Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 303/2005/T, de 5 de Agosto

Partilhar:

Texto do documento

Acórdão 303/2005/T. Const. - Processo 242/2005. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - 1 - Paulo Manuel Martins da Silva, melhor identificado nos autos, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra do Acórdão do colectivo do Tribunal Judicial da Comarca de Águeda de 29 de Março de 2004, que o condenou, como autor material e em concurso real, pela prática de:

1 crime de condução ilegal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.os 1 e 2, da Lei 2/98, na pena de 6 meses de prisão;

6 crimes de uso de documento de identificação alheio, previsto e punido no artigo 261.º do Código Penal, na pena de 3 meses de prisão cada um;

12 crimes de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.os 1, alínea a), e 3, do Código Penal, na pena de 15 meses por cada crime de falsificação de bilhetes de identidade (BI) e de números de identificação fiscal (NIF) e de 12 meses de prisão por cada um dos demais crimes;

13 crimes de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão por cada um;

1 crime de burla agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código Penal, na pena de seis anos de prisão.

Operando o respectivo cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 12 anos de prisão.

O Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão de 29 de Setembro de 2004, decidiu julgar parcialmente provido o recurso, absolvendo o arguido dos crimes de uso de documento de identificação alheio, previsto e punido pelo artigo 261.º do Código Penal e, reformulando o cúmulo jurídico, condenou-o na pena de 11 anos e 6 meses de prisão.

Inconformado, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando na respectiva motivação, além do mais, a inconstitucionalidade da interpretação do alcance da definição legal do conceito de documento de identidade do artigo 255.º, alínea a), do Código Penal, e sustentando a recusa de aplicação da jurisprudência uniformizada dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, porque a dimensão interpretativa dos artigos 256.º e 217.º, nela vazada, viola o artigo 29.º, n.º 5, da nossa lei fundamental.

O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 3 de Março de 2005, concedeu parcial provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido no que respeita à pena unitária, reduzindo-a para 10 anos de prisão.

2 - É deste último acórdão que o arguido interpõe o presente recurso, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, no qual pretende que sejam julgadas inconstitucionais, na interpretação que lhes conferiu o Supremo Tribunal de Justiça::

a) A norma do artigo 255.º, alínea a), do Código Penal (conceito legal de documento) por violação dos artigos 2.º, 29.º, n.º 1, 202.º, n.º 1, 203.º e 204.º, todos da Constituição;

b) A norma dos artigos 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, e 256.º, n.º 1, do Código Penal (concurso efectivo entre os crimes de burla e falsificação de documentos), por violação dos artigos 2.º, 29.º, n.º 5, 202.º, n.º 1, 203.º e 204.º, todos da Constituição da República Portuguesa.

3 - Admitido o recurso no Tribunal a quo, foram os autos remetidos ao Tribunal Constitucional, tendo o relator determinado a notificação das partes para alegações.

O recorrente apresentou alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

"III - Pretende-se que seja declarada inconstitucional a interpretação levada a cabo pelo Supremo Tribunal de Justiça da norma do artigo 255.º do Código Penal:

'Documento: a declaração corporizada em escrito, original ou mera reprodução mecânica, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que permita reconhecer o emitente, podendo a mesma não ser idónea em abstracto para provar facto juridicamente relevante, desde que alguém lhe possa erroneamente atribuir esse valor probatório em concreto.'

IV - In casu está provado que: 'o arguido, na posse dos BI e NIF de terceiros, colava a sua fotografia nas fotocópias dos BI daqueles e alterava alguns dados constantes no verso do documento, designadamente data de nascimento, estado civil, mediante a colagem nestes locais de cópias dos dados constantes no seu BI verdadeiro ou outros, fotocopiando de seguida os documentos assim forjados de forma a obter cópias dos mesmos'.

V - Por força da instrução 48/96 do Banco de Portugal, as operações de abertura de conta efectuadas pelo arguido, munido apenas de cópias de fotocópias do BI, só deveriam ter sido efectuadas após exibição do BI original.

VI - Os funcionários bancários, que sabiam estarem perante fotocópias a preto e branco, desrespeitaram a norma que estabelecia qual o documento idóneo para fazer prova da identidade do cliente.

VII - Não se pode equiparar idoneidade para provar um facto juridicamente relevante (adequação em abstracto do documento aferido ex ante) com o sucesso empírico obtido pelo arguido (êxito em concreto verificado a posteriori).

VIII - A mera fotocópia, não autenticada, não é uma segunda via do original que esteve na sua origem, nem um BI provisório (únicos documentos aptos a substituir, nos termos previstos na Lei 33/99, de 18 de Maio, um BI original), não tendo por isso o valor probatório deste.

IX - Consequentemente, uma fotocópia do BI ou do NIF não é um meio idóneo para provar a identidade do portador da mesma, nenhuma autoridade ou entidade deverá aceitar a mesma como prova nesse sentido e se, porventura, o fizer, comete um erro que não tem a virtude de tornar legítimo esse 'documento' como meio idóneo para prova da identidade.

X - Pelo que uma fotocópia adulterada dessa fotocópia não pode, nem deve, ser qualificada como falsificação de documento, porque foi obtida através da reprodução mecânica de um não documento (suporte material não apto a provar factos juridicamente relevantes).

XI - Pelo que deve a referida interpretação, em função de tudo aquilo que já foi referido, ser considerada inconstitucional (por desrespeito do artigo 29.º, n.º 1, da CRP) por violar o princípio da tipicidade e da legalidade criminal, dado estarem excluídas do referido preceito as fotocópias.

XII - Caso assim não se entenda, então a norma do artigo 255.º, alínea a), do CP deverá ser julgada inconstitucional (ao abrigo do mesmo artigo da nossa lei fundamental) por possuir um teor incriminatório extremamente vago, quando conjugado com o crime de falsificação, que não permite a delimitação exacta das situações abrangidas.

XIII - Com efeito, a interpretação supra-referida do artigo 255.º, alínea a), do CP deve ser declarada inconstitucional, por violação das seguintes disposições, todas da Constituição da República Portuguesa:

Artigo 2.º, uma vez que ofende o subprincípio da confiança inerente ao princípio do Estado de direito democrático;

Artigo 29.º, n.º 1, porquanto o tribunal recorrido acabou por fazer uma aplicação analógica, não assumida, do preceito em causa;

Artigo 202.º, n.º 1, na medida em que, assim, se impede a administração da justiça, a qual é um dever;

Artigo 203.º, pois excepciona a sujeição do tribunal à lei vigente; e ainda

Artigo 204.º, já que aplica normas inconstitucionais.

XIV - Pretende-se ainda que seja apreciada a conformidade constitucional da interpretação conjugada das normas dos artigos 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, e 256.º, n.º 1, alínea a), do CP, devendo julgar-se inconstitucional (por violação do estatuído no artigo 29.º, n.º 5, da CRP) a dupla valoração e punição que resulta do concurso efectivo entre os crimes de burla e falsificação de documentos.

XV - O acórdão recorrido interpretou e aplicou as normas conjugadas dos artigos 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, e 256.º, n.º 1, alínea a), do CP, com o seguinte sentido e alcance:

'Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido em concurso efectivo pelos crimes de burla e falsificação de documentos desde que esta tenha sido o artifício concretamente utilizado.'

XVI - O argumento da disparidade dos bens jurídicos tutelados pelos crimes em concurso é irrelevante, uma vez que a homogeneidade do bem jurídico está longe de ser conditio sine qua non do concurso aparente de infracções, existindo múltiplos exemplos nesse sentido.

XVII - A questão não está, no que ao caso concreto importa, na similitude ou diferença dos bens jurídicos protegidos. O problema reside, antes, em saber se uma determinada conduta, melhor, um 'pedaço de vida' que integra uma determinada conduta criminalmente relevante, está ou não contida em outro comportamento típico mais abrangente.

XVIII - Sucede que um mesmo 'pedaço da vida' acaba por ser duplamente valorado, censurado e punido quando se condena alguém pela prática, em concurso efectivo, de um crime de falsificação de documento e por um outro de burla. Uns factos (a falsificação do documento) se traduzem num crime-meio que visa, sem qualquer autonomia, a obtenção de um crime-fim (a burla), do qual a falsificação é completamente instrumental e dependente.

XIX - A supra-referida interpretação conjugada dos artigos 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, e 256.º, n.º 1, alínea a), do CP deve ser declarada inconstitucional, por violação das seguintes disposições, todas da Constituição da República Portuguesa:

Artigo 2.º, uma vez que ofende o subprincípio da confiança inerente ao princípio do Estado de direito democrático;

Artigo 29.º, n.º 5, porquanto o tribunal recorrido acabou por valorar e punir criminalmente duas vezes o mesmo facto através da convocação de normas penais diferentes, numa clara violação do princípio ne bis in idem;

Artigo 202.º, n.º 1, na medida em que, assim, se impede a administração da justiça, a qual é um dever;

Artigo203.º, pois excepciona a sujeição do tribunal à lei vigente; e ainda

Artigo 204.º, já que aplica normas inconstitucionais.

XX - Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade, das normas dos artigos 255.º, alínea a), 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, e 256.º, n.º 1, alínea a), do CP, quando objecto das interpretações supra-referidas levadas a cabo no aresto recorrido, com a consequente projecção dos respectivos efeitos a nível do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de modo que o recurso interposto pelo arguido seja apreciado novamente por aquele Tribunal Superior, que deverá acatar o juízo de inconstitucionalidade expresso, reformulando, em conformidade, o cúmulo jurídico. Se assim se fizer, será feita justiça."

O Ministério Público contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

"1.ª Não constitui questão de inconstitucionalidade normativa, sindicável pelo Tribunal Constitucional, a que se traduz em aferir se certa interpretação judicial do conceito penal de 'documento' extravasa ou não o âmbito da definição legal, de modo a traduzir a realização de uma aplicação analógica não assumida do preceito em causa, violadora dos princípios da tipicidade e da legalidade, constantes do n.º 1 do artigo 29.º da CRP.

2.ª A definição do conceito penal de 'documento' é suficientemente densificada e precisa, não possibilitando qualquer 'teor incriminatório extremamente vago', susceptível de afrontar os princípios da legalidade, da segurança e da confiança jurídica.

3.ª Não viola o princípio constitucional da proibição do 'duplo julgamento' pelo 'mesmo crime' a interpretação normativa que, baseando-se essencialmente na diversidade e autonomia dos bens jurídicos tutelados pelos crimes de falsificação de documento e de burla (matéria insindicável por este Tribunal, por exclusivamente ligada à interpretação e aplicação do direito ordinário, da competência dos tribunais judiciais) considera ocorrer concurso real, e não aparente, entre tais crimes.

4.ª Termos em que deverá improceder o presente recurso."

Notificado para se pronunciar sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, o recorrente pugna pelo conhecimento do recurso em toda a extensão contida nas alegações.

Cumpre decidir.

II - 4 - De acordo com o requerimento de interposição e as respectivas alegações, são as seguintes as questões de constitucionalidade que o recorrente pretende ver apreciadas:

a) A norma do artigo 255.º, alínea a), do Código Penal, na interpretação dada na decisão recorrida, no sentido de que constitui documento a declaração corporizada em escrito, original ou mera reprodução mecânica, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que permita reconhecer o emitente, podendo a mesma não ser idónea em abstracto para provar facto juridicamente relevante, desde que alguém lhe possa erroneamente atribuir esse valor probatório em concreto, por violação dos artigos 2.º, 29.º, n.º 1, 202.º, n.º 1, 203.º e 204.º, todos da Constituição;

b) A interpretação conjugada das normas dos artigos 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, e 256.º, n.º 1, do Código Penal, feita no mesmo aresto no sentido em que permite a punição em concurso efectivo pelos crimes de burla e falsificação de documentos desde que esta tenha sido o artifício concretamente utilizado, por violação dos artigos 2.º, 29.º, n.º 5, 202.º, n.º 1, 203.º e 204.º, todos da Constituição.

5 - Relativamente ao crime de falsificação de documentos e à questão da constitucionalidade da norma da alínea a) do artigo 255.º do Código Penal, é do seguinte teor a decisão recorrida:

"A) Alega o recorrente que a simples fotocópia não autenticada não constitui meio idóneo para fazer prova da identidade do seu portador. Por conseguinte, o arguido deve ser absolvido de todos os crimes de falsificação de documentos que envolveram o uso do BI (dado que nunca adulterou um BI original ou tentou apresentar um outro documento como se de BI original se tratasse).

Acontece que o arguido, de acordo com a matéria de facto provada, ao forjar e utilizar do modo descrito os documentos em referência, ainda que por cópia ou fotocópia com colagem de fotografias ou montagem de dados sobrepostos e abusando das assinaturas de terceiros, fazendo-se passar por estes, tinha plena consciência de que em tudo deturpava a verdade dos factos que esses mesmos documentos tinham por fim certificar, pondo em causa a credibilidade pública dos mesmos, sendo que agiu consciente e livremente e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

A montante desta questão, assinale-se que a problemática das instruções do Banco de Portugal relativamente às aberturas de conta (exibição do original do BI para tal efeito), enquanto e se não cumpridas pelo funcionários bancários, são estranhas ao caso sub juditio, antes envolvendo as respectivas relações internas, interpartes, eventualmente envolventes de responsabilidade disciplinar ou mesmo criminal.

In casu, estamos perante a utilização da fotocópia como o meio técnico que nos permite a falsificação. O documento, em vez de ser falsificado através de impressão de um novo documento, é fotocopiado, criando-se um documento distinto do original. Ou seja, a alteração do conteúdo de um documento, quer esta alteração se tenha verificado porque o agente imprimiu um novo documento (com conteúdo distinto do documento original), ou porque o agente o fotocopiou, é irrelevante para efeitos penais, na verdade, em todos os casos trata-se de uma falsificação material do documento. Na verdade, a utilização da fotocópia é a utilização do documento falsificado e neste sentido deve ser subsumível ao crime de falsificação de documentos; sendo, no entanto, necessário que a fotocópia tenha sido produzida a partir do original e que tenha a aparência do original. Daí estarmos em presença de um documento precisamente para este efeito, o da alínea a) do artigo 255.º do CP, o crime de falsificação de documento.

Como refere o acórdão recorrido:

'Começaremos por dizer que não nos podemos esquecer que a fotocópia de BI, antes de ser documento de identificação, é documento, integrando-se na definição da alínea a) do artigo 255.º do CP.

Além disso, é decisiva a determinação exacta de cada um dos conceitos definidos no artigo 255.º do CP, já que constituem elementos normativos do tipo de ilícito objectivo. Tal significa que o agente tem que sobre eles possuir um mínimo de conhecimento para que a sua actuação integra o tipo subjectivo de ilícito.

No caso, o arguido sabia que a fotocópia do BI era e foi suficiente para atingir os seus intentos.

Como defende Helena Moniz, ob. cit., p. 667, documento para efeitos de direito penal, não é o material que corporiza a declaração, mas a própria declaração, independentemente do material em que está corporizada.

O que interessa é que se trate de um documento que integre uma declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante.'

Constituindo a falsificação de documento (artigo 256.º do CP) uma falsificação da declaração incorporada no documento, no caso dos autos perfila-se a denominada falsificação material, consistente em alteração, modificação total ou parcial do documento. Neste caso, o agente apenas pode falsificar o documento imitando ou alterando algo que está feito segundo uma certa forma; quer imitando quer alterando, o agente tem sempre uma certa preocupação: dar a aparência de que o documento é genuíno e autêntico.

Apontando para a ideia de que o bem jurídico do crime de falsificação de documentos é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental, face à extensa e pormenorizada matéria de facto provada, conclui-se que, na verdade, o recorrente cometeu os crimes de falsificação de documentos, previstos e puníveis no artigo 256.º, n.os 1, alínea a), e 3, do CP, por que foi condenado.

B) A inconstitucionalidade (por desrespeito do artigo 29.º, n.º 1, da CRP) da interpretação do conceito de documento (artigo 255.º do CP), dada pelo Tribunal a quo, por violar o princípio da tipicidade e da legalidade criminal.

Estabelece o artigo 29.º, n.º 1, da CRP que:

'Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.'

Face ao decidido no item anterior, considerando as fotocópias utilizadas pelo recorrente como 'documento', logo integrado na definição legal proposta no artigo 255.º do CP, inexiste qualquer violação, seja do princípio da tipicidade, seja do princípio da legalidade, bem como inequivocamente afastado se revela qualquer recurso à analogia."

6 - Importa reter que a decisão recorrida considerou estar provado que o arguido, na posse dos BI e NIF de terceiros, colava a sua fotografia nas fotocópias dos BI daqueles e alterava alguns dados constantes do verso do documento, designadamente data de nascimento e estado civil, mediante a colagem nestes locais de cópias dos dados constantes do seu BI verdadeiro ou outros, fotocopiando de seguida os documentos assim forjados de forma a obter cópias dos mesmos, ou seja, através de montagens de fotocópias dos referidos documentos forjava novos BI ou NIF apondo outra fotografia, alterando o respectivo número ou, quando necessário, datas de nascimento, estado civil, entre outras, documentos que exibiu em diversas circunstâncias, utilizando essas identidades falsas, abusando ainda de assinaturas de terceiros.

Neste contexto fáctico, que se estava perante a utilização da fotocópia como meio técnico que permite a falsificação e que a utilização da fotocópia é a utilização do documento falsificado, desde que produzida a partir do original e que tenha a aparência do original. Daí ter-se concluído estarmos em presença de um documento para os efeitos da alínea a) do artigo 255.º do Código Penal.

Diferente entendimento tem o recorrente, que considera que a mera fotocópia, não autenticada, não é uma segunda via do original que esteve na sua origem, nem um BI provisório, não tendo por isso o valor probatório deste, e, consequentemente, uma fotocópia do BI ou do NIF não é um meio idóneo para provar a identidade do portador da mesma, nenhuma autoridade ou entidade deverá aceitar a mesma como prova nesse sentido e se, porventura, o fizer, comete um erro que não tem a virtude de tornar legítimo esse "documento" como meio idóneo para prova da identidade.

Assim, conclui que uma fotocópia adulterada dessa fotocópia não pode, nem deve, ser qualificada como falsificação de documento, porque foi obtida através da reprodução mecânica de um não documento (suporte material não apto a provar factos juridicamente relevantes) e, por isso, deve a referida interpretação, em função de tudo aquilo que já foi referido, ser considerada inconstitucional (por desrespeito do artigo 29.º, n.º 1, da CRP) por violar o princípio da tipicidade e da legalidade criminal, dado estarem excluídas do referido preceito as fotocópias.

Assim, a questão colocada traduz-se em saber se conceito de documento acolhido no aresto recorrido extravasa, ou não, o âmbito da delimitação daquele conceito consagrado na norma do artigo 255.º do Código de Processo Penal. Dito de outro modo, se esse alcance da norma foi determinado com violação do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição.

7 - Ora, relativamente a esta problemática, suscitou o Ministério Público a questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso, considerando que não constitui questão de inconstitucionalidade normativa, sindicável pelo Tribunal Constitucional, a que se traduz em aferir se certa interpretação judicial do conceito penal de "documento" extravasa ou não o âmbito da definição legal, de modo a traduzir a realização de uma aplicação analógica, não assumida, do preceito em causa, violadora dos princípios da tipicidade e da legalidade, constantes do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.

Responde o recorrente afirmando que fez um pedido de declaração de inconstitucionalidade em termos abstractos e generalizantes dirigido à norma geral em crise e não à decisão qua tale, sendo que o apelo que na motivação e conclusões do recurso fez ao teor da decisão recorrida se deveu ao facto de nos encontrarmos no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, "pelo que o apelo à interpretação levada a cabo pelo Tribunal a quo na concreta decisão recorrida não só é francamente aconselhável (a título de exemplo que facilita a compreensão e consequências da concreta inconstitucionalidade suscitada), mas é absolutamente necessário (a título de pressuposto de qualquer recurso)".

Como é sabido, o Tribunal Constitucional, confrontado com a questão de saber se constitui uma questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de integrar o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, a realização de uma interpretação alegadamente extensiva ou analógica de normas vigentes em áreas que, como o direito penal, estão submetidas ao princípio da legalidade, nem sempre lhe deu a mesma resposta. Uma apreciação mais desenvolvida da evolução da jurisprudência do Tribunal sobre esta questão foi feita pelo Acórdão 674/99 (Diário da República, 2.ª série, de 25 de Fevereiro de 2000) e mais recentemente retomada no Acórdão 494/2003, (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 27 de Novembro de 2003), cujos termos é desnecessário repetir.

De modo decisivo, embora a propósito da sindicabilidade de interpretações normativas alegadamente violadoras do princípio da legalidade tributária, a mesma questão foi submetida ao plenário do Tribunal, que, embora por maioria, apenas atribuiu natureza de questão de constitucionalidade normativa, compreendida nos poderes de cognição do Tribunal em fiscalização concreta, às hipóteses em que seja questionado o resultado alcançado, com autonomia relativamente ao processo interpretativo seguido, considerando que já está fora deles o que consista em saber se o Tribunal a quo respeitou, na determinação do conteúdo da norma, as limitações constitucionalmente impostas pelo princípio da legalidade (Acórdão 196/2003, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 16 de Outubro de 2003).

Não se vislumbrando razões para rever este entendimento, apenas resta concluir pelo não conhecimento do recurso no que respeita à questão da violação do princípio da tipicidade.

Aliás, mesmo para quem entenda que já será possível ao Tribunal Constitucional sindicar, na perspectiva do referido princípio da legalidade ou tipicidade, o critério ou processo interpretativo seguido pela decisão impugnada para obtenção da norma aplicada, desde que ela própria se expresse em tais moldes que dispense o Tribunal Constitucional de fixar substitutivamente o sentido das palavras e conceitos utilizados na fattispecie, porque aí já não haverá o risco de esvaziamento da competência dos "tribunais da causa" no que concerne à interpretação do direito infraconstitucional neste domínio normativo (cf. Carlos Lopes do Rego, "O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade: As interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional", Jurisprudência Constitucional, n.º 3, pp. 11-15), no caso presente continuaria a não poder conhecer-se do recurso nesta parte.

Com efeito, não se vislumbra na decisão recorrida a enunciação de um critério interpretativo, de índole generalizante, explicitamente adoptado pelo Tribunal recorrido e destacável do caso concreto como inovatório ou criativo em relação à definição legal em causa.

8 - Para a hipótese de fracasso da alegada violação do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição, o recorrente sustenta que a norma do artigo 255.º, alínea a), do Código Penal deverá ser julgada inconstitucional por possuir um teor incriminatório extremamente vago, quando conjugado com o crime de falsificação, por tal forma que não permite a delimitação exacta das situações abrangidas (conclusões XII e XIII das alegações). Pretende que a questão da constitucionalidade da alínea a) do artigo 255.º do Código Penal seja apreciada sob o filtro do artigo 2.º da Constituição (princípio da precisão ou determinabilidade dos actos normativos), neste domínio legislativo particularmente exigente. Na verdade, os artigos 202.º, n.º 1, 203.º e 204.º da Constituição, também invocados, contendo princípios gerais respeitantes aos tribunais, são manifestamente estranhos ao caso, uma vez que não está em apreciação nenhuma norma sobre cujo conteúdo ou procedimento de formação tais princípios possam incidir. Ser um ou outro o conceito de documento para efeitos penais não tem qualquer relação com a competência dos tribunais para administrar a justiça ou com a sua independência ou sujeição à lei, nem lhes retira o poder ou os dispensa do dever funcional de apreciação difusa da constitucionalidade.

Sucede que, com esta extensão, se operaria uma modificação no objecto inicial do recurso de constitucionalidade, tal como o recorrente o indicou no requerimento de interposição. Efectivamente, neste requerimento, o recorrente definiu o objecto do recurso, indicando, como era seu ónus, como norma sujeita a apreciação a da alínea a) do artigo 225.º do Código Penal, na particular interpretação que lhe foi conferida pelo acórdão recorrido. O que, aliás, é perfeitamente explicável se o que se pretende censurar ao Supremo Tribunal de Justiça é ter-se desviado, em infracção ao princípio da tipicidade, do conteúdo de documento contido no preceito. Agora, a questão sujeita teria de ser necessariamente outra. O que está em causa é já não a validade constitucional da norma a que o acórdão recorrido chegou e mediante a qual concluiu que, para este efeito, as manipulações do recorrente incidiram sobre um documento, mas a idoneidade da nua definição contida no preceito que, pela sua vaguidade ou imprecisão, não seria idónea para cumprir a exigência de segurança jurídica que em matéria de normas incriminadoras penais se expressa pelo princípio da tipicidade. Trata-se de uma questão de constitucionalidade totalmente diversa, que não incide sobre o mesmo "conteúdo normativo" e que o recorrente apresenta inovatoriamente nas alegações.

Ora, isto não consiste em fazer apreciar a mesma questão de constitucionalidade sob um outro parâmetro, mas numa modificação do objecto do recurso, em termos que não são permitidos pelas disposições conjugadas dos artigos 69.º, n.º 1, e 75.º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional e do artigo 684.º do Código de Processo Civil, pelo que também destas conclusões do recurso se não conhece

9 - Quanto à questão do concurso real de infracções entre o crime de burla e de falsificação de documentos, entendeu o acórdão recorrido o seguinte:

"D) O concurso entre os crimes de burla e de falsificação [destaque nosso].

Na tese do recurso, suposta a unicidade de resolução criminosa, afigura-se inequívoco que o 'crime-meio' (falsificação) está contido no 'crime-fim' (burla).

Por outro lado, a diversidade de bens jurídicos tutelados por estas incriminações não afasta a consunção.

Assim, o recorrente deveria ter sido condenado pela prática de um único crime de burla na forma continuada, artigos 217.º e 30.º do CP, que consumiria, por existir uma relação de concurso aparente, os vários crimes, todos eles instrumentais, de falsificação de documento.

Vindo a acrescentar que os acórdãos uniformizadores de jurisprudência não constituem jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, já que tal entendimento viola os princípios constitucionais de independência dos magistrados judiciais e o princípio da separação de poderes, impondo-se, assim, a recusa da aplicação da referida jurisprudência uniformizada nos termos do artigo 204.º da CRP, porque a dimensão interpretativa dos artigos 256.º e 217.º do CP, nela vazada, viola o artigo 29.º, n.º 5, da mesma CRP.

O Acórdão este Supremo Tribunal n.º 8/2000, de 4 de Maio, in Diário da República, 1.ª série-A, n.º 119, de 23 de Maio de 2000, fixou jurisprudência no sentido de que 'no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.º, n.º 1, respectivamente, do CP, revisto pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crime'.

E fê-lo com base no argumento ne bis in idem, que foi o 'cavalo de batalha' da jurisprudência que ficou vencida e que durante anos andou a ser esgrimida até ao aparecimento do primeiro acórdão uniformizador.

Recorde-se que já por Acórdão de 19 de Fevereiro de 1992, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 9 de Abril de 1992, o Supremo Tribunal de Justiça fixara jurisprudência no sentido de que, 'no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 228.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 313.º, n.º 1, respectivamente, do CP, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes'.

E em 4 de Maio de 2000, o Supremo Tribunal, ao uniformizar a jurisprudência, reportou-se novamente à questão do ne bis idem, nestes termos:

'Parece não suscitar dúvidas de que continuam a ser diferentes os bens jurídicos tutelados pelos artigos 217.º, n.º 1, e 256.º, n.º 1, do Código Penal de 1995.'

Como se escreveu já no Acórdão deste Supremo de 16 de Junho de 1999, processo 577/99:

"Ora, nem no Código Penal de 1982 nem no de 1995 existe qualquer disposição que ressalve o concurso da burla com a falsificação (enquanto meio de realização daquela) do regime geral estatuído no artigo 30.º: 'o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente'.

Logo, sendo distintos os bens jurídicos tutelados pelos tipos legais de crime de burla (o património) e de falsificação de documento (que não será tanto a fé pública dos documentos [...] mas, antes, 'a verdade intrínseca do documento enquanto tal' (cf. F. Dias e Costa Andrade, 'O legislador de 1982 optou pela descriminalização do crime patrimonial de simulação', Colectânea de Jurisprudência, ano VIII, vol. III, p. 23) ou 'a verdade da prova documental enquanto meio que consente a formulação de um juízo exacto, relativamente a factos que possam apresentar relevância jurídica' (cf. Malinverni, Enciclopedia del Diritto, vol. XIII, pp. 632-633) e não se verificando, entre eles, qualquer relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção nem se configurando nenhum dos crimes em relação ao outro como facto posterior não punível [...] deve continuar a concluir-se que a conduta do agente que falsifica um documento e o uso, astuciosamente, para enganar ou induzir em erro o burlado integra (suposta, naturalmente, a verificação de todos os elementos essenciais de cada um dos tipos), efectivamente, em concurso real, um crime de falsificação de documento e um crime de burla."

Isto posto, diga-se que o argumento essencial que o recorrente utiliza não é novo, pois já foi largamente ponderado pelo Supremo Tribunal de Justiça em dois acórdãos uniformizadores com a mesma orientação, o último dos quais é demasiado recente para ser necessária qualquer reformulação.

Deste modo, há que confirmar a qualificação jurídica dos factos provados por consentânea com a jurisprudência uniformizadora deste Supremo Tribunal."

Ou seja, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a jurisprudência fixada pelo Acórdão de uniformização n.º 8/2000 (publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 23 de Maio de 2000), no sentido de que "no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes" (acórdão este que, aliás, já secundara a doutrina que havia sido fixada, perante a versão anterior do Código, pelo Acórdão de uniformização de jurisprudência de 19 de Fevereiro de 1992, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 9 de Abril de 1992).

Este entendimento do Supremo radica no facto de serem distintos os bens jurídicos tutelados pelos tipos legais de crime de burla (o património) e de falsificação de documento (a "fé pública" ou a verdade da prova nele contida) e de não se verificar qualquer relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção, nem se configurar nenhum dos crimes em relação ao outro como facto posterior não punível. Por isso, concluiu-se no aresto recorrido que "a conduta do agente que falsifica um documento e o usa, astuciosamente, para enganar ou induzir em erro o burlado integra, em concurso real, um crime de falsificação de documento e um crime de burla".

Diferente é a perspectiva do recorrente, que entende que uma tal interpretação normativa, que abrange as normas dos artigos 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, e 256.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, ao punir em concurso efectivo por crime de burla e falsificação de documentos, quando a falsificação tenha sido o artifício concretamente utilizado, está a punir o agente duas vezes pelo mesmo facto, sendo, por isso, inconstitucional, por violação dos artigos 2.º, 29.º, n.º 5, 202.º, n.º 1, 203.º e 204.º da Constituição.

10 - Importa, desde já, referir que não integra o âmbito do presente recurso a questão de saber se as condutas do arguido são ou não subsumíveis a cada um dos tipos legais de burla e falsificação de documentos e quais os elementos em que se analisa cada um desses tipos legais, nem o modo como devem ser interpretadas e aplicadas as normas infraconstitucionais respeitantes à teoria do concurso (de crimes e de normas penais), mas apenas se, ao atribuir a tal bloco normativo um sentido que leva a punir tais condutas em concurso efectivo, são violados os princípios constitucionais invocados pelo recorrente. Por outro lado, desde já se adianta que, dos preceitos constitucionais a esse propósito indicados pelo recorrente como violados, só apresenta viabilidade a consideração dos artigos 2.º e 29.º, n.º 5, da Constituição, sendo também aqui irrelevante a referência aos artigos 202.º, n.º 1, 203.º e 204.º do texto constitucional, por manifestamente estranhos ao domínio legislativo em análise.

11 - Nos termos do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa "[n]inguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime", dando-se, assim, dignidade constitucional expressa ao clássico princípio non bis in idem (ou ne bis in idem, na expressão mais universalmente utilizada).

Numa primeira concretização, a doutrina penalística costuma assinalar que o princípio tem uma vertente substantiva e outra processual. Sempre de um modo geral, designadamente sem entrar na consideração da pluralidade de ramos do direito sancionatório, pode dizer-se que, do ponto de vista substantivo, o princípio proíbe a plural imposição de consequências jurídicas sancionatórias sobre a mesma infracção; do ponto de vista processual, o non bis in idem determina a impossibilidade de reiterar, contra o mesmo sujeito, um novo julgamento (ou processo) por uma infracção penal sobre a qual se tenha firmado decisão de absolvição ou condenação.

O ne bis in idem processual - a proibição de sujeição a julgamento pelo "mesmo crime" em processos sucessivos - encontra o seu fundamento próximo na tutela da segurança ou da paz jurídica, inerente ao princípio do Estado de direito que não permite, mesmo com eventual sacrifício da justiça material, que o indivíduo, já condenado ou absolvido, possa viver permanentemente sob a espada de Damocles de uma nova perseguição penal e de uma eventual imposição de pena.

Outro há-de ser o fundamento para a vertente estritamente material do princípio, porque aí, sendo a dupla penalização simultânea, não é a afronta à paz jurídica que está em causa. O fundamento da proibição da plúrima punição pelo "mesmo crime" no âmbito do mesmo processo só pode encontrar-se em conjugação com os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas e das medidas de segurança, isto é, pela ideia de que, sendo as sanções penais aquelas que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que não se demonstre a sua necessidade, e que a "dupla penalização" materializa, só por si, a desnecessidade ou a desproporção (sobre o acolhimento constitucional do princípio da necessidade das penas, pode ver-se a jurisprudência elencada no n.º 8.1 do já referido Acórdão 494/2003).

Ora, aos diferentes fins de protecção correspondem diferentes pressupostos e consequências jurídicas, designadamente quanto ao que deve entender-se por "mesmo crime" para cada uma das duas vertentes do princípio (Cf. Ramón Garcia Albero, "Non bis in idem material", Concurso de Leyes Penales, pp. 24 e segs).

Sucede que o caso dos autos não coloca um problema de violação do princípio constitucional da proibição do "duplo julgamento" na vertente processual, pois o que está em causa é a alegada violação do princípio por "dupla penalização" do arguido, no âmbito do mesmo processo e por um só acto de julgamento, aspecto cuja cobertura pelo enunciado do princípio no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição não é isenta de dúvidas.

Para J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 194), depois de afirmarem que, como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), o non bis in idem obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de vários julgamentos do mesmo sujeito pelo mesmo crime, e que na clarificação do sentido do que deve entender-se por "prática do mesmo crime" tem de recorrer-se aos conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do direito e processo penais, o n.º 5 do artigo 29.º da Constituição "proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime". O mesmo entendimento parece ser o de Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, ed. da AAFDL, 1980, 1.º vol., p. 698, quando, a propósito da teoria, o concurso de normas e da sua articulação com o ne bis in idem, reconhecendo que aquilo que o texto do n.º 5 do artigo 29.º da Constituição dá é a versão adjectiva do princípio, afirma que isso "parece implicar também a força constitucional do significado substantivo do princípio, até na medida em que este é um dos fundamentos da importância do seu alcance adjectivo ou processual. Daí que a questão do chamado concurso de normas também possa ser vista como uma exigência deste princípio, e assim estudada."

De qualquer modo, o Tribunal Constitucional não tem recusado perspectivar pelo ângulo da violação do princípio ne bis in idem situações, como a presente, de punição em concurso efectivo de ilícitos criminais, pelo mesmo acto de julgamento, no âmbito do mesmo processo. Mas sempre concluiu que não era violado o referido princípio, assentando, precisamente, a sua argumentação na circunstância de os bens jurídicos tutelados serem distintos nos crimes em presença, como sucedeu nos Acórdãos n.os 102/99 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 1 de Abril de 1999) e 566/2004 (este inédito, mas disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), em que estavam em causa situações de concurso real entre os crimes de tráfico de estupefacientes e de associação criminosa, previstos nos artigos 21.º, n.º 1, e 28.º da Lei 15/93, de 22 de Janeiro, no primeiro caso, e de tráfico de estupefacientes e de outro crime, previstos nos artigos 21.º e 23.º daquela lei, no segundo.

Como se escreveu naqueles arestos:

"Verdadeiramente, pois, o que importa é saber se se está perante a 'prática do mesmo crime' ou perante um concurso efectivo de infracções, quer este concurso seja real, quer seja ideal (sobre todos estes conceitos, cf. Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, Coimbra).

É que, sendo o concurso de crimes efectivo, e não meramente aparente, a dupla penalização não viola o princípio constitucional do ne bis in idem. E isto, porque as sanções, que cada uma das normas penais que se encontram em concurso prevê, se destinam, cada uma delas, a punir a violação de um bem jurídico diferente; ou, então, porque o bem jurídico, que a mesma conduta viola por mais de uma vez, é um bem jurídico eminentemente pessoal. Em ambos os casos, não se está em presença do mesmo crime, embora se esteja em presença do mesmo facto ou da mesma acção delituosa, o que vale por dizer de uma mesma conduta naturalística.

Para decidir se existe um único crime ou um concurso efectivo de crimes, há que recorrer - recordam aqueles autores (ob. e loc. cit.), 'aos conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do direito e processo penais'."

Entretanto, dentro da mesma vertente material do princípio, o Tribunal Constitucional veio a entender que o princípio consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição podia ser aplicado, por analogia, a hipóteses de concurso de crimes e contra-ordenações "quando os bens jurídicos tutelados pelas respectivas normas sejam idênticos", pelo Acórdão 244/99 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Julho de 1999), em que estava em causa a norma do artigo 14.º do RJIFNA, "no sentido de consentir que a mesma factualidade comporte simultaneamente uma punição a título de crime e a título de contra-ordenação".

Também neste aresto, em que o concurso de infracções se estabelecia entre ilícitos de diferentes ramos punitivos, depois de salientar que não basta invocar a punição plural de um facto ou acção unitários para se ter como demonstrada uma violação do n.º 5 do artigo 29.º da Constituição, se afirma que o apuramento de tal violação pressupõe que as normas em causa sancionem, de modo duplo ou múltiplo, substancialmente a mesma infracção. A contrariedade ao princípio ne bis in idem depende assim da identidade do bem jurídico tutelado pelas normas sancionadoras concorrentes, ou do desvalor pressuposto por cada uma delas.

12 - Ora, os fundamentos constantes destes arestos são inteiramente transponíveis para o caso dos autos, pois o acórdão recorrido, como acima se salientou, também assentou a sua argumentação na circunstância de os bens jurídicos tutelados serem diferentes nos crimes em presença, nessa base afastando a tese do concurso aparente e afirmando a existência de concurso efectivo entre a burla e a falsificação de documentos, que foi instrumental para induzir a vítima em erro.

Nem, em bom rigor, o recorrente questiona tal pressuposto. O que sustenta é que tal argumento seria irrelevante, porque o que interessa é determinar se um mesmo "pedaço de vida" que "integra uma determinada conduta criminalmente relevante está ou não contida em outro comportamento típico mais abrangente".

Ora, não cabe ao Tribunal dizer qual é a melhor interpretação do direito ordinário quanto aos elementos integradores de cada tipo, de forma a concluir que se verifica uma situação de concurso aparente e não de concurso efectivo. Não estando em causa a vertente processual do princípio, que poderia exigir outro critério ou indagações complementares para determinação do que é "o mesmo crime" (designadamente com recurso aos institutos relativos ao objecto do processo), nada impede que o legislador configure o sistema sancionatório penal quanto ao concurso de infracções em matéria criminal segundo um critério de índole normativa e não naturalística, de modo que ao "mesmo pedaço da vida" corresponda a punição por tantos crimes quantos os tipos legais que preenche, desde que ordenados à protecção de distintos bens jurídicos, como é seguramente o caso dos que prevêem a burla e a falsificação de documentos. Não ficando a protecção de lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos merecedores de tutela penal esgotada ou consumida por um dos tipos que a conduta do agente preenche, não viola o princípio da necessidade das penas e, consequentemente, o ne bis in idem material, a punição em concurso efectivo (concurso ideal heterogéneo), mediante esse critério teleológico, do crime-meio e do crime-fim, porque cada uma das punições sanciona uma típica negação de valores pelo agente.

Deste modo, importa concluir que as normas dos artigos 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, e 256.º, n.º 1, do Código Penal, na interpretação que delas faz o acórdão recorrido, no sentido em que permite a punição em concurso efectivo pelos crimes de burla e falsificação de documentos, assente na distinção dos bens jurídicos tutelados pelos respectivos tipos legais, não ofende a Constituição, nomeadamente os artigos 2.º e 29.º, n.º 5, da lei fundamental.

13 - Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso de constitucionalidade, na parte que dele se conhece.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.

Lisboa, 8 de Junho de 2005. - Vítor Gomes - Gil Galvão - Bravo Serra - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza [com a indicação de que votei o não conhecimento da norma da alínea a) do artigo 255.º do Código Penal na interpretação que o recorrente atribui ao acórdão recorrido porque não foi com esse sentido que o preceito foi aplicado] - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2330507.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1993-06-03 - Lei 15/93 - Assembleia da República

    ALTERA, POR RATIFICAÇÃO, O DECRETO LEI NUMERO 166/92, DE 5 DE AGOSTO, QUE DEFINE O REGIME APLICÁVEL AO PESSOAL DOCENTE DAS ESCOLAS SUPERIORES DE ENFERMAGEM.

  • Tem documento Em vigor 1995-03-15 - Decreto-Lei 48/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, e procede à sua republicação.

  • Tem documento Em vigor 1998-01-08 - Lei 2/98 - Assembleia da República

    Estende aos magistrados do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça a coadjuvação por assessores e institui a assessoria a ambas as magistraturas nos tribunais de Relação e em certos tribunais de 1ª instância.

  • Tem documento Em vigor 1999-05-18 - Lei 33/99 - Assembleia da República

    Regula a identificação civil e a emissão do bilhete de identidade de cidadão nacional.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda