pune a prática de actos homossexuais com adolescente mesmo que se não verifique, por parte do agente, abuso da inexperiência da vítima" (terceiro aspecto acima mencionado).

Nesse caso, atendendo a que o aí recorrente [a questão estava aí a ser apreciada num recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC] havia sido condenado pela prática de coito oral e à natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, o Tribunal entendeu não ter de apreciar a conformidade constitucional da diferença de previsão entre as duas normas quanto ao conteúdo ou à modalidade da acção punida.

Apreciando a questão com este limite, depois de expor as notas fundamentais da caracterização dos crimes sexuais na evolução que culminou com as alterações ao Código Penal pela Lei 65/98, de 2 de Setembro, e de concluir que o bem jurídico protegido na secção dos crimes contra a autodeterminação sexual é também o da liberdade e da autodeterminação sexual, relacionado, de forma muito particular, com o bem jurídico do livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, numa ponderação dos diferentes graus de desenvolvimento desta personalidade, disse o Tribunal no Acórdão 247/2005:

"4 - É neste enquadramento que deve ser perspectivado o artigo 175.º - 'Actos homossexuais com adolescentes' -, o único preceito do Código Penal que pune, especificamente, a prática de actos homossexuais de relevo, quando o agente é maior e a vítima menor, entre os 14 e os 16 anos de idade.

Tal incriminação corresponde, na versão primitiva do CP de 1982, à que aí se previa no artigo 207.º, embora com significativas diferenças, as quais são também notórias quando confrontamos este artigo com o 253.º do projecto de Código Penal de 1979, já que este estendia a punição à homossexualidade habitual entre adultos. Sobre aquele artigo escreveu Lopes Rocha ('O novo Código Penal Português. Algumas questões de política criminal', Boletim do Ministério da Justiça, n.º 322, pp. 59 e segs.) que '[...] o interesse protegido não é a moralidade sexual mas o das vítimas potenciais à preservação da sua liberdade na matéria, considerando a lei que até aos 16 anos elas são particularmente vulneráveis a influências que podem comprometer uma vontade livre e consciente de se determinarem sexualmente'.

A verdade, porém, é que, para além da já referida inserção sistemática do preceito, a incriminação não deixa de revelar resquícios de uma opção político-criminal que se não desprende da tutela de sentimentos gerais de moralidade sexual, como se mostra, desde logo, pela utilização do conceito de 'acto contrário ao pudor' e, depois, pela caracterização da conduta do agente, como sendo a de quem 'desencaminha' o menor para aquela prática - 'um preceito que tem sido, com razão, frequentemente dado como exemplo paradigmático do direito penal sexual, ainda de contornos moralistas contido no CP de 1982' (Maria João Antunes, Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte especial, t. I, Coimbra Editora, 1999, § 1). Significativamente, Carmona da Mota ('Dos crimes sexuais', Revista do Ministério Público, ano 4.º, vol. 14, pp. 32 e segs.) compara o artigo 207.º com o n.º 2 do artigo 206.º da seguinte forma: 'a razão da diferença acentuada das sanções correspondentes ao atentado ao pudor sem violência contra menor de 16 anos e ao descaminho homossexual de menor de 16 anos reside, por um lado, no elemento típico adicional deste último (o descaminho), e, sobretudo, no facto de o primeiro ser livre e em regra, heterossexual [...] e de o outro ser ou não livre e, sempre homossexual (e, por isso, culturalmente contra naturam, isto é, perverso ou pervertido e, eventualmente, perversor)'.

É só com a Revisão de 1995 que a incriminação é depurada daqueles conceitos, com a substituição do conceito de 'acto contrário ao pudor' por 'actos homossexuais de relevo' e a eliminação da referência ao 'descaminho' do menor. Já as alterações introduzidas pela Lei 65/98, de 2 de Setembro, incidiram apenas sobre a epígrafe do preceito que, de 'Homossexualidade com menores' passa a 'Actos homossexuais com adolescentes', mantendo-se inalterada a descrição típica.

A criminalização do comportamento daquele que, sendo maior, praticar actos homossexuais de relevo com menor entre 14 e 16 anos, bem como ainda daquele que levar a que tais actos sejam por este praticados com outrem, é demonstrativa de que o legislador terá partido do pressuposto de que a prática daquele tipo de actos, ainda que não haja abuso da inexperiência do menor, pode ser prejudicial para o livre desenvolvimento da sua personalidade, nomeadamente numa das suas vertentes essenciais - a orientação sexual. Tratar-se-á de assegurar ao menor um desenvolvimento sem perturbações no que à esfera sexual diz respeito, especialmente quando se trata de maiores a praticar actos homossexuais de relevo com menores de certa idade, já que estas experiências poderão ser traumatizantes e fonte de prejuízos sérios para o desenvolvimento psíquico, intelectual e social do jovem. Em causa estará, então, a protecção de bens jurídicos constitucionalmente tutelados: a autodeterminação sexual e, em geral, o livre desenvolvimento da personalidade, tudo com claro assento no disposto no artigo 26.º, n.º 1, da CRP.

Anote-se, contudo, que o que se deixa dito se reporta ao crime previsto no artigo 175.º do CP, isoladamente considerado, ou seja, sem a ponderação do seu lugar relativo no contexto da punição dos crimes sexuais de que são vítimas adolescentes, em particular dos que incriminam condutas heterossexuais.

5 - De resto, o recorrente suscita a questão de constitucionalidade da norma penal em causa numa perspectiva comparatista, na sua relação com a incriminação prevista no artigo 174.º do CP, e é nessa sede que ele entende violado o princípio da igualdade. Se bem apreendemos o sentido de uma tal alegação, ela assenta no que se considera ser uma desigualdade de tratamento do relacionamento sexual do maior com menores entre os 14 e os 16 anos de idade, tendo como único fundamento o carácter homossexual ou heterossexual dos actos sancionados, com desfavor dos primeiros, o que o disposto nos artigos 13.º e 26.º da CRP vedaria; esse desfavor residiria precisamente no facto de ser penalmente sancionada a prática de actos homossexuais de relevo com adolescente, ainda que o maior não abuse da inexperiência do menor, enquanto a prática de actos heterossexuais de relevo com menor do mesmo escalão etário só é punível quando o agente abuse da inexperiência da vítima.

É esta a questão que se passa a apreciar, desde já com a advertência de que a conclusão a que se chegou sobre o bem jurídico protegido com a punição constante do artigo 175.º do CP, na análise isolada deste preceito, não implica, necessariamente, improcedência da questão de constitucionalidade. A comparação dos dois tipos legais de crime é susceptível de fazer emergir uma discriminação negativa fundada em categoria ou factor em razão dos quais a Constituição não permite diferenças de tratamento jurídico.

Vejamos, pois, se a diferença de tratamento passa, com sucesso, o teste constitucional da igualdade.

6 - A diferente incriminação da prática, por maior, com menor entre os 14 e os 16 anos de idade, de cópula, de coito anal ou de coito oral (artigo 174.º do CP) e de actos homossexuais de relevo (artigo 175.º do CP) é inquestionável: no primeiro caso, o tipo legal de crime só está preenchido quando o agente abuse da inexperiência do menor; no segundo, é irrelevante o facto de haver, ou não, abuso da inexperiência deste.

6.1 - Com frequência, o Tribunal Constitucional se tem pronunciado sobre o princípio da igualdade, firmando uma jurisprudência que nos dispensa aqui de considerações adicionais.

Escreveu-se, entre muitos outros, no Acórdão 563/96 (Diário da República, 1.ª série-A, de 16 de Maio de 1996):

"1.1 - O princípio da igualdade do cidadão perante a lei é acolhido pelo artigo 13.º da CRP, que, no seu n.º 1, dispõe, genericamente, terem todos os cidadãos a mesma dignidade social, sendo iguais perante a lei, especificando o n.º 2, por sua vez, que 'ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social'.

Princípio estruturante do Estado de direito democrático e do sistema constitucional global (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cf. ob. cit., p. 129), o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da 'atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição)' (cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990).

Muito trabalhado, jurisprudencial e doutrinariamente, o princípio postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais (proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais) - cf., entre tantos outros, e além do já citado Acórdão 186/90, os Acórdãos n.os 39/88, 187/90, 188/90, 330/93, 381/93, 516/93 e 335/94, publicados no referido jornal oficial, 1.ª série, de 3 de Março de 1988, e 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990, 30 de Julho de 1993, 6 de Outubro do mesmo ano e 19 de Janeiro e 30 de Agosto de 1994, respectivamente.

1.2 - O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, 'razoável, racional e objectivamente fundadas', sob pena de, assim não sucedendo, 'estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes', no ponderar do citado Acórdão 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, p. 299).

Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como 'princípio negativo de controlo' ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 127, e, por exemplo, o Acórdão 157/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados Acórdãos n.os 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial (tertium comparationis). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminado o arbítrio (cf., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, p. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, p. 425; Acórdão 330/93).

Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cf. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 381; Alves Correia, ob. cit., p. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da 'diferença', de modo que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.

O n.º 2 do artigo 13.º da CRP enumera uma série de factores que não justificam tratamento discriminatório e assim actuam como que presuntivamente - presunção de diferenciação normativa envolvendo violação do princípio da igualdade - mas que são enunciados a título meramente exemplificativo: cf., v. g., os Acórdãos n.os 203/86 e 191/88, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 26 de Agosto de 1986, e 1.ª série, de 6 de Outubro de 1988, respectivamente, na esteira do parecer 1/86 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 1.º vol., pp. 5 e segs., maxime p. 11. A intenção discriminatória em situações como a presente, não expressamente aludida naquele catálogo, não opera, porém, automaticamente, tornando-se necessário integrar a aferição jurídico-constitucional da diferença nos parâmetros finalísticos, de razoabilidade e de adequação pressupostos pelo princípio da igualdade.

Importa, a esta luz, decidir se a normação em causa é materialmente fundada ou, pelo contrário, se mostra inadequada, desproporcionada e, no fim de contas, arbitrária."

Será, pois, de acordo com esta doutrina que se apreciará a alegada violação do princípio da igualdade, não deixando, desde já, de salientar alguns traços da concepção do princípio que vem sendo adoptada e que, no caso, são especialmente convocáveis.

Assim:

O diferente tratamento jurídico de situações de facto essencialmente iguais só pode assentar em razões que, objectivamente, assentem em valores constitucionalmente relevantes;

O referencial que há-de servir para a comparação das situações fácticas e jurídicas em confronto nunca poderá traduzir-se em qualquer dos factores enumerados no artigo 13.º, n.º 2, da CRP;

O artigo 13.º, n.º 2, da CRP não contempla um elenco fechado de categorias ou factores insusceptíveis de fundamentar diferenças de tratamento jurídico, devendo considerar-se como meramente exemplificativo o enunciado que aí se faz.

Ora, como princípio e direito fundamental que tem (também) como destinatário o legislador, o princípio da igualdade vincula esse mesmo legislador na formulação do conteúdo das normas penais.

A propósito, escreveu Rui Pereira ('O princípio da igualdade em direito penal', O Direito, 1998, n.os 1 e 2, pp. 131 e segs.) que 'quando se afirma que a lei penal se funda na Constituição em sentido material, pretende significar-se que todas as normas constitucionais, a começar pelas que estabelecem o regime de direitos liberdades e garantias, na medida em que exprimem opções axiológicas fundamentais, devem ser consideradas pelo legislador penal [...] A Constituição estabelece, de forma expressa ou implícita, um conjunto de princípios de política criminal que se fundamentam em valores essenciais da ordem jurídica por si própria tutelados. Devem considerar-se princípios de política criminal, o princípio da culpa [...] e o princípio da igualdade'.

Constituindo a legislação penal um domínio em que o respeito pelo direito à liberdade é mais directamente posto à prova e cabendo ao legislador a escolha, no quadro constitucional, das condutas merecedoras de sancionamento penal - opção onde não deixa de se reconhecer alguma margem de discricionariedade -, compreende-se, de resto, o papel fundamental do princípio da igualdade, onde a consideração de vários direitos e liberdades em presença, frequentemente conflituantes, impõe soluções de complexa harmonização.

Também neste domínio - e não obstante, como dá conta o autor citado, no mesmo estudo, ser raro o tratamento autónomo do princípio da igualdade por parte da dogmática penal -, o Tribunal Constitucional tem aferido a constitucionalidade de normas penais perante aquele princípio. Fê-lo, entre outros, nos Acórdãos n.os 370/94 e 958/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 28.º, p. 169, e vol. 34.º, p. 397, respectivamente). E deles há que especialmente evidenciar o repúdio de diferenças baseadas em critérios de valor meramente subjectivos e a identificação da proibição do arbítrio com discriminações não devidamente justificadas nas especialidades fácticas de imediato significado valorativo 'compatível com o quadro de valores constitucionais'.

6.2 - Do confronto dos artigos 174.º e 175.º do CP resulta que as duas incriminações têm em vista a tutela do mesmo bem jurídico - a autodeterminação sexual do menor entre 14 e 16 anos de idade, através da punição de actos sexuais de relevo susceptíveis de afectar o livre desenvolvimento da sua personalidade em matéria sexual. Incriminações que constituem uma excepção à regra, norteadora do capítulo 'Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual', de que só até aos 14 anos é que a prática de actos sexuais prejudica o desenvolvimento global do menor, à regra de que atingidos os 14 anos de idade o menor é livre de se decidir quanto ao seu relacionamento sexual (assim, Teresa Beleza, 'O conceito legal de violação', Revista do Ministério Público, ano 15, n.º 59, 1994, p. 56, e Eliana Gersão, 'Crimes sexuais contra crianças. O direito penal português à luz das resoluções do Congresso de Estocolmo contra a Exploração Sexual das Crianças para Fins Comerciais', Infância e Juventude, 97.2, p. 15). Ao mesmo tempo que constituem um desvio à regra geral segundo a qual o maior de 14 anos de idade possui o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento por si prestado (artigo 38.º, n.º 3, do CP), já que os comportamentos que supõem constrangimento da vítima levam antes ao preenchimento de outros tipos legais de crime, nomeadamente os de 'Coacção sexual' e de 'Violação' (artigos 163.º e 164.º do CP).

Se do lado da vítima é o direito à autodeterminação sexual que justifica as incriminações, do lado do agente da prática do crime perfila-se o direito (conflituante) à livre expressão da sua sexualidade, restringido em nome do respeito daqueloutro direito do menor entre 14 e 16 anos de idade. Direitos constitucionalmente consagrados nos artigos 1.º e 26.º, n.º 1, da CRP, por força do reconhecimento dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade.

Recordando que se considerou irrelevante, nesta fiscalização concreta de constitucionalidade, a especificação que o artigo 174.º faz dos actos sexuais de relevo (cópula, coito anal e coito oral) e a admissão de apenas uma modalidade da acção (quem tiver...), a diferença que importa assinalar no confronto das duas incriminações é que é irrelevante que o agente da prática do crime não tenha abusado da inexperiência do menor no crime por que foi punido o recorrente. Com a consequência de ter lugar a punição, mesmo que não haja 'abuso da inexperiência' da vítima, diferentemente do que sucede com o tipo legal de crime previsto no artigo 174.º do CP, cujo preenchimento depende da verificação de que ocorreu um tal abuso.

Impõe-se, desde já, afastar, na indagação das razões da assinalada diferença, qualquer hipótese de ponderação de um pretenso objectivo de prevenção de riscos de aproveitamento das situações de carência social e económica das vítimas que, muitas vezes, estão presentes nos casos de condutas homossexuais com menores. Com efeito, é inquestionável que o artigo 175.º do CP não confere qualquer relevância, na construção do tipo legal, àquelas situações de carência.

Por outro lado, não se verifica diferença de tratamento jurídico assente em distinção de sexos ou de idades - ambos os crimes podem ser praticados por homens ou mulheres, desde que maiores. Tão-pouco releva, para aferir da observância do princípio da igualdade, a consideração de que o diferente tratamento assenta em realidades diversas, uma vez que os agentes que praticam actos homossexuais com menores de 14 aos 16 anos são punidos da mesma forma que aqueles que praticam actos de 'cópula', 'coito anal' ou 'coito oral', nos termos do artigo 174.º - pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.

Na verdade, a categoria que aqui releva como tertium comparationis, referencial face ao qual se hão-de 'comparar' as situações em presença, é a da orientação sexual que todos os cidadãos têm o direito de escolher livremente, sendo que, para uns (os que praticam actos heterossexuais de relevo com menores entre 14 e 16 anos) a restrição do direito à livre expressão da sua sexualidade tem como limite o 'abuso da inexperiência' do menor e para outros (os que praticam actos homossexuais de relevo com menores entre 14 e 16 anos) a restrição é total. Não sendo despiciendo considerar, neste contexto, o direito do próprio adolescente de livremente exprimir a sua sexualidade, nomeadamente escolhendo de forma livre a sua orientação sexual. Um direito que é restringido ao menor entre 14 e 16 anos que pretenda praticar actos homossexuais de relevo com um maior, sem haver qualquer abuso da inexperiência do primeiro, uma vez que tal prática está incriminada, diferentemente do que sucede com o adolescente que pretenda praticar actos heterossexuais de relevo com um maior nas mesmas circunstâncias. Um aspecto que já foi levado ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Case of S. L. v. Áustria e Case of Sutherland v. the United Kingdom), muito embora relativamente a disposições legais do direito austríaco e do direito inglês que previam idades diferentes para a não punição dos comportamentos homossexuais, por um lado, e comportamentos heterossexuais e lésbicos, por outro.

É aquela diferença restritiva que, para ser conforme ao princípio da igualdade, há-de justificar-se em valores constitucionalmente protegidos e nunca em factores que a Constituição considera insusceptíveis de fundamentar diferenças de tratamento jurídico. Para tanto, a ponderação das razões que podem fundamentar uma maior amplitude da tutela conferida aos direitos dos menores na incriminação constante do artigo 175.º do CP deve constituir o cerne da fundamentação da resposta à questão de constitucionalidade. Disse-se já que o artigo 13.º, n.º 2, da CRP, nas categorias subjectivas que elenca como insusceptíveis de constituírem razão de privilégio, benefício, prejuízo, privação de direito ou isenção de dever, é meramente exemplificativo.

6.3 - Os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, postulados pelo respeito da dignidade da pessoa humana, traduzem-se no direito dos cidadãos à sua auto-realização como pessoas, onde se compreende o direito à autodeterminação sexual (cf. Paulo Mota Pinto, 'O direito ao livre desenvolvimento da personalidade', Portugal-Brasil. Ano 2000, Stvdia Ivridica, Coimbra Editora, pp. 205 e segs.), nomeadamente enquanto direito a uma actividade sexual orientada segundo as opções de cada um dos seus titulares. E, relativamente àqueles direitos, a Constituição garante, expressamente (artigo 26.º, n.º 1, in fine), a sua 'protecção legal contra quaisquer formas de discriminação'.

Isto significa que estes direitos não podem ser restringidos de forma diferenciada, assente em factores que constituam elementos nucleares do seu conteúdo, como seja, no caso, o tipo de orientação sexual que o seu titular adoptou. Nesta medida e sem embargo de se reconhecer que, nestes termos, a protecção do direito a uma actividade sexual orientada segundo as opções de cada um dos seus titulares está já assegurada no citado artigo 26.º, n.º 1, da CRP, deve, ainda, entender-se que a 'orientação sexual' é uma categoria subjectiva que, embora não enunciada expressamente no artigo 13.º, n.º 2, da CRP, se deve colocar ao lado das que neste preceito se consideram insusceptíveis de fundamentar diferenças de tratamento jurídico - e, em tal conformidade, a alteração do preceito operada pela Lei Constitucional 1/2004, de 24 de Julho, relevará apenas enquanto explicita o que se retirava já da versão anterior (assim, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, t. I, Coimbra Editora, 2005, anotação ao artigo 13.º, ponto II).

Certamente que se não pretende dizer que o direito referido se não deva restringir na medida necessária para a salvaguarda de outros direitos ou interesses legalmente protegidos, de acordo com o disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição. Ponto é que, na suposta defesa de direitos ou interesses conflituantes, de igual valor constitucional, a norma restritiva não acabe por ter, como sua verdadeira razão de ser, uma concepção de desfavor relativamente à orientação sexual em causa, ou - o que é o mesmo - fundamentos de cariz subjectivista, sociológicos ou outros, constitucionalmente imprestáveis para justificar a desigualdade.

6.4 - O abuso da inexperiência do menor, referida no artigo 174.º e ausente no artigo 175.º do CP, significa a exploração (o aproveitamento) da inexperiência sexual da vítima e, consequentemente, a menor força de resistência que por isso terá diante dos actos sexuais de relevo especificados naquele artigo, com prejuízos para o livre desenvolvimento da vida sexual do adolescente, nomeadamente para a sua orientação sexual (cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte especial, t. I, Coimbra Editora, 1999, artigo 174.º, § 16). Por conseguinte, o legislador admite situações em que, por razões diversas, o menor entre 14 e 16 anos ou já tem experiência sexual ou embora não a tendo não há abuso da sua inexperiência, não ocorrendo então qualquer dano ou perigo para o livre desenvolvimento da personalidade do menor, no que diz respeito à esfera sexual, o que justifica a especificação da modalidade típica de acção abusar da inexperiência do menor. A não especificação desta equivaleria, naqueles casos em que não há abuso da inexperiência, a uma incriminação que não tutelaria qualquer bem jurídico.

Que sentido poderá, assim, ter - nesta perspectiva de análise comparativa das incriminações - a irrelevância do abuso da inexperiência do menor na incriminação estabelecida no artigo 175.º do CP? Aparentemente um só: da prática de actos homossexuais de relevo entre um maior e um menor entre os 14 e os 16 anos idade resultará sempre dano ou perigo para a autodeterminação sexual deste. O legislador terá partido do pressuposto de que os actos homossexuais em que intervenham maiores de idade e menores entre os 14 e 16 anos de idade serão prejudiciais ao livre desenvolvimento da personalidade destes últimos, já que neste tipo legal de crime apenas releva a natureza homossexual dos actos sexuais.

Mas isto, afinal, por quê?

Uma explicação possível para um tratamento distinto dos comportamentos em função da natureza heterossexual ou homossexual dos actos sexuais de relevo pode ser encontrada nos trabalhos preparatórios, os quais apontam para a admissão do desvalor especial da homossexualidade e para a ideia de que a heterossexualidade é que representa a situação mais normal, havendo naquela algo de estatisticamente anormal, mesmo nos países onde se reconhece com latitude o direito à diferença (cf. Código Penal. Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, p. 264). Seriam, assim, razões ligadas à maior 'normalidade' dos comportamentos heterossexuais (e, consequentemente, ao algo de 'anormal' que existe nos comportamentos homossexuais) e ao 'desvalor especial da homossexualidade' que justificariam a especial punição prevista no artigo 175.º do CP.

Ora, estes parâmetros de normalidade/anormalidade, extraídos, aparentemente, de uma observação 'estatística' da sociedade, afiguram-se imprestáveis para justificar a diferença de tratamento jurídico, face aos artigos 13.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da Constituição. É precisamente no tratamento de situações que se inserem em categorias socialmente minoritárias ou sociologicamente desfavorecidas que o princípio constitucional da igualdade cobra a sua principal força, tutelando, sempre ou de algum modo, um direito 'à diferença' ou 'de diferença'. Justificar uma diferença na ampliação de normas restritivas de direitos fundamentais com a protecção de outros na base de uma presumível lesão causada - e só causada - por uma determinada prática sexual que não é - e por não o ser - estatisticamente normal traduz-se, afinal, em tratar discriminatoriamente uma situação resultante da orientação sexual adoptada, inerente ao direito à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, ou seja, com violação do disposto nos artigos 13.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da CRP. Está, assim, a admitir-se um 'desvalor especial' relativo à homossexualidade, como não deixou de ser reconhecido nos trabalhos preparatórios já mencionados.

Se se defender que não é a orientação homossexual que, em si mesma, se trata desfavoravelmente, nem é o facto de ela representar uma orientação minoritária, ou anormal que, também em si mesmo, releva - por ela ser minoritária, o grau de consciência requerido ao adolescente é que se torna mais exigente - então deve reconhecer-se que a diferença carece de fundamento racional. Não se vê, de facto, razão para se entender que o menor entre os 14 e os 16 anos de idade pode saber o que quer, por que quer e com quem quer relacionar-se, quando consente em práticas heterossexuais, mas nunca quando consente em práticas homossexuais.

E se se atender ao risco previsível de reflexos nocivos no livre desenvolvimento da personalidade na esfera sexual, compreendida a orientação sexual do menor, não parece racionalmente sustentável que a experiência de relacionamento homossexual, sem abuso da inexperiência sexual do menor, afecte mais gravemente tal desenvolvimento (e orientação) do que a experiência heterossexual nas mesmas circunstâncias. Nada, de resto, a este respeito, tem hoje qualquer base científica credível (cf., infra, o n.º 6.6.). Apelar ao efeito 'traumático' ou 'mais traumático' da prática de actos homossexuais não tem, aliás, melhor préstimo, não deixando até de revelar, mais claramente, um juízo de desvalor, pejorativo, da prática sexual (homossexual) 'traumatizante', na base da qual se pretenda justificar a diferença de tratamento jurídico.

Mas é este mesmo juízo que transparece no acórdão recorrido quando se diz que 'as experiências homossexuais de adultos com menores, independentemente da experiência sexual da vítima, são substancialmente mais traumatizantes, por representarem um uso anormal do sexo, condutas altamente desviantes, por serem contrárias à ordem natural das coisas, comprometendo ou podendo comprometer a formação da personalidade e o equilíbrio mental, intelectual e social futuro da vítima, desencadeando, também, colateralmente, efeitos danosos de um ponto de vista social, fenómenos disfuncionais em grau mais elevado, à partida, do que os actos heterossexuais com adolescentes, mesmo sem experiência sexual'.

6.5 - Na verdade, pressupor que a prática de acto homossexual livre requer um grau de maturidade superior ao necessário para a prática de acto heterossexual de relevo carece de fundamento racional (assim, Rui Pereira, Liberdade sexual..., p. 46, referindo-se embora ao projecto da Comissão de Revisão do Código Penal, onde se previa que a vítima do crime fosse menor entre 14 e 18 anos de idade).

É de destacar, de resto, que a incriminação prevista no artigo 175.º do CP foi, desde logo, alvo da crítica da doutrina, precisamente por ser irrelevante o abuso da inexperiência do menor, num juízo que, não deixando de ter presente a comparação com o artigo 174.º, acabava por questionar a incriminação de um ponto de vista jurídico-constitucional. Dúvidas quanto à legitimidade material da incriminação que foram desde logo levantadas em sede de trabalhos preparatórios, chegando a equacionar-se a eliminação do artigo e a reconhecer-se alguma incongruência lógica na incriminação (cf. Código Penal. Actas e Projecto da Comissão de Revisão, p. 264, e Reforma do Código Penal. Trabalhos Preparatórios II, Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, 1995, p. 40).

Assim, Mouraz Lopes (Os Crimes contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal, após a Revisão de 1995, Coimbra Editora, 1995, p. 67), depois de salientar que o crime previsto no artigo 175.º do CP é o único onde a homossexualidade é relevante para efeitos de incriminação de uma conduta, escreveu que, 'poderá por isso questionar-se constitucionalmente o tratamento desigual que é dado à homossexualidade, face a outras formas de sexualidade, com a criminalização das condutas em causa neste crime'.

Teresa Pizarro Beleza ("A revisão da parte especial na reforma do Código Penal: legitimação, reequilíbrio, privatização, 'individualismo"', Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1998, pp. 91 e segs., e 'Sem sombra de pecado. O repensar dos crimes sexuais na revisão do Código Penal', Jornadas de Direito Criminal. Revisão do Código Penal, I, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa 1996, p. 181), acentuando que, em matéria de crimes sexuais, é 'a protecção da liberdade que deve estar em causa e não a conduta moral normativizada', situa o artigo 175.º do CP no conjunto dos preceitos incriminadores 'particularmente discutíveis' e isto porque 'provoca uma discriminação da responsabilidade no contacto sexual precoce na faixa dos 14-16 anos', acrescentando que 'seria preferível' deixar "apenas vigente a incriminação 'geral' do abuso (quer homossexual, quer heterossexual)". A autora questiona 'a manutenção da incriminação da homossexualidade com menores', considerando que se trata de 'um argumento muito pouco convincente e de legitimidade constitucional assaz duvidosa' basear 'na regra estatística da heterossexualidade', a razão da autonomização da incriminação 'como coisa distinta do abuso sexual de adolescentes'.

Jorge Dias Duarte ('Homossexualidade com menores. Artigo 175.º do Código Penal', Revista do Ministério Público, ano 20, n.º 78, 1999, pp. 106 e segs.) conclui 'não existir actualmente qualquer motivo válido que leve a que se faça a distinção plasmada actualmente no artigo 175.º do Código Penal, a qual surge, assim, como uma reminiscência moralista, traduzindo ainda - mais que implícita, explicitamente - o desvalor com que a homossexualidade é, ainda hoje, entre nós, encarada em determinados meios sociais'.

Maria João Antunes (Comentário Conimbricense ..., § 4), depois de destacar que o que releva no artigo 175.º é "apenas o carácter homossexual dos actos sexuais de relevo [...], havendo um tratamento distinto dos comportamentos consoante a natureza heterossexual ou homossexual dos actos sexuais de relevo, o que é revelador 'do desvalor especial da homossexualidade' e da convicção de que só as relações heterossexuais é que são 'normais'" considera que 'este tratamento distinto, a assentar exclusivamente na natureza homossexual dos actos sexuais de relevo, levanta dúvidas sobre a legitimidade material da incriminação [...] chegando até a colocar-se a questão da legitimidade do ponto de vista jurídico-constitucional'.

6.6 - Abonam também no sentido de não haver fundamento racional para um tratamento distinto dos actos homossexuais de relevo o que as legislações penais estrangeiras vêm actualmente dispondo sobre esta matéria, bem como alguma jurisprudência que pode considerar-se de referência, nomeadamente a do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

Para além da perspectiva de direito comparado que nos é dada por Jorge Dias Duarte (Homossexualidade com Menores ..., pp. 90

e segs.), relativamente a países, com raízes culturais e civilizacionais próximas do nosso que tratam de modo indiferenciado as práticas sexuais (homossexuais ou heterossexuais), atente-se que na Alemanha, em 31 de Maio de 1994, foi expressamente revogado o § 175 do CP ('Homosexuelle Handlungen') e alterado o § 182, o qual deixou de prever o crime de sedução ('Verführung'), em que a vítima era necessariamente um menor de 16 anos do sexo feminino, para passar a prever o crime de abuso sexual de adolescentes ('Sexueller Missbrauch von Jungendlichen'), em que a vítima é um menor de 16 anos, sem qualquer diferenciação em função do sexo; e que na Áustria, em 14 de Agosto de 2002, foi expressamente revogado o § 209 do CP, que punia os actos homossexuais consentidos entre homens de idade superior a 19 anos e adolescentes entre 14 e 18 anos de idade, com a consequente introdução do actual § 207b, o qual abrange indistintamente actos heterossexuais, homossexuais ou lésbicos.

Estas alterações do CP austríaco ocorreram na sequência da decisão do Tribunal Constitucional de 21 de Junho de 2002, que julgou inconstitucional aquele § 209, por violação do princípio da igualdade, por não se poder ter como objectivamente justificada a incriminação. Julgamento de inconstitucionalidade e alterações legislativas que estiveram presentes no julgamento do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 9 de Janeiro de 2003 (Case of L. And V. v. Austria), já que perante este Tribunal foi alegado e por ele reconhecido que a vigência do § 209 do CP austríaco e as condenações que a norma permitiu foram discriminatórias e violadoras do direito ao respeito pela vida privada (artigos 8.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem). Do conteúdo da decisão ressalta, apesar das especificidades das queixas apresentadas, a adesão à conclusão a que chegou a Comissão no Case of Sutherland v. the United Kingdom: na falta de qualquer justificação objectiva e racional para a manutenção de uma idade superior do consentimento para actos homossexuais é violado o artigo 14.º em conjugação com o artigo 8.º da Convenção. Conclusão que foi sensível a investigações recentes de acordo com as quais a orientação sexual é, em regra, estabelecida antes da puberdade quer em relação a rapazes quer a raparigas, bem como à circunstância de a generalidade dos países do Conselho da Europa preverem idades iguais quando considerado o consentimento para a prática de actos homossexuais e heterossexuais (§ 47). Entendimento seguido depois no Case of S. L. v. Austria (§ 39).

6.7 - Posições doutrinais e jurisprudenciais e ensinamentos de direito comparado que foram abrindo caminho para a defesa, entre nós, de alterações legislativas: '[...] parece seguro que o direito penal português do futuro deve caminhar no sentido de não discriminar as relações homossexuais, nomeadamente exigindo também que o agente abuse da inexperiência do menor [...] Mas preferível será sempre a solução de haver um só tipo legal de crime que, não distinguindo a natureza homossexual ou heterossexual dos actos sexuais de relevo, proteja o bem jurídico que merece tutela, ou seja o livre desenvolvimento do menor no que à sua esfera sexual diz respeito. Desenvolvimento este que [...] poderá ser perturbado quando um maior pratica actos sexuais de relevo com menores entre 14 e 16 anos de idade, abusando da sua inexperiência' (Maria João Antunes, Comentário Conimbricense..., § 5).

Alterações a que foram sensíveis os autores das propostas de lei n.os 80/VII e 160/VII, onde nas respectivas exposições de motivos se justificou a proposta de alteração do artigo 175.º do CP - elemento do crime aí previsto seria, também, o abuso da inexperiência da vítima por parte do agente com o fim de 'harmonizar as incriminações do estupro e dos actos homossexuais com menores'. Alteração que viria a ser eliminada por proposta do Partido Socialista, sem que se tornassem públicas as razões que levaram a tal, na discussão e votação, na especialidade, da proposta de lei 160/VII, ocorridas na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 1 de Julho de 1998). Isto, apesar de, aparentemente, só o deputado Guilherme Silva se ter insurgido contra tal alteração: 'Manter no artigo 174.º e introduzir no artigo 175.º o requisito do abuso da inexperiência do menor vítima, como requisito do crime, e não como mero factor a ponderar na valoração da pena, parece-nos de todo inadequado, quando se quer acentuar o combate à pedofilia' (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 13 de Março de 1998).

Mais recentemente, a proposta de lei aprovada em Conselho de Ministros, em 24 de Junho de 2004, e a proposta de lei 149/IX (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 20 de Novembro de 2004) propõem mesmo a revogação do artigo 175.º e a alteração do artigo 174.º, no sentido de ser punida a prática, por um maior, de quaisquer actos sexuais de relevo com adolescente, independentemente da natureza heterossexual ou homossexual do acto, sempre que haja abuso da inexperiência do menor. A primeira proposta chega mesmo, na respectiva exposição de motivos, a 'destacar que o Acórdão de 9 de Janeiro de 2003 do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [...] considerou que um preceito, entretanto revogado, do Código Penal austríaco, semelhante ao actual artigo 175.º, atentava contra direitos consagrados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem'.

7 - Em suma, pois, conclui-se que o artigo 175.º do CP, no ponto em que, contrariamente ao que se dispõe no artigo 174.º do mesmo Código, torna irrelevante o abuso da inexperiência da vítima, viola o disposto nos artigos 13.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da Constituição: estabelece uma diferença de tratamento jurídico com base na orientação sexual (homossexual) e sem fundamento racional.

Não deixa, por último, de se acentuar que o juízo de inconstitucionalidade assenta exclusivamente na análise comparativa do tratamento diferenciado que é dado, em termos de incriminação, às práticas de actos homossexuais com menores de 14 a 16 anos de idade face ao que merecem, nos mesmos termos, as práticas heterossexuais com adolescentes de idêntico escalão etário.

Nesta perspectiva, ele não tem implícito - e não poderia ter - qualquer juízo sobre a conformidade ou desconformidade constitucional do disposto no artigo 175.º do CP isoladamente considerado; o que significa que dos estritos limites do juízo agora feito não decorrerá, necessariamente, a eventual inconstitucionalidade de uma solução legislativa que viesse a igualar o tratamento jurídico-criminal das situações confrontadas ao nível do que agora é dado à prática de actos homossexuais, questão esta que, no caso, está fora dos poderes cognitivos do Tribunal."

Concorda-se, no essencial, com estas razões, em que já está ponderada a argumentação do Ministério Público que sustentou o que, na posição processual inversa, já tinha defendido no processo em que o Acórdão 247/2005 foi proferido, o que basta para que, nesta parte e com os mesmos fundamentos deste acórdão, se confirme o juízo de desaplicação da norma com fundamento em inconstitucionalidade, negando provimento ao recurso.

5 - Como se relatou, a decisão recorrida considerou que existe uma relação de concurso aparente entre as normas do artigo 175.º e do artigo 174.º ("Actos sexuais com adolescentes"), por se encontrarem numa relação de especialidade, pelo que subsumiu neste último preceito os actos de coito anal e de coito oral imputados aos arguidos com ofendidos do sexo masculino na faixa dos 14 aos 16 anos (embora os absolvesse desses crimes por não consubstanciarem abuso da inexperiência dos menores). Quanto aos demais actos homossexuais que ficaram provados, os arguidos foram absolvidos com o simples fundamento na inconstitucionalidade do artigo 175.º do Código Penal, sem pronúncia quanto ao "abuso de inexperiência" da vítima.

Não cabe na competência do Tribunal Constitucional apreciar o acerto deste entendimento no que diz respeito à aplicação do direito ordinário. Por idêntica razão, uma vez que não decorre de indiscutível inferência lógica ou de simples interpretação do acórdão recorrido, podendo contender com aspectos que já respeitam à valoração dos factos da causa, também lhe é vedado projectar - ainda que somente para verificar a utilidade do recurso nesta parte - o julgamento do tribunal a quo em termos de entender que, se não se verificou abuso de inexperiência quanto às práticas de coito oral e coito anal (em relação às quais o tribunal analisou e excluiu o requisito), também tal não ocorreu quanto a todos os demais actos homossexuais de relevo com os mesmos menores.

Cumpre, pois, passar à apreciação da conformidade constitucional do diferente conteúdo de acção típica para a punição dos actos homossexuais e dos actos heterossexuais com adolescentes, que se colhe mediante comparação dos artigos 175.º e 174.º do Código Penal.

6 - Como se viu, o tipo objectivo de ilícito do artigo 175.º é dado pelo conceito de acto sexual de relevo que é mais extenso do que o conteúdo típico da acção descrita no artigo 174.º, que se analisa nos actos de cópula (aqui naturalmente excluído), coito anal e coito oral. Efectivamente, além destes actos sexuais que nele são genericamente enquadráveis quando não autonomizados, cabem neste conceito - que para a decisão do presente recurso não é necessário recortar com mais detalhe; cf., por exemplo, Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, vol. II, 3.ª ed., pp. 367 e segs. -, outros actos homossexuais que, de um ponto de vista objectivo, assumam uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionado com a esfera da sexualidade e constituam um entrave com importância para liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou pratica.

Em geral, estes outros actos comportam lesão ou risco de lesão abstractamente menos grave para o mesmo bem jurídico penalmente tutelado do que aqueles actos especificados. Sempre que especializa, na tipificação dos crimes sexuais, as formas de cópula, coito oral e coito anal, o legislador estabelece uma punição mais severa do que aquela que comina na correspondente tipicização genérica. É o que resulta do cotejo do artigo 163.º ("Coacção sexual") com o artigo 164.º ("Violação"), do n.º 1 com o n.º 2 do artigo 165.º ("Abuso sexual de pessoa incapaz de resistência"), do n.º 1 com o n.º 2 do artigo 166.º ("Abuso sexual de pessoa internada"), do n.º 1 com o n.º 2 do artigo 167.º ("Fraude sexual") e do n.º 1 com o n.º 2 do artigo 172.º ("Abuso sexual de crianças").

Da comparação dos artigos 174.º e 175.º do Código Penal neste segmento obtém-se que são criminalmente punidas práticas sexuais com adolescentes do mesmo sexo que, mantendo-se todos os demais elementos invariáveis, o não seriam num relacionamento heterossexual (por exemplo, para nos atermos ao acto mais frequente no caso em apreciação, a masturbação executada no adulto pelo adolescente ou neste pelo adulto), porque o legislador lhes não reconheceu aqui dignidade penal, o que não pode deixar de ser entendido, na sistemática do Código, que considerou comportarem actos desse tipo menor lesão ou risco de lesão para o livre desenvolvimento da personalidade do menor no que à sua esfera sexual diz respeito. Há, portanto, também aqui um tratamento penal distinto dos comportamentos a assentar exclusivamente na natureza homossexual ou heterossexual dos actos sexuais em causa.

Ora, também quanto a este aspecto se não vislumbra fundamento material para a diferenciação de tratamento penal de práticas substancialmente idênticas, apenas com base no seu carácter hetero ou homossexual, sendo transponíveis as razões que justificam o juízo de inconstitucionalidade quanto à não exigência de abuso de inexperiência da vítima.

É certo, por um lado, que o princípio da igualdade não impõe um arquétipo de legislação penal desenvolvido more geométrico, não estando o legislador constitucionalmente impedido na conformação dos tipos de crimes sexuais, designadamente na descrição típica, de reflectir na técnica legislativa as diversidades que sejam inerentes à natureza de umas e outras práticas, desde que relevem diferenciadamente na tutela penal do bem jurídico. E, por outro lado, que a Constituição também não impede o legislador de usar o direito penal para uma mais extensa ou intensa protecção do desenvolvimento sexual dos jovens à margem de perturbações ou traumas induzidos por experiências precoces ou etariamente assimétricas, ainda que norteado, neste domínio em que à incerteza ou disparidade de interpretação dos dados da observação empírica se soma a complexidade das representações "normativas" da comunidade, por um princípio de precaução. Mas o que não pode é eleger para a definição da matéria proibida uma "categoria suspeita", como a que emerge da simples correspondência dos actos a uma orientação sexual, como, nos dois aspectos até agora considerados, revela a comparação dos artigos 175.º e 174.º do Código Penal.

7 - Pelas razões que já se avançaram (cf. o n.º 3), sendo a decisão do tribunal a quo confirmada quanto à inconstitucionalidade do artigo 175.º do Código Penal, no que respeita ao diferente conteúdo de acção típica e quanto à desnecessidade de abuso de experiência, o Tribunal não tem de apreciar a conformidade constitucional de uma distinta modalidade de acção (levar a que estes sejam praticados com outrem).

Aliás, em bom rigor, a norma não foi, nesta parte, efectivamente desaplicada pela decisão recorrida, porque a possibilidade da sua aplicação (e portanto de recusa de aplicação com fundamento em inconstitucionalidade) só se coloca depois de determinada a ocorrência de actos puníveis nos termos do preceito praticados com outrem, o que não se verificou (na parte em que a previsão do artigo 175.º é sobreponível à do artigo 174.º, o Tribunal considerou não ter havido abuso de inexperiência).

8 - Decisão. - Pelo exposto decide-se:

a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 13.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 175.º do Código Penal, na parte em que pune a prática de actos homossexuais com adolescentes mesmo que não se verifique, por parte do agente, abuso de inexperiência da vítima e na parte em que na categoria de actos homossexuais de relevo se incluem actos sexuais que não são punidos nos termos do artigo 174.º do mesmo Código;

b) Negar, consequentemente, provimento ao recurso.

c) Sem custas.

Lisboa, 5 de Julho de 2005. - Vítor Gomes - Gil Galvão - Bravo Serra (vencido, pelo essencial das razões constantes da declaração de voto aposta no presente acórdão pela Exma. Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza e para a qual, com vénia, remeto) - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, conforme declaração junta) - Artur Maurício.

Declaração de voto

Votei vencida, no essencial, pelas razões seguintes:

1 - A apreciação pelo Tribunal Constitucional da norma em causa no presente recurso (em qualquer das dimensões analisadas no acórdão) situa-se apenas no plano estrito da sua conformidade constitucional, ou seja, só pode estar em causa saber se da Constituição resulta a proibição de distinguir, nos termos constantes dos artigos 174.º e 175.º do Código Penal, quer os pressupostos de punição do agente, quer o próprio conteúdo ou modalidade da acção típica.

2 - Tal apreciação exige, antes de mais, que se determine se a intervenção do Tribunal Constitucional é compatível com a liberdade de conformação do legislador ordinário em matéria de política criminal, na qual o Tribunal não tem competência para interferir.

3 - É certo que tal liberdade tem sempre como limite, nomeadamente, as exigências do princípio da igualdade, nos termos em que a jurisprudência constitucional (como se dá nota no acórdão) o tem afirmado.

4 - Ora, não creio que a Constituição, e em particular o referido princípio da igualdade, impeça o legislador ordinário de optar por soluções diferentes, nos termos dos referidos artigos 174.º e 175.º do Código Penal.

5 - Com efeito, a distinção material justificativa pode residir no mero facto de que, para o direito português vigente, não têm igual tutela jurídica o relacionamento pessoal homossexual e heterossexual (v. g., na definição do casamento ou do regime da adopção).

6 - Por outro lado, não se pode esquecer de que se trata, em qualquer caso, de relacionamento de maiores com menores entre os 14 e os 16 anos, ou seja, de menores que a lei penal considera inimputáveis (cf. o artigo 19.º do Código Penal), assim reconhecendo que, até à idade de 16 anos, a sua personalidade se encontra em formação, não dispondo de condições de autodeterminação semelhantes às dos maiores.

7 - Da conjugação destes dois pontos resulta, a meu ver, a não proibição constitucional da distinção em causa neste recurso, e, do mesmo passo, a impossibilidade de o Tribunal Constitucional a censurar.

8 - Sempre acrescento, todavia, que tenho algumas dúvidas quanto à perspectiva em que o acórdão se colocou, por remissão para o Acórdão 247/2005, analisando a norma em apreciação à luz do n.º 1 do artigo 26.º da Constituição, conjugado com o n.º 2 do seu artigo 18.º, assim tratando a diferença de pressupostos de punição como uma restrição (não permitida) ao direito de autodeterminação sexual do maior. A meu ver, tal análise deveria antes partir da avaliação do mesmo direito do ponto de vista do menor, já que é a sua liberdade que é protegida com a incriminação. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2346278.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1988-07-26 - Acórdão 157/88 - Tribunal Constitucional

    DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, DA NORMA DO ARTIGO 5 DO DECRETO LEI NUMERO 336/84, DE 18 DE OUTUBRO (CRIOU A PORTLINE E A TRANSISULAR E APROVOU OS RESPECTIVOS ESTATUTOS), TAL COMO INTERPRETADO PELA ALÍNEA A) DO ARTIGO ÚNICO DO DECRETO LEI NUMERO 45/85, DE 21 DE FEVEREIRO (FIXOU O ALCANCE DO ARTIGO 5 DO DECRETO LEI NUMERO 336/84, NA PARTE EM QUE SE REFERE A 'PORTARIA DE REGULAMENTAÇÃO DO TRABALHO', POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 57, NUMERO 2 ALÍNEA A) DA CONSTITUICAO DA REPÚ (...)

  • Tem documento Em vigor 1996-05-16 - Acórdão 563/96 - Tribunal Constitucional

    Não declara a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 295/73, de 9 de Junho; declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante da alínea a) do n.º 7 da Portaria n.º 162/76, de 24 de Março, relativamente aos deficientes das Forças Armadas (Processo n.º 198/93).

  • Tem documento Em vigor 1998-09-02 - Lei 65/98 - Assembleia da República

    Altera o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, revisto e republicado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março.

  • Tem documento Em vigor 2004-07-24 - Lei Constitucional 1/2004 - Assembleia da República

    Altera a Constituição da República Portuguesa (Sexta revisão constitucional). Publica, em anexo, o novo texto constitucional.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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