Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 239/2008
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
Relatório
O Provedor de Justiça, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa (CRP), deduziu pedido de fiscalização abstracta sucessiva, requerendo a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do artigo 11.º, n.º 1, alíneas f) e l), do Decreto Regulamentar 53/97, de 9 de Dezembro, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da CRP, com os seguintes fundamentos:«O Decreto Regulamentar 53/97, de 9 de Dezembro, que define o regime do recrutamento e selecção de pessoal para admissão dos candidatos à Polícia Marítima, estabelece, no respectivo artigo 11.º, um conjunto de requisitos cumulativos de admissão a concurso para os candidatos a agentes estagiários.
No rol de requisitos cumulativos referido contam-se o de 'não ter sido condenado por qualquer crime doloso' e o de 'não ter averbado quaisquer punições durante o cumprimento do serviço militar', respectivamente consagrados nas alíneas f) e l) do preceito mencionado.
Quer um quer outro dos requisitos mencionados acarretam, de forma automática e como efeito necessário, a impossibilidade de admissão a concurso para os candidatos que tenham sofrido uma ou mais condenações por crime doloso, ou uma ou mais punições, quaisquer que estas sejam, durante o cumprimento do serviço militar.
No caso da alínea l), a punição, inibidora da admissão a concurso, pode ser qualquer uma, incluindo a simples repreensão.
Está-se seguramente perante um efeito automático da punição, que inviabiliza a candidatura e assim o eventual acesso a uma determinada profissão.
Na verdade, ao dispor o normativo legal em causa que o candidato não será admitido a concurso se tiver sofrido condenação por crime doloso ou uma qualquer punição durante o cumprimento do serviço militar, facilmente se conclui que não se está perante uma apreciação e valoração autónoma do comportamento anterior do candidato, mas perante uma decorrência automática e, por isso, ope legis, de sanções anteriormente aplicadas.
Esta consequência automática, desligada de qualquer valoração da sua adequação e proporcionalidade ao caso concreto, colide frontalmente com a norma contida no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, que determina que 'nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.' [...] A jurisprudência do Tribunal Constitucional é já vasta sobre a matéria, e vai no sentido de que os efeitos das penas se traduzem materialmente numa verdadeira pena, que não pode deixar de estar sujeita, na sua aplicação, às regras próprias do Estado de direito democrático, designadamente as da reserva judicial, do princípio da culpa e da proporcionalidade da pena.
Por exemplo, no Acórdão 562/03 - através do qual foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma norma do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (GNR), aprovado pelo Decreto-Lei 265/93, de 31 de Julho, conjugada com uma outra norma do Regulamento de Disciplina da GNR, aprovado pela Lei 145/99, de 1 de Setembro, que estabeleciam como condição especial para a promoção ao posto de cabo, por diuturnidade, a de não ter o candidato sido punido na Guarda com o somatório de penas superior a 20 dias de suspensão ou equivalente - elencam-se as vários decisões do Tribunal sobre a matéria.
[...] No mesmo acórdão é ainda apreciada a questão, de resto já merecedora de decisões no mesmo sentido em arestos anteriores também aí mencionados, da aplicabilidade do disposto no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição a sanções de tipo disciplinar. Esta orientação do Tribunal Constitucional torna-se relevante, na situação aqui em análise, para o caso da alínea l) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto Regulamentar 53/97.» Notificado para se pronunciar sobre este pedido, o Primeiro-Ministro ofereceu o merecimento dos autos.
Elaborado pelo Presidente do Tribunal o memorando a que se refere o artigo 63.º da Lei do Tribunal Constitucional, e tendo este sido submetido a debate, nos termos do n.º 2 do referido preceito, cumpre agora decidir de acordo com a orientação que o tribunal fixou.
Fundamentação
1 - As normas questionadas. - O Decreto Regulamentar 53/97, de 9 de Dezembro, estabelece os princípios gerais em matéria de recrutamento e selecção de pessoal para admissão de candidatos ao curso de formação de agentes para ingresso nos quadros da Polícia Marítima, dando execução ao disposto no artigo 17.º do Estatuto de Pessoal da Polícia Marítima, aprovado pelo Decreto-Lei 248/95, de 21 de Setembro.O seu artigo 11.º, n.º 1, que indica os requisitos cumulativos de admissão ao respectivo concurso, dispõe o seguinte:
«Só podem ser admitidos ao concurso os candidatos a agentes estagiários que satisfaçam cumulativamente os seguintes requisitos:
................................................................................
f) Não ter sido condenado por qualquer crime doloso;
................................................................................
l) Não ter averbado quaisquer punições durante o cumprimento do serviço militar;» O legislador ordinário entendeu que a natureza das funções exercidas pela Polícia Marítima exigia dos seus agentes uma especial idoneidade cívica que deveria ser garantida pela não admissão de qualquer candidato a agente estagiário que já tivesse sido condenado pela prática de crime doloso, ou que tivesse averbado qualquer punição durante o cumprimento do serviço militar, vedando-lhe, assim, o ingresso nesta carreira profissional.
É a constitucionalidade destes dois requisitos negativos que é questionada pelo presente pedido de fiscalização abstracta sucessiva.
2 - A proibição contida no artigo 30.º, n.º 4, da CRP. - O artigo 30.º, n.º 4, da CRP, introduzido pela Revisão Constitucional de 1982, dispõe que «nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos» (esta disposição surgiu originariamente no artigo 76.º do projecto da parte geral do Código Penal de 1963 da autoria de Eduardo Correia).
A introdução no texto constitucional deste preceito (a história da sua aprovação encontra-se pormenorizadamente narrada no Acórdão deste Tribunal n.º 748/93, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 26.º vol., p. 31) correspondeu à elevação a princípio jurídico-constitucional da ideia de que certos efeitos jurídicos das penas, ou da condenação, não podem resultar destas de uma forma puramente mecanicista.
Proíbe-se que de uma condenação penal possa resultar, como consequência automática, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, sem necessidade de se efectuar um juízo que pondere, na situação concreta, a adequação e necessidade da produção desses efeitos.
Na verdade, ao estabelecer-se um nexo consequencial entre a aplicação de uma pena e a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, alguns dos princípios que presidem à aplicação das penas devem também estar presentes na aplicação daquelas medidas, nomeadamente os princípios da culpa, da necessidade e da proporcionalidade, pelo que é imprescindível a mediação de um juízo que avalie os factos praticados e pondere a adequação e a necessidade de sujeição do condenado a essas medidas, não podendo as mesmas resultarem ope legis da simples condenação penal (v., neste sentido, Damião da Cunha, em Constituição Portuguesa Anotada, dirigida por Jorge Miranda e Rui Medeiros, t. i, pp. 337-338, da ed. de 2005, da Coimbra Editora).
Além disso, não se pode olvidar que tal proibição tem como seu principal fundamento o combate ao efeito estigmatizante, dessocializador e criminógeno das penas, prejudicial à integração social dos condenados (v., neste sentido, Eduardo Correia, em «As grandes linhas da reforma penal», em Jornadas de Direito Criminal, p. 29, Figueiredo Dias, em Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 53-54, 95-96 e 158-160, da ed. de 1993, da Aequitas e Editorial Notícias, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. i, p.
504, da 4.ª ed., da Coimbra Editora), vector necessariamente integrante de qualquer programa político-criminal de um Estado de direito, visando a realização de uma democracia social (Figueiredo Dias, na ob. cit., pp. 159-160, e em «Os novos rumos da política criminal e o direito penal português no futuro», na Revista da Ordem dos Advogados, ano 43.º, vol. i, p. 33). A determinação da perda de um direito civil, profissional ou político, como efeito automático de uma condenação penal, prejudicaria a ressocialização do condenado, sem qualquer possibilidade de ponderação da necessidade e adequação da extensão do efeito estigmatizante da pena.
3 - A ofensa do artigo 30.º, n.º 4, da CRP, pelas normas questionadas. - O disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto Regulamentar 53/97, de 9 de Dezembro, não permite que uma pessoa condenada pela prática de qualquer crime doloso se candidate a agente da Polícia Marítima, impedindo-a de aceder a esta carreira profissional.
Com esta solução legislativa o facto de uma pessoa ter sofrido uma condenação penal, pela prática de um crime doloso, impede-a, automaticamente, de aceder a uma profissão - agente da Polícia Marítima - sem que se avalie a gravidade, a antiguidade e a natureza dos factos ilícitos praticados, nem a existência de circunstâncias, sem relação directa com o crime, mas que possam desvalorizar o juízo negativo resultante da condenação, e sem que se efectue uma ponderação casuística da relevância dessa condenação no concurso de acesso a esta profissão.
Estamos, assim, perante uma interdição ao exercício do direito constitucional de acesso a uma determinada profissão (artigo 47.º, n.º 1, da CRP), como consequência da existência de uma condenação penal anterior, sem qualquer ponderação da adequação e da necessidade de aplicação de tal medida de interdição, o que contraria a proibição contida no artigo 30.º, n.º 4, da CRP.
A alínea l) do mesmo número não permite que uma pessoa que sofreu uma punição durante o cumprimento do serviço militar, abrangendo todas as sanções disciplinares previstas no Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril, que vão desde a simples repreensão à separação de serviço, passando pela prisão disciplinar (artigos 22.º e seguintes), se candidate a agente da Polícia Marítima, impedindo-a de aceder a esta carreira profissional.
Verifica-se a interdição do exercício do mesmo direito fundamental, agora como consequência automática da aplicação de uma sanção de cariz disciplinar militar.
Tal como sucede com algumas garantias constitucionais do processo penal que também se aplicam a outros processos sancionatórios, como o processo disciplinar (artigos 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, da CRP), tem também o Tribunal Constitucional entendido que a proibição estabelecida no artigo 30.º, n.º 4, da CRP, por identidade de razões, se deve estender à perda automática de direitos civis, profissionais ou políticos, resultante de anterior condenação em sanção disciplinar (v., neste sentido, os Acórdãos n.os 282/86, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º vol., p. 207, 522/95, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32.º vol., p. 345, e 562/2003, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 57.º vol., p. 119).
Por estes motivos devem ser declaradas inconstitucionais, com força obrigatória geral, as normas contidas nas referidas alíneas f) e l) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto Regulamentar 53/97, de 9 de Dezembro.
4 - A limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. - Tendo em atenção que uma declaração de inconstitucionalidade produz efeitos ex tunc (artigo 282.º, n.º 1, da CRP), devem ser ponderadas as eventuais repercussões negativas da apontada inconstitucionalidade relativamente às situações jurídicas constituídas à sombra da aplicação do regime concursal onde se inserem as normas questionadas.
Encontrando-se estas em vigor há mais de 10 anos, ocorreram durante todo esse período temporal inúmeros ingressos de pessoas nos quadros da Polícia Marítima, ao abrigo de concursos realizados com aplicação daquele regime, tendo-se consolidado a situação jurídico-profissional das mesmas.
O princípio da segurança jurídica impõe que os concursos já findos não possam ser reabertos por força do presente juízo, justificando-se lançar mão da faculdade conferida pelo n.º 4 do artigo 282.º da CRP, por forma a limitar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, de modo a não serem afectados os resultados dos concursos findos não impugnados ou cuja impugnação já foi definitivamente decidida.
Decisão
Pelo exposto:a) Declara-se, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas contidas nas alíneas f) e l) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto Regulamentar 53/97, de 9 de Dezembro, por violação do disposto no artigo 30.º, n.º 4, da CRP;
b) Nos termos do artigo 282.º, n.º 4, da CRP, ressalvam-se, por motivos de segurança jurídica, os efeitos produzidos até à publicação deste acórdão pelas normas cuja declaração de inconstitucionalidade agora se opera, sem prejuízo dos casos ainda susceptíveis de impugnação ou que dela se encontrem pendentes.
Lisboa, 22 de Abril de 2008. - João Cura Mariano - Vítor Gomes - José Borges Soeiro - Ana Maria Guerra Martins - Joaquim de Sousa Ribeiro - Mário José de Araújo Torres - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral - Maria João Antunes - Carlos Pamplona de Oliveira (vencido conforme declaração) - Rui Manuel Moura Ramos.
Declaração de voto
Vencido quanto à alínea a) da decisão por entender que as normas em análise não são desconformes com a Constituição, designadamente com o disposto no n.º 4 do seu artigo 30.º, pois visam - respeitando claramente o princípio da proporcionalidade - estabelecer um mero requisito ao exercício desta profissão.Para além disso, os requisitos negativos em análise não constituem obstáculos perpétuos ao exercício da profissão, pois - embora no acórdão nada se pondere sobre o assunto - as formas de reabilitação genericamente previstas no nosso ordenamento jurídico permitem estabelecer um limite temporal à proibição em causa. - Carlos Pamplona de Oliveira.