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Acórdão 252/2005/T, de 23 de Junho

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Texto do documento

Acórdão 252/2005/T. Const. - Processo 560/2001. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

A - Relatório. - 1 - JOFRASA - Sociedade Imobiliária, S. A., interpôs, junto do Tribunal Central Administrativo, recurso contencioso contra o despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de 12 de Agosto de 1997, que havia indeferido um recurso hierárquico deduzido contra as correcções efectuadas pela administração fiscal relativamente à matéria tributável de IRC declarada no ano de 1992.

O Tribunal Central Administrativo, por acórdão a fls. 192 e seguintes, negou provimento ao recurso por não se verificar qualquer vício dos que haviam sido, em alegações, imputados ao acto recorrido.

De tal decisão foi interposto recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, tendo a recorrente feito constar nas conclusões do alegado, entre outros, os seguintes argumentos:

"A) O douto acórdão recorrido é nulo, nos termos do disposto no artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC, ex vi artigo 1.º da LPTA, porquanto considera que as correcções efectuadas pelo acto foram feitas de acordo com a lei (artigo 57.º do CIRC) sem ter dado como provados os factos que suportam a referida decisão.

B) O artigo 57.º, n.º 1, do CIRC permite à administração fiscal efectuar correcções que sejam necessárias para a determinação do lucro tributável sempre que, em virtude das relações especiais entre o contribuinte e outra pessoa, sujeita ou não a IRC, tenham sido estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes, conduzindo a que o lucro apurado com base na contabilidade seja diverso do que se apuraria na ausência dessas relações.

C) Em direito fiscal, por força do princípio da legalidade previsto no artigo 106.º, n.º 2, da Constituição da República e dos princípios da tipicidade e determinação em que aquele se desdobra, as normas de incidência têm de ser predeterminadas no seu conteúdo, devendo os elementos integrantes da mesma estar formulados de modo preciso e determinado.

D) A determinação do conteúdo da norma tributária de incidência exclui a utilização de conceitos vagos e indeterminados, cuja aplicação ao caso concreto assenta em valoração subjectiva ou pessoal do órgão de aplicação, sob pena de ser postergada a segurança jurídica.

E) Não estando definidos na lei ordinária fiscal os conceitos de relações especiais e dos critérios que permitam determinar as condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes, a grande amplitude e a indeterminação do conteúdo desses conceitos permitem ao órgão de aplicação recorrer à arbitrariedade para fixar as correcções ao lucro tributável apurado com base na contabilidade, sacrificando-se assim a segurança jurídica, que se traduz na susceptibilidade de previsão objectiva, pelos particulares, das suas situações jurídicas futuras.

F) A norma do n.º 1 do artigo 57.º do CIRC estando formulada em termos vagos e imprecisos, com recurso a conceitos indeterminados, é uma norma materialmente inconstitucional, por ofensa do princípio da tipicidade e legalidade consagrado no citado artigo 106.º, n.º 2, da CRP.

G) O reconhecimento expresso no texto do acórdão recorrido de que a lei não esclarece o que deve entender-se por 'relações especiais' confirma o carácter indeterminado do conteúdo da norma e a necessidade de valorações subjectivas para fixação dos conceitos nela integrados.

H) A norma contida no artigo 57.º, n.º 1, do CIRC foi assim aplicada, mas é desconforme à Constituição, com o princípio da legalidade, vertido no seu n.º 2 do artigo 106.º, e como tal deverá ser declarada tal inconstitucionalidade."

O Supremo Tribunal Administrativo, por Acórdão de 6 de Junho de 2001, negou provimento ao recurso. Aí foram analisadas as questões suscitadas pela recorrente nos seguintes termos:

"Sustenta a recorrente que o artigo 57.º, n.º 2, do CIRC é inconstitucional, por violação do ex-artigo 106.º, n.º 2, da CRP, pois não define os conceitos de relações especiais e dos critérios que permitam determinar as condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes, tendo em conta a grande amplitude destes conceitos e a sua indeterminação, os quais permitem ao Fisco recorrer à arbitrariedade para fixar as correcções do lucro tributável apurado com base na contabilidade, sacrificando-se assim a segurança jurídica, que se traduz na susceptibilidade de previsão objectiva pelos particulares das suas situações futuras. A recorrente não concorda com esses termos vagos e imprecisos nem com o recurso a conceitos indeterminados por parte do legislador fiscal, pelo que entende ter sido ofendido o princípio da tipicidade.

Resulta desta norma [artigo 57.º, n.º 1, do CIRC] que relações especiais são as que se tenham estabelecido em condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes. Logo, o conceito de relações especiais está definido em função do conceito de pessoas independentes. Este conceito de relações especiais volta a estar definido da mesma forma pelo artigo 80.º, alínea b), do Código de Processo Tributário.

Como ensinou o Prof. Casalta Nabais, o princípio constitucional da legalidade não impede em absoluto que a norma, mormente por razões de praticabilidade em que sobressai a luta eficaz contra a fraude e a evasão fiscais, utilize nesse domínio conceitos indeterminados ou se socorra mesmo da atribuição de discricionariedade à administração fiscal. Diz esse fiscalista que o artigo 57.º do CIRC, sobre relações especiais, é um dos casos em que a lei concede uma verdadeira faculdade discricionária à administração fiscal.

Logo, não estamos em face de um verdadeiro conceito indeterminado, pois ele tem alguma determinação: relações especiais são aquelas que não têm lugar entre pessoas independentes. Mas o Fisco é que vê, caso por caso, quando é que há verdadeiras relações especiais, sem prejuízo de os tribunais tributários poderem controlar os casos de erro manifesto do Fisco.

Ora, tendo em conta os factos dados como provados, não parece ter havido erro manifesto por parte do Fisco. Desde logo, tenha-se em conta que um terreno foi vendido em 1992 pelo preço por que fora comprado em 1973, o que contraria todas as regras da experiência da vida.

Deste modo, o artigo 57.º, n.º 1, do CIRC não é inconstitucional.

Sustenta a recorrente que o referido preceito não diz o que se deve entender por relações especiais. Mas se a recorrente reparar bem, esse preceito diz que relações especiais são aquelas que são diferentes das que seriam normalmente estabelecidas entre pessoas independentes."

2 - Inconformado com tal decisão, a recorrente veio, ao abrigo da alínea b) do artigo 70.º da Lei de Organização e Processo do Tribunal Constitucional, interpor recurso para este Tribunal e, pretendendo "ver apreciada a inconstitucionalidade das normas do artigo 57.º, n.os 1 e 2, do Código do IRC, aprovado pelo Decreto-Lei 442-B/88, de 30 de Novembro", formulou as seguintes conclusões:

"1 - Estabelece o texto constitucional, no artigo 103.º, n.º 2 (ex-artigo 106.º, n.º 2), a obrigatoriedade de os impostos serem criados por lei e de esta determinar 'a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes'.

2 - Por força do princípio da legalidade tributária, as normas de incidência têm de ser predeterminadas no seu conteúdo, devendo os elementos integrantes da mesma estar formulados de modo preciso e determinado.

3 - A determinação do conteúdo da norma tributária de incidência exclui a utilização de conceitos indeterminados, bem como os conceitos determinados normativos, cuja aplicação ao caso concreto assenta em valoração subjectiva ou pessoal do órgão de aplicação, sob pena de ser postergada a segurança jurídica.

4 - Segundo Nuno Sá Gomes, in Manual de Direito Fiscal, vol. II, 2000, p. 39, '[p]or sua vez, diz-se que estamos perante reserva absoluta da lei quando se estabelece, como entre nós, que a lei formal deve conter não só o fundamento da conduta da administração mas também os critérios de decisões dos casos concretos, não dando margem a qualquer discricionariedade ou disponibilidade de tipo tributário pela administração fiscal'.

5 - No caso concreto, as correcções efectuadas resultam da aplicação do artigo 57.º, n.º 1, do CIRC e do entendimento por parte do agente da administração fiscal da existência de relações especiais entre o contribuinte e outra pessoa por efeito daquele preceito legal.

6 - Ora, 'as relações especiais' e 'as relações que estabeleçam condições diferentes das que são acordadas entre pessoas diferentes' são conceitos vagos, indeterminados, que conferem à administração fiscal poderes discricionários para a correcção da matéria colectável.

7 - Porém, não se trata de discricionariedade técnica, pois a lei não faz apelo para a sua aplicação a conhecimentos científicos não jurídicos ou artísticos ou profissionais mas sim à apreciação das relações estabelecidas, se o lucro apresentado é diferente do normal e como se quantifica o montante efectivo que serviu de base à correcção.

8 - É a lei ordinária - artigo 103.º, n.os 2 e 3, e artigo 268.º da CRP - que tem de estabelecer os parâmetros em que essa actividade é regulada sob pena de inconstitucionalidade.

9 - E esses critérios não existem nem se encontram estabelecidos pela lei, pelo que a grande amplitude e indeterminação do conteúdo daqueles conceitos permitem ao órgão de aplicação incluir na norma todo e qualquer ganho, sacrificando-se assim a segurança jurídica!!!

10 - Assim, a norma do artigo 57.º, n.º 1, do CIRC, estando formulada em termos vagos e imprecisos, com recurso a puros conceitos normativos, sem qualquer concretização e determinação, é uma norma materialmente inconstitucional por ofensa do princípio da legalidade e tipicidade fiscais.

11 - Segundo Nuno Sá Gomes, ob. cit., p. 193, 'o citado artigo 57.º não esclarece o que se deve entender por relações especiais, aflorando apenas o critério da dependência, parecendo, portanto, que há relações especiais sempre que as entidades em causa são dependentes uma da outra'.

12 - E daqui decorre, desde logo, uma indeterminação ampla que equivale a atribuir à administração fiscal o poder discricionário de decidir quando há relação especial de dependência, o que, como dissemos, é inconstitucional.

13 - A circunstância de a lei fiscal não definir o que se deve entender por relações especiais e o carácter vago, elástico, deste conceito leva-nos a concluir que a fórmula empregada, logo aí, viola o artigo 106.º, n.º 2, da CRP, que exige que 'a lei determine [...] a incidência'.

14 - Assim, enquanto a legislação fiscal não enunciar os critérios a seguir, deve considerar-se que o artigo 57.º do CIRC é inconstitucional, por conferir à administração fiscal poderes discricionários para a correcção da matéria tributável.

15 - Deve, assim, a norma do n.º 1 do artigo 57.º do CIRC ser declarada inconstitucional!"

Contra-alegando, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais afirmou, em conclusão, que:

"a) A recorrente não tem razão quando levanta a questão da indeterminação do conceito de relações especiais. Como bem referiu o douto acórdão do STA, 'não estamos em face de um verdadeiro conceito indeterminado, pois ele tem alguma determinação: relações especiais são aquelas que não têm lugar entre pessoas independentes'.

b) Relativamente à alegada inconstitucionalidade material do artigo 57.º do CIRC, ela não procede porquanto a norma aí constante só pode ser aplicada em consonância com os requisitos específicos exigidos pelo artigo 80.º do CPT, o que deita por terra o argumento da existência de conceitos vagos e imprecisos.

c) Também não tem razão a recorrente quando afirma que a lei não estabelece quais os critérios a utilizar, uma vez que tais critérios são aqueles utilizados no recurso aos métodos indiciários, a saber: margens médias de lucro bruto sobre vendas e prestações de serviços, segundo o sector e actividade da empresa, e taxas médias de rendibilidade do capital investido.

d) Pelo que se considera que a norma em causa não viola, como pretende a recorrente, o artigo 106.º, n.º 2, da CRP, nem o artigo 103.º, n.º 2, da CRP, pelo que não é inconstitucional."

Tudo visto, cumpre decidir.

B - Fundamentação. - 3 - O artigo 57.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), na sua redacção originária, aplicável no momento a que se reportam os autos, dispunha, sob a epígrafe "Correcções nos casos de relações especiais ou sujeição a vários regimes de tributação", que (acentuam-se com itálico os segmentos convocados):

"1 - A Direcção-Geral das Contribuições e Impostos poderá efectuar as correcções que sejam necessárias para a determinação do lucro tributável sempre que, em virtude das relações especiais entre o contribuinte e outra pessoa, sujeita ou não a IRC, tenham sido estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes, conduzindo a que o lucro apurado com base na contabilidade seja diverso do que o que se apuraria na ausência dessas relações.

2 - O disposto no número anterior observar-se-á igualmente sempre que o lucro apurado em face da contabilidade relativamente a entidades que não tenham sede ou direcção efectiva em território português se afaste do que se apuraria se se tratasse de uma empresa distinta e separada que exercesse actividades idênticas ou análogas, em condições idênticas ou análogas e agindo com total independência.

3 - Também se aplicará o disposto no n.º 1 quanto às pessoas que exerçam simultaneamente actividades sujeitas e não sujeitas ao regime geral do IRC, quando relativamente a tais actividades se verifiquem idênticos desvios.

4 - Quando o disposto no n.º 1 se aplique relativamente a um sujeito passivo do IRC por virtude de relações especiais com outro sujeito passivo do mesmo imposto ou do IRS, na determinação do lucro tributável deste último serão efectuados os ajustamentos adequados que sejam reflexo das correcções feitas na determinação do lucro tributável do primeiro."

Por sua vez, o parâmetro constitucional invocado pela recorrente - plasmado no artigo 106.º, n.º 2, da Constituição (artigo 103.º, n.º 2, na redacção actual) - prescreve que:

"Artigo 106.º

Sistema fiscal

1 - ...

2 - Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.

3 - ..."

4 - Ora, como resulta dos autos, a correcção administrativa fundada no transcrito artigo 57.º do CIRC reportava-se a uma situação inteiramente integrável na esfera do n.º 1 do presente preceito, não estando em causa, nos autos, "o lucro apurado em face da contabilidade relativamente a entidades que não tenham sede ou direcção efectiva em território português [que] se afaste do que se apuraria se se tratasse de uma empresa distinta e separada que exercesse actividades idênticas ou análogas, em condições idênticas ou análogas e agindo com total independência".

Nestes termos, não tendo esta norma sido aplicada pelo tribunal a quo como ratio decidendi do juízo proferido na decisão recorrida, há que delimitar o objecto do recurso à hipótese circunscrita no n.º 1 do preceito.

5 - A questão de constitucionalidade emergente incide sobre um nódulo fiscal assaz problemático. De facto, a matéria relativa aos "preços de transferência" tem conhecido, nos últimos tempos, um tratamento jurídico-dogmático ímpar no domínio da ciência jusfiscalista, estando-lhe associado, muito por obra dos trabalhos de organizações internacionais dinamizadoras do estudo da questão e da implementação de instrumentos preordenados à resolução de conflitos que surgem neste âmbito temático, um papel verdadeiramente jurisgénico ao nível do tratamento legislativo que o domínio dos preços de transferência tem sofrido.

Na "economia" do presente recurso, estando em causa o confronto da norma do artigo 57.º do CIRC com o parâmetro constitucional cristalizado no princípio da legalidade fiscal, importa, em primeiro lugar, ter em conta a(s) especificidade(s) que recorta(m) o quadro normativo aqui em crise, para, depois, apurar se a regulamentação concretamente em causa contraria as exigências próprias da repartição material-funcional que está subjacente à imposição constitucional de que "os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes".

5.1 - Perscrutando a ratio subjacente à previsão do artigo 57.º do CIRC, emerge indubitavelmente que o seu âmbito de aplicação está delimitado em torno da problemática dos preços de transferência, visando acautelar as consequências resultantes de uma "facilitada" manipulação de valores fiscalmente relevantes para efeitos do cálculo do imposto devido pelo sujeito passivo numa óptica que não será de todo estranha à fenomenologia própria da evasão e fraude fiscais.

Contudo, apesar de o preceito, considerado na sua globalidade operativa, ser susceptível de abarcar um tal conteúdo realístico, não pode ignorar-se que a regulamentação dos preços de transferência, a bem ver, não deve ser agrilhoada, tout court e in rerum natura, à estrita presunção de que, por detrás do "preço estabelecido entre sujeitos dependentes", existirá forçosamente um princípio de acção norteado por uma intentio de evasão ao pagamento do imposto. Daí que, apesar de ser certo, como adverte o Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE ("OCDE - Preços de transferência e empresas multinacionais - Relatório do Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE de 1979", in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º 144, Lisboa, 1985), que a problemática relativa a preços de transferência imbrica com a de fraude e de evasão fiscais por aqueles poderem ser utilizados para tais fins, também não pode ignorar-se, como se verá, que as "próprias características dos P[reços de] T[ransferência], [...] contêm intrinsecamente riscos de distorção e instrumentalização tributária", susceptíveis de ocasionar "distorções económicas correlativas à impropriedade do apuramento da situação tributária" (Duarte Barros, Metodologias na Determinação do Preço de Plena Concorrência, Perspectiva da Administração Fiscal, Conferência da Associação Portuguesa de Consultores Fiscais, Lisboa, Novembro de 1999, p. 1).

Em todo o caso, a realidade subjacente ao problema dos preços de transferência pode, de facto, definir-se, em termos de manifesta neutralidade, como dizendo respeito "aos valores atribuídos a bens e serviços pelos agentes económicos nas trocas que efectuam entre si, incluindo as transferências de bens e prestações de serviços que têm lugar no âmbito dos estabelecimentos e divisões independentes que integram a mesma unidade económica" (Maria Teresa Veiga de Faria, "Preços de transferência - Problemática geral", in AA. VV., A Internacionalização da Economia e a Fiscalidade - Colóquio Comemorativo do XXX Aniversário do Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1993, p. 401).

Como se compreende, tal problemática assume particular acuidade relativamente às operações desenvolvidas no seio de empresas associadas onde as respectivas operações "não sofrem necessariamente da mesma maneira [do que sucede perante empresas independentes onde as condições das suas relações comerciais e financeiras são regidas, em regra, pela dinâmica do mercado] a influência directa dos mecanismos de mercado", como é reconhecido pela OCDE (cf. "OCDE - Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às administrações fiscais", Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º 189, Lisboa, 2002, p. 35). É neste domínio particular que, por diversas razões relacionadas com a gestão concreta das unidades empresariais podem ocorrer manipulações dos preços atribuídos aos bens e serviços transaccionados, daí podendo resultar que "a natureza e o montante dos pagamentos efectuados entre elementos do grupo possam ser influenciados por considerações de ordem fiscal" (cf. "OCDE - Preços de transferência e empresas multinacionais - Relatório do Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE de 1979", op. cit., p. 12).

Ora, ainda que as motivações subjacentes a tal modelação económico-financeira possam ser determinadas por uma diversidade de factores extrafiscais (como possíveis motivações para a manipulação de preços de transferência elencam-se razões atinentes à "flutuação cambial, restrições económicas, instabilidade política, vantagens competitivas, parceiros estrangeiros, tributação, relações públicas e relações interpessoais"; v., Maria Teresa Veiga de Faria, "Preços de transferência - Problemática geral", op. cit., p. 404, e Fernando Rocha Andrade, "Preços de transferência e tributação de multinacionais: As evoluções recentes e o novo enquadramento jurídico português", Separata do Boletim de Ciências Económicas da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. XLV-A, 2002, pp. 310 e segs.), não pode ignorar-se que as manipulações de preços contratados entre entidades dependentes acabam sempre por influenciar a matéria tributável do sujeito passivo, moldando-a com base em valores que, mesmo sendo reais, são distorcidos pela existência de relações propiciadoras de uma artificiosa fixação dos preços acordados.

Reconhecendo-se tal realidade, o "laboratório fiscal" vem adoptando, como critério orientador da determinação dos preços de transferência, o "princípio de plena concorrência", que, tal como consta do artigo 9.º, n.º 1, do Modelo da Convenção Fiscal da OCDE, vem sendo enunciado em torno da seguinte especificação: "[Quando] [...] as duas empresas [associadas], nas suas relações comerciais ou financeiras, estiverem ligadas por condições aceites ou impostas que difiram das que seriam estabelecidas entre empresas independentes, os lucros que, se não existissem essas condições, teriam sido obtidos por uma das empresas, mas não o foram por causa dessas condições, podem ser incluídos nos lucros dessa empresa e tributados em conformidade" (cf. "OCDE - Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às administrações fiscais", op. cit., p. 37). Procura-se, assim, com a mobilização do modelo operatório condensado em tal critério, apurar os preços que "teriam sido acordados entre empresas independentes, relativamente a operações idênticas ou similares, no mercado livre", pelo que, nos casos onde seja possível individualizar transacções efectuadas num mercado de livre concorrência, a concreta determinação do preço de transferência, à luz do referido princípio, implica, pois, "a possibilidade de remeter, directamente, para o preço que seria praticado em transacções comparáveis entre empresas independentes ou entre uma empresa de um grupo e uma empresa independente" (cf. "OCDE - Preços de transferência e empresas multinacionais - Relatório do Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE de 1979", op. cit., pp. 11 e segs., especialmente pp. 20 e segs.). Daí que, hodiernamente, e com maior ou menor densidade conceitual-normativa, os ordenamentos jurídicos reajam à abertura de uma "área de evasão ou de elisão do imposto com uma maciça intervenção normativa e administrativa", acolhendo, ao nível do seu direito interno, um conjunto de normas que estabelecem "a obrigação, a cargo de sujeitos ligados por um vínculo de independência, de observar, nas relações económicas estabelecidas entre si, critérios de determinação do valor de cada operação que não sejam diversos dos praticados ou dos que seriam praticados entre operadores independentes, ou seja, entre operadores com interesses e escopos contrapostos" (cf. Guglielmo Maisto, Il "Transfer price" nel diritto tributario italiano e comparato, Padova, 1985, p. 5).

Assim sucede, inter alia, na Bélgica (artigo 24.º do Code des Impôts sur les Revenus); em França (artigo 57.º do Code General des Impôts); no Reino Unido (secção 485 do Income and Corporation Taxes Act); nos Estados Unidos da América (secção 482 do Internal Revenue Code); na Alemanha [secção I (1) da Aussensteuergesetz]; em Espanha (artigo 16.º da Ley 43/1995, de 27 de diciembre de 1995, del Impuesto sobre Sociedades), e em Itália (artigo 100.º, n.º 7, do Testo Unico delle Imposte sui Redditi).

É certo que, na sua abrangência, as questões suscitadas pela problemática dos preços de transferência vão muito para além de um determinado espaço físico delimitado pela muralha da soberania fiscal estadual, designadamente quando, no âmbito da actuação das empresas multinacionais, a fixação dos preços de transferência nas relações intragrupo tangem com diversos ordenamentos jurídicos.

Contudo, mesmo fora do âmbito de tais situações fiscais plurilocalizadas, os princípios - e as preocupações ... - que vêm sendo firmados nesta área tributária não deixam, mutatis mutandis, de valer em face de "entidades situadas no mesmo espaço territorial-fiscal" (cf. Maria Teresa Veiga de Faria, "Preços de transferência - Problemática geral", op. cit., pp. 402).

5.2 - Entre nós, o legislador fiscal consagrou, no artigo 57.º do CIRC, a possibilidade de a administração fiscal proceder às "correcções que sejam necessárias para a determinação do lucro tributável sempre que, em virtude das relações especiais entre o contribuinte e outra pessoa, sujeita ou não a IRC, tenham sido estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes, conduzindo a que o lucro apurado com base na contabilidade seja diverso do que o que se apuraria na ausência dessas relações".

Segundo a recorrente, tal norma, "estando formulada em termos vagos e imprecisos, com recurso a puros conceitos normativos, sem qualquer concretização e determinação, é uma norma materialmente inconstitucional por ofensa do princípio da legalidade e tipicidade fiscais", na medida em que essa "indeterminação ampla [...] equivale a atribuir à administração fiscal o poder discricionário de decidir quando há relação especial de dependência, o que [...] é inconstitucional".

É o que importa, pois, apurar, tendo em conta, por um lado, a construção normativa que concretiza a intencionalidade prática do critério legal em crise no âmbito problemático individualizado pelo legislador, e, por outro, a densidade normativa reclamada pelo princípio da legalidade fiscal no âmbito do horizonte regulamentado, na parte aqui relevante, pela norma do artigo 57.º do CIRC.

5.2.1 - Considerando o teor normativo do artigo 57.º, ressalta, ao nível dos seus pressupostos de aplicação, a exigência de que: a) existam relações especiais entre o contribuinte e uma outra entidade sujeita ou não ao regime do IRC; b) e, em virtude dessas relações, sejam estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes; c) conduzindo ao apuramento de uma base tributária distinta da que seria apurada na ausência de tais relações (cf. Paula Rosado Pereira, "O novo regime dos preços de transferência", in Fiscalidade, n.º 5, 2001, p. 25).

Ora, atentando no teor do preceito - que, na essência, cristaliza uma afirmação do princípio de plena concorrência tal como este vem sendo enunciado pelas orientações firmadas no âmbito dos estudos da OCDE -, é patente que, na redacção que imprimiu à norma, o legislador nacional lançou mão de uma construção tipológica assente em conceitos indeterminados ("relações especiais", "condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes"), cujo preenchimento, por definição, não decorre, expressis verbis, da estrita consideração semântico-gramatical da norma, antes exige uma mediação concretizadora da intencionalidade prático-normativa com que o legislador recortou, constitutivamente, o domínio problemático nela individualizado.

O caminho trilhado pelo legislador português na formulação da norma - que, nesta sede, corresponde genericamente ao seguido por diversos ordenamentos jurídicos, onde a concretização da norma fica a cargo de directrizes administrativas e, em ultima ratio, à jurisprudência [cf. Guglielmo Maisto, "Transfer pricing in the absence of comparable market prices", in Cahiers de Droit Fiscal International, vol. LXXVII, p. 216. O autor dá, aí, conta de que as "instruções administrativas", quando existam, têm acolhido de forma directa - caso da Áustria - ou indirecta - como sucede no Reino Unido - as guidelines formuladas pela OCDE; contudo, em países como a França, Holanda e Suíça, a prática tem também seguido tais orientações sem que "seja necessário indicar a [sua] aplicação" e o mesmo sucede, de resto, no âmbito do ordenamento jurídico finlandês e neozelandês perante a ausência de directrizes administrativas] - mereceu a crítica dogmática de alguns autores que apontam à "forma genérica" do preceito o perigo de a sua aplicação do preceito ficar "demasiado dependente do arbítrio do funcionário da fiscalização" (cf. J.J. Amaral Tomás, "Os preços de transferência", in Fisco, n.º 29, 1991, p. 19; Maria Teresa Veiga de Faria, "Preços de transferência - Problemática geral", op. cit., p. 437; Paula Rosado Pereira, "O novo regime dos preços de transferência", op. cit., p. 25; e Fernando Rocha Andrade, "Preços de transferência e tributação de multinacionais: As evoluções recentes e o novo enquadramento jurídico português", op. cit., pp. 328 e segs.).

A "comissão para o desenvolvimento da reforma fiscal", após reflectir sobre os pressupostos de aplicação do artigo 57.º, recomendou igualmente que, "por razões de certeza e segurança jurídicas, bem como de operacionalidade da inspecção tributária, se deve evoluir no sentido do desenvolvimento daqueles elementos, na linha dos princípios e critérios recomendados pela OCDE e do que tem sido a tendência em muitos países" (cf. Relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, Ministério das Finanças, Lisboa, 1996, pp. 659 e segs.; v., igualmente, o "Relatório da Comissão de Reforma da Fiscalidade Internacional", in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 395, 1999, pp. 103 e segs.).

Acolhendo tais recomendações, o nosso legislador, pela Lei 30-G/2000, de 29 de Dezembro, alterou a redacção do artigo 57.º do CIRC e, com a revisão operada pelo Decreto-Lei 198/2001, de 3 de Julho, o artigo 58.º do CIRC, sob a epígrafe "Preços de transferência", passou a dispor que:

"1 - Nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras, efectuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

2 - O sujeito passivo deve adoptar, para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método ou métodos susceptíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efectua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais, tendo em conta, designadamente, as características dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais características relevantes das empresas envolvidas, as funções por elas desempenhadas, os activos utilizados e a repartição do risco.

3 - Os métodos utilizados devem ser:

a) O método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado;

b) O método do fraccionamento do lucro, o método da margem líquida da operação ou outro, quando os métodos referidos na alínea anterior não possam ser aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou praticariam.

4 - Considera-se que existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra, o que se considera verificado, designadamente, entre:

a) Uma entidade e os titulares do respectivo capital, ou os cônjuges, ascendentes ou descendentes destes, que detenham, directa ou indirectamente, uma participação não inferior a 10% do capital ou dos direitos de voto;

b) Entidades em que os mesmos titulares do capital, respectivos cônjuges, ascendentes ou descendentes detenham, directa ou indirectamente, uma participação não inferior a 10% do capital ou dos direitos de voto;

c) Uma entidade e os membros dos seus órgãos sociais, ou de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, e respectivos cônjuges, ascendentes e descendentes;

d) Entidades em que a maioria dos membros dos órgãos sociais, ou dos membros de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, sejam as mesmas pessoas ou, sendo pessoas diferentes, estejam ligadas entre si por casamento, união de facto legalmente reconhecida ou parentesco em linha recta;

e) Entidades ligadas por contrato de subordinação, de grupo paritário ou outro de efeito equivalente;

f) Empresas que se encontrem em relação de domínio, nos temos em que esta é definida nos diplomas que estatuem a obrigação de elaborar demonstrações financeiras consolidadas;

g) Entidades entre as quais, por força das relações comerciais, financeiras, profissionais ou jurídicas entre elas, directa ou indirectamente estabelecidas ou praticadas, se verifica situação de dependência no exercício da respectiva actividade, nomeadamente quando ocorre entre si qualquer das seguintes situações:

1) O exercício da actividade de uma depende substancialmente da cedência de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de know-how detidos pela outra;

2) O aprovisionamento em matérias-primas ou o acesso a canais de venda dos produtos, mercadorias ou serviços por parte de uma dependem substancialmente da outra;

3) Uma parte substancial da actividade de uma só pode realizar-se com a outra ou depende de decisões desta;

4) O direito de fixação dos preços, ou condições de efeito económico equivalente, relativos a bens ou serviços transaccionados, prestados ou adquiridos por uma encontra-se, por imposição constante de acto jurídico, na titularidade da outra;

5) Pelos termos e condições do seu relacionamento comercial ou jurídico, uma pode condicionar as decisões de gestão da outra, em função de factos ou circunstâncias alheios à própria relação comercial ou profissional.

5 - Para efeitos do cálculo do nível percentual de participação indirecta no capital ou nos direitos de voto a que se refere o número anterior, nas situações em que não há regras especiais definidas, são aplicáveis os critérios previstos no n.º 2 do artigo 483.º do Código das Sociedades Comerciais.

6 - O sujeito passivo deve manter organizada, nos termos estatuídos para o processo de documentação fiscal a que se refere o artigo 121.º, a documentação respeitante à política adoptada em matéria de preços de transferência, incluindo as directrizes ou instruções relativas à sua aplicação, os contratos e outros actos jurídicos celebrados com entidades que com ele estão em situação de relações especiais, com as modificações que ocorram e com informação sobre o respectivo cumprimento, a documentação e informação relativa àquelas entidades e bem assim às empresas e aos bens ou serviços usados como termo de comparação, as análises funcionais e financeiras e os dados sectoriais, e demais informação e elementos que tomou em consideração para a determinação dos termos e condições normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes e para a selecção do método ou métodos utilizados.

7 - O sujeito passivo deve indicar, na declaração anual de informação contabilística e fiscal a que se refere o artigo 113.º, a existência ou inexistência, no exercício a que aquela respeita, de operações com entidades com as quais está em situação de relações especiais, devendo ainda, no caso de declarar a sua existência:

a) Identificar as entidades em causa;

b) Identificar e declarar o montante das operações realizadas com cada uma;

c) Declarar se organizou, ao tempo em que as operações tiveram lugar, e mantém a documentação relativa aos preços de transferência praticados.

8 - Sempre que as regras enunciadas no n.º 1 não sejam observadas, relativamente a operações com entidades não residentes, deve o sujeito passivo efectuar, na declaração a que se refere o artigo 112.º, as necessárias correcções positivas na determinação do lucro tributável, pelo montante correspondente aos efeitos fiscais imputáveis a essa inobservância.

9 - Nas operações realizadas entre entidade não residente e um seu estabelecimento estável situado em território português, ou entre este e outros estabelecimentos estáveis daquela situados fora deste território, aplicam-se as regras constantes dos números anteriores.

10 - O disposto nos números anteriores aplica-se igualmente às pessoas que exerçam simultaneamente actividades sujeitas e não sujeitas ao regime geral de IRC.

11 - Quando a Direcção-Geral dos Impostos proceda a correcções necessárias para a determinação do lucro tributável por virtude de relações especiais com outro sujeito passivo do IRC ou do IRS, na determinação do lucro tributável deste último devem ser efectuados os ajustamentos adequados que sejam reflexo das correcções feitas na determinação do lucro tributável do primeiro.

12 - Pode a Direcção-Geral dos Impostos proceder igualmente ao ajustamento correlativo referido no número anterior quando tal resulte de convenções internacionais celebradas por Portugal e nos termos e condições nas mesmas previstos.

13 - A aplicação dos métodos de determinação dos preços de transferência, quer a operações individualizadas, quer a séries de operações, o tipo, a natureza e o conteúdo da documentação referida no n.º 6 e os procedimentos aplicáveis aos ajustamentos correlativos são regulamentados por portaria do Ministro das Finanças."

As diferenças perante a regulamentação anterior, aqui em crise, estão bem patentes na pormenorizada densificação que a norma actualmente em vigor ilustra.

Porém, como se compreende, no presente recurso não está em causa a desvelação do "melhor direito", no sentido de criticar ex constitutionis uma determinada solução normativa quando o legislador lhe poderia ter imprimido uma outra - e melhor - redacção, mas sim sancionar o "não direito", na perspectiva de apurar se a norma concretamente em causa não se há-de ter por válida à luz dos parâmetros constitucionais relevantes.

É o que, de seguida, importa considerar.

5.2.2 - A norma sindicanda insere-se num particular momento da vida do imposto, dizendo directamente respeito à questão da determinação da base material que há-de estar sujeita à imposição fiscal.

Como é consabido, a delimitação do conceito de incidência relevante para a tutela garantística que o princípio da legalidade empresta a este âmbito dogmático passa pela abrangência dos pressupostos de facto geradores do imposto e da respectiva matéria tributável, sendo que, quanto a esta, como refere Cardoso da Costa ("O enquadramento constitucional do direito dos impostos em Portugal", in AA. VV., Perspectivas Constitucionais - Nos 20 Anos da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra, 1997, pp. 409-410), "sempre foi entendimento tradicional na doutrina portuguesa [...] o de distinguir entre a sua 'definição' e a sua 'determinação': na primeira, está em causa a identificação da entidade económica [...] sujeita a imposto, e, consequentemente, um elemento 'substantivo' e 'essencial' da normação tributária; na segunda, trata-se já do método ou dos métodos a adoptar no cálculo e no estabelecimento do respectivo valor e, portanto, de um domínio 'instrumental', com carácter fundamentalmente 'procedimental' e 'adjectivo'", devendo também este domínio da determinação da matéria tributável "respeitar as específicas e estritas exigências do princípio da legalidade fiscal, quando o seu conteúdo e alcance transcender a pura esfera 'processual' e assumir já, afinal, um carácter 'material ou substantivo'".

Cumprida tal explicitação, torna-se claro que, mesmo estando em causa um problema atinente à determinação da matéria tributável, susceptível de conduzir à correcção dessa base, é pertinente o confronto da norma em crise com as exigências inerentes ao princípio da legalidade fiscal na medida em que a sua regulamentação incorpora uma substancialidade determinante da conformação do valor dos rendimentos sujeitos a tributação, não estando, assim, apenas em causa a estrita fixação do iter procedimental que permitirá o estabelecimento do rendimento sujeito a imposto.

5.2.3 - Quanto ao sentido normativo que recorta o âmbito de relevo assinalado ao parâmetro constitucional em causa, este Tribunal, na sua jurisprudência, vem desenvolvendo um critério interpretativo que, pela sua pertinência, deve reiterar-se perante o caso sub judicio.

Nas suas imputações gerais, o princípio da legalidade fiscal, como se salientou, entre outros, no Acórdão 70/2004, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 7 de Maio de 2004, é caracterizado, essencialmente, por duas dimensões normativas:

"[§] Uma corporizada na reserva absoluta de lei formal (Gesetzvorbehalt): os impostos apenas podem ser lançados mediante lei da Assembleia da República ou decreto-lei do Governo emitido no uso de autorização legislativa do Parlamento. [§] Trata-se de uma acepção que busca os seus fundamentos em razões puramente políticas cuja afirmação originária se perde na bruma dos tempos da Idade Média e cuja positivação começou por afirmar-se na Magna Charta Libertatum (1215), traduzindo uma ideia de autotributação, de auto-imposição dos tributos ou de consentimento no lançamento das contribuições e impostos e que se acha significativamente traduzida na expressão inglesa no taxation without representation, mas que entretanto recebeu um novo sopro de legitimidade e de fundamento substanciais com a consagração do Estado de direito democrático, na medida em que o exercício do poder tributário passou a ser uma expressão dos representantes eleitos do povo justificada pela realização dos fins materiais do Estado de direito (cf., entre outros, Alberto Pinheiro Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 275 e segs.; José Manuel Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 1972, pp. 154 e segs., e José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, pp. 321 e segs., e Direito Fiscal, 2.ª ed. refundida e aumentada, Coimbra, 2003, pp. 123 e segs.). [§] Outra dimensão do princípio da legalidade fiscal é a que é traduzida pelo princípio do nullum vectigal sine lege, da tipicidade (Tatbestandsmässigkeit), ou de reserva material ou 'conteudística da lei' (como a denomina Casalta Nabais, O Dever ..., cit., p. 345), nos termos do qual a lei deve conter em si, essencialmente, o critério de decisão das situações concretas. [§] Segundo a sua formulação rígida, o princípio da tipicidade fiscal traduz-se na exigência de o imposto dever ser desenhado ou recortado na lei através de todos os seus momentos constitutivos, sem margem para qualquer discricionariedade administrativa ou de afirmação de quaisquer poderes jurídico-conformantes das situações concretas. [§] Trata-se de uma dimensão que visa dar resposta, essencialmente, a preocupações de certeza e de segurança jurídicas que constituem também exigências próprias do Estado de direito democrático, entre nós reconhecido no artigo 2.º da Constituição. [§] A primeira dimensão está acolhida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), e a segunda mostra-se vertida no artigo 103.º, n.º 2, ambos os preceitos da Constituição."

Ora, considerando estas duas traves mestras do princípio da legalidade fiscal, é manifesto que o caso emergente dos presentes autos contende, na sua essência, com a segunda dimensão de cumprimento do princípio, estando em causa, de modo particular, reflectir em torno do grau de densidade normativa compatível com as exigências daí resultantes.

E já por outras ocasiões este Tribunal ponderou a relevância normativa assinalada ao princípio da legalidade fiscal, em "torno de saber qual o grau de exigência constitucional quanto à densificação normativa face aos ditames do princípio da legalidade tributária (artigo 106.º, n.º 3, da Constituição), o mesmo é dizer, quais os limites constitucionalmente consentidos ao preenchimento, pela Administração, de conceitos jurídicos indeterminados constantes de uma norma fiscal e ao âmbito de poderes discricionários da mesma eventualmente pressupostos".

Não obstante a questão de constitucionalidade nele apreciada dizer respeito a uma norma que relevava essencialmente o juízo de ponderação subjectiva da administração sobre a não correspondência à realidade da matéria colectável declarada como elemento determinador do critério ou regime legal de tributação a ser adoptado (o § 2.º do artigo 114.º do Código da Contribuição Industrial) e, por outro lado, afastava a possibilidade de esse juízo poder ser objecto de controlo jurisdicional (artigo 78.º do mesmo Código), ao contrário do que se passa com a norma aqui constitucionalmente sindicada em que o critério determinante nela conformado tem uma matriz substancialmente objectiva, exterior à administração, e em que o acto administrativo - tributário poderá ser, em todas as suas dimensões, sindicado contenciosamente - o que, tudo sopesado nos termos adiante reflectidos, não pode deixar de conduzir, como se verá, a resultados diferentes - impõe-se considerar, entre as decisões do Tribunal Constitucional que trataram de tal problemática, o Acórdão 233/94, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 27 de Agosto de 1994 (e também no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 435, p. 311, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27.º vol., p. 595), dada a densidade do discurso aí desenvolvido sobre a matéria, apoiado numa larga ponderação da doutrina pertinente ao problema, e a bondade da tese seguida quanto à admissibilidade de tais conceitos, no âmbito da determinação/definição da matéria colectável.

Lembra-se a propósito, para acentuar as referidas diferenças que ressaltarão melhor do discurso subsequente, que o § 2.º do artigo 114.º do Código da Contribuição Industrial dispunha que "sempre que em face do exame à escrita se verifique a impossibilidade de controlar a matéria colectável já determinada de harmonia com as disposições dos artigos 22.º a 49.º ou desse exame ressaltem dúvidas fundadas sobre se o resultado apurado corresponde ou não à realidade será a matéria colectável determinada de novo de harmonia com as disposições aplicáveis aos contribuintes do grupo B, com as necessárias adaptações e com notificações das fixações aos contribuintes para efeito de reclamação dentro do prazo de 15 dias, nos termos do artigo 70.º, sendo de observar o disposto no § 3.º do artigo 54.º" e que o artigo 78.º do mesmo Código estabelecia que "os valores calculados determinados e fixados pelo chefe de repartição de finanças ou pela comissão distrital de revisão não eram [são] susceptíveis de reclamação ou de impugnação nos termos do Código de Processo das Contribuições e Impostos, salvo se tiver havido preterição de formalidades legais, caso em que os contribuintes poderão recorrer para o Tribunal Tributário de 1.ª Instância", donde resulta, como se verá, estar-se perante um quadro jurídico bem diferente do recortado no preceito agora sob censura constitucional.

Considerou-se nesse aresto o seguinte:

"8 - O § 2.º do artigo 114.º do Código da Contribuição Industrial é, quanto à sua natureza, uma norma jurídico-fiscal. Ora, como escreve Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal (2.ª ed. actualizada, Coimbra, 1972, reimpressa e aditada de notas de actualização em 1977), p. 57, 'não vemos [...] motivo para abandonar a conclusão, já antes avançada, de que as normas jurídico-fiscais se subsumem no âmbito mais geral das normas jurídico-administrativas: efectivamente, elas não disciplinam senão um especial sector de actividade da Administração - definindo os respectivos pressupostos e o conteúdo das relações jurídico-públicas dela decorrentes, e precisando os termos em que a mesma deve desenvolver-se - e fazem-no recorrendo aos dogmas fundamentais do direito administrativo'.

Esta identidade, segundo o autor, não invalida que a actividade fiscal se processe segundo uma 'tonalidade própria dentro da actividade administrativa: é-lhe a mesma conferida pelo seu carácter extremamente vinculado, em face da maior ou menor margem de poder discricionário de que gozam na generalidade dos outros sectores da Administração os respectivos órgãos ou agentes' (p. 58).

Tal carácter 'extremamente vinculado', contudo, não impede que certos elementos típicos da actividade fiscal (v. g., a identificação da base do imposto ou o cálculo da matéria colectável) comportem 'muitas vezes uma zona de mais ou menos livre apreciação por parte da administração fiscal ou dos órgãos mistos (i. e., compostos por agentes do fisco e representantes dos contribuintes) a quem cabe tal tarefa. Mas - ao contrário do que já se tem entendido - trata-se apenas daqueles insuprimíveis momentos de liberdade - de apprezzamento subjectivo - por onde necessariamente passam quer a interpretação das normas que a Administração tem de aplicar quer a fixação (na sua identidade e medida) dos factos que vão ser o pressuposto da sua actuação' (p. 59).

Segundo este autor, importa distinguir entre a 'liberdade discricionária', 'em que a lei devolve para o próprio critério do agente a escolha da medida mais conveniente e oportuna a tomar em cada caso em ordem à prossecução do interesse público em causa', e a 'liberdade científica', em que, pelo contrário, há uma "simples liberdade de 'investigação ou crítica', no exercício da qual se não remete a Administração para o que esta considerar melhor em cada caso mas se pretende ainda que ela averigúe o verdadeiro (e único) sentido da lei e estabeleça a exacta (e única também) figuração dos factos", ou, na expressão de Alessi (Intituzzioni di diritto tributario, com Stammati, Torino, sem data, p. 103, também retomada por Cardoso da Costa), 'não se trata de avaliar a base de facto segundo critérios de oportunidade e conveniência em relação com o interesse público de conseguir uma maior ou menor colecta; mas de determinar, com a maior aproximação possível, a sobredita situação na sua realidade'.

Neste contexto se insere a denominada discricionariedade técnica, reportável, pois, àqueles juízos subjectivos (apprezzamento subjectivo) dos agentes da Administração em sede de determinação da subsunção de uma dada realidade de facto ao âmbito de previsão de uma norma legal, isto é, os juízos técnicos destinados a apurar se um determinado facto ou uma determinada situação da vida se enquadram nas regras de incidência de um dado imposto ou qual o valor de determinados bens ou rendimentos sujeitos a tributação (Cardoso da Costa, op. cit., p. 61).

O autor que temos vindo a seguir alerta para o facto de a discricionariedade técnica constituir um 'conceito equívoco', quer pela plurissignificação que lhe tem sido atribuída pela doutrina [em especial em Itália] quer pelo facto de "a decisão discricionária verdadeira e própria se resolver[r] também afinal num juízo técnico: a autoridade que a profere desincumbe-se do dever de 'boa administração', a que está adstrita, escolhendo e adoptando para cada caso, não uma solução pré-fixada pelo legislador, mas também não uma qualquer solução, antes aquela que os seus conhecimentos e experiência - o seu saber técnico, em suma - lhe ditarem como a melhor" (p. 61).

[...]

A questão da delimitação entre o conteúdo da lei em matéria fiscal e a margem de livre decisão da Administração é também objecto da reflexão de José Luís Saldanha Sanches, 'A segurança jurídica no Estado social de direito. Conceitos indeterminados, analogia e retroactividade no direito tributário', in Ciência e Técnica Fiscal, n.os 310-312, Outubro-Dezembro de 1984, que coloca o problema à luz das diferentes concretizações que têm sido ensaiadas, no domínio do direito fiscal, de superação da permanente relação de tensão entre a defesa da certeza e segurança do direito e da execução das normas constitucionais que impõem a generalidade das obrigações fiscais e a igualdade perante o fisco, escrevendo, pois, que 'a linha principal da argumentação a ser seguida consiste em que essa abordagem do problema - que reflecte, no campo do direito fiscal, como já se afirmou - a concretização do normativismo positivista, se pode hoje considerar esgotada, dados os problemas que tem encontrado, sem conseguir resolver, nos sistemas fiscais dos países industrializados do Ocidente, onde se reflecte com mais intensidade a problemática das modernas formas de fuga legal ao imposto - a fiscal avoidance dos anglo-saxónicos, a que se tem chamado entre nós elisão fiscal, mas a que se poderia talvez chamar, com maior rigor e propriedade, evitação fiscal [...] [P]erante o aparecimento de esquemas cada vez mais generalizados de evitação fiscal, é sistematicamente posta à prova a capacidade do legislador fiscal para abranger na sua previsão todas as manifestações de capacidade contributiva que deverão, para a manutenção dos princípios fundamentais da justiça tributária, ser sujeitas a tributação' (pp. 286 e 287).

Apreciando, a este propósito, a evolução do sistema fiscal inglês (e a crise do sistema da interpretação estrita - subordinada ao principle of strict interpretation), Saldanha Sanches (op. cit., p. 289) refere:

'É um sistema que tem como fundamento uma distinção de base entre interpretação e integração jurídica, desconhecendo - ou mais exactamente, recusando-se a admitir - a existência de um continuum entre a interpretação e a integração. Mas esta concepção [...] acaba por ser de todo abandonada [...] quando a jurisprudência, ao ser chamada a conhecer dos litígios entre a administração fiscal e os contribuintes acerca da exacta determinação das realidades económicas que realizam ou não os tipos fiscais pela lei determinados, vêm não só proceder a um julgamento sobre a intenção dos contribuintes caso da recente jurisprudência britânica sobre o fiscal planning - permitir o uso de cláusulas gerais anti-evasão por parte do legislador fiscal - caso da legislação alemã -, recuar nas suas exigências de formulação da lei fiscal através de uma expressão verbal que permita uma interpretação e inequívoca - como sucede nos direitos britânicos e alemães - ou aceitar pelo legislador o uso de conceitos indeterminados ou de preceitos - poder (Kann-Vorschrift) que remetem para uma valoração que será efectuada pelo encarregado da execução da lei, como sucede frequentemente no direito fiscal português.'

Neste contexto, cumpre reconhecer que a possibilidade de utilização, pelo legislador, no domínio fiscal, quer de cláusulas gerais quer de conceitos indeterminados pressupõe, para efeitos da sua aplicação, uma certa margem de livre apreciação da administração fiscal na aplicação desses preceitos aos casos concretos. O que faz que, como sublinha Saldanha Sanches (op. cit., p. 296), "a sua inclusão nas leis fiscais [esteja] sempre em potencial conflito com os princípios da determinabilidade e mensurabilidade das obrigações fiscais, uma vez que a sua utilização envolve necessariamente um certo grau de indeterminação. E a relação bipolar justiça-segurança surge com contornos de particular nitidez, pois a utilização de conceitos indeterminados, conceitos de valor ou cláusulas gerais, constitui 'instrumentos de consideração das circunstâncias concretas dos actos e dos problemas, enquanto exigência da igualdade e da justiça materiais' [A. Castanheira Neves, A Instituição Jurídica dos Assentos e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais] [...] O aumento da complexidade da decisão - ou mesmo da imprevisibilidade da mesma, se estas possibilidades pela lei conferidas forem utilizadas de forma abusiva pela administração fiscal sem que os tribunais o impeçam - vem pôr em causa o princípio da segurança do direito, se entendermos que esta só pode ser garantida se da letra da lei tiverem de constar todos os elementos da decisão."

9 - Feito este enquadramento, consideremos agora o parâmetro constitucional invocado em primeiro lugar, o artigo 106.º, n.º 3, da nossa lei fundamental, que dispõe que 'ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição e cuja liquidação e cobrança se não façam nas formas prescritas na lei'.

Comentando este preceito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 459, escrevem:

'Fora da reserva parlamentar de lei fiscal parece ficar a matéria da liquidação e da cobrança (cf. n.º 3), naquilo que não afecte as garantias dos contribuintes, pois ela não consta do elenco mencionado no n.º 2. Em todo o caso, mantém-se a regra da reserva de lei, não podendo a liquidação e a cobrança ser reguladas por via regulamentar.'

A que acrescentam (op. cit., loc. cit.):

'Os impostos são uma das poucas obrigações públicas dos cidadãos constitucionalmente consagradas [...]. Como tal, está sujeita a algumas regras equivalentes às dos direitos fundamentais, designadamente os princípios da generalidade e da igualdade, ou seja, de que devem estar sujeitos ao seu pagamento os cidadãos em geral (artigo 12.º, n.º 1), e devem estar sujeitos a ele em idêntica medida, sem qualquer discriminação indevida (artigo 13.º, n.º 2). É nisto que consiste o princípio da igualdade tributária (o qual, evidentemente, em nada contraria o princípio constitucional da progressividade dos impostos).'

De igual forma os citados autores defendem, como corolário do princípio da legalidade tributária, a aplicação dos princípios da necessidade (no sentido de não ser concebível um imposto 'arbitrário') e da não retroactividade (neste último caso, contudo, com algumas limitações).

Considerando o problema numa outra perspectiva, centrada no plano do direito administrativo, Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, pp. 281 e segs., retira da reserva de lei (no confronto com a administração) o corolário da 'proibição ou limitação rigorosa do exercício de poder discricionário da Administração (ou da discricionariedade da actuação administrativa) - previsão pela lei do conteúdo e das circunstâncias das decisões individuais e concretas sobre matérias de reserva de lei, não podendo a Administração emitir juízos de oportunidade e de conveniência acerca delas'.

Abordando especificamente a questão da admissibilidade de conceitos indeterminados em direito fiscal, Diogo Leite de Campos, 'Evolução e perspectivas do direito fiscal', in Revista da Ordem dos Advogados, ano 43, Dezembro de 1983, pp. 664 e segs., partindo do pressuposto de que a referência constitucional do n.º 2 do artigo 106.º à incidência dos impostos abarca tanto a matéria colectável como a sua determinação, refere que 'em direito fiscal o único modo de a lei se adaptar à evolução social e à riqueza de vida é através da sua modificação e da sua valia técnica', donde, "no direito fiscal não cabe[re]m, pois, conceitos indeterminados nem normas 'incompletas' ou 'elásticas', atendendo a que 'o princípio da legalidade, com todas as suas implicações, transforma um conceito indeterminado em lacuna intra legem'; ou seja, o princípio da legalidade não encontra suficiente expressão nas normas em causa, que se transformam em normas 'abertas' postulando a sua integração".

Ao que acrescenta que 'nestes casos não se trataria à primeira vista de discricionariedade da Administração, e que nada impede que a integração possa ser controlada pelo tribunal - através da aplicação da doutrina germânica do controlo total'.

Num sentido totalmente diverso se pronuncia Saldanha Sanches (op. cit., p. 298), socorrendo-se da evolução doutrinária e jurisprudencial verificada na Alemanha. A este propósito refere que 'o Tribunal Constitucional alemão começou por definir, através do princípio da determinabilidade - Bestimmenheitgrundsatz - que exige das normas fiscais uma construção do tipo que, assegurando um mínimo de clareza e de transparência do tipo, permita a calculabilidade e a previsibilidade da obrigação fiscal'. O mesmo Tribunal, contudo, não impede a utilização de conceitos indeterminados no domínio da tributação do rendimento, pois que 'o princípio da determinabilidade tem o seu núcleo essencial na reserva da competência da lei para a selecção dos factos da vida social que devem ser objecto de tributação, na manutenção do dictum do legislador ordinário quanto à determinação dos factos tributáveis: não impede que este se sirva de uma formulação suficientemente ampla para abranger factos da mesma natureza e igualmente indiciadores de capacidade tributária, ainda que com características que entre si os diferenciem', daí decorrendo a admissibilidade, na ordem jurídica alemã, de cláusulas gerais, de conceitos jurídicos indeterminados, de conceitos tipológicos e de tipos discricionários.

[...]

Em sentido divergente, Francisco de Sousa da Câmara, 'Direitos e garantias dos contribuintes', in Fisco, n.º 35, ano 3, Outubro de 1991, p. 19, escreveu:

'Os dois casos conhecidos por discricionariedade técnica ou discricionariedade imprópria (abrangendo os conceitos vagos e indeterminados), respectivamente, também não envolvem uma verdadeira discricionariedade, apesar da sua designação.

No primeiro caso, atribui-se apenas à Administração possibilidade de verificar se se encontra preenchido o conteúdo do tipo técnico elaborado pelo legislador, agindo em conformidade.

No segundo caso, concedeu-se à Administração a possibilidade de preencher o conteúdo dos conceitos vagos e indeterminados ou indirectamente determinados, mas atribuindo-lhes a tarefa constante de o fazer com base numa interpretação que se deve afigurar como a única solução juridicamente correcta e que, por isso, deve ser sempre susceptível de fiscalização judicial.'

Para mais adiante, depois de reconhecer que a 'margem de livre apreciação da Administração' na área do direito fiscal introduz sempre insegurança e incerteza, "esteja ela ou não revestida da capa de uma actividade vinculada a uma interpretação correcta ou à aplicação do 'justo valor'", conclui que 'se não vierem a reconhecer-se como inconstitucionais as múltiplas normas dos vários códigos tributários que as prescrevem, por contrárias ao princípio da legalidade, pelo menos, deve admitir-se hoje - sem os limites do passado - a sua sindicância jurisdicional, de modo a se poder questionar se a Administração respeitou ou não os pressupostos definidos na lei' (op. cit., p. 20).

[...]

Ora, o que verdadeiramente a recorrente pretende criticar na norma em causa é a violação do princípio da legalidade tributária na óptica da insuficiente densificação legislativa das condições de aplicação do aludido preceito (ou seja, do insuficiente grau de precisão e determinabilidade das regras legais atinentes a esta específica situação tributária que poderiam colocar o regime em crise a descoberto das garantias decorrentes dos aludidos princípios constantes do artigo 106.º, n.os 2 e 3, da Constituição).

Dito ainda de outra forma, estando em causa matéria tributária, matéria de definição dos pressupostos de aplicação de um determinado imposto, a recorrente parece entender que se mostra incompatível com o aludido princípio da legalidade tributária a circunstância de a lei, com base em conceitos indeterminados ou só indirectamente determinados, conferir uma certa margem de livre apreciação à Administração para efeitos de determinação da substituição de um sistema de tributação (típico do grupo A) por um outro (o do grupo B), este mais gravoso do que aquele, em virtude do incumprimento, por parte do contribuinte, de certas regras atinentes às suas obrigações fiscais.

Recorde-se, a este propósito, que o Tribunal Constitucional já teve ocasião de dizer que em sede de restrição de direitos, liberdades e garantias a Constituição não veda ao legislador a possibilidade de este conferir à Administração a faculdade de actuar ao abrigo de poderes discricionários, desde que as balizas de exercício de tais poderes constem de forma suficientemente densificada na própria lei (cf. Acórdão 285/92, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 17 de Agosto de 1992). Ou seja: em sede de restrições de direitos, liberdades e garantias, o recurso a conceitos jurídicos indeterminados, para efeitos de definição dos pressupostos e da amplitude de exercício de poderes discricionários pela Administração, deve encontrar na letra da lei um tal grau de densificação normativa que correspondam a um mínimo de critérios objectivos que balizem essa actuação discricionária da Administração, em termos tais que permitam aos cidadãos, com um mínimo de segurança, saber com que quadro normativo contam quanto à possível aplicação dessa lei e que simultaneamente confiram aos tribunais elementos objectivos suficientes para apreciação da adequação e proporcionalidade no uso de tais poderes.

E se se chama este lugar paralelo da jurisprudência do Tribunal Constitucional para apreciação do caso em análise é apenas para tornar mais evidente que, desde logo para quem entenda que a actividade normativa de definição do sistema tributário, à luz do princípio da legalidade tributária, não se traduz numa verdadeira e própria restrição de direitos, liberdades e garantias, então parece não constituir obstáculo inultrapassável que a lei acolha na sua formulação conceitos jurídicos indeterminados e, com base neles, confira à Administração uma 'margem de livre apreciação' para analisar uma dada situação de facto de incumprimento ou de desvio de um dever fiscal e, consequentemente, decidir da aplicação do mecanismo de substituição do sistema de tributação (como resulta do § 2.º do artigo 114.º do Código da Contribuição Industrial), desde que tal habilitação preencha o conteúdo mínimo exigível ao cabal cumprimento do aludido requisito da legalidade tributária (no sentido de previsão legal do imposto).

Mas mesmo para quem veja na definição normativa do sistema tributário, em concorrência com os ditames do princípio da legalidade e da tipicidade tributárias, uma específica forma de restrição de direitos, liberdades e garantias, ou melhor, de direitos fundamentais de natureza análoga, que beneficiariam do regime do artigo 18.º da Constituição, por força do disposto no artigo 17.º da lei fundamental, será também de concluir que, à luz do critério jurisprudencial atrás referenciado, quando a lei usa conceitos jurídicos indeterminados, embora daí resulte que a Administração vem a beneficiar de uma certa margem de liberdade de apreciação, não haverá ofensa da Constituição desde que os dados legais contenham uma densificação tal que possam ser tidos pelos destinatários da norma como elementos suficientes para determinar os pressupostos de actuação da Administração e que simultaneamente habilitem os tribunais a proceder ao controlo da adequação e proporcionalidade da actividade administrativa assim desenvolvida.

No caso vertente, constituirá exigência do princípio da legalidade tributária que os conceitos indeterminados contenham uma densificação normativa que permita aos particulares saber em que situações concretas possíveis é que pode ter lugar a substituição do sistema de tributação em contribuição industrial segundo o grupo A pelo do grupo B e aos tribunais conhecer da exigibilidade e da proporcionalidade da conduta da Administração ao determinar essa substituição do sistema de tributação.

Assim sendo, a norma em apreço torna claro que tal substituição só poderá operar quando 'em face do exame à escrita se verifique a impossibilidade de controlar a matéria colectável' bem como quando, face ao mesmo exame, resulte que existem 'dúvidas fundadas sobre se o resultado apurado corresponde ou não à realidade'.

É bem certo que a delimitação dos pressupostos de aplicação daquele normativo depende de um juízo valorativo tributário de elementos de carácter técnico - inexistência de elementos que permitam o controlo da matéria colectável e fundadas dúvidas de incorrecção ou inexactidão dos elementos constantes da escrita face à realidade económico-financeira da empresa -, mas não se afigura que da imposição constitucional constante do princípio da legalidade tributária decorra que tais pressupostos de aplicação do normativo impugnado legalmente estabelecidos se mostram insuficientemente densificados, atentas as especificidades do domínio fiscal, onde frequentemente, e em sede de exercício dos poderes de controlo, se terá de recorrer a conceitos jurídicos indeterminados e ao contributo de elementos de carácter técnico para fundar as decisões da Administração na prossecução do interesse público expresso numa correcta tributação dos agentes económicos.

Com efeito, o particular sabe, em face do postulado normativo, que não é toda e qualquer situação que justificará a mudança de sistema de tributação, mas apenas aquelas que, nos termos da lei, decorram de uma efectiva impossibilidade de controlo da matéria colectável, com base na escrita da empresa, e de fundadas dúvidas que a mesma escrita suscite quanto à correspondência entre o resultado atinente à matéria colectável apurado e declarado pelo contribuinte e a realidade da empresa, tal como a Administração a aprecia.

Ora a escrita é um elemento objectivo de prova, constitui matéria de facto constante do processo administrativo e a impossibilidade de determinação da matéria colectável há-de resultar da sua insuficiência (ou mesmo inexistência), podendo sempre ser objecto de contradita quer em sede de reclamação quer de recurso contencioso.

De igual forma as 'fundadas dúvidas' sobre a efectiva correspondência entre os resultados declarados pelo contribuinte e a realidade económica da empresa hão-de resultar de elementos objectivos da escrita da empresa, designadamente quando cotejados com a prática da Administração na apreciação de situações paralelas de outros contribuintes em situações similares.

Assim sendo, a norma em crise contém um quadro normativo definido por referência a conceitos jurídicos relativamente indeterminados, cujo preenchimento vai ser levado a cabo pela Administração em função do exame à escrita do contribuinte (aquilo a que Cardoso da Costa chama 'momentos insuprimíveis de liberdade', de apprezzamento subjectivo) e, para o efeito, socorrendo-se dos elementos de carácter técnico (da 'liberdade de investigação ou científica') que se mostrem operativos face ao seu grau de conhecimentos e de saber e que correspondem a uma certa flexibilidade adaptativa da norma à complexidade das relações sociais e ao próprio progresso e sofisticação das técnicas envolvidas nos casos de fraude ou de 'evitação' fiscal. Tal quadro normativo contido no preceito legal confere directrizes genéricas que permitem, pois, ao contribuinte saber em que casos e situações é que pode vir a sofrer as consequências de mudança do sistema de tributação.

Sem embargo, não se pode deixar de reconhecer que a efectiva adequação do procedimento da Administração face aos pressupostos legais é matéria que, em boa verdade, só pode ser realmente apurada partindo dos próprios resultados da actividade administrativa. Com efeito, quando se trata de saber se houve 'erro manifesto', o tribunal tem de partir do resultado da actividade da Administração para verificar se a decisão de aplicar a norma ao caso encontrava fundamento nos próprios pressupostos de facto da situação, ou seja, se a situação fáctica do contribuinte podia ou não ser subsumida à previsão legal na sua assinalável latitude.

O que só por si indicia que a efectiva observância do princípio da legalidade tributária não se pode quedar pela análise do grau de densificação normativa na óptica do seu conhecimento pelos particulares, antes tem de ir mais longe, num sentido de maior exigência quanto à garantia das posições jurídicas subjectivas dos administrados e, consequentemente, tem também de ser vista à luz da possibilidade de controlo jurisdicional da exigibilidade e da proporcionalidade dos juízos emitidos pela Administração no preenchimento daqueles conceitos indeterminados e na sua aplicação ao caso concreto. O mesmo é dizer que, nesta segunda vertente, a observância do próprio princípio da legalidade tributária vai de par com a garantia de recurso contencioso e com a amplitude dos poderes de cognição dos tribunais fiscais.

[...]

14 - Mas definido desta forma o âmbito da garantia constitucional do recurso contencioso, cumprirá perguntar se é legítimo, à luz da nossa lei fundamental, que se tenha por excluído um controlo 'mais profundo' [como o aparentemente pretendido pela recorrente], ou seja, um controlo que vá mais além do 'apprezzamento técnico', da verificação da atendibilidade do juízo expresso pelo órgão administrativo. Isto é, será constitucionalmente legítimo excluir, como atrás se afirmou, do controlo jurisdicional, ao abrigo da garantia de recurso contencioso (de anulação), a esfera de livre decisão da Administração criada por força de uma norma jurídica, quando esta se traduza na emissão de juízos de prognose ou de probabilidade mediante o recurso a meios técnicos, sem suporte directo numa norma legal?

A questão é tanto mais pertinente quanto tem-se chamado a atenção para a dificuldade de proceder à demarcação da análise e juízo técnico-científico e do ulterior momento atinente à escolha entre uma série de possibilidades equivalentes entre si do ponto de vista da compatibilidade com uma norma que impõe um determinado procedimento cognoscitivo, até porque entre essas duas fases pode existir uma relação de interpenetração, de influência recíproca (cf., neste sentido, Georgio Pelagatti, op. cit., p. 174).

Para responder a tal questão, de si extremamente complexa, importa desde logo sublinhar, por um lado, que a garantia do recurso contencioso, constante do n.º 3 do artigo 268.º da Constituição, não esgota, por si só, o complexo de instrumentos colocados à disposição dos particulares para fazerem valer os seus direitos e interesses legítimos (cf., v. g., artigos 20.º e 268.º, n.º 4) e, por outro, que a Constituição Portuguesa não consagra nenhuma 'reserva de administração' (Verwaltungsvorbehalt), isto é, não institui nenhuma área de actividade administrativa em relação à qual estejam excluídos os poderes do legislador e o controlo jurisdicional (cf., neste sentido, Sérvulo Correia, op. cit., p. 487, Gomes Canotilho, op. cit., p. 811, e Nuno Piçarra, 'A reserva de administração', in O Direito, ano 122.º (1990), II, pp. 325 e segs., e III-IV, pp. 571 e segs.).

Tradicionalmente a destrinça entre os juízos de accertamento e os juízos propriamente valorativos assenta num pressuposto filosófico segundo o qual a ciência constitui uma actividade produtora de verdade, de certeza absoluta. Mas esta explicação tem vindo progressivamente a ser submetida a severas críticas, que põem em relevo a sua natureza de explicação/fundamento marcadamente ideológico, que parece cada vez mais claudicante face às mais recentes aquisições da epistemologia contemporânea, que sublinham precisamente o carácter não absoluto do conhecimento científico (cf. Karl Popper, La logica della scoperta scientifica, Torino, 1970, p. 5, e Congetture e confutazioni. Lo sviluppo della conoscenza scientifica, Bologna, 1972, pp. 369 e segs., e T. H. Khun, La struttura delle rivoluzioni scientifiche, Torino, 1978, pp. 22 e segs.).

Num plano mais centradamente jurídico, uma relevante corrente doutrinal (de inspiração germânica) tende a fundamentar a exclusão de um tal controlo jurisdicional 'mais profundo' (incidente sobre os juízos valorativos) com base na dicotomia entre Rechtsfragen (questões de direito) e Ermessenfragen (questões de oportunidade) [cf. F. Ledda, op. cit., p. 432], identificando os juízos técnicos às primeiras, com base no pressuposto de que o reenvio levado a cabo pelo direito para uma norma técnica, ao produzir a juridificação desta, constitui ainda uma espécie dentre os fenómenos interpretativos, e portanto, enquanto aplicação da norma, tais juízos são susceptíveis de um controlo jurisdicional directo (F. Ledda, op. cit., loc. cit.), se bem que confinado à apreciação da correcção do procedimento cogniscitivo adoptado.

Este entendimento afasta, pois, expressamente os juízos técnicos do fenómeno da discricionariedade administrativa, e nesta medida proscreve o recurso à categoria do 'juízo de mérito administrativo' como fundamento da exclusão de um controlo jurisdicional total dos juízos técnicos. Mas uma vez que o controlo jurisdicional se restringe à verificação da atendibilidade do juízo expresso pelo órgão administrativo, sobre a correcta aplicação das regras técnicas e científicas reclamadas pela norma legal, e uma vez verificada tal atendibilidade e correcção, então estar-se-ia perante uma questão de escolha entre várias soluções possíveis, todas em si mesmas legítimas porque todas apuradas segundo os critérios normativamente preestabelecidos, escolha essa que já não seria meramente 'técnica' mas antes fundada em critérios de 'oportunidade', cuja natureza os exclui do controlo jurisdicional, porque uma decisão do juiz não se pode substituir, em sede de oportunidade, à decisão da Administração (F. Ledda, op. cit., p. 434).

Nesta linha de orientação, a discricionariedade e a margem de liberdade de apreciação dos conceitos jurídicos indeterminados por parte da Administração encontram o seu fundamento no próprio princípio da separação de poderes, gerando, assim, uma 'reserva de decisão parcial' da Administração face aos tribunais (Sérvulo Correia, op. cit., p. 487), estabelecida pelo próprio legislador com base numa norma jurídica que fixa, ela própria, 'um núcleo mínimo incomprimível de pressupostos e de elementos do conteúdo do acto' (idem, ibidem, p. 486).

Diversamente, outra corrente doutrinária tem vindo a qualificar os juízos técnicos como parte de uma fenomenologia mais vasta, reportável aos denominados 'factos opinativos', que contemplam as hipóteses nas quais a verificação da existência e do relevo dos factos (accertamento dei fatti) abstractamente previstos numa norma determina uma solução - pela própria natureza dos factos em causa - que resulta inevitavelmente controversa, ou seja, o 'facto opinativo' consiste numa situação real prevista - tipicizada - por uma norma imprecisa [cf. C. Marzuoli, Potere amministrativo e valutazioni techniche, Milano, 1985, pp. 151 e segs.].

Neste contexto, a valoração discricionária constitui um facto (em sentido amplo) correlacionado a uma norma elástica, imprecisa, a qual impõe a prossecução de uma finalidade de interesse público e remete à decisão da autoridade administrativa e fixação dos valores e das prioridades no conjunto dos interesses em presença. Esta qualificação operada pela Administração enquanto actividade reservada, ao excluir um controlo jurisdicional pleno e substitutivo, deriva da natureza política da opção que lhe preside: 'a imprecisão, a elasticidade da norma reporta-se à definição de uma ordem de relações sociais, económicas, cuja individualização responde a critérios de oportunidade totalmente opinativos. A subtracção da valoração discricionária a controlo jurisdicional (fora os casos da jurisdição de mérito), por isso, pode dizer-se que é imposta pelos princípios constitutivos da forma de Estado: o princípio democrático exige que as decisões inerentes à gestão de interesses sejam assumidas por sujeitos representativos da vontade expressa dos titulares desses interesses' [Georgio Pelagatti, op. cit., p. 180].

Assim, uma adequada valoração técnica impõe subsequentemente escolhas associadas à valoração do interesse público em presença (como refere Sérvulo Correia, op. cit., p. 480, 'no âmbito da margem de autodeterminação que lhe é deixada, o titular do poder tem de comparar e valorar todos os interesses públicos e privados que possam ser satisfeitos pela decisão e hierarquizá-los à luz do interesse público específico em termos de escolher um ou alguns em detrimento dos restantes'), mas tais escolhas são, por natureza, alheias à valoração técnica, porquanto, ao assentarem na imposição ou na prevalência de certos valores face a outros, são, em última análise, reconduzíveis à função de 'direcção política' (indirizzo politico) formulada pelos órgãos constitucionais e correspondem à crescente dimensão técnica da própria política [cf. C. Marzuoli, op. cit., p. 227].

Razão pela qual esta corrente doutrinária entende que a Administração Pública, por contraste com as entidades jurisdicionais, representa o sujeito melhor habilitado para formular tais escolhas, já que os 'valores' expressos pela Administração, enquanto 'filtrados e influenciados' pelos valores do indirizzo politico, surgem como mais representativos e daí que a possibilidade de um poder reservado de valoração técnica encontre o seu fundamento no princípio democrático e de representatividade [cf., neste sentido, C. Marzuoli, op. cit., loc. cit., Giorgio Pelagatti, op. cit., p. 183; em sentido contrário - no da prevalência do juízo jurisdicional -, V. Ottaviano, 'Giudice ordinario e giudice amministrativo di fronte agli apprezzamenti tecnici dell' amministrazzione', in Studi in Onore di V. Bachelet, vol. II, Milano, 1987, p. 439, nota 25; ainda numa perspectiva crítica quanto a este entendimento, face aos riscos da 'politização da Administração' e da autonomização dos aparelhos administrativos face às insuficiências das instâncias de controlo político, ver G. Pelagatti, op. cit., pp. 189 e 190].

Do exposto resulta que, independentemente do fundamento teórico que se adopte, questão que em si mesma não releva neste momento, existem argumentos ancorados em princípios básicos do nosso ordenamento constitucional que se mostram suficientemente relevantes para poder concluir que a existência de domínios de discricionariedade e de valoração técnica excluídos de um controlo jurisdicional pleno (no sentido de 'controlo substitutivo') não constitui, em sede de recurso contencioso de ilegalidade, atentado à garantia constitucional constante do n.º 3 do artigo 268.º da Constituição."

No Acórdão 756/95, o Tribunal Constitucional voltou a ser chamado a pronunciar-se sobre o problema da mobilização legislativa de "cláusulas gerais", "conceitos indeterminados" ou "conceitos tipológicos", tendo concluído que o recurso a tais instrumentos tipológicos só será de considerar inadmissível quando possa concluir-se que, por seu intermédio, se coloque "nas mãos da Administração um poder arbitrário ou de concretização", sendo que, como indica Cardoso da Costa ("O enquadramento constitucional do direito dos impostos em Portugal", in op. cit., p. 411), mencionando o citado aresto, aí se manifestou a necessidade de uma "harmonização" dos dois valores conflituantes, porquanto aí se confrontam "de um lado, a exigência da 'determinabilidade' da norma tributária, como condição da 'calculabilidade' dos encargos para os contribuintes (o que tem a ver com a dimensão 'garantística', num dos seus pontos cruciais, do princípio da legalidade) e, do outro, a necessidade de conferir a essa norma uma 'plasticidade' que a torne suficientemente capaz de abranger a realidade a tributar na sua diversidade evolutiva, frustrando formas artificiosas de evasão e assegurando, assim, a igualdade de tratamento (o que, se é expressão, dir-se-á, de um 'princípio de realidade' por que há-de pautar-se a construção de todo o direito público, tem também a ver, afinal, e por seu turno, com essa outra dimensão do princípio da legalidade, que é a sua dimensão democrática)".

Ainda que a sua análise não se tenha centrado especificamente em torno do âmbito de admissibilidade da utilização de conceitos indeterminados na construção de normas fiscais de incidência e de determinação da matéria colectável à luz do princípio da legalidade tributária, é, igualmente, de lembrar o Acórdão 84/2003, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 55.º vol., p. 91, e no Diário da República, 2.ª série, de 29 de Maio de 2003. Na verdade, apreciando a constitucionalidade de diversas normas em cujo recorte intervêm diversos conceitos desse tipo, o Tribunal concluiu pela sua não inconstitucionalidade.

Ao nível da doutrina cabe notar a posição de José Casalta Nabais (O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Coimbra, 1998, pp. 373 e segs., esp.te p. 378), que, no recorte dogmático do princípio da legalidade fiscal, entende "chamar aqui à colação, enquanto limite à determinabilidade requerida pelo princípio da tipicidade fiscal, [...] o princípio da praticabilidade, o qual implica que o legislador não vá tão longe na determinação das soluções legais quanto seria de exigir, permitindo à administração uma dada margem de livre decisão, sob pena de nos depararmos com soluções impraticáveis no sentido de economicamente insuportáveis [...] Daí que, em face à realidade das situações cujo grau de diferenciação e individualização não é possível acompanhar por razões de ordem prática, nomeadamente pelos custos insuportáveis ou inadequados que implicam, se apele à edição de normas de simplificação, seja em sede legislativa seja em sede administrativa, através das quais se proceda à tipificação [ou tipi(ci)zação], globalização ou estandardização, assumindo como regra o que é típico, normal, provável [...]", sendo que, para o autor, "o princípio da praticabilidade ainda pode contribuir para uma atenuação das exigências da determinabilidade do princípio da legalidade fiscal [...], constituindo-se em suporte para o legislador utilizar conceitos indeterminados [...] ou conceder mesmo faculdades discricionárias, o que de resto se verifica em toda a parte e que, entre nós, tem diversas manifestações [...]", sendo uma delas, precisamente, a da norma que permite "a correcção dos lucros em caso de relações especiais".

Mais recentemente, e na mesma linha das suas posições anteriormente sustentadas - referidas no aresto supratranscrito - Saldanha Sanches ("A LGT e a tributação segundo o lucro normal", in Fiscalidade, n.º 15, Julho de 2003, pp. 61 e segs.), discreteando sobre a fundamentação aduzida pelo Provedor de Justiça no processo 531/99 (que mereceu o referido Acórdão 84/2003) - para quem a possibilidade de definição por um membro do Governo dos indicadores de actividade de base técnico-científica previstos no artigo 89.º da lei geral tributária "traduz em si mesma um poder discricionário da administração fiscal inadmissível num Estado de direito democrático, que põe seguramente em crise as exigências que estão subjacentes ao princípio da segurança jurídica aplicado ao domínio tributário" -, não deixou de criticar a posição doutrinária de acordo com a qual "o princípio da tipicidade e da legalidade proíbe em absoluto a discricionariedade por parte da administração fiscal", afirmando que "assim entendido o princípio da legalidade estamos perante uma posição marcada por um total irrealismo metodológico: poderemos dizer, tal como o faz o § 5 da Abgabenordung, que a administração fiscal tem uma habilitação para agir segundo a sua discricionariedade que deve ser exercida de acordo com os fins que a lei define e dentro dos seus limites".

5.2.4 - Condensadas as linhas de rumo firmadas pela densificação material - substantiva do princípio da legalidade fiscal e encontradas, assim, as linhas reflexivo-dogmáticas que hão-de nortear a resolução do problema sub judicio, importa agora confrontar a previsão do artigo 57.º do CIRC com o parâmetro constitucional, procurando esclarecer se - e em que medida - a sua formulação apresenta - ou não uma suficiente densidade normativa à luz do parâmetro constitucional e se aí se implicará - ou não - a concessão de verdadeiros poderes discricionários à administração fiscal incompatíveis com o âmbito de tutela emergente da "Constituição fiscal".

Desde logo, ao nível do âmbito subjectivo de aplicação do preceito, fica claro que a actuação administrativa fica agrilhoada à prova de existência de relações especiais entre o sujeito passivo e uma outra entidade, sujeita ou não ao regime do IRC, decorrendo imediatamente do preceito que a verificação de tais situações está condicionada pela existência de uma relação objectiva de dependência tal que permita uma manipulação dos preços de transferência em face dos valores de transacção praticados por entidades independentes que, por definição, não se inter-relacionam em termos do exercício de um poder de influência dominante susceptível de determinar uma actuação marcada por uma concertação de interesses com a intentio suprafirmada.

Os pressupostos de actuação administrativa vão, nesses termos, concretizados - como bem se referiu na decisão recorrida - em torno do conceito de dependência, sendo manifesto, atendendo à teleologia da norma, que a aplicação do regime exigirá a existência de um especial vínculo entre os sujeitos que possa determinar o estabelecimento de condições anómalas em face das que seriam impostas entre entidades dealing at arm's length.

Por outras palavras, o recorte do âmbito de aplicação da norma sindicanda passa, indubitavelmente, pela constatação de que os preços de transferência não reflectem adequadamente os mecanismos de mercado e o princípio de plena concorrência, devendo tal distorção ter na sua base a existência de uma relação especial, de dependência, entre sujeitos distinta da que ocorre entre entidades não associadas, não vinculadas entre si e, assim, não sujeitas a influências de gestão heteronomamente determinadas (hoc sensu, independentes).

5.2.4.1 - Assim, "respondendo" aos problemas supra-enunciados - e levando em linha de conta as considerações já tecidas sobre a problemática em questão -, sempre importa começar por evidenciar que a ratio normativa e o campo de aplicação por ela implicado se apresentam moldados com base na afirmação de um claro e apreensível pressuposto subjectivo que passa pela exigência de que as condições estabelecidas sejam determinadas por uma relação especial traduzida, na imanente teleologia normativa, numa relação de dependência.

Considerado na sua globalidade significante e valorativa, o preceito exige que o verificável desfasamento objectivo seja fundado numa constatável relação intersubjectiva qualificada pelo nexo de dependência, em termos da susceptibilidade de induzir/produzir uma actuação empresarial concertada em função de uma partilha de interesses - estranha em face das regras de funcionamento do mercado entre entidades não vinculadas - e concretizada num poder de ingerência condicionador e controlador da actuação empresarial segundo uma ratio não explicável - e compreensível -, segundo o cânone da plena concorrência, à luz dos criteria determinantes da actuação de sujeitos não vinculados.

A esta luz, não só se torna imperioso determinar, numa lógica que leva subjacente uma ideia de comparabilidade, os termos em que decorrem as relações entre sujeitos independentes - sabendo-se que "[...] os métodos que aplicam o princípio de plena concorrência partem do pressuposto de que as empresas independentes examinam as diferentes opções de que dispõem e, na comparação dessas opções, tomam em consideração todas as diferenças susceptíveis de influenciar de modo significativo o valor das mesmas [...] [sendo] de esperar que empresas independentes, antes de comprarem um produto por um dado preço, verifiquem a possibilidade de comprar mais barato a outra empresa" - cf. "OCDE - Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às administrações fiscais", in op. cit., p. 42) -, mas também demonstrar que a especial qualidade das relações entre os sujeitos traduzida num vínculo que, em concreto, é condição sine qua non da fixação de um valor estranho ao mercado.

Na verdade, como resulta da intencionalidade prático-normativa do preceito, não será um qualquer afastamento objectivo do standard referencial assumido pelo valor de plena concorrência a ditar a aplicabilidade do presente regime.

A este propósito, Fernando Rocha Andrade ("Preços de transferência e tributação de multinacionais: as evoluções recentes e o novo enquadramento jurídico português", in op. cit., pp. 333 e 334), em crítica à actual formulação legislativa, máxime no que tange com as hipóteses abrangidas pela alínea g) do n.º 4 do artigo 58.º, não deixa de notar, como hipótese, que "[...] o preço obtido pode afastar-se do que existiria num mercado totalmente concorrencial, mas isso acontece precisamente porque há uma situação de imperfeição de concorrência - ou seja, porque a realidade económica não é conforme aos modelos do mercado concorrencial", mas determinada "por uma empresa com maior poder de mercado".

Tem-se entendido, face à ratio do regime legal, que a conformação do valor estipulado há-de ser produto de uma vontade convergente dos sujeitos numa relação de comunhão/associação de interesses (comuns), ou seja, é forçoso que a transacção não seja de algum modo comparável ao resultado emergente entre entidades que se separam (dealing at arm's length ...) na prossecução de interesses próprios - et pour cause, divergentes -, mas o reflexo de um "abraço" intencional, fruto de uma vontade comum susceptível de "levar a que os valores das transacções transfiram parte da matéria colectável entre os vários pólos fiscais de um mesmo centro de interesses económicos convergentes, afastando-se dos que seriam praticados por 'entidades independentes'" (cf. Fernando Rocha Andrade, "Preços de transferência e tributação de multinacionais: as evoluções recentes e o novo enquadramento jurídico português", in op. cit., p. 333).

Assim, ainda que o conceito de relações especiais de dependência, pode dizer-se - possa assumir, quanto às suas possíveis manifestações concretizadoras, uma certa geometria variável, a verdade é que ele goza, quanto ao grau determinante da aplicabilidade do regime, de uma formulação basicamente constante e apreensível quando reportado, em termos de intencional causalidade, ao pressuposto objectivo elencado na norma.

Na essência é também este o critério que vem igualmente explicitado ao nível do direito comparado, e, ainda que o seu grau de densificação assuma, nos diversos ordenamentos jurídicos, uma tonalidade matizada, é nota comum a todos a concretização do conceito de relações especiais em volta de uma tal relação de dependência, sendo possível "evidenciar que este pressuposto subjectivo [...] tende a ser definido em termos voluntariamente elásticos e, sobretudo, tendendo a prescindir da subsistência de precisos requisitos formais para resolver-se na verificação [...] da efectiva existência de uma determinada situação de controlo de um sujeito sobre o outro, ou da sujeição de ambos a um comum centro de poder e direcção" [cf. Francesca Balzani, "Il transfer pricing", in AA. VV. (coord. de Victor Uckmar), Corso di diritto tributario internazionale, 2.ª ed., Padova, 2002, p. 426].

Em França, o artigo 57.º do Code General des Impôts alude, a esse nível, às "enterprises qui sont sous la dependance ou qui possèdent le contrôle d'enterprises", tendo a doutrina vindo a reconhecer que aí se deverão incluir "todas as hipóteses de comunhão de interesses explicada juridicamente pelo poder de incidir sobre a vontade de outrem [...] ou decorrentes, de facto, de condições económicas que 'disciplinam' uma ligação" (cf. Gilbert Tixier e Guy Gest, Droit fiscal international, Paris, 1985, pp. 353 e segs., esp.te pp. 558 e segs.).

Na Bélgica, o artigo 24.º do Code des Impôts sur les Revenus refere-se a "liens quelconques d'interdependance" entre empresas, sendo que, como refere Guglielmo Maisto (Il "transfer price" nel diritto tributario italiano e comparato, op. cit., p. 79), a doutrina e a jurisprudência vêm aí incluindo, extensivamente, "todas as hipóteses de influência jurídica ou económica de uma empresa sobre a outra".

Também nos Estados Unidos da América se referem as relações entre empresas em torno da afirmação de um nexo que denuncie a existência de uma comunhão de interesses. Nesse sentido a secção 482 do Internal Revenue Code refere-se a "owned or controlled directly or indirectly by the same interest" - tendo a jurisprudência elaborado um conceito de "presunção de controlo" mediante o qual a administração fiscal poderá provar o "nexo de dependência" com base na anormalidade do valor da transacção inter-partes (cf. Guglielmo Maisto, Il "transfer price" nel diritto tributario italiano e comparato, Padova, 1985, p. 82).

No ordenamento jurídico italiano, o artigo 76.º do Testo Unico delle Imposte sui Redditi, na sua versão original, referia-se a uma relação entre sujeitos de "influenza dominante", compreendida de molde a abarcar todas as situações no âmbito das quais "a relação jurídica ou económica entre sujeitos é de modo a pressupor uma alteração dos valores das trocas comerciais, com uma assimilação prática às hipóteses de 'comunanza di interessi'", estando hoje concretizado, perante a redacção actual do artigo 110.º, n.º 7, do mesmo diploma, que tais hipóteses se desenvolvem em torno das "operações com sociedades [...] que directa ou indirectamente controlam a empresa" (cf. Guglielmo Maisto, Il "transfer price" nel diritto tributario italiano e comparato, cit., p. 69; Benedetto Lavagnino, Nuovo TUIR 917 - Imposte sui redditi, Napoli, 2004, p. 224).

Por seu lado, o regime espanhol, na Lei 43/1995 (Ley del Impuesto sobre Sociedades), admite, no seu artigo 16.º, que a administração fiscal possa "valorar, dentro do período de prescrição, pelo seu valor normal de mercado as operações efectuadas 'entre pessoas ou entidades vinculadas' quando a valoração acordada houver determinado, considerando o conjunto de pessoas ou entidades vinculadas, uma tributação em Espanha inferior à que teria correspondido por aplicação do valor normal de mercado ou um deferimento em tal tributação", especificando, no n.º 2 do referido preceito, que as pessoas ou entidades que se consideram vinculadas, apesar de a legislação espanhola admitir igualmente que, fora de tais "pressupostos de vinculação", possa ter lugar uma correcção administrativa segundo o valor normal de mercado independentemente da existência ou não de uma vinculação entre os sujeitos (cf. Carlos Herrero Mallol, Precios de transferencia internacionales - Estudio tributario y microeconómico, Pamplona, 1999, pp. 215 e segs.).

E essa relação de dependência, causalmente assumida - como o é no contexto da regulamentação em crise -, conduz a que se haja de fazer relevar neste âmbito os modos pluriformes de controlo e influência suficientes (hoc sensu, determinantes) para condicionar uma determinada transacção (cf. Francesca Balzani, Il "transfer pricing", op. cit., p. 425).

Também no nosso artigo 57.º do CIRC vai implicado um conceito técnico-funcional de dependência que tem, quanto à sua intensidade, um recorte especificamente determinado (recte, determinável) em sintonia com a sua intencionalidade fiscal, autorizando-se a correcção sempre que exista, entre as entidades envolvidas, uma relação pela qual uma possa, em face de uma operação concreta, influenciar determinantemente a autonomia decisória da outra, exercitando sobre ela "directa ou indirectamente uma influência 'análoga ao controlo'" de forma a não poder afirmar-se uma exclusiva autodeterminação como substrato voluntarístico de uma dada operação.

Trata-se, enfim, como infra se tornará mais claro, de apurar da existência de uma situação fáctica ou jurídica que possa influenciar as decisões empresariais, determinando-lhes um conteúdo material insusceptível de repetir-se numa relação entre sujeitos não vinculados.

E não é outro o sentido que emerge de importantes modelos operatórios imediatamente mobilizáveis no sentido de, perante um caso concreto, melhor se concretizar a intencionalidade prático-normativa do critério legal.

Releve-se, ainda, a este propósito, a noção de "empresa associada" constante das diversas convenções internacionais para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal celebradas por Portugal, onde foi acolhida, ipsis verbis, a formulação presente na convenção modelo da OCDE (cf. Francisco de Sousa da Câmara, "A avaliação indirecta da matéria colectável e os preços de transferência na LGT", in Diogo Leite de Campos et al., Problemas Fundamentais do Direito Tributário, Lisboa, 1999, pp. 364 e 365).

E na perspectiva de acentuação das "semelhanças e diferenças", podem ainda convocar-se outros domínios dogmáticos (ainda que, em todo o caso, a sua influência para a determinação do sentido jurídico-normativo do preceito haja de ser enquadrada, de acordo com a ratio da tributação, no seio da norma aplicanda).

Atente-se, por exemplo, na regulamentação constante do Código das Sociedades Comerciais relativa às "sociedades coligadas" (artigos 481.º e seguintes), onde se disciplinam os pressupostos e o regime das sociedades em relação de simples participação, das sociedades em relação de participação recíproca, das sociedades em relação de domínio e das sociedades em relação de grupo; ou, principaliter, no plano contabilístico, o disposto nas Normas Internacionais de Contabilidade n.os 24 e 28 do International Accounting Standards Committee (cf. Duarte Barros, "Metodologias na determinação do preço de plena concorrência - Perspectiva da administração fiscal", in op. cit., pp. 4 e segs.; cf., igualmente, João Rodrigues, Adopção em Portugal das Normas Internacionais de Relato Financeiro, Lisboa, 2003, pp. 429 e segs.).

Por outro lado, como se infere do já exposto, além da existência de relações especiais, a lei estabelece, como pressuposto da correcção administrativa, a presença de um desvio ou discrepância das condições concretamente acordadas entre as entidades vinculadas relativamente àquelas que seriam acordadas entre sujeitos independentes, firmando, neste domínio, um nexo de causalidade (cf. Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional, Coimbra, 1993, p. 323) que tem de ser necessariamente provado e, formalmente, levado à fundamentação do acto administrativo na exigência de demonstração da existência de "relações especiais" e, mais especificamente, dos "termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias".

Explicitando os termos concretizadores da exigência de uma especial densidade significante do discurso administrativo que faça aplicação da norma constitucionalmente impugnada, o artigo 80.º do Código de Processo Tributário - vigente no período temporal a que se referem os autos - obrigava a:

"Sempre que as leis tributárias permitam que a matéria colectável seja corrigida com base em relações especiais entre contribuinte e terceiro e verificando-se o estabelecimento de condições diferentes das que se verificariam sem a existência de tais relações, a fundamentação das correcções obedecerá aos seguintes requisitos:

a) Descrição das relações especiais;

b) Descrição dos termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias;

c) Descrição e quantificação do montante efectivo que serviu de base à correcção."

Pelo que a "particularização" ou concretização dos elementos factuais do caso e dos referenciais de mercado exigidos neste preceito não deixa de assumir uma natureza explicativa do sentido material da norma de tributação, integrando, por esta via, o seu conteúdo material.

Em todo o caso, remete-se sempre o intérprete para um confronto do valor de uma transacção com o preço que seria fixado ou acordado entre entidades independentes no seio de um mercado livre, firmando-se, assim, neste domínio, "a existência de um pressuposto objectivo - que preside à operatividade do instituto - que é constituído pela 'anormalidade' do valor acordado entre empresas vinculadas que realizam uma determinada operação" (cf. Guglielmo Maisto, Il "transfer price" nel diritto tributario italiano e comparato, cit., p. 85).

É precisamente neste nódulo problemático que a generalidade dos operadores (sejam eles os particulares, a Administração ou os tribunais) são remetidos para a consideração do preço de plena concorrência, concretizado este, como já se salientou, como o preço estabelecido entre sujeitos independentes para uma dada operação como expressão do livre mecanismo de mercado (open market price).

Neste domínio, vem reconhecendo-se que a determinação dos preços de transferência, dealing at arm's length, não constitui uma "ciência exacta" (cf. Patrick Cauwenbergh, "Does the arm's length standard require a flexible or a rigid interpretation?", in International Transfer Pricing Journal, n.º 3 (Maio-Junho de 1997), p. 139, e Francisco de Sousa da Câmara, "A avaliação indirecta da matéria colectável e os preços de transferência na LGT", in op. cit., p. 364) no sentido de permitir predefinir com exactidão todo o "conjunto de possibilidades" e vertê-lo numa fórmula conducente, ao estilo matemático, a um resultado único e inequívoco quanto ao processo de apuramento de um valor at arm's length. Sendo inúmeras as possibilidades, apenas a prática - e o problemático-concreto - poderá decidir da metodologia a seguir na prossecução de tal objectivo, não sendo imposto pelo princípio da legalidade fiscal que os elementos de índole técnico-empírica de desenvolvimento da actividade administrativa, num domínio como este - onde vai inerente o reconhecimento apodíctico de uma ineliminável esfera de liberdade valorativo-probatória -, tenham de constar da norma legal.

De qualquer modo, a própria consideração do princípio de plena concorrência permite que, a partir dele, se extraiam directamente, desde logo, certos corolários - vectores de não discipienda relevância para a metodologia a seguir na sua determinação.

Pode notar-se, a propósito, que Maria Teresa Veiga de Faria ("Preços de transferência - Problemática geral", op. cit., pp. 412; v., igualmente, quanto a este ponto, em discurso análogo, Francesca Balzani, "Il transfer pricing", op. cit., pp. 441 e segs., e Guglielmo Maisto, Il "transfer price" nel diritto tributario italiano e comparato, cit., pp. 101 e segs.), partindo do relatório da OCDE de 1979, identifica como tais: "a) a análise deverá incidir sobre transacções específicas, individualmente identificadas (análise transaccional); b) a transacção efectuada deve ser comparada com uma outra transacção [...] igual ou semelhante inserida num contexto igual ou semelhante; c) os termos legais dos contratos celebrados devem, em princípio, ser tidos em conta, designadamente em matéria de obrigações emergentes; d) o preço de transferência a determinar deve tomar como base um mercado concorrencial e as práticas habituais nos negócios; e) a individualidade do contexto em que a transacção é efectuada deve ser respeitada, ainda que tal implique um desvio ao 'valor justo de mercado' (fair market price); f) a determinação do preço de plena concorrência deve ter em conta as funções desempenhadas pelas empresas associadas - análise funcional [...] [que deve englobar], designadamente, a identificação e avaliação do risco económico, das obrigações e grau de responsabilidade de cada elemento do grupo".

Tendo em conta a fisionomia caracterizadora do princípio de plena concorrência, pode, desde logo, defender-se que esse critério aponta, só por si, para uma metodologia susceptível de conduzir à sua determinação.

Nessa linha perfila-se todo um conjunto de métodos que directa ou indirectamente são reconduzíveis a uma lógica de comparabilidade, apelando para a valoração de determinada transacção em função da referência aos preços que seriam acordados entre sujeitos independentes em face de operações idênticas ou manifestamente análogas no âmbito de um mercado não controlado. É o que sucede com o "método do preço comparável de mercado" (comparable uncontrolled price), que, em rigor, se assume, recta via, como uma autêntica "expressão típica do princípio 'dealing at arm's length'" e como o "método mais directo de determinação do preço de plena concorrência" (cf. "OCDE - Relatório do Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE de 1979, op. cit., p. 50, e Gugliemo Maisto, Il "transfer price" nel diritto tributario italiano e comparato, cit., p. 105); com o "método do preço de revenda minorado" (resale price method), tido como o método "mais adequado à determinação do preço de plena concorrência em operações comerciais de venda de bens" (cf. Paula Rosado Pereira, "O novo regime dos preços de transferência", op. cit., pp. 37; "Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às administrações fiscais, op. cit., p. 71; Carlos Herrero Mallol, Precios de transferencia internacionales - Estudio tributario y microeconómico, cit., p. 89; Gugliemo Maisto, "Transfer pricing in the absense of comparable market prices", op. cit., p. 225, e Francesca Nalzani, "Il transfer pricing", op. cit., pp. 431); com o "método do custo majorado - 'método do preço de custo acrescido de uma margem de lucro'" (cost plus method) (cf. "OCDE - Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais", op. cit., pp. 78 e segs.; "OCDE - Preços de transferência e empresas multinacionais - Relatório do Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE de 1979", op. cit., pp. 59 e segs.; Daniel de Crem, "Margin and cost base for applying the cost-plus method", in International Transfer Pricing Journal, vol. 6, n.º 1, Jan.-Fev., 1999, pp. 15 e segs.; William T. Cunningham, "Application of the cost-plus method", in International Transfer Pricing Journal, vol. 6, n.º 1, Jan.-Fev., 1999, p. 19; Andrew Casley/Ahmad Abu-el-Ata, "The cost-plus method", in International Transfer Pricing Journal, vol. 6, n.º 1, Jan.-Fev., 1999, pp. 20 e segs.; Deloris R. Wright/Harry A. Keates, "The cost-plus method", in International Transfer Pricing Journal, vol. 6, n.º 1, Jan.-Fev., 1999, pp. 26 e segs.; Guglielmo Maisto, "Transfer pricing in the absense of comparable market prices", op. cit., pp. 226; Francesca Balzani, "Il transfer pricing", op. cit., pp. 432; Carlos Herrero Mallol, Precios de transferencia internacionales - Estudio tributario y microeconómico, cit., pp. 90 e segs.); com "o método do fraccionamento do lucro" (profit split method), este aplicável, essencialmente, nas situações em que ocorre falta de operações comparáveis entre entidades independentes em resultado da estrutura do mercado, designadamente em caso da existência de oligopólios ou de monopólios e de especificidade dos bens ou dos serviços objecto da operação, principalmente no caso de royalties, cedência de know-how e assistência técnica (cf. Paula Rosado Pereira, "O novo regime dos preços de transferência", op. cit., p. 39; "OCDE - Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às administrações fiscais", op. cit., pp. 89 e segs.); e, também nessa linha, o "método da margem líquida da operação" (transactional net margin method) (cf. "OCDE - Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às administrações fiscais, op. cit., pp. 96 e segs. Sobre estes transactional profit methods, cf., inter alia, Francesca Balzani, "Il transfer pricing", op. cit., p. 435; Carlos Herrero Mallol, Precios de transferencia internacionales - Estudio tributario y microeconómico, cit., pp. 91 e segs.; Guglielmo Maisto, "Transfer princing in the absence of comparable market prices", in Cahiers de Droit Fiscal International, vol. LXXVIIa, 1992; Paula Rosado Pereira, "O novo regime dos preços de transferência", op. cit., pp. 39 e segs.).

5.2.4.2 - Não há dúvida de que a presente construção legislativa assenta na mobilização tipológica de conceitos indeterminados, que, pela sua natureza, não se prestam a uma aplicação "automática", antes exigindo uma valoração problematicamente concretizadora do sentido jurídico-normativo da norma, e, portanto, uma concretização especificante em atenção ao caso a considerar.

Contudo, tal conclusão não autoriza que, sem mais, possa concluir-se por uma apodíctica preterição do princípio da legalidade fiscal - com a inerente dimensão de tipicidade - e, do mesmo passo, pelo reconhecimento de um insindicável espaço de discricionariedade à actuação administrativa, mesmo salientando-se que nessa esfera não pode estar em causa a concessão de um poder arbitrário de conformação normativa, porquanto, a bem ver, no âmbito de um Estado de direito materialmente comprometido, toda a actuação administrativa, ainda que discricionária, está sempre "sujeita a uma regra de absoluta juridicidade" (cf. João Pedro Silva Rodrigues, Critérios Normativos de Predeterminação da Matéria Tributável - Os Novos Caminhos Abertos pela [Pré-] Suposta Avaliação Indirecta na Imposição Fiscal do Rendimento, Coimbra, 2002, p. 110; e, mais expressivamente, A. Castanheira Neves, "O problema da discricionariedade", in Digesta - Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da Sua Metodologia e Outros, 1.º vol., Coimbra, 1995, pp. 531 e segs., especialmente a p. 586).

Nesta linha discursiva, sempre haverá, então, que distinguir as questões relacionadas com o exercício de poderes discricionários "daqueloutras onde, perante um conceito indeterminado, a actuação administrativa é completamente vinculada e, por isso, sindicável pelo tribunal em toda a sua extensão", sendo que, no domínio tributário - mesmo no que toca especificamente à definição dos elementos essenciais dos impostos e aos aspectos relacionados com a sua incidência - o princípio da legalidade não impede que a prescrição legislativa que contenha conceitos indeterminados através dos quais se "remeta [...] a administração para a consideração de circunstâncias de índole técnica [...] [possa] significar a preterição da instância jurisdicional decidente, [ou] a condenação do contribuinte a uma mera decisão administrativa [...]".

Na verdade, não pode deixar de reconhecer-se que tais "conceitos indeterminados são passíveis de uma interpretação concretizadora que opere a sua determinação conceitual [...] [não colocando] nas mãos da administração fiscal o monopólio da sua densificação, [...] como autênticas 'cláusulas de discricionariedade'", porquanto, "se nem todos os conceitos legais têm o mesmo grau de indeterminação, a verdade é que todos são interpretáveis e, embora a determinação do sentido jurídico-normativo da norma interpretanda seja marcada por uma ineliminável subjectividade, tal não significa, contudo, que a mobilização de normas legais onde estejam inseridos conceitos indeterminados não possa ser pertinentemente sindicada pelos tribunais fiscais" (cf. João Pedro Silva Rodrigues, "Conceitos indeterminados e a sindicabilidade pelo tribunal da sua 'interpretação-aplicação'", in Saldanha Sanches et alii, Jurisprudência Fiscal Anotada, 2001, pp. 89 e segs., especialmente as pp. 102-103).

E, no âmbito desta distinção, sempre importará precisar que não será, pois, o maior ou menor grau de indeterminação conceitual a determinar - ou afastar - a sindicância jurisdicional do juízo administrativo, antes havendo que determinar se, para lá da estrutura conceitual da norma e, portanto, do seu "conteúdo significativo-conceitual", o legislador pretendeu desvincular a actuação administrativa de uma esfera de revisibilidade jurisdicional, admitindo, quanto a determinados aspectos do acto administrativo, uma verdadeira - e insindicável - liberdade de escolha.

Além disso, é certo que, a montante desta distinção - mas irradiando sobre ela - as exigências do princípio da legalidade determinam uma construção tipológica assente na ideia de que os critérios legalmente estabelecidos devem conter uma densificação e uma aptidão problemático-significante tais que possam ser tidos pelos destinatários da norma como elementos suficientes para determinar os pressupostos de actuação da administração e que simultaneamente habilitem os tribunais a proceder ao controlo da adequação e proporcionalidade da actividade administrativa assim desenvolvida. Mas aqui, em sede do problema relativo à densidade normativa reclamada pelos corolários da tipicidade e determinabilidade legais, a questão é, no problema que lhe subjaz, diferenciada da que tange com a abertura do controlo jurisdicional da actividade administrativa, porquanto não só não será a "ausência de indeterminação normativa" a desvelar esta possibilidade, como não será, em todo o caso, a (im)pertinência de uma falaciosa construção axiomático-dedutiva a ditar a linha de fronteira da esfera da discricionariedade - para a qual, tradicionalmente, se remetiam os juízos de conformação normativa insusceptíveis, pela sua inerente subjectividade, de uma cega aplicatio de índole lógico-dedutiva (aí se incluindo, em razão da sua específica ductilidade, os conceitos indeterminados) -, mas sim o exercício, por parte do legislador, de uma opção político-jurídica condicionada pelo especial travão que a função administrativa aqui encontra.

Essencial, será, assim, que a norma em questão possa "ser interpretada e aplicada em termos de assegurar aos interessados uma suficiente densificação que sirva de critério orientador à actividade administrativa e à dos próprios tribunais quando chamados a controlar a actividade da administração" (cf. o mencionado Acórdão 233/94, deste Tribunal).

Ora, in casu, é manifesto que o campo de actuação normativa e o desenho problemático evidenciado no preceito, ainda que suscitem uma ponderação prático-prudencial de concreta realização, compreendem uma ductilidade compatível com o princípio da legalidade fiscal, abarcando-se no tipo os criteria suficientes para permitir aos sujeitos apreender o sentido aplicativo inerente à norma e permitir aos tribunais uma sindicância do juízo administrativo que dela faça aplicação.

Como se torna agora mais visível, a delimitação substancial da fattispecie impositiva aqui moldada opera uma valoração das operações fiscalmente relevantes levadas a cabo entre sujeitos passivos subordinada a uma quantificação da matéria tributável desocultada em função de um padrão objectivo suficientemente delimitador do quantum que há-de ser relevado para efeitos da determinação do imposto e que o legislador assume como expressão efectiva de uma capacidade contributiva não ficcionada ou manipulada.

É nesse contexto que o problema de determinação do rendimento entre partes relacionadas assume dimensão tributária: a sua relevância decorre da forma condicionada com que os negócios são celebrados, por conter potencialidades de distorção comercial, pela natureza dos laços preexistentes. Daí que devido à condição não livre e independente das partes intervenientes nas transacções a norma venha reagir à possibilidade de "deturpação da capacidade contributiva" nos casos onde exista uma "submissão a regras isoladas da actuação do mercado" (cf. Duarte Barros, "Metodologias na determinação do preço de plena concorrência - Perspectiva da administração fiscal", op. cit., p. 9), devendo acautelar-se, a esse nível, que "as diferentes entidades que rigorosamente estejam em situações de dependência real, facilmente se configur[rem] como independentes, defendendo preços realmente distorcidos, recorrendo a movimentações clandestinas ou ocultas" (Rogério Fernandes Ferreira, Fiscalidade e Contabilidade - Estudos Críticos, Diagnósticos, Tendências, Lisboa, 2003, p. 122).

Nesta medida, a norma sindicanda traça um quadro de actuação que opera perante a possibilidade de uma relação entre entidades poder ditar uma construção artificiosa do rendimento tributável, admitindo uma correcção do quantum tributário em face da expressão que aquele assume, na ausência de tal vínculo relacional, entre sujeitos independentes. E, nesse quadro de actuação, a norma é idónea para dar a conhecer ao(s) seu(s) destinatário(s) qual a expressão quantitativa do facto tributário que é relevada. O que determina igualmente a circunstância de esse lucro ser totalmente apreensível pelo sujeito passivo, na medida em que quer a modelação concreta dos factos tributários quer a sua expressão contabilística tem como razão de ser a não evidenciação do lucro real que emergiria em circunstâncias semelhantes perante relações entre pessoas independentes.

Desde logo, ao nível subjectivo, como se viu, a norma individualiza uma fattispecie apreensível e, bem vistas as coisas, susceptível de constituir um referencial objectivável da actuação dos contribuintes e da administração fiscal, assentando na constatação de que os valores de transacção, enquanto se afastam do referencial do preço de plena concorrência, há-de ficar a dever-se à existência de relações diversas das que ocorrem entre sujeitos independentes, daí resultando, sem grande esforço interpretativo - ou mesmo, tão-só, exegético a sua concretização numa possibilidade de co-determinação bilateral-multilateral, projectada no exercício de um poder de influência apto ao estabelecimento de tais condições como reflexo de um procedimento decisório "em comum" e "de mãos dadas" para prossecução de um objectivo compartilhado.

Não foi, de resto, outra a interpretação sufragada, in casu, pelas instâncias, máxime, no âmbito do decidido pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo, na esteira, aliás, de outras decisões da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (cf., inter alia, os Acórdãos de 23 de Outubro de 1991 - R. 13 350; de 6 de Novembro de 1996 - R. 20 188; de 9 de Dezembro de 1998 - R. 19 858; de 14 de Fevereiro de 2001 - R. 21 514; de 13 de Março de 2001 - R. 25 744; de 26 de Setembro de 2001 - R. 25 533; de 21 de Janeiro de 2003 - R. 21 240, e de 4 de Fevereiro de 2004 - R. 21 240).

É, aliás, nesse mesmo sentido que na actual regulamentação supramencionada (o artigo 58.º do CIRC relativo aos "preços de transferência") se vem explicitar o critério aferidor da existência de relações especiais, concretizado no "poder de exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de gestão", estabelecendo-se uma panóplia não taxativa de situações denunciadoras dessa realidade.

Mas igualmente quanto à aferição das sobreditas condições "objectivas" há-de reconhecer-se que o critério distintivo adoptado pelo legislador, porque referido ao mercado, tem uma manifesta natureza objectiva, não entrando, na sua conformação, visões subjectivas da administração, a quem compete determinar a matéria colectável ao abrigo do artigo 57.º do CIRC, sendo por isso totalmente controlável pelo sujeito passivo e, em ultima ratio, pelos tribunais.

Na verdade, também aqui a actuação administrativa fica vinculada ao estabelecimento do preço de plena concorrência, não manifestando a norma qualquer de eleição ou de escolha quanto ao efeito jurídico que a fixação dos "termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes" é possível de consequenciar.

Não se duvida de que o iter determinante do resultado a alcançar é aqui balizado pela aplicação de uma pauta normativa não estritamente jurídica, que remete o intérprete para a consideração de regras operatórias extrajurídicas.

Contudo, tal constatação apenas releva no âmbito da afirmação de um espaço de liberdade de escolha dos meios de prova - hoc sensu, dos critérios de valoração probatória por banda da administração fiscal num plano que há-de expressar, inter alia, "as regras de experiência comum, de prudência [...], as regras científicas ou técnicas" (João Pedro Silva Rodrigues, Critérios Normativos de Predeterminação da Matéria Tributável ..., cit., p. 116) no seio de uma actividade "de interpretação e de valoração dos factos (que) envolvem complexos juízos técnicos e a utilização de máximas de experiência" (cf. Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, Coimbra, 1972, pp. 369 e 374).

Trata-se, no fundo, mutatis mutandis, de uma situação materialmente análoga à que emerge, no âmbito da avaliação indirecta da matéria tributável fundada na impossibilidade de comprovação directa e exacta dos elementos indispensáveis à sua correcta determinação [artigo 87.º, alínea b), da lei geral tributária], da necessidade de se apurar o rendimento tributável tendo em conta, entre outros elementos, "as margens médias do lucro líquido sobre as vendas e prestações de serviços ou compras e fornecimentos de serviços de terceiros", "as taxas médias de rentabilidade de capital investido", "o valor de mercado dos bens e serviços tributados" [alíneas a), b) e h) do n.º 1 do artigo 90.º da lei geral tributária].

E quanto a este ponto, não é de deixar passar em claro que este Tribunal considerou, no seu Acórdão 84/2003, a pertinência do recurso a estes elementos objectivos no domínio da avaliação indirecta da matéria tributável (posição que já fora defendida por Diogo Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge de Sousa, Lei Geral Tributária, Comentada e Anotada, Lisboa, 1999, p. 308).

Reflectindo sobre esta mesma realidade, João Pedro Silva Rodrigues (Critérios Normativos de Predeterminação da Matéria Tributável ..., cit., p. 112) diz que "estamos perante simples regras que o legislador entendeu dever assumir como elementos constituintes ou integrantes da norma jurídica por as haver adequadas sob o ponto de vista da ciência ou da técnica para valorar os factos cujo conhecimento logrou alcançar através da sua actividade inquisitória e da sua liberdade probatória e, através delas, poder descortinar o rendimento". Tratando-se "de meras regras científicas, técnicas, financeiras ou de natureza semelhante, elas devem ser apreendidas e aplicadas segundo o conteúdo próprio do ramo da ciência de que provêm artigo 11.º, n.º 2, da lei geral tributária -, assumindo-o o direito como critério de decisão jurídica. [§] Nesta perspectiva, a administração não goza de qualquer discricionariedade quanto à aplicação de tais regras, podendo o seu exercício ser totalmente sindicado pelo tribunal, que, assim, pode apreciar a correcção do modo como foram obtidas essas margens de lucro líquido, aí se incluindo os critérios de selecção dos valores usados para base da obtenção das médias [...] tudo com vista a poder concluir-se se a margem média encontrada pode ser havida como adequada para, em face de tais critérios não jurídicos - mas juridicamente assumidos -, evidenciar um valor materialmente adequado".

Ora, considerando especificamente a regulamentação concretamente em causa, não deve ignorar-se que, se é certo que a norma sindicanda não concretiza o critério de valoração que há-de presidir à determinação do preço de plena concorrência - a par também do que sucede noutros ordenamentos jurídicos onde este particular domínio técnico apenas se encontra concretizado em orientações/directrizes administrativas -, também não é menos verdade que o princípio geral de individualização dos preços estabelecidos entre entidades independentes no contexto de um mercado não controlado acaba por "delinear exclusivamente os limites dentro dos quais podem ser elaborados os métodos empíricos de valoração" desses preços (cf., nesse sentido, Guglielmo Maisto, Il "transfer price" nel diritto tributario italiano e comparato, cit., p. 85), e é dentro de tal baliza que se deve desenvolver toda a actividade administrativa no sentido de concretizar, perante a diversidade e complexidade das situações oferecidas pela realidade in concreto, todas as operações técnico-empíricas susceptíveis de desvelar substancialmente o efeito plasmado no preceito em causa.

Destarte, no caso concreto, atentas as considerações tecidas, terá de concluir-se que a norma sindicanda não só apresenta uma suficiente densidade normativa - em termos de conter, na sua formulação, uma suficiente aptidão significante, susceptível de recortar um quadro de actuação administrativa legalmente pressuposta e condicionada -, como permite aos tribunais sindicar a bondade e a correcção do juízo administrativo.

Noutros termos, pode afirmar-se que o quadro legalmente traçado não permite que a determinação do sentido prático-normativo do preceito, concretizado na sua aplicação, enquanto resultado da consideração do problema, se faça à margem do comando jurídico enunciado na norma, como resultado, portanto, de uma liberdade de actuação administrativa que seja insindicável jurisdicionalmente. Pelo contrário, a norma não reflecte qualquer opção jurídico-política do legislador pela concessão de poderes discricionários, remete, outrossim, a decisão administrativa para a (vinculada) verificação dos pressupostos aplicativos a partir da consideração dos concretos problemas jurídicos, podendo, pois, nesta medida, os tribunais fiscais apreciar a verificação dos pressupostos da actuação administrativa e apurar, em face de um problema concreto, a existência das relações especiais a que a norma se refere.

Podemos assim concluir, sintetizando, que estamos, no caso, perante conceitos indeterminados cujo conteúdo não demanda a atribuição de qualquer poder constitutivo à administração fiscal em sede de determinação da matéria colectável, pois apenas pode ser admitido como critério de decisão aquele sentido objectivo que resulta directamente da lei tributária. Isto, ao contrário do que se passava na norma sindicada pelo Acórdão 233/94, em que a lei erigia a dúvida subjectiva da administração fiscal sobre a correspondência à realidade da matéria colectável declarada a elemento normativo determinante e especificante da mudança do critério de tributação. Diversamente, à administração tributária apenas é reconhecida, agora, uma competência de prognose probatória relativamente aos factos que preencherão esses conceitos jurídicos, gozando tão-somente de liberdade quanto à escolha dos meios de prova a utilizar, de entre os permitidos em direito.

E conquanto a determinação em concreto dos termos em que ocorrem as relações entre "pessoas independentes" admita, segundo os padrões de normalidade probatória, alguma álea, como vem sendo dito, não poderá dizer-se que esta seja atentatória do princípio da previsibilidade das obrigações fiscais do destinatário da norma e do princípio da segurança jurídica, que encarnam a essência material do princípio da legalidade tributária no Estado de direito democrático, avaliados pelo crivo dos princípios da necessidade e da proporcionalidade: até porque ninguém melhor do que o sujeito passivo conhecerá as regras de mercado cuja existência pode evidenciar à administração e perante o tribunal.

Por fim, acentuar-se-á, novamente, que é este o sentido que enformava o artigo 80.º do Código de Processo Tributário (CPT), que, como norma "explicativa" do sentido do preceito substantivo, exigia não só uma especial densidade da fundamentação do acto tributário em causa como também uma consideração esfecífica(nte) dos elementos objectivos susceptíveis de evidenciar, segundo os referidos padrões normativos, as relações especiais e, por contraste, os termos em que as operações referenciadas ocorrem entre pessoas independentes.

Por outro lado - e também aqui ao invés do que ocorria no regime apreciado pelo mesmo Acórdão 233/94 -, o contribuinte poderá sindicar quer pela via administrativa quer pela via contenciosa o acto aplicativo da norma aqui constitucionalmente impugnada. E pode fazê-lo em toda a sua expressão, nos termos dos artigos 23.º, alíneas a) a d), e 120.º do CPT, constituindo fundamento de impugnação "a errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários; incompetência; ausência ou vício de fundamentação legalmente exigida e preterição de outras formalidades legais".

Há, pois, que concluir que o preceito impugnado não padece de inconstitucionalidade.

C - Decisão. 6 - Destarte, atento o exposto, decide-se negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente com 15 UC de taxa de justiça.

Lisboa, 10 de Maio de 2005. - Benjamim Rodrigues - Paulo Mota Pinto - Maria Fernanda Palma - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2320223.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1988-11-30 - Decreto-Lei 442-B/88 - Ministério das Finanças

    Aprova e publica em anexo o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC).

  • Tem documento Em vigor 1992-08-17 - Acórdão 285/92 - Tribunal Constitucional

    PRONUNCIA-SE PELA INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA QUE SE EXTRAI DA CONJUGACAO DO ARTIGO 3, NUMERO 1, PARTE FINAL, COM O NUMERO 2 DO MESMO ARTIGO E O NUMERO 6 DO ARTIGO 2 DO DECRETO REGISTADO NA PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS SOB O NUMERO 171/92 (QUE DEU ORIGEM AO DECRETO LEI 247/92, DE 7 DE NOVEMBRO), POR VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DE DETERMINABILIDADE DA LEI E DA RESERVA DE LEI, DECORRENTES DAS DISPOSIÇÕES CONJUGADAS DOS ARTIGOS 2 E 18, NUMERO 3, POR REFERÊNCIA AO ARTIGO 53, TODOS DA CONSTITUICAO. PRONUN (...)

  • Tem documento Em vigor 2000-12-29 - Lei 30-G/2000 - Assembleia da República

    Reforma a tributação do rendimento e adopta medidas destinadas a combater a evasão e fraude fiscais, alterando o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, o Estatuto dos Benefícios Fiscais, a Lei Geral Tributária, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e legislação avulsa.

  • Tem documento Em vigor 2001-07-03 - Decreto-Lei 198/2001 - Ministério das Finanças

    Aprova a revisão do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei 442-A/88, de 30 de Novembro, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, aprovado pelo Decreto-Lei 442-B/88, de 30 de Novembro, e do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei 215/89, de 1 de Julho, e procede à republicação de todos.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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