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Acórdão 199/2005/T, de 3 de Junho

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Texto do documento

Acórdão 199/2005/T. Const. - Processo 117/2004. - Acordam na 2.ª sessão do Tribunal Constitucional:

A - Relatório. - 1 - A CP - Caminhos de Ferro Portugueses, E. P., melhor identificada nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 9 de Dezembro de 2003, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade do artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei 65/77, de 26 de Agosto, quando interpretado no sentido de que compete exclusivamente aos sindicatos e aos trabalhadores a definição em concreto dos serviços mínimos durante a greve, por violação do disposto nos artigos 55.º, 56.º, 61.º, n.º 1, e 199.º, alíneas f) e g), da Constituição da República Portuguesa.

2 - Conforme resulta dos autos, o Sindicato dos Maquinistas dos Caminhos de Ferro Portugueses interpôs, para o Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso do despacho conjunto do Secretário de Estado dos Transportes e do Secretário de Estado do Trabalho e Formação de 28 de Abril de 2000 - proferido no 1.º dia de uma greve decretada pelo aí recorrente e onde se definiam, em concreto, os "serviços mínimos" que deviam ser assegurados -, imputando-lhe vários vícios de violação de lei.

Por Acórdão de 14 de Janeiro de 2003, a 2.ª subsecção da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, tendo concluído que "o Governo actuou fora do âmbito das suas atribuições, em violação do disposto no artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei 65/77, de 26 de Agosto", concedeu provimento ao recurso.

3 - Inconformada, a ora recorrente interpôs recurso para o pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, tendo sintetizado a sua argumentação discursiva na apresentação das seguintes conclusões:

"I - A exigência de garantia dos serviços mínimos constitui uma limitação legítima ao exercício do direito de greve;

II - O n.º 1 do artigo 8.º da lei da greve, ao determinar que 'nas empresas ou estabelecimentos que se destinem à satisfação de necessidades sociais impreteríveis ficam as associações sindicais e os trabalhadores obrigados a assegurar, durante a greve, a prestação dos serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação daquelas necessidades', estabelece uma obrigação, isto é, constitui sindicatos e trabalhadores numa posição jurídica passiva;

III - Ora, salvo o devido respeito, não parece lógico, nem razoável, transformar uma obrigação num direito, um dever numa prerrogativa ou uma posição jurídica passiva numa posição jurídica activa;

IV - A lei da greve é clara quando, neste domínio, impõe uma obrigação que tem como destinatários os sindicatos e os trabalhadores. E, por isso mesmo, não se descortina de que forma pode esta obrigação ser transformada na atribuição de um poder a estes sujeitos privados;

V - Da mesma forma, não parece lógico, nem razoável, que o conteúdo desta obrigação, que se consubstancia, como se referiu, numa limitação ao exercício do direito de greve, seja definido pelos sujeitos passivos, pelos destinatários dessa exigência, por aqueles cujo direito é limitado;

VI - Estranho seria, com efeito, que fossem os sindicatos e os trabalhadores - aqueles que estão vinculados à prestação dos serviços mínimos - a definir a extensão dessa vinculação. Como seria estranho que fossem sindicatos e trabalhadores - aqueles cujo direito de greve é limitado - a estabelecer, em cada caso, a extensão dessa limitação do próprio direito;

VII - O n.º 1 do artigo 8.º da lei da greve apenas impõe uma vinculação - a prestação de serviços mínimos -, fixando os seus destinatários - sindicatos e trabalhadores. Mas nada diz quanto à definição dos serviços mínimos;

VIII - A declaração de inconstitucionalidade assentou, única e exclusivamente, em fundamentos de índole formal (processual), e que o Tribunal Constitucional, no Acórdão 289/92, de 2 de Setembro (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23.º vol., pp. 7 e segs.), considerou materialmente conforme à Constituição a possibilidade de intervenção do Governo na fixação dos serviços mínimos;

IX - O artigo 8.º da lei da greve, na redacção vigente, não resolve, pois, a questão da definição dos serviços mínimos. Ora, por força desta lei e, desde 1997, também da Constituição (n.º 3 do artigo 57.º), é imposta, como limitação ao direito de greve, a obrigação de prestação de serviços mínimos. Essa limitação funda-se na tutela de interesses gerais da comunidade e na tutela de direitos fundamentais dos cidadãos;

X - Assim, na falta de uma disposição que, neste particular, determine a quem cabe a fixação desses serviços, necessariamente terá de recorrer-se aos princípios e regras gerais - com efeito, e como escreve Menezes Cordeiro, 'num prisma mais ligado à decisão, pode dizer-se que, em cada problema concreto, não se aplica esta ou aquela norma particularmente vocacionada para nele intervir: é sempre o direito em bloco [...] que, em cada saída jurídica, intervém';

XI - É, justamente, por força destes princípios e regras gerais que, fatalmente, terá de concluir-se que cabe em geral ao Governo, no exercício da competência administrativa, garantir 'a execução da lei no tocante à satisfação de necessidades colectivas a cargo do Estado-colectividade';

XII - Competências, em suma, claramente delineadas no artigo 199.º da Constituição, cuja alínea f) faz incumbir ao Governo a defesa da legalidade democrática, enquanto a alínea g) lhe atribui competência para 'praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas';

XIII - Não se trata, portanto, de uma competência presumida ou ficcionada. Muito pelo contrário, é uma competência que se infere da conjugação sistemática dos preceitos constitucionais e legais pertinentes, como se reconheceu no da Procuradoria-Geral da República n.º 1/99;

XIV - Assim, ao contrário do que se afirma no acórdão recorrido, os n.os 1 e 2 do artigo 8.º da lei da greve não permitem - nem no plano literal nem nos planos lógico e substancial sustentar um qualquer poder dos sindicatos e dos trabalhadores quanto à fixação dos serviços mínimos, sob pena de inconstitucionalidade (violando o referido artigo 199.º da Constituição);

XV - Quando a lei refere os sindicatos e os trabalhadores, não opera, com isso, uma rígida distribuição de tarefas. Limita-se apenas, e só, a reconhecer que a greve pode ser decretada e gerida tanto por sindicatos como, directamente, pelos trabalhadores, que para o efeito poderão constituir estruturas ad hoc (artigos 2.º e 3.º da lei da greve);

XVI - Por outro lado, não pode dizer-se que, na medida em que as associações sindicais não efectuam, por si, qualquer prestação, o sentido da obrigação a que se refere o n.º 1 do artigo 8.º da lei da greve se prende com a gestão da prestação de serviços mínimos;

XVII - Seria, aliás, absurdo pretender que a gestão dos serviços mínimos pudesse ser directamente assegurada pelos sindicatos: tal envolveria que o funcionamento, no seio de cada empresa, de tais serviços fosse dirigido pelas associações sindicais;

XVIII - Não pode, como é evidente, ser este o sentido do n.º 1 do artigo 8.º da lei da greve;

XIX - Por outro lado, também não procede a argumentação para a conclusão formulada no douto aresto em recurso assente na circunstância de a intervenção do Governo ter ocorrido logo no 1.º dia do processo grevista e não ter invocado o incumprimento, em concreto, das obrigações decorrentes do n.º 1 do artigo 8.º da lei da greve, pelo que o Governo teria actuado 'fora do âmbito das suas atribuições, em violação do disposto no artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei 65/77';

XX - Se bem entendemos, este raciocínio tem por premissa a ideia de que a competência do Governo se cinge às hipóteses referidas no n.º 4 do artigo 8.º da lei da greve, razão pela qual apenas poderia intervir em caso de incumprimento dos serviços mínimos;

XXI - Trata-se, como se referiu, de entendimento que não aceitamos e que, a nosso ver, não tem base legal;

XXII - Na verdade, os valores fundamentais e eminentes que fundamentam a imposição da obrigação de assegurar os serviços mínimos postulam, necessariamente, uma definição a anteriori por forma a evitar a lesão dos interesses gerais da comunidade ou dos direitos fundamentais dos cidadãos;

XXIII - Acresce que no douto acórdão recorrido não foram devidamente ponderadas as circunstâncias referidas na fundamentação do despacho de fixação dos serviços mínimos, designadamente a frustração das tentativas de definição por acordo dos serviços mínimos;

XXIV - Com o devido respeito, pela nossa parte, consideramos que o entendimento que o acórdão recorrido perfilhou, para além de não ter apoio constitucional ou legal, fere o quadro constitucional de competências cometido ao Governo e é susceptível de legitimar lesões de interesses gerais da comunidade e de direitos fundamentais dos cidadãos, uns e outros objecto de tutela constitucional;

XXV - O entendimento do acórdão recorrido é tanto mais estranho quanto em face do quadro constitucional e legal vigente os sindicatos se apresentam como puros sujeitos de direito privado, cuja representação é naturalmente limitada pelo interesse colectivo da categoria sindical definida nos seus estatutos;

XXVI - Não se alcança, de facto, como possa atribuir-se a estes sujeitos um poder que vai muito para além dessa representação e se prende com interesses alheios aos da categoria sindical;

XXVII - Trata-se, a nosso ver, de um entendimento que colide com a própria visão constitucional das associações sindicais, introduzindo uma componente publicística de representação de interesses gerais que é, de todo, alheia à abordagem da Constituição, assente numa leitura privatística da autonomia colectiva;

XXVIII - Com efeito, não se pronunciando a lei vigente expressamente sobre a atribuição da referida competência, a solução surge naturalmente, ponderados os interesses que estão em causa na prestação de serviços mínimos, e a entidade a quem, em termos gerais, se defere a competência para prover a tais interesses e para praticar os actos que para tanto se mostrem necessários é, nos termos das alíneas f) e g) do artigo 199.º da Constituição, o Governo;

XXIX - O qual, para além de mais, não é parte no conflito colectivo em cujo desenvolvimento se desencadeia a greve e está, em absoluto, submetido a um especial dever de objectividade e imparcialidade, garantido por toda uma panóplia de instrumentos jurídicos que garantem aos cidadãos o controlo dos seus actos governamentais praticados no exercício da função administrativa;

XXX - Assim, o douto acórdão recorrido violou, na melhor interpretação, o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 8.º da lei da greve, bem como as alínea f) e g) do artigo 199.º da Constituição."

4 - Por Acórdão de 9 de Dezembro de 2003, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu manter a decisão recorrida, louvando-se na argumentação que infra passa a transcrever-se:

"3.1 - Em causa está o Acórdão da Secção de 14 de Janeiro de 2003 que, concedendo provimento ao recurso contencioso interposto pelo Sindicato Nacional dos Maquinistas dos Caminhos de Ferro Portugueses, declarou a nulidade do despacho conjunto do Secretário de Estado dos Transportes e do Secretário de Estado do Trabalho e Formação de 28 de Abril de 2000 que fixou os serviços mínimos para a greve convocada pelo aludido Sindicato.

Para assim decidir, o referido aresto considerou, no essencial, que a actuação do Governo, consubstanciada no questionado despacho, se situou fora do âmbito das suas atribuições, com violação do disposto no artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei 65/77, de 26 de Agosto, deste modo incorrendo na nulidade prevista no artigo 133.º, n.º 2, alínea b), do CPA.

E isto, fundamentalmente, por se ter entendido que, no caso em apreço, era ao Sindicato, e não ao Governo, que competia a fixação dos serviços mínimos.

3.2 - Contudo, esta postura não é compartilhada pelo agora recorrente, que sustenta a legalidade do mencionado despacho conjunto, uma vez que era efectivamente ao Governo que incumbia a aludida fixação, daí que, ao ter decidido diversamente, o acórdão recorrido tenha inobservado os n.os 1 e 2 do citado artigo 8.º, bem como o disposto nas alíneas f) e g) do artigo 199.º da Constituição da República Portuguesa.

3.3 - Não lhe assiste razão.

Na verdade, o acórdão recorrido perfilhou o entendimento que tem sido afirmado repetidas vezes por este STA no concernente à questão de saber a quem compete fixar os serviços mínimos no caso de greve, sendo que, apesar do esforço argumentativo que se pode surpreender nas alegações do recorrente, o que é certo é que tais argumentos não são de molde a fazer inverter tal posição jurisprudencial que, aqui, se sufraga.

Como expressão do já aludido entendimento jurisprudencial, podemos citar, de entre outros, os Acórdãos, deste pleno, de 26 de Dezembro de 1997, recurso n.º 32 105, e de 18 de Janeiro de 2000, recurso n.º 37 353, e da Secção, de 19 de Dezembro de 1996, recurso n.º 31 816, e de 12 de Maio de 1999, recurso n.º 32 378.

Ora, como se assinala no dito Acórdão deste pleno de 26 de Novembro de 1997, '... sendo contenciosamente recorrido o despacho conjunto que nos termos do [...] artigo 8.º fixou os serviços mínimos, assume decisiva importância na resolução do presente recurso o Acórdão do Tribunal Constitucional de 4 de Julho de 1996, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 16 de Outubro de 1996, que declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade das normas contidas nos n.os 2, alínea g), 4, 5, 7, 8 e 9 do artigo 8.º da Lei 65/77, por violação do artigo 171.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e, consequencialmente, do n.º 6 do mesmo artigo, não tendo o Tribunal lançado mão da faculdade conferida pelo n.º 4 do artigo 282.º da Constituição da República Portuguesa, na redacção então vigente.

A declaração de inconstitucionalidade impõe-se a este Tribunal [...]

E a primeira questão que surge com relevância, considerando o grau de invalidade que o despacho contenciosamente recorrido pode determinar, é a de saber se se inseria na esfera de atribuições dos membros do Governo que subscreveram o despacho conjunto [...] a fixação dos serviços mínimos a prestar pelos trabalhadores durante a greve decretada'.

Por força da mencionada declaração de inconstitucionalidade não pode apelar-se ao disposto no n.º 6 do dito artigo 8.º para legitimar o uso daqueles poderes.

Cumpre ainda realçar que, uma vez repristinado o artigo 8.º da lei da greve, na sua redacção original, nem nele nem em qualquer outra norma da mesma lei se atribui expressamente aos membros do Governo o poder de fixar os 'serviços mínimos'.

Substancialmente inovatória seria, assim, a norma do n.º 6 do artigo 8.º aditada pela Lei 30/92.

Há, no entanto, que ir mais longe para apurar se na redacção original do artigo 8.º se pode surpreender, implícita, a atribuição daquele poder a quem no caso o exerceu ou a outra ou outras entidades.

Duas são as obrigações durante a greve que o artigo 8.º impõe às 'associações sindicais' e aos 'trabalhadores': a prestação dos serviços necessários à segurança e manutenção do equipamento e instalações (n.º 4) e a prestação de serviços mínimos indispensáveis à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, desde logo se indicando, exemplificativamente, os sectores onde se integram empresas e estabelecimentos que se destinam à satisfação dessas necessidades.

No que a esta última obrigação concerne, não concretiza a lei, nem a título exemplificativo, quais são os serviços mínimos a prestar.

Não o faz, nem certamente podia fazê-lo, considerando a multiplicação de situações configuráveis quando ocorre uma greve. E por isso ela se basta com uma 'cláusula geral' - serviços mínimos indispensáveis à satisfação de necessidades sociais impreteríveis - a ser preenchida de acordo com as circunstâncias concretas de cada caso.

Não há, também, qualquer preceito - diferentemente do que viria a acontecer com as alterações introduzidas pela Lei 30/92 - que, decretada uma greve, imponha a definição prévia dos serviços mínimos a prestar, o que obviamente não significa, no plano natural das coisas, que, antes do início da greve, essa definição se não faça com maiores ou menores formalidades.

A verdade é que nem sequer o artigo 8.º utiliza em qualquer dos seus números o termo 'definição'.

Esta não imposição de definição prévia, por quem quer que seja, começa, desde logo, a apontar para a falta de apoio legal de um acto autoritário dos membros do Governo que estabeleça os serviços mínimos a prestar.

Não há por outro lado que esquecer que os destinatários directos da norma são os trabalhadores e as associações sindicais a quem, nos termos do artigo 57.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, compete definir o âmbito dos interesses a defender através da greve.

Este aspecto - o de serem os trabalhadores os destinatários directos da norma - foi aliás valorizado no parecer da Procuradoria-Geral da República de 8 de Julho de 1982, publicado in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 325, p. 47, onde se escreveu:

'Do que já se deixou relatado sobre os trabalhos parlamentares respectivos, conclui-se que resultou de uma nítida opção legislativa o repúdio da fixação na lei, em forma taxativa, das actividades destinadas à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, adoptando-se uma formulação suficientemente maleável, com a adjuvante de uma indicação exemplificativa, para permitir aos trabalhadores, como imediatos destinatários da norma, no exercício responsável do seu direito à greve, reconhecerem as empresas ou os estabelecimentos destinados à satisfação daquelas necessidades e concretizarem então os serviços a prestar como o mínimo indispensável para ocorrer a essa satisfação ou os necessários à segurança e manutenção do equipamento e instalações, assim se colocando ao abrigo de uma eventual requisição ou mobilização [...]'

Idêntico entendimento foi adoptado no Acórdão deste STA de 28 de Janeiro de 1992, in Apêndices ..., pp. 417 e segs. (igualmente seguido pelo Acórdão de 19 de Dezembro de 1996, processo 31 816), onde a propósito da fixação dos serviços mínimos pelos órgãos da empresa se escreveu:

'Com efeito, não cabe aos órgãos da empresa o dever legal de fixação de quaisquer serviços mínimos a prestar pelas associações sindicais e pelos trabalhadores em greve [...]

Efectivamente, nos termos do disposto no artigo 8.º, n.º 1, da lei da greve, a definição dos serviços mínimos indispensáveis cabe em primeira linha às próprias associações sindicais e aos trabalhadores em greve; são estes que, nos termos da lei, têm de assegurar esses serviços mínimos.'

Parece, com efeito, ser esta a melhor doutrina que se pode extrair do artigo 8.º da lei da greve na sua redacção original.

Poderia objectar-se - objecção que, de todo o modo, se situaria mais no plano do direito a constituir -, com os riscos de um tal regime, colocando nas mãos dos trabalhadores em greve a determinação do que constituem as necessidades sociais impreteríveis e o modo de satisfazê-las.

Mas não é assim.

Na verdade, o instrumento da requisição civil sempre poderá funcionar, no âmbito do artigo 8.º da lei da greve, na redacção repristinada, sem estar condicionada à eventual 'definição' que os trabalhadores façam dos serviços mínimos a prestar, bastando que os membros do Governo entendam no preenchimento da aludida 'cláusula geral' que os trabalhadores em greve não estão a assegurar a satisfação das necessidades sociais impreteríveis.

Em suma, pois, não se vê que o artigo 8.º da lei da greve, expurgado das normas julgadas inconstitucionais, permita uma definição governamental autoritária dos serviços mínimos a prestar, pelo que está fora das suas atribuições fazê-lo [...]

Temos, assim, que bem andou o acórdão recorrido ao ter por nulo o despacho conjunto objecto de impugnação contenciosa.

De facto, como já se viu, tal aresto insere-se na jurisprudência reiteradamente afirmada por este STA e que, aqui, se coonesta, não se vendo razões válidas que conduzam a diferente solução, não a autorizando, seguramente, o disposto nas alíneas f) e g) do artigo 199.º da Constituição da República Portuguesa.

É que, contra o que defende nas suas alegações o recorrente, o entendimento acolhido no acórdão da Secção não contende com o preceituado nos citados preceitos constitucionais, na medida em que nele nada se afirma em contrário do regime decorrente das ditas normas, não atentando contra o quadro constitucional de competências do Governo.

Improcedem, assim, todas as conclusões da alegação do recorrente."

5 - Novamente inconformada, a CP - Caminhos de Ferro Portugueses, E. P., interpôs, nos termos já mencionados, recurso para o Tribunal Constitucional e, após ordenada a produção de alegações, veio sustentar, em conclusão, que:

"I - A interpretação dada ao artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei 65/77, de 26 de Agosto, no Acórdão de 14 de Janeiro de 2003 do Supremo Tribunal Administrativo e sufragada no Acórdão de 9 de Dezembro de 2003 do pleno da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, ora recorrido, fere o quadro constitucional de competências cometido ao Governo, é susceptível de legitimar lesões de interesses gerais da comunidade e de direitos fundamentais dos cidadãos, com tutela constitucional, envolve uma expropriação ilegítima dos poderes empresariais e assenta numa perspectiva que colide com a própria visão constitucional das associações sindicais.

II - O sentido normativo que a jurisprudência, esmagadoramente maioritária (senão mesmo unânime), do Supremo Tribunal Administrativo tem retirado do artigo 8.º, n.os 1 e 2, da lei da greve não pode deixar de considerar-se inconstitucional.

III - A competência do Tribunal Constitucional não pode esgotar-se na fiscalização da norma, mas deve comportar a do próprio processo interpretativo, ou seja, os resultados da sua aplicação/interpretação.

IV - A exigência de garantir serviços mínimos constitui uma limitação ao exercício do direito de greve, e o n.º 1 do artigo 8.º da lei da greve estabelece uma obrigação, constitui os sindicatos e os trabalhadores numa posição jurídica passiva.

V - O conteúdo desta obrigação não pode ser definido pelos sujeitos passivos da obrigação, pelos destinatários desta exigência, por aqueles cujo direito é limitado.

VI - A definição dos serviços mínimos e a gestão do seu cumprimento projectam-se directamente na conformação do modo de funcionamento da organização empresarial.

VII - A adequação da empresa à satisfação das necessidades sociais impreteríveis, como os serviços mínimos, e ainda os necessários a garantir a segurança e a manutenção do equipamento e das instalações, bem como a gestão dos trabalhadores afectos ao cumprimento destes serviços, são prerrogativas empresariais que decorrem da liberdade, constitucionalmente reconhecida, de organização e gestão das empresas.

VIII - Por força da posição sustentada pelo Supremo Tribunal Administrativo, o processo de greve envolveria uma expropriação temporária dos poderes empresariais e levaria a que fossem atribuídos, por força da declaração de greve, às associações sindicais e aos trabalhadores grevistas poderes de conformação da organização empresarial e de gestão dos próprios meios de produção, que não lhe são reconhecidos fora de uma situação de greve.

IX - A conciliação entre os direitos reconhecidos às entidades representativas dos trabalhadores e os direitos e prerrogativas decorrentes do reconhecimento constitucional da liberdade de gestão da empresa passa pela compressão dos poderes empresariais, pela procedimentalização do exercício destes poderes, pela atribuição de direi tos de participação nas decisões, pela sujeição a um controlo externo ou a instâncias negociais. Porém, a assunção dos poderes do empregador pelos trabalhadores e pelas organizações que os representam não encontra qualquer fundamento na Constituição.

X - A previsão de serviços mínimos, contida no n.º 3 do artigo 57.º da Constituição da República Portuguesa, visa, claramente, legitimar a possibilidade de restrição do exercício do direito de greve quando estejam em causa os valores aí salvaguardados.

XI - Assim, os n.os 1 e 2 do artigo 8.º da lei da greve não podem ser interpretados numa lógica expansiva, por forma a reconhecer aos sindicatos e aos trabalhadores, em caso de greve em empresa que garanta a satisfação de necessidades impreteríveis, poderes de ingerência na organização e na gestão empresariais, de que claramente não dispõem quando não exista uma situação de conflito e greve.

XII - A interpretação feita dos n.os 1 a 3 do artigo 8.º da lei da greve, no Acórdão de 9 de Dezembro de 2003 do pleno da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, na medida em que os transforma em preceitos que facultam a intromissão, à revelia da Constituição, no exercício da liberdade de empresa, deve ser considerada inconstitucional, nomeadamente por violação do n.º 1 do artigo 61.º da Constituição.

XIII - Em caso de greve susceptível de atingir a prestação de bens fundamentais, a defesa e protecção destes é tarefa do Governo, ao qual cabe, nos termos da Constituição, defender a legalidade democrática e praticar todos os actos e tomar todas as medidas necessárias à satisfação das necessidades colectivas fundamentais.

XIV - A limitação constitucional do direito de greve que resulta da obrigação de prestação de serviços mínimos funda-se na tutela de interesses gerais da comunidade e na tutela de direitos fundamentais dos cidadãos.

XV - Na falta de disposição concreta que determine a quem cabe a fixação desses serviços, terá de recorrer-se aos princípios e às regras gerais, apontando estes necessariamente para a conclusão de que cabe ao Governo, no exercício da competência administrativa, garantir a execução da lei no que diz respeito à garantia das necessidades colectivas a cargo do Estado.

XVI - Estas competências estão claramente expressas no artigo 199.º da Constituição da República Portuguesa, sendo particularmente relevante para o caso a sua alínea f) (que faz incumbir ao Governo a defesa da legalidade democrática) e sobretudo a alínea g), que, como é sabido, atribui ao Governo competência para praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas.

XVII - O douto acórdão recorrido põe em causa a competência constitucional da Administração e do Governo, como seu órgão máximo, na definição das condições de prestação dos serviços mínimos, em cumprimento, de resto, da competência constitucionalmente atribuída de prosseguir a satisfação das necessidades colectivas fundamentais.

XVIII - A garantia das posições jurídicas fundamentais postas em causa pelo exercício do direito de greve não pode, em face do quadro constitucional, caber a sujeitos privados sem qualquer conexão com o interesse público e que, para além disso, são, justamente, os titulares da posição jurídica cujo exercício desencadeia a situação de colisão.

XIX - A interpretação feita dos n.os 1 a 3 do artigo 8.º da lei da greve, no Acórdão de 9 de Dezembro de 2003 do pleno da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, na medida em que nega a possibilidade de intervenção do Governo numa matéria que claramente faz parte das suas competências constitucionalmente reconhecidas, deve ser considerada inconstitucional, designadamente por violação das alíneas f) e g) do artigo 199.º da Constituição da República Portuguesa.

XX - Da posição expressa no acórdão recorrido é possível concluir que o Supremo Tribunal Administrativo admite que o exercício do poder que, na interpretação que faz do artigo 8.º da lei da greve, é atribuído aos sindicatos e aos trabalhadores grevistas apenas poderia ser controlado a posteriori, com o reconhecimento de que estariam a ser lesados os interesses gerais da comunidade e os direitos fundamentais dos cidadãos cuja tutela justifica a limitação ao direito de greve.

XXI - Ou seja, a interpretação feita pelo Supremo Tribunal Administrativo do artigo 8.º da lei da greve parece implicar a aceitação de uma margem 'normal' de violação dos direitos fundamentais com os quais colida o direito de greve, que corresponderá ao período que mediar entre o eventual incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação de prestação de serviços mínimos e o "remédio" admitido por aquele Tribunal, ou seja, a execução da determinação governamental de requisição civil.

XXII - Significa isto que a interpretação que o Supremo Tribunal Administrativo faz do artigo 8.º da lei da greve conduz, particularmente nas situações de greves de curta duração, a uma tutela evidentemente insatisfatória dos direitos fundamentais, cuja protecção em caso de greve está expressamente acautelada por força do n.º 3 do artigo 57.º da Constituição.

XXIII - Também nesta perspectiva a interpretação do artigo 8.º da lei da greve feita no douto acórdão recorrido é contrária à Constituição na medida em que restringe o âmbito de protecção da norma do n.º 3 do artigo 57.º da Constituição e, consequentemente, expõe direitos fundamentais a agressões que possam decorrer de uma greve, inviabilizando os meios de tutela que possam salvaguardar, em tempo útil, o respeito pelo seu núcleo essencial.

XXIV - A definição dos serviços mínimos em caso de greve é um modo de harmonização dos direitos em conflito e corresponde a uma responsabilidade do Estado, ou seja, é uma tarefa pública.

XXV - Só o Estado, por força dos parâmetros constitucionais de actuação a que está sujeito, está em condições de responder de forma adequada.

XXVI - De acordo com a interpretação que do artigo 8.º da lei da greve faz o Supremo Tribunal Administrativo, esse preceito reserva, em exclusivo, a fixação desses serviços mínimos aos sindicatos e aos grevistas. E fá-lo através de uma imposição, já que esta competência corresponde a uma obrigação, cuja violação justifica a requisição civil.

XXVII - Porém, no actual quadro constitucional e legal, os sindicatos apresentam-se como puros sujeitos de direito privado, cuja representação é limitada pelo interesse colectivo da categoria sindical definida nos respectivos estatutos.

XXVIII - Não se pode assim atribuir a estes sujeitos um poder que vai muito além da representação da categoria sindical e que podem mesmo ser, no caso dos serviços mínimos para garantir a segurança e a manutenção das instalações e dos equipamentos, interesses do empregador.

XXIX - Resulta, assim, que a interpretação feita pelo Supremo Tribunal Administrativo leva a concluir que o artigo 8.º impõe aos sindicatos a execução de uma tarefa do Estado (a definição e a organização dos serviços mínimos), que corresponde a uma função eminentemente pública, colocando, ao mesmo tempo, sob a alçada do sindicato não apenas direitos fundamentais dos cidadãos em geral como a tutela de direitos fundamentais do próprio empregador.

XXX - Nesta interpretação, o artigo 8.º da lei da greve não pode deixar de ser considerado inconstitucional, por chocar com o figurino constitucional da liberdade sindical e das associações sindicais que está contido nos artigos 55.º e 56.º da Constituição.

Nestes termos, solicita-se a esse venerando Tribunal a declaração de inconstitucionalidade dos n.os 1 e 2 do artigo 8.º da lei da greve na interpretação sustentada no Acórdão de 9 de Dezembro de 2003 do pleno da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, segundo a qual a definição e a fixação dos serviços mínimos a prestar em caso de greve em empresa que se destine à prestação de necessidades sociais impreteríveis compete às associações sindicais e aos trabalhadores, não permitindo estes preceitos uma definição governamental dos serviços mínimos a prestar, por aquela interpretação violar o disposto no n.º 1 do artigo 61.º, nas alíneas f) e g) do artigo 199.º e nos artigos 55.º e 56.º da Constituição da República Portuguesa."

6 - O recorrido, por sua vez, contra-alegou, estribando-se na seguinte argumentação:

"[...]

Quanto à competência própria do Governo, adquirida por via residual genérica, de acordo com o disposto no artigo 199.º, alíneas f) e g), da Constituição da República Portuguesa, diga-se que a função administrativa não pode servir de pano de fundo para fundamentar uma actuação - a fixação por acto de autoridade - de limites concretos ao exercício de um direito constitucionalmente consagrado, dado que, no artigo 57.º, n.º 3, se determina que 'a lei define as condições de prestação [...] de serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis'. Ou seja, sem a prévia definição da lei, que não de um mero acto administrativo, a intervenção governamental carece de título bastante, rectius, é não somente ilegal, como inconstitucional. A Constituição, ela própria, impõe, na transcrita disposição, que a lei defina as condições genéricas e abstractas, como lhe é próprio, posto o que, em tese, poderia admitir-se que viesse, de novo, como veio, no vigente Código do Trabalho, a cometer ao Governo tal faculdade. O recurso a poderes estritamente administrativos, ainda que de natureza normativa, é insuficiente para colmatar uma não edição de lei, que é disso que se trata. Ao contrário do entendimento da recorrente, nada obsta a que se proceda à interpretação útil e ponderada dos preceitos contidos no artigo 8.º, alínea I) do n.º 2, da lei da greve, no sentido de aí se topar não uma obrigação em sentido próprio mas sim um poder-dever. Isto é, o legislador ordinário da lei da greve, em 1977, quis criar, e criou efectivamente, para as associações sindicais e os trabalhadores em greve, a obrigação de prestar serviços mínimos; o legislador constitucional, em 1997, acentuou que a respectiva definição e as condições de prestação carecem de primordial intervenção legislativa, para o que introduziu o texto do actual n.º 3 do artigo 57.º, sem com isso afastar minimamente a ideia de que quem satisfaz essa obrigação pode e deve defini-la por sua iniciativa, se outra coisa não resultar da lei. Ora, não resultando da lei ordinária vigente outro comando, esta era a situação de jure condito. Não há razão para afastar a figura do poder-dever inscrita no artigo 8.º da lei da greve, no sentido de que se trata de um poder de exercício obrigatório no interesse de outrem. Da eventual divergência de entendimentos quanto à valia intrínseca desta solução, não pode é ser retirado que outro é o sentido da norma ou que a interpretação que conduz a este resultado é afrontosa do texto constitucional.

II - Em conclusão, o aresto posto em crise não é merecedor de qualquer crítica, uma vez que:

a) Inexiste violação dos artigos 61.º, n.º 1, 199.º, alíneas f) e g), e 56.º, todos da Constituição da República Portuguesa, na medida em que a prática de um acto administrativo por parte do Governo em sede de fixação de serviços mínimos violaria o artigo 57.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, mercê da inexistência de norma ordinária expressa;

b) Na sua formulação, a lei da greve cometia aos sindicatos e trabalhadores o poder-dever de assegurar a prestação de serviços mínimos, tanto na vertente da sua fixação como na vertente do seu cumprimento.

[...]"

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

B - Fundamentação. - 7 - No presente recurso está em causa a inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei 65/77, de 26 de Agosto, "na interpretação segundo a qual a definição e a fixação dos serviços mínimos a prestar em caso de greve em empresa que se destine à satisfação de necessidades sociais impreteríveis compete às associações sindicais e aos trabalhadores, não permitindo esses preceitos uma definição governamental dos serviços mínimos a prestar", por violação do disposto nos artigos 55.º, 56.º, 61.º, n.º 1, e 199.º, alíneas f) e g), da Constituição da República Portuguesa.

7.1 - O artigo 8.º da Lei 65/77, de 26 de Agosto, dispõe, sob a epígrafe "Obrigações durante a greve", que:

"1 - Nas empresas ou estabelecimentos que se destinem à satisfação de necessidades sociais impreteríveis ficam as associações sindicais e os trabalhadores obrigados a assegurar, durante a greve, a prestação dos serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação daquelas necessidades.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, consideram-se empresas ou estabelecimentos que se destinam à satisfação de necessidades sociais impreteríveis os que se integram, nomeadamente, em alguns dos seguintes sectores:

a) Correios e telecomunicações;

b) Serviços médicos, hospitalares e medicamentosos;

c) Salubridade pública, incluindo a realização de funerais;

d) Serviços de energia e minas, incluindo o abastecimento de combustíveis;

e) Abastecimento de águas;

f) Bombeiros;

g) Transportes, cargas e descargas de animais e géneros alimentares deterioráveis.

3 - As associações sindicais e os trabalhadores ficam obrigados a prestar, durante a greve, os serviços necessários à segurança e manutenção do equipamento e instalações.

4 - No caso do não cumprimento do disposto neste artigo, o Governo poderá determinar a requisição ou mobilização, nos termos da lei aplicável."

7.2 - Por sua vez, os artigos da Constituição invocados como parâmetro do controlo de constitucionalidade dispõem que:

"Artigo 55.º

Liberdade sindical

1 - É reconhecida aos trabalhadores a liberdade sindical, condição e garantia da construção da sua unidade para defesa dos seus direitos e interesses.

2 - No exercício da liberdade sindical, é garantido aos trabalhadores, sem qualquer discriminação, designadamente:

a) A liberdade de constituição de associações sindicais a todos os níveis;

b) A liberdade de inscrição, não podendo nenhum trabalhador ser obrigado a pagar quotizações para sindicato em que não esteja inscrito;

c) A liberdade de organização e regulamentação interna das associações sindicais;

d) O direito de exercício de actividade sindical na empresa;

e) O direito de tendência, nas formas que os respectivos estatutos determinarem.

3 - As associações sindicais devem reger-se pelos princípios da organização e da gestão democráticas, baseados na eleição periódica e por escrutínio secreto dos órgãos dirigentes, sem sujeição a qualquer autorização ou homologação, e assentes na participação activa dos trabalhadores em todos os aspectos da actividade sindical.

4 - As associações sindicais são independentes do patronato, do Estado, das confissões religiosas, dos partidos e de outras associações políticas, devendo a lei estabelecer as garantias adequadas dessa independência, fundamento da unidade das classes trabalhadoras.

5 - As associações sindicais têm o direito de estabelecer relações ou filiar-se em organizações sindicais internacionais.

6 - Os representantes eleitos dos trabalhadores gozam do direito à informação e consulta, bem como à protecção legal adequada contra quaisquer formas de condicionamento, constrangimento ou limitação do exercício legítimo das suas funções.

Artigo 56.º

Direitos das associações sindicais e contratação colectiva

1 - Compete às associações sindicais defender e promover a defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores que representem.

2 - Constituem direitos das associações sindicais:

a) Participar na elaboração da legislação do trabalho;

b) Participar na gestão das instituições de segurança social e outras organizações que visem satisfazer os interesses dos trabalhadores;

c) Pronunciar-se sobre os planos económico-sociais e acompanhar a sua execução;

d) Fazer-se representar nos organismos de concertação social, nos termos da lei;

e) Participar nos processos de reestruturação da empresa, especialmente no tocante a acções de formação ou quando ocorra alteração das condições de trabalho.

3 - Compete às associações sindicais exercer o direito de contratação colectiva, o qual é garantido nos termos da lei.

4 - A lei estabelece as regras respeitantes à legitimidade para a celebração das convenções colectivas de trabalho, bem como à eficácia das respectivas normas.

Artigo 61.º

Iniciativa privada, cooperativa e autogestionária

1 - A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral.

2 - ...

3 - ...

4 - ...

5 - ...

Artigo 199.º

Competência administrativa

Compete ao Governo, no exercício de funções administrativas:

a) ...

b) ...

c) ...

d) ...

e) ...

f) Defender a legalidade democrática;

g) Praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas."

8 - Delimitada a norma sindicanda e mencionados os parâmetros aferidores da sua (in)constitucionalidade, passa a considerar-se, em primeiro lugar, o problema da inconstitucionalidade da norma do artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei 65/77, de 26 de Agosto, por violação do disposto no artigo 199.º, alíneas f) e g), da Constituição da República.

8.1 - Considerando a relevância para o esclarecimento da questão que o presente problema de constitucionalidade envolve, cumpre começar por mencionar a "história" do artigo 8.º da lei da greve, sendo de referir, a esse nível, os acórdãos deste Tribunal que, no seu tempo, sobre ele se pronunciaram.

8.1.1 - Assim, a redacção originária do artigo 8.º da Lei 65/77, de 26 de Agosto, com excepção de algumas alterações ao nível das alíneas constantes do n.º 2, correspondia ipsis verbis ao teor da norma que constitui o objecto do presente recurso de constitucionalidade.

Tal preceito foi posteriormente à sua entrada em vigor alterado pela Lei 30/92, de 20 de Outubro, que, além das alterações introduzidas nas alíneas c), d) e g) do n.º 2, estabeleceu uma regulamentação específica ao nível do procedimento de definição concreta dos "serviços mínimos", passando a constar do artigo 8.º que:

"[...]

4 - Os serviços mínimos previstos no n.º 1 podem ser definidos por convenção colectiva ou por acordo com os representantes dos trabalhadores.

5 - Não havendo acordo anterior ao pré-aviso quanto à definição dos serviços mínimos previstos no n.º 1, o Ministério do Emprego e da Segurança Social convoca os representantes dos trabalhadores referidos no artigo 3.º e os representantes dos empregadores, tendo em vista a negociação de um acordo quanto aos serviços mínimos e quanto aos meios necessários para os assegurar.

6 - Na falta de acordo até ao termo do 5.º dia posterior ao pré-aviso de greve, a definição dos serviços e dos meios referidos no número anterior é estabelecida por despacho conjunto, devidamente fundamentado, do Ministro do Emprego e da Segurança Social e do ministro responsável pelo sector de actividade, com observância dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade.

7 - O despacho previsto no número anterior produz efeitos imediatamente após a sua notificação aos representantes referidos no n.º 5 e deve ser afixado nas instalações da empresa ou estabelecimento, nos locais habitualmente destinados à informação dos trabalhadores.

8 - Os representantes dos trabalhadores a que se refere o artigo 3.º devem designar os trabalhadores que ficam adstritos à prestação dos serviços referidos nos n.os 1 e 3, até quarenta e oito horas antes do início do período de greve, e, se não o fizerem, deve a entidade empregadora proceder a essa designação.

9 - No caso de incumprimento das obrigações previstas nos n.os 1, 3 e 8, pode o Governo determinar a requisição ou mobilização, nos termos da lei aplicável."

A promulgação deste diploma, que alterou a redacção originária do artigo 8.º da Lei 65/77, foi antecedida de um pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade de todas as normas contidas no artigo único do Decreto da Assembleia da República n.º 29/VI, de alteração da Lei 65/77, de 26 de Agosto - cujo texto viria a converter-se na Lei 30/92, de 20 de Outubro -, "face às dúvidas colocadas sobre a sua conformidade com o disposto no artigo 171.º da Constituição e, também [...] face às dúvidas colocadas sobre a sua conformidade com os princípios da precisão ou determinabilidade das leis e da reserva de lei (artigo 2.º da Constituição) e, ainda, face ao disposto nos artigos 18.º, n.º 3, e 57.º, n.os 1 e 2, da Constituição", tendo o Tribunal, pelo Acórdão 289/92 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 19 de Setembro de 1992, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 419, p. 355, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23.º vol., p. 7), decidido não se pronunciar pela sua inconstitucionalidade.

Após a entrada em vigor da Lei 30/92, um grupo de deputados à Assembleia da República veio requerer, em sede de fiscalização abstracta sucessiva, "a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas da Lei 30/92, de 20 de Outubro, artigo único, alterações ao artigo 8.º, n.º 2, alínea g), e n.os 4, 5, 7, 8 e 9, por violação do artigo 171.º, n.º 2, da Constituição da República, e das restantes normas que, face ao princípio da precisão ou da determinabilidade das leis, não possam subsistir por força dessa declaração de inconstitucionalidade".

O Tribunal Constitucional, apreciando o problema da inconstitucionalidade formal - por vício de procedimento legislativo - decidiu, pelo seu Acórdão 868/96 (publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 16 de Outubro de 1996, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 459, p. 60, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34.º vol., p. 115), declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas em crise, bem como, em consequência, da norma do n.º 6 do mencionado artigo 8.º

Daí resultou, assim, que se mantivesse, na essência, até à revogação da Lei 65/77 pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto - que aprovou o Código do Trabalho -, o regime originariamente estabelecido no que tange à definição dos serviços mínimos a prestar durante a greve.

Com a aprovação do Código do Trabalho, introduziu-se para além da imposição de obrigações a satisfazer durante a greve (artigo 598.º, que reproduz, na essência, a redacção do artigo 8.º da lei da greve) e da previsão da possibilidade de requisição ou mobilização no caso de "incumprimento da obrigação de prestação dos serviços mínimos" (artigo 601.º) uma disposição expressamente consagrada à resolução do problema da "definição dos serviços mínimos" - o artigo 599.º -, que dispõe:

"1 - Os serviços mínimos previstos nos n.os 1 e 3 do artigo anterior devem ser definidos por instrumento de regulação colectiva de trabalho ou por acordo com os representantes dos trabalhadores.

2 - Na ausência de previsão em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho e não havendo acordo anterior ao aviso prévio quanto à definição dos serviços mínimos previstos no n.º 1 do artigo anterior, o ministério responsável pela área laboral convoca os representantes dos trabalhadores referidos no artigo 593.º e os representantes dos empregadores, tendo em vista a negociação de um acordo quanto aos serviços mínimos e quanto aos meios necessários para os assegurar.

3 - Na falta de um acordo até ao termo do 3.º dia posterior ao aviso prévio de greve, a definição dos serviços e dos meios referidos no número anterior é estabelecida, sem prejuízo do disposto no n.º 4, por despacho conjunto, devidamente fundamentado, do ministro responsável pela área laboral e do ministro responsável pelo sector de actividade.

4 - No caso de se tratar de serviços da administração directa do Estado ou de empresa que se inclua no sector empresarial do Estado, e na falta de um acordo até ao termo do 3.º dia posterior ao aviso prévio de greve, a definição dos serviços e meios referidos no n.º 2 compete a um colégio arbitral composto por três árbitros constantes das listas de árbitros previstas no artigo 570.º, nos termos previstos em legislação especial.

5 - O despacho previsto no n.º 3 e a decisão do colégio arbitral prevista no número anterior produzem efeitos imediatamente após a sua notificação aos representantes referidos no n.º 2 e devem ser afixados nas instalações da empresa ou estabelecimento, nos locais habitualmente destinados à informação dos trabalhadores.

6 - Os representantes dos trabalhadores a que se refere o artigo 593.º devem designar os trabalhadores que ficam adstritos à prestação dos serviços referidos no artigo anterior, até quarenta e oito horas antes do período de greve, e, se não o fizerem, deve o empregador proceder a essa designação.

7 - A definição dos serviços mínimos deve respeitar os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade."

8.1.2 - Como se infere do exposto anteriormente, a alteração introduzida face à regulamentação originária da Lei 65/77, de 26 de Agosto, pela Lei 30/92, de 20 de Outubro, atingia directamente o regime relativo ao procedimento de definição dos serviços mínimos durante a greve, passando a prever-se expressamente, nessa matéria específica, a possibilidade de actuação do Governo quando os serviços mínimos não fossem definidos por convenção colectiva ou por acordo com os representantes dos trabalhadores. Em tais circunstâncias, a actuação do Governo estava, em primeiro lugar, preordenada à negociação de um acordo com os representantes dos trabalhadores e dos empregadores quanto à definição dos serviços mínimos e aos meios necessários para os assegurar, sendo que, na falta desta definição acordada, passaria a competir ao Governo a definição dos serviços, nos termos fixados no n.º 6 do artigo 8.º da lei da greve.

A bondade constitucional de tal regime foi equacionada no já citado Acórdão 289/92 do Tribunal Constitucional, que se pronunciou expressamente sobre a intervenção governativa no domínio da definição dos serviços mínimos.

Assim, escreveu-se nesse aresto:

"[...]

O direito à greve é um direito fundamental garantido aos trabalhadores pela Constituição. Integra o conjunto de direitos, liberdades e garantias enunciados no título II e apresenta uma dimensão essencial de defesa ou liberdade negativa: a liberdade de recusar a prestação de trabalho contratualmente devida, postulando a ausência de interferências, estaduais ou privadas, que sejam susceptíveis de a pôr em causa.

Esta caracterização constitucional do direito à greve como posição subjectiva fundamental de natureza defensiva não ilude porém a sua ligação aos fundamentos do Estado social de direito: a greve é um instrumento de reivindicação que concorre para a promoção de condições de igualdade real entre indivíduos e grupos sociais.

Apresentando-se como um direito individual de exercício colectivo, orientado à tutela comum de um interesse colectivo, o direito à greve revela, pela própria natureza, a 'imbricação das concepções liberal e social' (G. Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pp. 105 e 106), que na ordem constitucional democrática, em regra, vai ligada ao entendimento dos direitos fundamentais. O elemento colectivo participa do próprio conteúdo do direito sem que lhe apague a fisionomia de direito individual de cada trabalhador (A. Monteiro Fernandes, 'Reflexões sobre a natureza do direito à greve', Estudos sobre a Constituição, 2.º vol., p. 333).

A fundamentalidade material do direito à greve liga-se, pois, aos princípios constitucionais da liberdade e da democracia social. A sua especial inserção no elenco dos direitos, liberdades e garantias confere-lhe uma protecção constitucional acrescida que se traduz no 'reforço de mais-valia normativa' (G. Canotilho) do preceito que o consagra relativamente a outras normas da Constituição. O que significa: 1) aplicabilidade directa, sendo o conteúdo fundamental do direito afirmado já ao nível da Constituição e não dependendo o seu exercício da existência de lei mediadora; 2) vinculação das entidades públicas e privadas, implicando a neutralidade do Estado (proibição de proibir) e a obrigação de a entidade patronal manter os contratos de trabalho, constituindo o direito de greve um momento paradigmático da eficácia geral das estruturas subjectivas fundamentais; 3) limitação das restrições aos casos em que é necessário assegurar a concordância prática com outros bens ou direitos constitucionalmente protegidos - sendo certo que a intervenção de lei restritiva está expressamente vedada quanto à definição do âmbito de interesses a defender através da greve (Constituição da República Portuguesa, artigo 57.º, n.º 2).

[...]

[4] Os serviços mínimos e o conteúdo essencial do direito à greve: a norma do artigo 8.º, n.º 6, no Decreto 29/VI da Assembleia da República.

[1] A admissibilidade constitucional de uma obrigação de serviços mínimos.

O Decreto 29/VI da Assembleia da República estabelece a obrigatoriedade da prestação de serviços mínimos, para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis (artigo 8.º, n.º 1). Esta obrigação imposta aos trabalhadores em greve de assegurarem a prestação de serviços mínimos não suscita dúvidas de constitucionalidade.

A fundamentação da admissibilidade constitucional da obrigação de serviços mínimos reside na tarefa de concordância prática que incumbe ao legislador e ao intérprete. De um ponto de vista dogmático, estamos aqui perante uma justificação distinta da do pré-aviso: naquele caso não se tratava de intervenção restritiva, não havia ingerência no âmbito de protecção da norma - por isso, não havia que convocar as estruturas de ponderação estabelecidas nos n.os 1 e 2 do artigo 18.º da Constituição. Na justificação da admissibilidade constitucional da obrigação de serviços mínimos confrontamo-nos com uma restrição (ou limitação) do direito e a necessidade da sua justificação.

Não se diga que o direito à greve não está sujeito a restrições: o que não está sujeito a intervenção restritiva do legislador é a delimitação dos interesses a defender através da greve (Constituição da República Portuguesa, artigo 57.º, n.º 2); foi esta a decisão do legislador constituinte em termos do programa normativo-constitucional da greve. O direito à greve está sujeito a reserva de lei restritiva, desde que a lei restritiva observe os pressupostos formais e materiais que a Constituição lhe impõe.

Bernardo Lobo Xavier (ob. cit., p. 187) qualifica esta obrigação de serviços mínimos como 'indubitavelmente uma limitação ao direito à greve' e justifica a limitação pela necessidade de 'tutela de outros valores presentes no ordenamento jurídico, traduzida na genérica expressão de satisfação de necessidades sociais impreteríveis'.

A generalidade da doutrina juslaborista oferece uma justificação semelhante para a obrigação legal de serviços mínimos.

Esta justificação também não oferece dúvidas do ponto de vista da dogmática dos direitos fundamentais: Häberle observa que todos os direitos fundamentais estão entre si e com o direito de organização do Estado - e aí, em especial, com as determinações constitucionais dos fins do Estado - numa relação de complementaridade funcional (Die Wesensgehaltgarantie, cit.). Também Friedrich Müller chama a atenção para que 'nenhum direito fundamental é garantido sem restrições' - (Die Positivität der Grundrechte, 'Fragen einer praktischen Grundrechtsdogmatik', Berlim, 1969, p. 41) - isto em virtude da 'reserva de qualidade jurídica dos direitos fundamentais' (Vorbehalt der Rechtsqualität der Grundrechte) decorrente da sua inserção na sistemática da Constituição e no jogo de restrições e complementações implicadas nessa sistemática.

É também o contexto sistemático da Constituição que Gomes Canotilho invoca para justificar limites materiais não escritos, avançando precisamente com o exemplo das restrições (ou limitações) ao direito de greve. Diz: 'Embora a Constituição não admita limites ao direito de greve, justificar-se-iam limites constitucionais não escritos a fim de se salvaguardarem outros direitos ou bens constitucionalmente garantidos (ex.: exigência de garantia de serviços mínimos em hospitais, serviços de segurança, etc. (cf. Direito Constitucional, cit., p. 616).' De modo semelhante, Bernardo Xavier alude à interconexão sistemática dizendo que o direito de greve não se move 'numa atmosfera rarefeita sem conexão com o ordenamento jurídico' (ob. cit., p. 92). Jorge Miranda fala de 'restrições implícitas, derivadas, também elas, da necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos' (Manual, cit., t. IV, p. 303).

Certa dogmática dos direitos fundamentais entende estas situações como limitações internas e prévias do direito fundamental, entendimento que vai consubstanciado na doutrina dos 'limites imanentes' - doutrina que, em boa verdade, está correlacionada com uma teoria do Tatbestand restrito. Outro entendimento dogmático é o de considerar os limites como 'externos' e a posteriori resultando da conciliação com outro direito fundamental ou interesse constitucional suficientemente caracterizado e determinado.

Não temos aqui de proceder a opções de construção, nomeadamente pela teoria restrita ou alargada do Tatbestand e pela sua repercussão na problemática dos limites dos direitos fundamentais: qualquer das vias, pese embora a diversidade de perspectivas, conduziria a uma justificação da admissibilidade constitucional de uma obrigação de serviços mínimos.

[2] A reserva de lei restritiva e a definição dos serviços mínimos pelo Governo.

[...]

[2.2] A reserva de lei, em matéria de direitos fundamentais, leva implicada a exigência de precisão e determinabilidade normativas. (Cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 285/92, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 17 de Agosto de 1992, que desenvolve amplamente esta temática).

Constituindo um corolário do princípio do Estado de direito (a lei como garantia de liberdade face à Administração) e do princípio democrático (a lei como consentimento dos cidadãos e como resultado de um procedimento assente na publicidade, no contraditório e no debate), à reserva de lei não pode corresponder uma escassa densificação normativa, capaz de contornar a distribuição constitucional das tarefas de legislação e administração e de inviabilizar, quanto a estas, um controlo efectivo pelos tribunais.

A ratio da reserva de lei vem, assim, iluminar a apreciação da norma do artigo 8.º, n.º 6, constante do decreto da Assembleia da República. Esta norma só será constitucionalmente legítima se se constituir em indirizzo para a Administração e parâmetro de controlo para os tribunais.

E a interpretação haverá ainda de contar com a própria natureza do direito à greve. É à luz desse direito e das estruturas de ponderação que levam à justificação dos serviços mínimos que devem ser compreendidos os parâmetros legais estabelecidos no artigo 8.º, n.º 6, do Decreto 29/VI.

[2.3] A doutrina vem abordando a necessidade de estabelecer uma relação entre o grau de densidade exigível às normas legais, em razão do princípio da reserva de lei, e a natureza dos direitos e situações que regulam.

Sérvulo Correia analisa precisamente o problema das autorizações (legais) para a prática de actos administrativos 'nos domínios abrangidos por reserva de acto legislativo'. E diz: 'por vezes não depende da vontade do legislador e, portanto, não pode relacionar-se imperativamente à partida com a natureza formal da norma o grau de abertura desta em face das situações da vida que deverão ser conformadas no seu quadro. A sua capacidade de direcção do conteúdo da decisão (Leistungsfähigkeit für die Steuerung von Entscheidungsinhalten) é condicionada pela natureza da situação sobre que incide. O princípio formulável é o de que, em matéria de reserva de acto legislativo, à concessão de discricionariedade deve presidir o critério da densificação da norma na medida do possível e da sua abertura para o mínimo incomprimível de margem de livre decisão' (Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, pp. 339-340).

Vieira de Andrade sublinha 'o carácter específico da protecção dos direitos, liberdades e garantias em face da Administração' e rejeita um método conceitualista de separação entre o que, naquele domínio, é reserva de lei e espaço de actuação administrativa: "A questão [diz] não é susceptível de ser respondida com um simples 'sim' ou 'não'. Tudo depende, por um lado, dos direitos em causa e, relativamente a cada um deles, da zona de protecção ameaçada" (ob. cit., pp. 324 e 327).

Também o Tribunal Constitucional alemão formulou na sentença Lüth (BVerfGE, 7, 198) - no sentido da atenuação dos limites estabelecidos por lei restritiva -, que, de acordo com a teoria dos efeitos recíprocos (Wechselwirkungstheorie), a lei que estabelece limites aos direitos fundamentais tem ela própria de ser interpretada à luz dos direitos fundamentais em causa.

Também na norma do artigo 8.º, n.º 6, a ligação entre o direito de greve e os serviços mínimos tem que ver com a própria natureza do direito de greve. A tarefa de concordância prática e de optimização de diferentes bens, já vimos, liga-se aí indissociavelmente à avaliação das circunstâncias de cada caso. A ponderação dos interesses em jogo leva implicados 'juízos concretos de oportunidade' (B. Xavier) que dificultam a previsão legal de todas as situações de compressão do direito.

Na perspectiva deste ineliminável grau de abertura da norma do artigo 8.º, n.º 6, e a sua ligação à natureza do direito, há-de ver-se se dela resultam parâmetros de controlabilidade que a legitimem perante a Constituição.

[2.4] A norma do artigo 8.º, n.º 6, determina que, nos casos em que há lugar à definição dos serviços mínimos pelo Governo, essa definição seja 'estabelecida por despacho, devidamente fundamentado, do Ministro do Emprego e da Segurança Social e do ministro responsável pelo sector de actividade, com observância dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade'.

A formulação da norma afigurar-se-á, à primeira vista, redundante: o dever de fundamentação expressa dos actos administrativos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos decorre já do artigo 268.º, n.º 3, da Constituição. Além disso, por força da eficácia geral e da aplicabilidade imediata das normas constitucionais sobre direitos, liberdades e garantias (Constituição da República Portuguesa, artigo 18.º), a Administração está directamente vinculada aos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade.

Ora, na norma do artigo 8.º, n.º 6, há-de reconhecer-se algo mais do que isso. A norma traça um indirizzo à autoridade administrativa no sentido de estruturar a fundamentação do despacho de acordo com aqueles princípios. O autor do despacho tem de explicar como e por que está a observar os critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade. A reiteração por lei destes critérios constitui ela própria a fixação de uma directiva ou parâmetro legal do dever de fundamentar, parâmetro este que a natureza das coisas dificilmente permitiria que fosse mais determinado. Ao que acresce, no plano dos pressupostos fácticos, a indicação clara pelo artigo 8.º, n.º 2, das empresas ou estabelecimentos que se destinam à satisfação de necessidades sociais impreteríveis.

A motivação e justificação do acto administrativo haverá assim de explicitar directamente um princípio de concordância prática. A fundamentação é, aqui, fundamentação qualificada por critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade. A expressa imposição legal destes critérios, perfeitamente definidos e delimitados na dogmática jurídico-constitucional, garante a eficácia do controlo contencioso de anulação ou suspensão do despacho conjunto de fixação dos serviços mínimos.

A solução em apreço não se desvia, pois, do princípio constitucional da reserva de lei. E não cabe ao Tribunal Constitucional conceber alternativas de escolha política que porventura o legislador pudesse nesta sede consagrar. Do que se trata é tão-só de apreciar a norma do artigo 8.º, n.º 6, à luz do princípio da reserva de lei e de demarcar, neste plano da definição dos serviços mínimos, o espaço de legislação e o espaço de administração.

Ora, convocando a anterior ordem de considerações, há que concluir que a norma do artigo 8.º, n.º 6, constante do Decreto 29/VI da Assembleia da República, não é contrária à Constituição."

Resulta desta jurisprudência que a intervenção do Governo na concreta fixação dos serviços mínimos a observar durante a greve, tal-qualmente estava definida no artigo 8.º da lei da greve, em resultado da alteração introduzida pela Lei 30/92, não devia ter-se por inconstitucional.

A questão de constitucionalidade emergente dos presentes autos, que, na verdade, se entrecruza com o problema considerado no aresto supramencionado, não deixa, todavia, de apresentar contornos diversos porquanto, no caso sub judicio, o problema em apreciação é o de saber se, não estando previsto um procedimento específico para a fixação dos serviços mínimos, a Constituição impede que a fixação dos serviços essenciais possa ser levada a cabo exclusivamente pelos trabalhadores e suas estruturas sindicais sem que ao Governo, no exercício das suas competências administrativas, seja permitido intervir na sua definição.

8.2 - Assim, segundo a argumentação da recorrente, "na falta de disposição concreta que determine a quem cabe a fixação desses serviços, terá de recorrer-se aos princípios e regras gerais, apontando estes necessariamente para a conclusão de que cabe ao Governo, no exercício da competência administrativa, garantir a execução da lei no que diz respeito à garantia das necessidades colectivas a cargo do Estado [...] competências [que] estão claramente expressas no artigo 199.º da Constituição da República Portuguesa, sendo particularmente relevante para o caso a alínea f) (que faz incumbir ao Governo a defesa da legalidade democrática) e sobretudo a alínea g), que [...] atribui ao Governo competência para praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas", o que determinaria a inconstitucionalidade da norma sindicanda. Com razão?

8.2.1 - Como se acentuou no aresto supramencionado, o direito à greve, como de resto a generalidade dos demais direitos fundamentais, não é absoluto e ilimitado. Aliás, como se assinala na doutrina, relativamente aos direitos fundamentais em geral, "é inevitável e sistémica a conflitualidade dos direitos de cada um com os direitos dos outros" (Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., Coimbra, 2004, p. 283).

Ora, de entre as limitações geralmente assinaladas ao direito à greve, encontra-se, com fundamento, a imposição de que o exercício de tal direito não afecte um núcleo de prestações essenciais, compreendendo-se, assim, que a obrigação de assegurar, em caso de greve, os serviços mínimos ineliminavelmente ligados à satisfação de necessidades colectivas de natureza básica e impreterível se prefigure como uma instância de salvaguarda e garantia da realização de relevantes bens jurídicos constitucionais que resultariam previsivelmente afectados - e, com isso, potencialmente sacrificados - caso o direito à greve se configurasse de forma absoluta e sem quaisquer restrições possíveis.

Assim é, na verdade, porque a questão da manutenção dos serviços mínimos se situa na confluência de dois direitos de um lado, o direito de greve, e, do outro, alguns direitos como o direito à vida, à saúde e à segurança, já que, com efeito, as greves no sector público e nos serviços públicos têm de particular que elas não afectam apenas os protagonistas em causa, mas também afectam terceiros [assim, também, Jean Bernier, "La Détermination des services essentiels dans le secteur public et les services publics de certains pays industrialisés", p. 47, in AA. VV. (dir. Jean Bernier), Grèves et services essentiels, Québec, 1994)]. É, pois, necessário que o direito à greve seja compreendido em relação com aqueloutros, havendo que confrontar - como afirmam Gomes Canotilho e Jorge Leite ["Ser ou não ser uma greve (a propósito da chamada greve 'self-service')", in Questões Laborais, ano VI, n.º 13, 1999, pp. 26 e segs.] -, "o direito de greve com virtuais restrições resultantes de um balanceamento concreto entre este direito e outros bens e direitos tutelados jurídico-constitucionalmente", tendo essencialmente em conta "os direitos dos outros, a continuidade de funcionamento dos serviços públicos e o interesse da comunidade", assim se dando por assente que "[...] em todos os regimes jurídicos democráticos [...] a greve é um poder limitado, na medida em que se lhe contrapõe a tutela de determinados direitos e interesses que podem ser afectados pelo respectivo exercício, sejam eles dos trabalhadores não grevistas, da entidade empregadora, dos indivíduos alheios ao conflito ou do público em geral. Embora surja nos nossos dias como um poder juridicamente tutelado, a garantia que lhe é reconhecida há-de naturalmente comportar algumas limitações [...] [porque] uma liberdade de exercício sem restrições não só poderia provocar alterações ao normal desenvolvimento da sociedade como colocaria em risco a garantia de certos bens fundamentais, cuja lesão se afigura juridicamente intolerável" (Francisco Liberal Fernandes, "A greve na função pública e nos serviços essenciais: algumas notas de direito comparado", in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, vol. II, número especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1993, pp. 57 e 58).

Nessa linha, à imposição de tais obrigações está implícita uma teleologia determinada por inarredáveis interesses de ordem pública (cf. José João Abrantes, "Direito de greve e serviços essenciais", in Questões Laborais, ano II, n.º 6, 1995, p. 130), que passam, como se compreende, pela necessidade de assegurar uma tutela efectiva de certos "bens de relevo constitucional indiscutivelmente geral e primário (vida, saúde, liberdade e segurança), bem como de outros bens que se perfilam mais particulares em relação àqueles (liberdade de circulação, de comunicação [...] [e] de assistência social) e que podem considerar-se facilmente como uma sua especificação" (cf. Mario Rusciano/Santoro-Passarelli, Lo sciopero nei servizi essenziali - Commentario alla legge 12 giugno 1990, n. 146, Milão, 1991, p. 15), pelo que a consideração de tais dimensões - que um Estado de direito baseado na inviolável dignidade ética da pessoa humana está absolutamente vinculado a proteger - autoriza, assim, que o direito à greve encontre como limite intransponível a satisfação das necessidades sociais impreteríveis cuja realização é instrumental da garantia dos bens constitucionais supra-referidos (cf. Bernardo Xavier - "Requisição civil, serviços mínimos e greve", anotação ao Acórdão do STA de 20 de Março de 2002, processo 43 934, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 42, Novembro-Dezembro, 2003, p. 29 -, para quem "as necessidades sociais impreteríveis são logicamente a outra face da realização de direitos fundamentais da pessoa [...]"). Esta concepção, não raras vezes, é expressamente acolhida pela regulamentação disciplinadora do direito à greve no âmbito dos serviços essenciais, como sucede, por exemplo, em Itália com a legge 12 giugno 1990, n.º 146, que se propõe "[...] temperar o exercício do direito à greve com a satisfação dos direitos da pessoa constitucionalmente tutelados" (cf. Mario Rusciano/Santoro-Passarelli, Lo Sciopero nei servizi essenziali ..., cit., pp. 14 e segs., Tiziano Treu et al., Sciopero e servizi essenziali, Commentario sistematico alla legge 12 giugno 1990, n.º 146, Pádua, 1991, pp. 9 e segs., e Giuseppe Suppiej, "Realismo e utopia nella legge sullo sciopero nei servizi pubblici", in Rivista Italiana di Diritto del Lavoro, ano XII, n.º 2, Abril-Junho, 1993, pp. 189 e segs.).

Por isso, compreende-se que a Constituição sujeite a reserva de lei a definição das condições, durante a greve, dos serviços mínimos, como já havia antecipado o Acórdão 289/92. E este entendimento, manifestado à luz da redacção do artigo 57.º da Constituição anterior à 4.ª revisão constitucional, permanece e reforça-se, na sua essência, perante a autorização expressa para restrição legislativa então introduzida no n.º 3 do mesmo preceito, que remete explicitamente para a lei a definição das condições de prestação, durante a greve, de serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações, bem como de serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis (cf., quanto ao sentido emergente desta revisão constitucional, Catarina Ventura, "Os direitos fundamentais à luz da 4.ª revisão constitucional", separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXIV, Coimbra, 1998, pp. 515 e 516, e Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais ..., cit., pp. 344 e 345, Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, Coimbra, 2003, pp. 593-595). Note-se, porém, que mesmo antes da 4.ª revisão constitucional, e apesar de possíveis divergências quanto ao tratamento doutrinal do problema, sempre se devia considerar o direito à greve em termos de se ver garantida a satisfação das necessidades sociais impreteríveis da comunidade. Nesse sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 312) salientavam que, não estando este direito sujeito a "reserva de lei restritiva", os "eventuais limites imanentes resultantes da determinação do seu âmbito normativo constitucional só podem ser 'revelados' (não constituídos) em caso de colisão de direitos, por necessidade de defesa de outros direitos constitucionalmente protegidos [sendo que] somente isso pode legitimar certos requisitos quanto ao processo de declaração e execução de greve, como sejam a imposição de pré-aviso e a definição de algumas obrigações de trabalho aos grevistas nas empresas ou estabelecimentos que se destinem à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, desde que uns e outras não sejam desproporcionados"; por sua vez, Vieira de Andrade (Os direitos fundamentais, cit., p. 345, n.º 26), criticando a fórmula mobilizada no Acórdão 289/92, afirma que "[...] em rigor, na falta de previsão constitucional expressa da restrição, talvez devesse entender-se que a lei estaria, como fez, autorizada a resolver a colisão entre o direito à greve e os interesses da [...] comunidade, através de normas harmonizadoras"; finalmente, para Jorge Reis Novais (As Restrições aos Direitos Fundamentais, cit., pp. 593-594), o problema seria susceptível de ser enquadrado no âmbito de uma "restrição não expressamente autorizada", pelo que, "[...] quando, entre nós, a revisão constitucional de 1997 aditou um novo n.º 3 ao artigo 57.º [...], em que se prevê a necessidade de prestação de certos serviços durante a greve e, assim, transformou formalmente um direito fundamental até aí sem reservas em direito sujeito a limitação, não alterou verdadeiramente a norma do direito à greve nem conferiu ao legislador ordinário quaisquer poderes restritivos que este não tivesse já, apesar de passar agora a prever-se expressamente a definição [...] das condições de prestação de tais serviços mínimos. [...] [Assim] nem o direito à greve - que antes da revisão de 1997 era um direito fundamental sem reservas e hoje tem aquela limitação expressa - viu alterados o seu conteúdo ou as possibilidades da sua restrição por parte dos poderes constituídos, nem a lei ordinária em causa viu correspondentemente alterada a sua natureza e, muito menos, os parâmetros de aferição da sua conformidade constitucional".

Destarte, em todo o caso - isto é, independentemente da configuração dogmática com que deva recortar-se a obrigação de prestação de serviços mínimos para promover a satisfação de necessidades impreteríveis -, sempre há que reconhecer, acompanhando a generalidade da doutrina, que as razões subjacentes à limitação do direito à greve no domínio dos serviços que asseguram as denominadas prestações sociais impreteríveis conduzem, assim, a uma configuração do direito à greve que tem forçosamente de ter em linha de conta, como se viu, determinados bens jurídicos fundamentais. Daí não decorre, porém, que esteja vedado o exercício do direito nos domínios afectos à realização de prestações sociais impreteríveis, mas apenas que, em caso de greve, impenda sobre os trabalhadores a obrigação de assegurar os serviços mínimos impostos e determinados pela ponderação que entretece o direito à greve com outros direitos (também) fundamentais.

A necessidade de uma tal consideração ponderada e omnicompreensiva do direito à greve com a tutela de realização das prestações direccionadas à satisfação de necessidades sociais impreteríveis é, assim, sintomática da necessidade de articulação dos valores constitucionais implicados na tensão dialéctica dos pólos em causa: por um lado, a consideração da necessidade de tutela e garantia de certos valores fundamentais impõe que a protecção do seu conteúdo essencial coloque "fronteiras" inultrapassáveis ao exercício do direito à greve; mas, por outro lado, a imposição de tais limites deve ter em linha de conta o respeito pelo direito à greve em termos que não impliquem o seu sacrifício fora do apodíctico âmbito tutelar preordenado a impedir a frustração do núcleo intangível dos bens jurídicos que recortam a esfera das necessidades sociais impreteríveis (cf. Tiziano Treu et al., Sciopero e servizi essenziali, cit., Pádua, 1991, p. 45. Para o autor, "também o direito à greve tem um núcleo incomprimível, pelo que o respeito pelo conteúdo dos direitos da pessoa deve realizar-se apenas com o sacrifício estritamente necessário [dos direitos] dos trabalhadores em greve").

8.2.2 - Assumindo tal conteúdo axiológico, o legislador não deixou de impor um conjunto de "obrigações durante a greve", definindo em abstracto o sentido e o conteúdo da "obrigação de assegurar a prestação dos serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis". Não estabeleceu, porém, na redacção original, qualquer "modelo operatório-procedimental" onde se atribuísse expressis verbis a um determinado sujeito a tarefa de individualizar e definir em concreto o cabal cumprimento da obrigação de prestação de serviços mínimos em termos de qualificar e quantificar tais prestações, sendo que, na verdade, o problema da definição-identificação das prestações sociais impreteríveis que devem ser observadas durante um processo de greve se desdobra em dois momentos relativamente diferenciados: num primeiro momento - que não tange directamente ao objecto do presente recurso de constitucionalidade -, está essencialmente em causa a tarefa de definição em abstracto dos domínios envolvidos no âmbito da obrigação de prover os serviços mínimos direccionados à satisfação de necessidades sociais impreteríveis e do regime de imposições acessórias do cumprimento dessa obrigação; num segundo momento - que se coloca perante a regulamentação da norma sindicanda -, o problema reside na concreta definição dos serviços mínimos perante um determinado processo de greve, aí se incluindo o problema da competência para proceder a tal individualização.

António Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 12.ª ed., Coimbra, 2004, pp. 924 e segs.) refere, quanto ao problema de saber quem tem o poder e o dever de definir, em concreto, o âmbito e a natureza dos serviços mínimos a prestar durante a greve, que ele deve colocar-se em três níveis distintos: "o da determinação das necessidades a satisfazer e do nível de serviço adequado a essa satisfação; o da definição do esquema organizativo destinado a garantir a realização desse nível de serviço e a correspondente satisfação das necessidades públicas; o da designação das pessoas, em concreto, que, apesar de terem aderido à greve, deverão prestar trabalho no quadro desse esquema organizativo".

Quanto a esta sistematização, no caso presente, a summa quaestio concerne imediatamente ao poder de determinação das necessidades a satisfazer e do nível de serviços mínimos adequado a essa satisfação, não se questionando, por isso, o procedimento e as vicissitudes relacionadas com a execução desses serviços.

8.2.2.1 - Ora, quanto a este problema particular - tendo um pouco em conta alguns modelos discerníveis a partir das experiências jurídicas além fronteiras -, deve começar-se por referir que, em abstracto, a sua resolução não obedece a uma regulamentação uniforme, existindo diversas formas de se dar resposta à questão da competência para a definição dos serviços mínimos [atente-se, a este nível, nos modelos enunciados por Gomes Canotilho e Jorge Leite ("Ser ou não ser uma greve", in op. cit., p. 30): "i), o da auto-regulação assente numa concertação das partes em conflito quanto à individualização de serviços e prestações essenciais; ii) o da auto-regulação através da adopção de 'códigos de auto-regulamentação' por parte das confederações sindicais; iii) o da regulação judicial sobretudo no caso de não existência de acordo quanto à definição de serviços; iv) o da regulação através de comissões ou entidades administrativas independentes; v) o da regulação, com base na lei, através de lista (taxativa ou exemplificativa) imposta por lei; vi) o da regulação através de portarias ou despachos a cargo dos membros do governo competentes em razão dos sectores em greve"].

A) Em Espanha, no quadro do Real Decreto 17/1977, de 4 de Março, considerando-se, em particular, o disposto no artigo 10.º, n.º 2, retém-se que "quando a greve seja declarada em empresas encarregadas da prestação de qualquer género de serviços públicos ou de reconhecida e inafastável necessidade e concorram circunstâncias de especial gravidade, a autoridade de governo poderá estabelecer as medidas necessárias para assegurar o funcionamento dos serviços".

Assente em tal base normativa, o Tribunal Constitucional espanhol decidiu, na Sentencia n.º 11/81, de 8 de Abril, que não era inconstitucional a atribuição à autoridade governativa da competência para a definição dos serviços mínimos.

Este entendimento foi posteriormente confirmado - directa ou indirectamente - por sucessivas decisões do mesmo Tribunal relativas à questão da obrigatoriedade de observância dos serviços mínimos durante a greve (cf., inter alia, as decisões n.os 26/1981, de 17 de Julho, 33/1981, de 5 de Novembro, 51/1986, de 24 de Abril, 53/1986, de 5 de Maio, 27/1989, de 3 de Fevereiro, 43/1990, de 15 de Março, 122/1990, de 2 de Julho - com comentário de Maria Soledad Negro Carrillo, Huelga y servicios, cit., pp. 791 e segs. -, 123/1990, de 2 de Julho, e 8/1992, de 16 de Janeiro - comentada por Manuel Alonso Olea, "Huelga y mantenimiento de los servicios esenciales", in Civitas - Revista española de derecho del trabajo, n.º 58, Março-Abril, 1993, pp. 201 e segs.).

Reflectindo a jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol sobre a questão - e considerando em particular a afirmação, constante da Sentencia n.º 11/1981, onde se diz expressamente que "[...] se pode extrair a conclusão de que a decisão sobre a adopção das garantias de funcionamento dos serviços não pode pôr-se nas mãos de nenhuma das partes implicada, mas antes deve ser submetida a terceiro imparcial" e que "deste modo, atribuir à autoridade governativa o poder de estabelecer as medidas necessárias para assegurar o funcionamento dos serviços mínimos não é inconstitucional" -, Manuel Carlos Palomeque ("El ejercicio del derecho de huelga en los servicios esenciales de la comunidad en el derecho español", in IV Congresso Nacional de Direito do Trabalho - Memórias, coord. António Moreira, Coimbra, p. 363) afirma que tal formulação "impede de lege data, certamente, a virtualidade de fórmulas consistentes na autorregulación ou autodisciplina sindicais da matéria, ou o estabelecimento unilateral por parte das organizações sindicais ou dos próprios grevistas de 'códigos de comportamento' que contemplem as garantias necessárias para a manutenção dos serviços essenciais em caso de greve".

B) Em França, apesar de não existir uma lei, de alcance geral para a totalidade dos serviços públicos -, que fixe os termos da obrigação de prestação de serviços mínimos e defina a competência para a sua fixação, não deixam de existir mecanismos direccionados a assegurar a continuidade do serviço público, preordenada à garantia dos bens e valores constitucionais postos em crise pelo exercício do direito de greve. Tais mecanismos podem traduzir-se numa negação pura e simples do direito de greve (1); outros, na interdição de algumas formas particulares de greve, máxime de greves "não sindicais", de greves "rotativas" e de greves "surpresa" (2); outros [mecanismos] revelam-se também na organização de um serviço mínimo (3) ou no exercício de um direito de requisição (4) (cf. Jean Pélissier, "Grève et substituts des services essentiels: la situation française", in Grèves et services essentiels, p. 136 e segs., Valérie Ogier-Bernaund, Les droits constitutionnels des travailleurs, Paris, 2003, pp. 86 e 307).

Quanto aos serviços mínimos, exceptuando as situações legalmente regulamentadas - serviço público de radiodifusão (lei de 30 de Setembro de 1986) e segurança da navegação aérea (leis de 31 de Dezembro de 1984 e de 18 de Dezembro de 1987) -, a tarefa de promover à sua organização cabe às autoridades administrativas ou à direcção das empresas, com controlo jurisdicional, não sendo raras as situações onde se assiste a uma negociação com as organizações sindicais representativas (cf. Jean Pélissier, "Grève et substituts des services essentiels", op. cit., in Grèves et services essentiels, cit., p. 143), admitindo-se, em último caso, com base numa lei de 11 de Julho de 1938, a figura da requisição dos trabalhadores em greve, prevista como um "meio radical" para assegurar a continuidade do serviço público (cf. Valérie Ogier-Bernaund, Les droits constitutionnels, cit., pp. 307 e 308).

C) Em Itália a disciplina dos serviços essenciais a observar em caso de greve está contida na Legge 12 giugno 1990, n. 146. Este diploma estabelece uma regulamentação multiforme da questão, combinando diversos "modelos" para a fixação dos serviços mínimos essenciais (cf., para uma perspectiva geral desses modelos no caso particular do regime italiano, Tiziano Treu, "Strikes in italian essential services", in Grèves et services essentiels, op. cit., pp. 175 e segs.). A ideia de base presente em tal regime passa por uma forte intervenção da autonomia e da contratação colectivas para individualizar as medidas direccionadas ao cumprimento da obrigação de assegurar os serviços mínimos, privilegiando-se, por motivos relacionados com uma ideia de "consenso social" e "adaptação à regulamentação de situações dinâmicas e diferenciadas", uma técnica de "normação bilateral" assente na contratação colectiva e na correspondente "centralidade de uma fonte negocial" na definição das regras relativas às prestações indispensáveis (cf., sobre este aspecto particular, Tiziano Treu et al, Sciopero nei servizi essenziali, cit., pp. 21 e segs.), dando-se por assente que tanto "a contratação colectiva como a auto-regulamentação constituem uma primeira rede de segurança dos interesses dos utentes" (cf. Mario Rusciano/Santoro-Passarelli, Lo Sciopero nei servizi essenziali, cit., pp. 23 e segs.). Nessa mesma linha, ainda que com contornos particulares, é também dado relevo aos "códigos de auto-regulamentação" que se perfilam como uma fonte de regulamentação alternativa (na expressão de Mario Rusciano/Santoro-Passarelli, Lo Sciopero nei servizi essenziali, cit., p. 36) à contratação como forma de evitar uma "solução única e sobretudo obrigatória", salientando-se, na doutrina italiana, que o seu relevo emerge em grande medida na ausência de normas resultantes da contratação colectiva (cf. Tiziano Treu, Sciopero nei servizi essenziali, cit., p. 176; também Mario Rusciano/Santoro-Passarelli, Lo sciopero nei servizi essenziali ..., cit., p. 37, colocam em evidência que "parece de difícil observância uma repartição de competências entre a contratação e a auto-regulamentação no âmbito de uma matéria tão delicada como a das prestações indispensáveis").

O mesmo diploma (artigo 12.º) instituiu um "órgão técnico, neutral e independente do poder executivo" (cf. Tiziano Treu et al, Sciopero nei servizi essenziali, cit., p. 66) - a "Comissão de Garantia" ("Commissione di garanzia dell'attuazione della legge sullo sciopero nei servizi pubblici essenziali", http://www.commissionegaranziasciopero.it) -, a quem cabe, inter alia, no exercício de uma "função de controlo" (na expressão de Mario Rusciano/Santoro-Passarelli, Lo sciopero nei servizi essenziali, cit., p. 36), "valorar a idoneidade das prestações indispensáveis individualizadas nos acordos entre as partes sociais e nos códigos de auto-regulamentação de modo a garantir a conciliação do direito de greve com o respeito pelos direitos da pessoa constitucionalmente tutelados, e, quando não os julgue idóneos, apresenta às partes uma proposta sobre o conjunto das prestações consideradas indispensáveis [cabendo-lhe] na falta de acordo entre as partes [...] [realizar] uma tentativa de conciliação e, em caso de insucesso, formula[r] a sua proposta [...]" [artigo 13.º, n.º 1, alínea a)]. A actuação deste órgão independente no âmbito da definição dos serviços mínimos que hão-de ser estabelecidos para assegurar a realização das "prestações indispensáveis" assume um relevo central no sistema italiano, não só pela sua componente tutelar e preventiva mas também, como se verá de seguida, porque a intervenção da "Commissione di Garanzia" acaba por conformar o próprio procedimento governativo de requisição dos trabalhadores.

Além do exposto, importa referir que no seio de um tal modelo (ou, rectior, de tais modelos) se admite igualmente - com a figura da "precettazione", prevista no artigo 8.º do citado diploma legislativo - uma intervenção administrativa autoritária mediante a consagração de um procedimento específico para a requisição dos trabalhadores em greve.

Tal possibilidade é conformada, como é assinalado pela doutrina, como uma "válvula de segurança" e como medida de ultima ratio, que tem como pressuposto-base a "existência de um fundado perigo de um prejuízo grave e iminente para os direitos da pessoa constitucionalmente tutelados por causa da falta de funcionamento de serviços de proeminente interesse geral", sendo apenas exercitável no final de um procedimento complexo ainda marcado pela busca de uma solução consensual e onde, uma vez mais, avulta o papel da "Commissione di Garanzia" - uma vez que a autoridade administrativa tem o dever, após ter levado a cabo uma tentativa de conciliação, de convidar as partes a respeitar uma proposta da "Commissione" eventualmente existente (cf. Mario Rusciano/Santoro-Passarelli, Lo sciopero nei servizi essenziali, cit., p. 37).

D) No ordenamento jurídico alemão - e na ausência de uma regulamentação legal da greve -, o enquadramento jurídico da problemática em questão tem sido essencialmente traçado por obra da doutrina e da jurisprudência, com particular destaque para as sucessivas decisões do Bundesarbeitsgericht, que - como refere Liberal Fernandes ("A greve na função pública", cit., p. 86) - assumem "uma função verdadeiramente criadora de direito".

Perscrutando algumas decisões do Bundesarbeitsgericht relativas ao exercício do direito de greve pelos trabalhadores, podem surpreender-se os pontos fulcrais em discussão quanto à presente temática.

Neste domínio, o Tribunal afirma existir - cf. decisões de 30 de Março de 1982, de 14 de Dezembro de 1993 e de 31 de Janeiro de 1995 - um consenso generalizado quanto à obrigação de os trabalhadores assegurarem os serviços essenciais e os serviços relacionados com a manutenção e a segurança dos equipamentos e das instalações da empresa, reconhecendo-se que, estando em causa interesses de terceiros e da própria empresa, o respeito pelo cumprimento de tal obrigação acaba por delimitar a extensão da luta laboral.

Já quanto "à questão [...] sobre quem tem de determinar, organizar [e] dirigir" os serviços mínimos (v. decisão de 30 de Março de 1982), são patentes algumas divergências ao nível da doutrina, esclarecendo o Tribunal que tal problema permanece em aberto.

O Tribunal Federal acaba por salientar que "é tarefa das partes em conflito esforçarem-se pela regulamentação ordenadora dos serviços mínimos [sendo que] se chegarem a um acordo, é este que vale como princípio geral a observar durante a greve" (v. decisão de 31 de Janeiro de 1995), privilegiando-se o recurso a formas convencionais de auto-regulamentação, muitas vezes assentes em directivas da Deutscher Gewerkschaftsbund ou em acordos celebrados para determinados serviços de emergência (v. Liberal Fernandes, "A greve na função pública", in op. cit., pp. 91 e 92, máxime n. 39).

8.2.2.2 - Considerando agora algumas referências que o problema em questão tem merecido entre nós, atente-se na nossa jurisprudência, designadamente na orientação sucessivamente firmada pelo Supremo Tribunal Administrativo (cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de Janeiro de 1992, de 26 de Novembro de 1997, de 19 de Maio de 1999 e de 18 de Janeiro de 2000), substancialmente análoga, quanto aos argumentos mobilizados, à que é acolhida pelo acórdão recorrido, segundo a qual não existe, desde logo, qualquer preceito a impor "[um]a definição prévia dos serviços mínimos a prestar [...]", pelo que, no quadro de uma tal pressuposição, entende-se que "[...] a definição dos serviços mínimos indispensáveis cabe em primeira linha às próprias associações sindicais e aos trabalhadores em greve, são estes que, nos termos da lei, têm de assegurar esses serviços mínimos [...] Poderia objectar-se [...] com os riscos de um tal regime, colocando nas mãos dos trabalhadores em greve a determinação do que constituem as necessidades sociais impreteríveis e o modo de as satisfazer. [§] Mas não é assim. [§] Na verdade, o instrumento da requisição civil sempre poderá funcionar, no âmbito do artigo 8.º da lei da greve [...], sem estar condicionado à eventual 'definição' que os trabalhadores façam dos serviços mínimos a prestar, bastando que os membros do Governo entendam, no preenchimento da aludida 'cláusula geral', que os trabalhadores em greve não estão a assegurar a satisfação das necessidades sociais impreteríveis".

Trata-se de uma posição a que corresponde, no essencial, a doutrina sufragada por José João Abrantes (op. cit., pp. 133 e segs., e "Greve e serviços mínimos", in Direito do Trabalho - Ensaios, Lisboa, 1995, pp. 205 e segs., especialmente pp. 217 e segs.), para quem "a competência em questão pertencia aos sindicatos e aos trabalhadores em greve, enquanto imediatos destinatários dos n.os 1 e 3 do artigo 8.º, ficando reservado ao Governo apenas o juízo e as competências que lhe eram conferidas pelo n.º 4 [...] daquele artigo, preceito que, todavia, pressupunha para a sua aplicabilidade o não cumprimento pelos trabalhadores daquelas suas obrigações".

Assim, afirma o autor (v. "Greve e serviços mínimos", in Direito do Trabalho - Ensaios, cit., pp. 217-218 - texto escrito na vigência da Lei 30/92): "[...] no caso dos serviços públicos (por exemplo, de saúde), o Governo é também entidade patronal, o que compromete claramente o afirmado atributo de neutralidade e imparcialidade. [§] Independentemente disso, havia que reconhecer não haver efectivamente qualquer norma legal ou constitucional atributiva da referida competência ao Governo. [§] Uma coisa é o poder de decretar a requisição ou a mobilização - e a ela se referia o n.º 4 do artigo 8.º - e outra, bem distinta, é a faculdade de definir os serviços mínimos, a qual claramente a lei se abstinha de atribuir. [§] Também sustentávamos não ser possível ver tal norma no artigo 202.º, alíneas f) e g), da Constituição, disposição relativa à competência administrativa do Governo e que manifestamente não releva para a situação em apreço. Aliás, a interpretação que a tal preceito faz apelo sempre seria de compaginar com uma outra norma constitucional, a do artigo 168.º, n.º 1, alínea b), de onde resulta que o direito à greve é matéria abrangida pela reserva de competência legislativa da Assembleia da República. [§] Antes pelo contrário, o que a lei dizia é tão-só que a obrigação dos serviços mínimos impende sobre os trabalhadores em greve. Estes deveriam então cumpri-la pontualmente, ficando reservado ao Governo - apenas - o juízo e as competências que lhe eram conferidas pelo artigo 8.º, n.º 4, da lei da greve, preceito que, no entanto, pressupõe para a sua aplicabilidade o não cumprimento pelos trabalhadores daquelas suas obrigações".

Já o Supremo Tribunal de Justiça, por seu turno, em Acórdão de 6 de Dezembro de 1993, considerou, em linha oposta, que "[...] em caso de greve dos trabalhadores de uma empresa do sector dos transportes públicos, não é à empresa empregadora nem às associações sindicais, mas sim ao Governo, que compete definir quais os serviços mínimos cuja execução é de considerar indispensável durante os dias de greve, competindo depois às associações sindicais e aos trabalhadores a designação individual daqueles que irão assegurar a prestação dos serviços pelo Governo fixados".

Também a Procuradoria-Geral da República, já depois da prolação do Acórdão 289/92, deste Tribunal, voltou a considerar o problema da definição e cumprimento dos serviços mínimos, num parecer (de 18 de Janeiro de 1999) que sistematiza o "estado da questão" ao nível do direito pátrio, justificando-se, por isso - e pelo interesse que as questões aí abordadas envolvem para o problema dos autos - que se considerem as linhas capitais com que a questão da obrigatoriedade dos serviços mínimos e a sua definição aí foi tratada:

"[...] O conceito constitucional e legal de 'serviços mínimos' é fluido e indeterminado, pelo que as variações de amplitude envolvidas na sua concretização implicam por necessidade variações inversamente proporcionais do conteúdo da greve.

Em suma, a definição e concretização dos serviços mínimos pode redundar numa restrição ou compressão do núcleo essencial do direito à greve.

Se, todavia, importa conciliar o exercício do direito de greve com a protecção de interesses colectivos essenciais e impreteríveis, da aplicação dos textos constitucional e legal de forma alguma pode resultar a inutilização prática daquele direito.

'Se, de facto, não se quis imolar quaisquer direitos fundamentais ao direito de greve, muito menos se quis sacrificar este àqueles: visou-se apenas atingir o necessário ponto de equilíbrio entre um e outros.'

[...] Sendo o conceito de 'serviços mínimos' fluido e indeterminado, e exigindo, por isso, definição de concretização, a lei não indica, porém, expressa e directamente, a competência para fixar os serviços mínimos.

A ausência de fixação directa na lei tem provocado em diversas ocasiões um labor interpretativo de ordem sistemática deste Conselho na determinação da competência para a definição do nível, conteúdo e extensão dos serviços mínimos.

Com a conclusão sucessivamente reiterada de que tal competência pertence ao Governo.

Tem-se, com efeito, ponderado que 'a definição do nível, conteúdo e extensão dos serviços mínimos indispensáveis releva os interesses fundamentais da colectividade, depende em cada caso da consideração de circunstâncias específicas, segundo juízos de oportunidade, e compete ao Governo' -, argumentando-se com a ideia de que a decisão sobre o conteúdo dos serviços mínimos pode transformar-se em factor de conflito entre as partes, e não deveria, por isso, ser deixada na disponibilidade de nenhumas delas, 'mas submetida à decisão de uma entidade, em princípio, imparcial'.

Assim, estando em causa 'valores implicando considerações de ordem pública, apareceria o Governo, até por razões constitucionais de defesa da legalidade democrática e de tomada das providências necessárias à satisfação das necessidades colectivas - então o disposto nas alíneas f) e g) do artigo 202.º da Constituição, hoje do artigo 199.º - como a entidade adequada'.

Argumentou-se, também, com o n.º 4 do artigo 8.º da lei da greve, a qual permite ao Governo determinar a requisição ou mobilização se os serviços mínimos não estiverem a ser assegurados, o que teria implícita a competência prévia para a definição do âmbito e nível daqueles serviços mínimos.

A formulação do Conselho quanto às questões de competência para a fixação dos serviços mínimo suscitou objecções em alguma doutrina. Ponderando objecções, o Conselho reafirmou recentemente a sua posição nos termos seguintes: 'Não deixará de se admitir que a decisão de considerar certo departamento como prestador de serviços essenciais e a consequente fixação de serviços mínimos, tomada pelos órgãos de direcção de um serviço directamente dependente do Governo, ou mesmo de um serviço personalizado, de um instituto público ou empresa pública, é susceptível de revestir a aparência de menos imparcialidade.'

Dará, em menor grau, o flanco à crítica a decisão tomada pelo próprio Governo.

De qualquer modo, não se vê razão para abandonar a posição que vem sendo seguida por este Conselho, nos termos da qual é ao Governo que compete, em última instância, tomar as providências necessárias à satisfação das necessidades colectivas, bem como à defesa da legalidade democrática, tal como advém das alíneas f) e g) do artigo 199.º da Constituição.

'É certo que o novo n.º 3 do artigo 57.º remete para a lei a definição das condições de prestação desses serviços mínimos, o que não se encontra cabalmente conseguido com o dispositivo actual.'

E acrescenta-se 'que [...] não será despiciendo assinalar que a Administração, ao prosseguir o interesse público, deve fazê-lo no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Resulta do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição que os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar nas suas funções com observância dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade.

Por outro lado, a participação dos cidadãos nas decisões ou deliberações que lhes disseram respeito é um princípio também com inscrição constitucional - n.º 5 do artigo 267.º

Ademais, as decisões tomadas pelo Governo não deixam de estar sujeitas à possibilidade de controlo jurisdicional.

O que quer dizer que, embora seja o Governo a usar do poder de fixar quais sejam os serviços essenciais e a determinar a medida dos serviços mínimos, não deve fazê-lo sem audição das associações sindicais ou comissões de greve, ainda quando haja trabalhadores disponíveis, não aderentes à greve, já que a situação pode alterar-se'.

'Isto independentemente do poder-dever que assiste ao Governo de determinar a requisição civil dos trabalhadores necessários ao seu cumprimento, de acordo com disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Lei 65/77, que se colocará numa fase seguinte.'."

Importa também notar o entendimento expresso por Gomes Canotilho e Jorge Leite ("Ser ou não ser uma greve", in ob. cit., pp. 31 e 32), que, perante a regulamentação aqui em crise, evidenciam algumas dimensões problemáticas assaz relevantes:

"[...] a lei da greve [...] limita-se a enunciar alguns dos sectores que se destinam à satisfação de necessidades sociais impreteríveis (artigo 8.º, n.º 2), parecendo estabelecer uma autovinculação das associações sindicais quanto à prestação dos serviços mínimos indispensáveis para ocorrer a essas necessidades (artigo 8.º, n.º 1). Em termos textuais, a lei não diz que os sindicatos são as entidades competentes para definir os serviços mínimos; impõe, sim, a obrigação das associações sindicais de assegurarem durante a greve a prestação dos serviços mínimos indispensáveis. Uma coisa é dizer-se quem tem competência para a definição de serviços mínimos e outra é dizer-se quem está obrigado a cumprir esses serviços. A confusão destes dois planos explica a frequente inversão de competências com alguns sindicatos a reivindicarem a competência para a definição de serviços mínimos e a assumirem a obrigação de apenas cumprirem os serviços mínimos por eles definidos. Ora, isto equivaleria a reivindicar uma completa competência de auto-regulamentação de modo algum consagrada no ordenamento jurídico-constitucional português. A dimensão de auto-regulação subsiste, num primeiro momento, na gestão da obrigação de prestação de serviços mínimos definidos pelas entidades legalmente competentes e não na definição destes mesmos serviços. Note-se que nada impede [...] que a definição dos serviços mínimos comece por uma auto-regulação das partes envolvidas, mas não se pode impedir que, na falta de acordo auto-regulativo, as entidades públicas cons titucional e legalmente responsáveis pela defesa de direitos e satisfação das necessidades sociais impreteríveis fixem o nível concretamente adequado de serviços mínimos. Num Estado de direito, os sindicatos poderão, como é óbvio, contestar judicialmente a decisão das autoridades, assim como estas poderão recorrer à via judiciária para obter, se for o caso, a efectivação da responsabilidade das associações sindicais e dos trabalhadores.

[...] compreende-se, porém, que a lei da greve não tenha querido eliminar totalmente uma auto-regulação concertada das partes em conflito, evitando duas unilateralidades, quais sejam a de só confiar à entidade empregadora ou associações patronais e só às associações sindicais e aos trabalhadores a definição dos serviços mínimos (cf. o artigo 8.º, n.os 4 e 5, da Lei 65/77, com a redacção que lhe deu a Lei 30/92, entretanto declarada inconstitucional). Na falta, porém, de previsão legal quanto a outros esquemas - hetero-regulação judicial ou hetero-regulação por entidades independentes e ausência de auto-regulações satisfatórias, só as entidades estatais que têm a responsabilidade pública pela continuidade de serviços sociais indispensáveis se perfilam como instâncias competentes para a definição de serviços mínimos (cf. artigo 8.º, n.º 6, da Lei 65/77, com a redacção que lhe fora dada pela Lei 30/92). Note-se que esta solução não deixa de suscitar problemas, sobretudo quando as entidades públicas são também as entidades empregadoras, pelo que, pelo menos enquanto esta matéria não for devidamente regulamentada, ainda mais se justifica a existência de um procedimento judicial próprio que responda celeremente ao recurso da parte interessada.

A generalidade da doutrina constitucional articula a competência do Estado para a definição de serviços mínimos indispensáveis com a ideia de dever de protecção que imputa ao Estado a responsabilidade pela criação de organizações, procedimentos e processos indispensáveis à garantia e protecção de direitos fundamentais. Isto sobretudo quando estão em causa direitos fundamentais da pessoa, como a vida, a saúde, a segurança, a integridade física. Em algumas formulações, este dever de protecção de direitos fundamentais abrange a necessidade de conformar as regulações jurídicas de modo a evitar o perigo de violação de direitos fundamentais caso se verifiquem determinados pressupostos. Como pressupostos especiais para a equiparação de perigo de violação de direitos a lesão de direitos assinala-se a elevada possibilidade de resultarem, relativamente aos utentes de serviços essenciais, riscos sérios quanto ao direito à vida ou danos importantes para a saúde.

Estas considerações, articuladas com as razões aduzidas pela Procuradoria-Geral da República (parecer, Diário da República, 2.ª série, de 29 de Novembro de 1990), levam-nos a defender que, quando falte ou se revele insatisfatório o mecanismo de auto-regulação daqueles sobre os quais recai a obrigação de os prestarem, cabe ao Governo, através dos ministros interessados, proceder à definição dos serviços mínimos."

8.2.3 - Após as considerações supra-efectuadas (n.º 8.2.1) sobre a conformação do direito à greve e a imposição de limites a tal direito fundamental, preordenados à imperiosa necessidade de assegurar o respeito pela satisfação de necessidades sociais impreteríveis, e perspectivados, tendo em conta algumas experiências jurídicas além-fronteiras, diversos modelos relativos à questão da competência para definir ou identificar em concreto os serviços mínimos que devem ser assegurados pelos trabalhadores (essencialmente o n.º 8.2.2), importa agora, respeitando as linhas fundamentais que emergem de tal enquadramento, incidir directamente sobre o problema de constitucionalidade suscitado nos presentes autos. E isto tendo em conta que o "modelo operativo" de "definição" dos serviços mínimos - finalisticamente ordenados para satisfação das necessidades sociais impreteríveis -, gizado na decisão recorrida a partir de uma densificação normativa do artigo 8.º da lei da greve, assenta em três dimensões nucleares que se entrecruzam reciprocamente: a) em primeiro lugar, perfila-se, desde logo, o problema da (não) imposição de uma prévia actuação - independentemente do autor que a leve a cabo - ao nível da definição dos serviços mínimos, em termos de estes ficarem de alguma forma individualizados e, assim, preventivamente determinados no momento efectivo da paralisação laboral; b) depois, seguindo na linha do "procedimento" firmado pelo Tribunal, assume-se como tarefa exclusiva dos trabalhadores proceder in casu à "definição" dos serviços mínimos no âmbito do cumprimento da obrigação estabelecida pelo artigo 8.º, n.º 1, da lei da greve; c) finalmente, para concluir, o Tribunal sustenta que o Governo poderá sempre intervir quando entender que os trabalhadores, no preenchimento da "cláusula geral" de obrigação de asseguramento da satisfação das necessidades sociais impreteríveis, não a cumprem em termos adequados.

Tais dimensões - que concretizam a "norma do caso" mobilizada pelo Supremo Tribunal Administrativo - não podem deixar de ser conjuntamente consideradas em ordem à resolução do problema de constitucionalidade colocado nos autos, sendo apenas no âmbito de uma tal "visão de conjunto" por elas possibilitadas que se deverá perspectivar a resolução do caso sub judicio.

Já se deixou expresso o sentido teleológico inerente à obrigação de assegurar os serviços mínimos em termos de, neste momento, se poder considerar que a questão do cumprimento - rectior, da imposição ... - de tal obrigação, em respeito pela satisfação de necessidades sociais impreteríveis, constitui um ponto fundamental e nuclear ao nível do respeito por determinados valores e direitos constitucionalmente tutelados estando, pois, inerente ao seu estabelecimento uma preventiva dimensão de garantia, preservação e respeito efectivo própria da tutela constitucional dispensada aos direitos fundamentais.

Todavia, não obstante corresponderem a uma dimensão material do Estado de direito democrático, a responsabilidade pela realização, efectivação e prevenção dos bens jurídicos aqui envolvidos não cabe exclusivamente ao Governo.

A obrigação de definição dos serviços mínimos capazes de satisfazer as necessidades sociais impreteríveis corresponde a uma obrigação que, por natureza, deve ter-se por manifestamente indisponível, mesmo quando atribuída aos trabalhadores, daí decorrendo que, na sua conformação, terá de proceder-se a uma ineliminável tarefa de determinação e avaliação de quais sejam as necessidades sociais impreteríveis que correspondem a dimensões nucleares constitucionalmente tuteladas e que hão-de ser pacificadas mediante a prestação de serviços mínimos.

A tal não obsta, de modo algum, o facto de a construção legislativa que densifica a obrigação de cumprimento dos serviços indispensáveis à satisfação das necessidades sociais impreteríveis assentar, justificadamente, numa ordenação não taxativa edificada sobre conceitos indeterminados, não dispensando, assim, um esforço de concretização e densificação não só quanto ao quid (aqui se questionando os domínios laborais sujeitos à regra da continuidade da laboração de forma a não afectar as "necessidades sociais impreteríveis"), mas igualmente no que concerne ao quantum que permitirá lograr o cumprimento da intenção prático-normativa da imposição legal.

Nessa linha, não pode duvidar-se de que a concretização definidora dos serviços mínimos se pauta por um critério legalmente estabelecido que, nessa medida, se assume como um tipo ordenador e delimitador em face da concreta delimitação que se opere, pelo que a questão da competência para a definição dos serviços mínimos não deixa de estar, decerto, ineliminavelmente ligada à intenção prático-normativa subjacente à imposição da obrigação de se assegurar a devida satisfação das necessidades sociais impreteríveis.

Por isso, mesmo que o grau de densificação normativa com que o legislador recortou a esfera de tal imposição acabe por transferir a especificante conformação dessa mesma obrigação para o plano casuístico, as indefectíveis exigências de previsibilidade, segurança e garantia de tutela efectiva dos direitos fundamentais e dos valores constitucionais potencialmente afectados por uma greve não podem deixar de impor que se acautele devidamente uma determinação identificadora das prestações sociais impreteríveis, daí decorrendo logicamente - et pour cause que o cumprimento da obrigação de prestação de serviços mínimos não possa deixar de estar sempre preordenado a uma tal definição.

O que, em todo o caso, não implica forçosamente que esta última dimensão apenas sobressaia - e, em rigor, se esgote - no momento em que se torna necessário assegurar os serviços mínimos, ficando (por isso) exclusivamente nas mãos dos trabalhadores a competência (implícita) para a determinação dos serviços a cumprir, tendo assim de concluir-se, como se diz no acórdão recorrido, que a "não imposição de definição prévia, por quem quer que seja, começa desde logo a apontar para a falta de apoio legal de um acto autoritário dos membros do Governo que estabeleça os serviços mínimos a prestar [...] [não se devendo] esquecer que os destinatários directos da norma são os trabalhadores e as associações sindicais a quem [...] compete definir o âmbito dos interesses a defender durante a greve".

De resto, a mesma decisão recorrida, como infra se explicitará, admite que, através do instituto da requisição civil, o Governo não fique preso à "definição" operada pelos trabalhadores, "bastando que os membros do Governo entendam [...] que os trabalhadores em greve não estão a assegurar a satisfação das necessidades sociais impreteríveis".

Em todo o caso, a questão da competência para a definição dos serviços mínimos não deixa de estar de algum modo associada directamente à dimensão prático-normativa subjacente à imposição da obrigação de se assegurar a devida satisfação das necessidades sociais impreteríveis, pelo que nada obsta a que, sob a perspectiva da sua titularidade, tal definição possa estar acoplada a esta, sem que, porém, seja a única solução constitucional possível.

Assim e nesta perspectiva, a questão que se assume como verdadeiramente nuclear é a de saber se o esquema operativo [pré-]ordenado ao cumprimento da obrigação dos serviços mínimos, atenta a sua intencionalidade, há-de ficar, sem violação do parâmetro constitucional invocado, fora do alcance da competência do Governo.

E, quanto a este ponto particular - que infra se desenvolverá - a Constituição não reclama, forçosamente, uma intervenção do Governo, sendo igualmente compatível com modelos operatórios que afectem a outras instâncias a tarefa de proceder a tal definição, não sendo forçoso que para o preenchimento dos conceitos indeterminados que recortam a obrigação em causa se haja de impor a intervenção do Governo ao nível da identificação/concretização das necessidades sociais impreteríveis a satisfazer.

Atente-se, então, no problema de saber "a quem cabe" definir e concretizar o quid e o quantum em que a obrigação de prestação de serviços mínimos se cumpre, ou seja, por outras palavras, "quem tem competência" para proceder à densificação concretizadora da intenção normativa da norma que recorta tal orientação, sendo certo, porém, que tal resposta está, nos autos, estritamente vinculada ao objecto do recurso de constitucionalidade e, assim, à apreciação da bondade constitucional do normativo critério decisório sobre o qual incide o presente recurso.

Concretizando o "esquema" normativo traçado pela recorrida decisão do Supremo Tribunal Administrativo, e, em particular, a resposta que a questão supra-enunciada aí mereceu, podem, em essência, diferenciar-se dois momentos: num primeiro, afirma-se a responsabilidade dos trabalhadores e das suas estruturas representativas pela obrigação de assegurar o cumprimento dos serviços mínimos e, consequentemente, pela concretização identificadora/definidora desses serviços; num segundo momento, salienta-se que, perante tal definição, o Governo pode, "sem estar condicionado à eventual 'definição' que os trabalhadores façam dos serviços mínimos a prestar", lançar mão do instrumento da requisição civil, daí resultando, no entendimento da decisão recorrida, que "[não se coloca] nas mãos dos trabalhadores em greve a determinação do que constituem as necessidades sociais impreteríveis e o modo de as satisfazer".

Temos, portanto, que a decisão recorrida entendeu que a tarefa de identificação e fixação dos serviços mínimos cabe, em primeira linha, aos trabalhadores de forma exclusiva e incondicionada por qualquer actuação governamental.

Vale isto por dizer que a concretização da obrigação de prestação dos serviços conectados com as necessidades sociais impreteríveis - e a sua avaliação - está sempre, segundo tal decisão, num primeiro instante, dependente da posição que seja assumida, em concreto, pelos trabalhadores e sindicatos, em termos de ser tal definição (ou a sua ausência) a delimitar (ou a excluir), apodicticamente, o sentido, o conteúdo e o alcance da imposição que sobre eles impende, assim se atribuindo aos trabalhadores o poder de conformação da obrigação de prestação de serviços mínimos que têm de ser garantidos - o que é corroborado, e potenciado, pelo entendimento de que não é exigível uma definição prévia desses serviços.

Mas, por outro lado, precisou-se aí também que o Governo não está impedido de intervir na conformação da obrigação de prestação de serviços mínimos, na medida em que, mesmo cabendo, prima facie, aos trabalhadores a "definição" desses serviços, a autoridade administrativa não fica absolutamente vinculada pela fixação que venha a ser estabelecida pelos sindicatos, uma vez que, em última análise, caberá sempre ao Governo uma intervenção correctiva e de garantia do cumprimento da obrigação que impende sobre os trabalhadores, prefigurando-se a requisição civil como um instrumentarium de reacção, sobreponível a uma desadequada "definição" dos serviços mínimos.

Deste modo, pode dizer-se que, mesmo segundo a decisão recorrida, a atribuição aos sindicatos da tarefa de definição dos serviços mínimos não corresponde ao reconhecimento de um poder absoluto e insindicável e, em todo o caso, definitivo, mas apenas a um iter do procedimento de greve (que não deixa de estar sujeito a uma intervenção governativa cuja intenção e conteúdo passam, decerto, pela avaliação da correcção do quid e do quantum "definido", sobreponível ao primeiro juízo, enquanto intervenção de autoridade que assegure o cumprimento da obrigação legal e constitucionalmente imposta).

É certo que a decisão impugnada constitucionalmente, por fazer coincidir o momento da "definição" dos serviços mínimos com o da sua realização, parece sugerir a ideia de que ficará afastada a possibilidade de o Governo lançar mão de medidas preventivas directamente orientadas para evitar uma iminente situação de incumprimento da obrigação de serviços mínimos e de lesão dos direitos fundamentais.

Note-se, no entanto, ser também possível uma sua leitura no sentido de que a requisição civil poderá ser determinada pelo Governo logo que este entenda que os trabalhadores, com a posição concretamente adoptada, não estão a assegurar, mesmo que cautelarmente, a satisfação das necessidades sociais impreteríveis.

Como quer que seja, nem o modo como a decisão recorrida entendeu o instrumento da requisição civil (se passível ou não de ser usado cautelarmente) vincula o Tribunal Constitucional, por não incorporar a dimensão normativa constitucionalmente sindicada, correspondendo a um simples argumento de interpretação de ordem sistemática de que o tribunal a quo se socorreu para definir a norma impugnada, nem a solução da questão de conformidade constitucional da acepção normativa de que cabe aos trabalhadores a competência para a definição dos serviços mínimos é forçosamente implicada pela posição que se tome quanto à resolução dessa questão.

Na verdade, uma coisa é a questão da necessidade de salvaguardar a eficácia da tutela constitucional dispensada aos direitos fundamentais em caso de risco iminente da sua lesão, derivada da falta ou errada definição do quid e do quantum dos serviços mínimos que satisfaçam as necessidades sociais impreteríveis, pois que "as limitações ao direito à greve impostas em nome da continuidade dos serviços públicos justificar-se-ão não tanto em nome do combate ao 'abuso de direitos fundamentais' mas em nome da defesa de outros direitos fundamentais" (v. Gomes Canotilho e Jorge Leite, "Ser ou não ser uma greve", in op. cit., pp. 28 e 29); outra diferente é a questão da atribuição da competência para a definição dos serviços mínimos cuja correcta utilização obviará a que esse risco de lesão se verifique.

Deste modo, as problemáticas da possibilidade de recurso a meios cautelares para evitar o risco iminente de lesão de direitos fundamentais pela falta ou errada definição dos serviços necessários e adequados a assegurar a satisfação das necessidades sociais inadiáveis, de quais sejam os instrumentos jurídicos funcionalizados à obtenção dessa tutela preventiva que satisfaçam as exigências do princípio da proporcionalidade constantes do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa (necessidade, adequação e justo limite) e da competência ou legitimidade para lançar mão deles não contendem com a questão de saber a quem cabe a competência legal para proceder à definição dos serviços mínimos cuja realização obstará àquele risco, podendo as respostas conviver tanto com o sistema defendido pela recorrente como com o sustentado pela decisão recorrida, ou até com os consagrados no direito comparado que se sumariou, prendendo-se antes com a questão de concessão, em caso de risco de lesão, da sua tutela preventiva - risco esse que pode decorrer da falta ou errada definição dos serviços mínimos adequados a satisfazer as necessidades sociais impreteríveis, qualquer que seja o sujeito a quem a lei ordinária atribua a competência para a definição desses serviços mínimos.

É, pois, neste campo que se poderá colocar a questão da idoneidade constitucional do instituto da requisição civil para poder funcionar como meio administrativo cautelar do risco de lesão dos direitos fundamentais decorrente da falta ou errada definição dos serviços mínimos adequados a satisfazer as necessidades sociais impreteríveis - problema, aliás, que esteve em análise no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20 de Março de 2002, e que aí mereceu resposta negativa, mas cuja solução não chegou a ser sindicada em sede de recurso constitucional, suscitando a observação de Bernardo Xavier (in Requisição Civil, Serviços Mínimos, cit., p. 33) de que tal "acórdão revela uma distância muito grande das situações de risco ou de perigo" (para o autor, é certo que "o simples perigo de violação de bens fundamentais pode, em toda a parte, legitimar acções de excepção", admitindo, assim, perante um caso no qual os trabalhadores manifestaram a sua intenção de não cumprir quaisquer serviços mínimos, a mobilização do instituto da requisição civil como instrumento cautelar de garantia dos valores constitucionais tutelados pela obrigação de satisfação das necessidades sociais impreteríveis, o que "reclama que estejam a postos os serviços indispensáveis para debelar situações de emergência, porque é essa prontidão que satisfaz a legítima aspiração à segurança da própria comunidade envolvida"). Isto não sendo igualmente inédito, mesmo ao nível da doutrina, o reconhecimento da possibilidade de o Governo, judicialmente, "lançar mão de uma providência cautelar urgente, pedindo que as associações sindicais sejam condenadas a indicar os trabalhadores necessários à prestação dos serviços mínimos e à segurança das instalações" (cf. José João Abrantes, "Greve e serviços mínimos", op. cit., p. 230).

Trata-se, assim, de questão que se pode deixar em aberto, por a sua solução não implicar, como já se disse, com a decisão da questão de saber se a norma aqui concretamente sindicada respeita as normas e princípios constitucionais, nomeadamente os preceitos do artigo 199.º, alíneas f) e g), da Constituição.

Não obstante se admitir, como se disse, que a atribuição da competência para definir os serviços mínimos, como dimensão coetânea e incindível da obrigação de assegurar o cumprimento de prestações sociais impreteríveis, em exclusivo aos trabalhadores acabe por poder contender com o exercício de uma função pública direccionada a salvaguardar os interesses vitais da colectividade e, consequentemente, a evitar lesões efectivas dos bens jurídicos fundamentais que se pretendem garantir, não é de concluir - com o que se avança a resposta à questão decidenda - pela desconformidade da norma sindicada com a lei fundamental.

É certo que a Constituição reserva ao Governo, no domínio da função administrativa, um papel específico, traduzido, desde logo, na "responsabilidade pública pela continuidade de serviços sociais indispensáveis" e que se efectiva, de forma clara, no mandato conferido no artigo 199.º, alíneas f) e g), da nossa lei fundamental, podendo, até, ver-se nessa incumbência um argumento a favor da tese (questão deixada em aberto) de que o Governo tenha competência constitucional para, em caso de greve anunciada ou efectivada, lançar mão de meios administrativos ou de medidas cautelares judiciais para "defender e garantir os direitos e interesses dos cidadãos reconhecidos por lei" e de que lhe caiba "providenciar [...] pela satisfação das necessidades colectivas do País" (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. revista, p. 783 - em anotação ao então artigo 202.º), até porque "incumbe ao Estado garantir a continuidade dos serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis [...] [tratando-se], como assinala a doutrina, do cumprimento de um dever de protecção (Schutzpflicht), indispensável à garantia de direitos num Estado de direito democrático-constitucional" (Gomes Canotilho e Jorge Leite, "Ser ou não ser uma greve", in op. cit., p. 40).

Mas o que seguramente não decorre de tais preceitos é que, possivelmente ressalvado o quadro do uso necessário, proporcionado e adequado de meios jurídicos tendentes a acautelar o risco de lesão de direitos fundamentais pela falta ou errada definição dos serviços mínimos pacificadores das necessidades sociais inadiáveis ou impreteríveis, a Constituição atribua directamente ao Governo a competência para poder definir os serviços mínimos que assegurem a satisfação, em caso de greve, das necessidades sociais inadiáveis ou que - questão que é objecto deste recurso - o legislador ordinário esteja constitucionalmente obrigado a adoptar uma solução nos termos da qual o Governo não possa ser excluído na definição desses serviços mínimos em caso de greve.

O que não seria constitucionalmente tolerável, na óptica da defesa de outros direitos fundamentais, seria que perante uma "não" definição ou perante uma deficiente definição dos serviços mínimos - que não acautelasse devidamente o cumprimento da obrigação de assegurar a realização das prestações sociais impreteríveis -, se vedasse ao Governo, e em geral à autoridade pública, qualquer prerrogativa de actuar tomando todas as providências necessárias à satisfação das necessidades colectivas, com particular destaque, como é óbvio, para aquelas que tocam interesses vitais da comunidade e direitos essenciais da pessoa humana, cuja tutela não se mostra compatível com situações de clara e manifesta indefinição.

Mas, fora desse quadro, não se vê razão para que não possa caber aos trabalhadores, por força de lei, a definição das necessidades sociais impreteríveis a satisfazer.

Ademais, não pode ignorar-se que o entendimento contrário acabaria por conduzir, em tal âmbito, a uma solução que vedaria ao legislador a possibilidade de prever uma outra metodologia de definição dos serviços mínimos, fosse ela deixada a cargo de entidades independentes ou a órgãos de natureza paritária e ou arbitral, pois teria sempre de estar também nas mãos do Governo o alfa e o ómega da competência para a fixação dos referidos serviços.

Pode assim concluir-se que a norma constitucionalmente sindicada não viola os preceitos constantes das alíneas f) e g) do artigo 199.º da Constituição.

9 - Invoca também a recorrente que a norma em crise afronta o disposto nos artigos 55.º e 56.º da Constituição, colidindo com "o perfil constitucional dos sindicatos", na medida em que, como se alega, "em face do quadro constitucional e legal vigente, os sindicatos apresentam-se como puros sujeitos de direito privado, cuja representação é naturalmente limitada pelo interesse colectivo da categoria sindical definida nos seus estatutos [...] não se alcança[ndo], por isso mesmo, como se possa atribuir a esses sujeitos um poder que vai muito para além dessa representação e que se prende com interesses alheios aos da categoria sindical - e que podem mesmo ser, no caso dos serviços mínimos para segurança e manutenção das instalações e equipamentos, interesses do empregador que é contraparte no conflito colectivo que determinou a greve".

Para sustentar tal entendimento, a recorrente invoca, inter alia, as considerações expendidas no Acórdão 272/86, deste Tribunal, citando o aresto, no que interessa para a sua conclusão, na parte em que se refere "importa apenas afirmar, e sem quaisquer hesitações, que o que não é compatível com o direito à independência sindical [...] é, seguramente, a atribuição forçada, e por via de lei, de funções públicas aos sindicatos".

Tal jurisprudência foi, mais tarde, recuperada pelo Acórdão 445/93 (também mencionado pela recorrente e publicado no Diário da República, 2.ª série, de 13 de Agosto de 1993, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25.º vol., pp. 335 e segs.), onde se considerou:

"[...] No contexto jurídico-político que tinha por referência legitimadora a Constituição de 1933, compreendia-se que os sindicatos dispusessem de prerrogativas de autoridade e se apresentassem como entidades de direito público.

Com efeito, nos termos do Decreto-Lei 23 050, os sindicatos nacionais, como entidades de direito público, deviam 'subordinar os respectivos interesses aos interesses da economia nacional, em colaboração com o Estado e com os órgãos superiores da produção e do trabalho' (artigo 9.º), cabia a tais sindicatos a 'representação dos interesses profissionais da respectiva categoria' (artigo 13.º, n.º 1) e os contratos de trabalho e os regulamentos por ele elaborados, depois de sancionados e aprovados, obrigavam 'igualmente os inscritos e não inscritos' (artigo 22.º).

Como também se compreendia que tais sindicatos dispusessem de competência para proceder à elaboração dos regulamentos das carteiras profissionais e bem assim a de as emitir, como forma de controlar o exercício regular de determinada profissão.

Mas, contrariamente a semelhante sistema sindical, em que os sindicatos se apresentavam como entidades de 'carácter público' ou de 'pessoas colectivas de direito privado e regime administrativo' (cf. respectivamente, Bernardo Lobo Xavier, 'O papel dos sindicatos nos países em desenvolvimento', Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXV, 1978, pp. 387 e segs., e Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Forense, t. I, p. 355), aos sindicatos do actual ordenamento jurídico não é consentida a atribuição forçada e por via de lei de tarefas ou funções públicas, como sucede com aquelas que no quadro do regime em apreço são cometidas à associação sindical dos jornalistas, 'obrigada' a emitir os títulos profissionais, independentemente da qualidade de sindicalizado do trabalhador interessado em tais documentos.

Com efeito, 'dada a natureza privada dos sindicatos, aliada ao princípio da filiação, deve entender-se, na linha da jurisprudência do Tribunal Constitucional, que não pode a lei atribuir aos sindicatos poderes de autoridade e, designadamente, o poder de passar carteiras profissionais. Tal atribuição, feita por lei, iria violar a liberdade de acção das associações sindicais e a sua independência' (cf. António Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 461).

Por outro lado, e complementarmente, a atribuição à organização sindical dos jornalistas de um poder fiscalizador do exercício da profissão traduzido na competência para determinar a suspensão, perda ou apreensão do título, com a consequente impossibilidade de exercer legitimamente a profissão, bem como de um verdadeiro poder disciplinar, no que respeita às eventuais infracções aos deveres deontológicos dos jornalistas, implicam a atribuição do exercício de verdadeiros poderes ou prerrogativas de autoridade, manifestamente contrários e estranhos aqueles que são próprios dos sindicatos e se inscrevem no âmbito das suas específicas finalidades."

Note-se, desde já, que deste entendimento [na esteira do firmado nos Acórdãos n.os 46/84, 91/85 e 272/86 - publicados, respectivamente, in Diário da República, 2.ª série, de 13 de Julho de 1984, de 18 de Julho de 1985 e de 18 de Setembro de 1986 -, nos quais se teve por inconstitucional a norma do § 1.º do artigo 3.º do Decreto-Lei 29 931, de 15 de Setembro de 1939 (no caso dos dois primeiros acórdãos), respeitante à competência atribuída ao Sindicato Nacional dos Ajudantes de Farmácia e Ofícios Correlativos para proceder à emissão das carteiras profissionais indispensáveis ao exercício daquela actividade profissional, e a norma do artigo 9.º, n.º 2, da Portaria 367/72, de 3 de Julho (no caso do último aresto), que confiava aos sindicatos a passagem das cadernetas de registo da prática de certos auxiliares de farmacêutico, com base na violação do princípio constitucional da liberdade sindical e da independência, consagrados no artigo 56.º, n.os 1, 2, alínea b), e 4, da Constituição, na versão saída da revisão constitucional de 1982] não pode extrair-se qualquer argumentação que determine a inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei 65/77, de 26 de Agosto, quando interpretado no sentido de que compete apenas aos sindicatos e aos trabalhadores, com exclusão do Governo, a definição em concreto dos serviços mínimos durante a greve, por violação do disposto nos artigos 55.º e 56.º da Constituição.

Na verdade, não resulta da norma aplicada qualquer investidura das associações sindicais e dos trabalhadores no exercício de uma tarefa ou função pública que se traduzam numa prerrogativa de ius imperii e de "exercício de verdadeiros poderes ou prerrogativas de autoridade, manifestamente contrários e estranhos àqueles que são próprios dos sindicatos e se inscrevem no âmbito das suas específicas finalidades".

Trata-se, tão-só, como é confirmado pela decisão recorrida, de fazer recair sobre os sindicatos e os trabalhadores a observância de uma obrigação social - consubstanciada, como se viu, na determinação e grau das necessidades sociais associadas aos serviços mínimos a prestar e no modo de as pacificar - que lhes cabe assegurar, não vinculando ou excluindo, nos termos em que aqueles não cumpram a imposição legal, a intervenção dos poderes públicos.

Em todo o caso, a natureza privada dos sindicatos não obsta a que lhes sejam cometidos - e, em certa medida, a própria Constituição o imporá - direitos e obrigações, ainda que estes se revestissem de natureza pública (atente-se no que decorre do âmbito da negociação colectiva e com o poder de conformar a própria regulamentação normativa das relações de trabalho). É o que se passa com a obrigação de, em caso de greve, atenta a circunstância de ficarem suspensas as relações emergentes do contrato de trabalho, assegurar os serviços mínimos preordenados à satisfação das necessidades sociais impreteríveis (aí se incluindo, na perspectiva da decisão recorrida, a definição em concreto desses serviços).

Intervindo neste nível e com este recorte, os sindicatos não estão a exercer prerrogativas de autoridade, mas sim a actuar no âmbito de uma obrigação que lhes é constitucional e legalmente imposta. É certo que, como se mencionou, o cumprimento de tal obrigação não prescinde de uma individualização quantificadora, mas essa definição - deixada a cargo dos sindicatos e dos trabalhadores - perfila-se, precisamente, como uma dimensão coetânea ao cumprimento da imposição constitucional e legal e, assim, como momento integrador dessa obrigação, sendo que, como é óbvio, a questão da natureza da obrigação não deixa de ser naturalmente distinta daqueloutra referente ao sujeito a quem tal obrigação está cometida (exemplo paradigmático disso é o que emerge da obrigação de pagamento de impostos).

De resto, pode mesmo , considerando a memória dos modelos susceptíveis de permitir uma definição dos serviços mínimos, que da leitura dos preceitos constitucionais invocados só se retiram bons argumentos para fazer incluir os trabalhadores e os sindicatos no âmbito do procedimento conducente à definição desses serviços.

10 - Sustenta também a recorrente a inconstitucionalidade do critério normativo sub judicio por violação do artigo 61.º, n.º 1, da Constituição, uma vez que, segundo o seu juízo, "a definição dos serviços mínimos e a gestão do seu cumprimento projectam-se directamente na conformação do modo de funcionamento da organização empresarial. [§] A adequação da empresa à satisfação das necessidades sociais impreteríveis, como os serviços mínimos [...] bem como a gestão dos trabalhadores afectos ao cumprimento destes serviços são prerrogativas empresariais, que decorrem da liberdade, constitucionalmente reconhecida, de organização e gestão das empresas. [§] Por força da posição sustentada pelo Supremo Tribunal Administrativo, o processo de greve envolveria uma expropriação temporária dos poderes empresariais e levaria a que fossem atribuídos, por força da declaração de greve, às associações sindicais e trabalhadores grevistas, poderes de conformação da organização empresarial e de gestão dos próprios meios de produção, que não lhe são reconhecidos fora de uma situação de greve".

Perscrutando os argumentos mobilizados pela recorrente, ressaltam, na mesma formulação, dois problemas diferenciados a considerar sob o mesmo parâmetro de constitucionalidade. Por um lado está em causa a questão da definição dos serviços mínimos, por outro questiona-se o processo de "gestão do cumprimento desses serviços", na estrita dimensão de "gestão dos trabalhadores afectados ao cumprimento dos serviços mínimos".

Ora, essa diferenciação impõe-se porque, manifestamente, como se verá, o critério decisório não acaba por abranger ambas as dimensões, porquanto aí não se considera, além do suscitado e decidido problema de definição dos serviços mínimos (em termos da competência para a sua definição), qualquer problema relativo à execução desses serviços (não se reflectindo, designadamente, sobre os critérios e os poderes da entidade patronal e dos trabalhadores na execução da obrigação de prestação dos serviços mínimos).

10.1 - Na verdade, relativamente à questão concernente à "gestão do cumprimento dos serviços mínimos", importa esclarecer que a resposta não é susceptível de ser dada com a argumentação expendida na decisão recorrida, que, de resto, não se pronunciou sobre tal problema.

Aliás, mesmo neste domínio concreto, as questões que se colocam não estão dependentes e absolutamente vinculadas à posição que se tome quanto ao problema da competência para a definição dos serviços mínimos, sendo que o problema da "gestão do cumprimento dos serviços mínimos", enquanto prerrogativa da empresa decorrente do direito à livre iniciativa privada, se coloca já a um nível distinto da questão de identificação das prestações sociais impreteríveis, relegando tal dimensão para a consideração da esfera dos poderes que as entidades patronais podem exercer sobre os trabalhadores adstritos ao cumprimento dos serviços mínimos e para a definição do estatuto que preside à prestação, pelo trabalhador, dos serviços legalmente requeridos, ou então, numa segunda óptica, para o domínio da fiscalização do cumprimento dos serviços mínimos.

Como a recorrente concretiza em sede de alegações, está em causa a própria "gestão dos trabalhadores afectados ao cumprimento dos serviços mínimos".

Ora, como é manifesto, tal domínio problemático reporta-se inequivocamente a um âmbito que contende, não já com a "definição dos serviços mínimos", em termos de se perscrutar, nesse domínio, a questão da competência para a definição desses serviços, mas sim com as relações entretecentes no âmbito da execução dos serviços mínimos definidos, aí se colocando o problema da gestão do modo como esses serviços devem ser cumpridos, e, nesse domínio em particular, da gestão dos próprios trabalhadores afectados ao cumprimento da obrigação que lhes é imposta.

Tratar-se-á de saber se as prestações efectuadas em cumprimento dos serviços mínimos podem ser reconduzidas a prestações de trabalho subordinado, implicando para os trabalhadores a sujeição às ordens da entidade empregadora nos mesmos termos da prestação normal de trabalho, de modo a apurar-se se "continua[m] os serviços essenciais a ser geridos pela entidade empregadora [...] [e se] a posição dos trabalhadores que tenham sido porventura designados para prestar o trabalho indispensável deve ser igual a todos os outros trabalhadores em serviço [...] [estando] sujeitos às directrizes técnicas das hierarquias respectivas" (cf. Bernardo da Gama Lobo Xavier, "Direito de greve", op. cit., pp. 185 e segs., e, também com resposta afirmativa, António Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, 1991, pp. 389 e segs.); ou se, por oposição, o cumprimento de tais prestações deverá configurar-se em termos de se afirmar se, em tal domínio, se trata "de cobrir responsabilidades transferidas, em consequência da greve, para o sindicato e o conjunto dos trabalhadores parados", sendo que, nessa linha, "ao cumprirem as referidas tarefas, os trabalhadores não estão, em rigor, a conduzir-se no âmbito da subordinação à entidade patronal", não se encontrando a cumprir o contrato de trabalho, "mas a executar um comportamento pelo qual a lei responsabiliza a associação sindical e o conjunto dos trabalhadores" (cf. António Monteiro Fernandes, Direito de Greve - Notas e Comentários à Lei 65/77, de 26 de Agosto, Coimbra, 1982, pp. 55 e segs., especialmente p. 60, e, em sentido paralelo, José João Abrantes, "Greve e serviços mínimos", op. cit., pp. 18 e segs., e Jorge Leite, Direito da Greve - Lições ao 3.º Ano da FDUC, Coimbra, 1994, pp. 62 e segs., especialmente p. 82) - sobre tais questões, v. o Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 52/92, de 14 de Julho de 1993, com outras indicações bibliográficas e com uma exposição detalhada do tema.

De resto, note-se que, na actual regulamentação desta problemática constante do Código do Trabalho, o legislador deu-lhe também uma resposta independente da questão da competência para a definição dos serviços mínimos.

Na verdade, depois de no artigo 599.º, sob a epígrafe "Definição dos serviços mínimos", ter consagrado que os serviços mínimos "devem ser definidos por instrumento de regulação colectiva de trabalho ou por acordo com os representantes dos trabalhadores", veio dispor, no artigo 600.º ("Regime de prestação dos serviços mínimos"), que "os trabalhadores afectos à prestação de serviços mínimos mantêm-se, na estrita medida necessária à prestação desses serviços, sob a autoridade e direcção do empregador".

Ora, o acórdão recorrido não considerou tal problemática, não se podendo inferir, a partir da decisão recorrida e do critério normativo aí aplicado, qualquer tomada de posição quanto ao problema de saber, além da definição dos serviços mínimos, a quem cabe a gestão do seu cumprimento, aí se incluindo a questão de saber quais são os poderes que a entidade patronal mantém sobre os trabalhadores adstritos ao cumprimento dessa obrigação.

Aliás, a própria recorrente, quer nas suas alegações para o Supremo Tribunal Administrativo, quer no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, definiu o objecto do recurso em termos de este incidir sobre a "constitucionalidade do artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei 65/77, de 26 de Agosto, quando interpretado no sentido de que compete aos sindicatos e aos trabalhadores a definição em concreto dos serviços mínimos durante a greve, por violação do disposto no artigo 199.º, alíneas f) e g), da Constituição da República Portuguesa". É claro que nada impede que, mantendo-se a norma questionada, se invoquem outros fundamentos e parâmetros jurídico-constitucionais susceptíveis de determinar o sentido do julgamento de constitucionalidade.

Não é, porém, o que sucede in casu, porquanto o problema da "gestão do cumprimento dos serviços mínimos", enquanto realidade que extravasa o domínio da competência para a definição desses serviços, não só traduz um alargamento do objecto do recurso - em termos de o Tribunal Constitucional ter também de apurar a inconstitucionalidade dos preceitos em causa não só quando "interpretado(s) no sentido de que compete aos sindicatos e aos trabalhadores a definição em concreto dos serviços mínimos durante a greve", mas também na dimensão de que lhes cabe, em exclusivo, a gestão concreta do cumprimento dos serviços mínimos definidos - , como, decisivamente, tal norma não foi aplicada pelo tribunal a quo com o sentido que lhe foi imputado.

Na verdade, o problema que a recorrente coloca - relembre-se: o da "gestão dos trabalhadores adstritos ao cumprimento dos serviços mínimos" - é um aliud e um posterius em face da determinação da competência para proceder à sua definição. De resto, nem pode pretender inferir-se da decisão recorrida que a resposta a tal questão fosse lógica e impreterivelmente no sentido invocado pela recorrente, porquanto não só tal questão não foi, como quaestio disputata, submetida a julgamento - sendo que, por isso, qualquer resposta que merecesse redundaria sempre numa extensão do julgado - mas também porque, em função disso, não cabe aqui estar a prever, caso o recurso para o Supremo Tribunal Administrativo integrasse tal problema, qual seria a solução a alcançar por esse tribunal.

Assim sendo, passar-se-á à consideração da alegada inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição, da norma do artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei 65/77, de 26 de Agosto, quando interpretado no sentido de que compete aos sindicatos e aos trabalhadores, com exclusão do Governo, a definição em concreto dos serviços mínimos durante a greve.

10.2 - A liberdade de "iniciativa económica privada" está prevista no artigo 61.º da Constituição, preceito que, como ensinam Gomes Canotilho/Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., revista, Coimbra, 1993, pp. 325 e segs.), "contempla as diversas formas constitucionalmente tipificadas de iniciativa económica não pública", dispondo o seu n.º 1 que "a iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral" (cf., para uma reflexão da natureza deste direito fundamental, com importantes indicações bibliográficas, a posição de Vasco Moura Ramos, "O direito fundamental à iniciativa económica privada (artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa): Termos da sua consagração no direito constitucional português", in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2001, t. 2, pp. 833 e segs.).

Quanto à especificação concretizadora do âmbito material deste direito fundamental, atente-se na exposição dos autores supracitados:

"Ao garantir aqui a iniciativa económica privada [...], a Constituição considera-a seguramente [...] como um direito fundamental (e não apenas como um princípio objectivo da organização económica), embora remetendo para a lei a sua delimitação e sem a considerar directamente um dos direitos, liberdades e garantias (beneficiando, porém, da analogia com eles). Este entendimento constitucional do direito de iniciativa privada está em consonância com o estatuto da empresa e do sector privados no âmbito da 'constituição económica'.

A liberdade de iniciativa privada tem um duplo sentido. Consiste, por um lado, na liberdade de iniciar uma actividade económica (direito à empresa, liberdade de criação de empresa) e, por outro, na liberdade de gestão e actividade da empresa (liberdade da empresa, liberdade do empresário). Ambas estas vertentes do direito de iniciativa económica privada podem ser objecto de limites mais ou menos extensos. Com efeito, esse direito só pode exercer-se 'nos quadros definidos pela Constituição e pela lei' [...], não sendo portanto um direito absoluto, nem tendo sequer os seus limites constitucionalmente garantidos, salvo no que respeita a um mínimo de conteúdo útil constitucionalmente relevante que a lei não pode aniquilar [...], de acordo, aliás, com a garantia constitucional de um sector económico privado [...]. É a própria Constituição que manda vedar certas áreas económicas à iniciativa privada [...], não estando a lei impedida de estabelecer outros limites, quer quanto à liberdade de criação de empresas, quer quanto à actividade das empresas, desde que respeitado o núcleo constitucionalmente garantido [...].

Se a lei pode delimitar negativamente o âmbito do direito de iniciativa económica privada, também pode conformar com grande liberdade o seu exercício, estabelecendo restrições mais ou menos profundas. A Constituição prevê directamente algumas, sendo de salientar, entre as de âmbito geral, as decorrentes dos direitos dos trabalhadores [...] e da intervenção do Estado na vida económica, desde o planeamento económico e social [...] até à interferência directa na vida das empresas [...]; a iniciativa económica em certas áreas, não sendo vedada, está constitucionalmente sujeita a restrições especiais."

Quanto à nossa jurisdição constitucional, sobre o sentido tutelar da "iniciativa privada", escreveu-se, inter alia, no Acórdão 187/2001 (com remissões para diversos outros arestos deste Tribunal):

"A garantia constitucional da liberdade económica privada há-de, pois, exercer-se sempre 'nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral'.

De entre os primeiros, avulta a definição possível (obrigatória anteriormente a 1997) de sectores básicos nos quais seja vedada a actividade a empresas privadas (artigo 86.º, n.º 3), precisada também por várias vezes na jurisprudência constitucional (v. o Parecer 8/80, da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 11.º vol., 1981, pp. 191 e segs., e os Acórdãos n.os 25/85 e 186/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente 5.º vol., pp. 95 e segs., e 12.º vol., pp. 19 e segs.).

Sobre os quadros definidos pela lei, disse-se no citado Acórdão 328/94 que 'o direito de liberdade de iniciativa económica privada, como facilmente deflui do aludido preceito constitucional, não é um direito absoluto (ele exerce-se, nas palavras do diploma básico, nos quadros da Constituição e da lei, devendo ter em conta o interesse geral). Não o sendo - e nem sequer tendo limites expressamente garantidos pela Constituição (muito embora lhe tenha, necessariamente, de ser reconhecido um conteúdo mínimo, sob pena de ficar esvaziada a sua consagração constitucional) -, fácil é concluir que a liberdade de conformação do legislador, neste campo, não deixa de ter uma ampla margem de manobra'.

A norma constitucional remete, pois, para a lei a definição dos quadros nos quais se exerce a liberdade de iniciativa económica privada. Trata-se, aqui, da previsão constitucional de uma delimitação pelo legislador do próprio âmbito do direito fundamental - da previsão de uma 'reserva legal de conformação' (a Constituição recebe um quadro legal de caracterização do conteúdo do direito fundamental, que reconhece). A lei definidora daqueles quadros deve ser considerada, não como lei restritiva verdadeira e própria, mas sim como lei conformadora do conteúdo do direito.

Ora, a liberdade de conformação do legislador nestes casos, em que existe uma remissão constitucional para a delimitação legal do direito, há-de considerar-se mais ampla do que nos casos de verdadeiras leis restritivas do direito, desde logo, porque o direito não tem, nos primeiros, limites fixos constitucionalmente garantidos, remetendo-se antes para uma caracterização legal que apenas não poderá aniquilar um mínimo de conteúdo útil, constitucionalmente relevante.

A estas condicionantes constitucionais e legais (v. também o Acórdão 257/92, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22.º vol., pp. 741 e segs.) acresce ainda, nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 61.º, na versão supervenientemente introduzida na revisão constitucional de 1989, a consideração do interesse geral - onde antes se estatuía que a 'iniciativa económica privada pode exercer-se livremente enquanto instrumento do progresso colectivo, nos quadros definidos pela Constituição e pela lei' [itálico aditado]."

Este recorte dogmático do artigo 61.º, n.º 1, da Constituição opera igualmente no caso em apreço como enquadramento fundamentante da resposta ao problema concretamente em causa.

Importa, porém, atentar, desde já, que, no concernente ao problema da definição dos serviços mínimos estritamente considerado, o esforço argumentativo expendido pela recorrente não se mostra integralmente coerente com as conclusões que determinaram o conhecimento da questão de constitucionalidade atrás considerada.

Em sede de alegações, a recorrente dá conta de que o problema da definição dos serviços se projecta directamente na conformação do modo de funcionamento da organização empresarial, remetendo essa dimensão para uma esfera integradora das "prerrogativas empresariais que decorrem da liberdade, constitucionalmente reconhecida, de organização e gestão das empresas".

A ser assim, a competência para a definição dos serviços mínimos deveria caber ao empregador, mal se articulando com a suscitada questão relacionada com a intervenção do Governo, de acordo com o disposto nas alíneas f) e g) do artigo 199.º da Constituição.

Ora, não se duvida de que a intervenção do Governo neste domínio concreto, a ser reclamada pelo texto constitucional, apenas poderia ser justificada pela assunção de uma estrita "responsabilidade pública pela continuidade de serviços sociais indispensáveis", e não, directamente, pelo seu papel como entidade empregadora, devendo, assim, actuar "acima da dimensão directamente conflitual e, consequentemente, como tal, distinto da administração-empregador" (cf., na esteira de doutrina supracitada, o Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 100/89, de 5 de Abril de 1990). Daí que, face à argumentação já explanada, nunca pudesse inferir-se qualquer proposição no sentido de reservar ao Governo-entidade patronal um papel determinante na conformação definidora dos serviços mínimos. Pelo que, em consequência, deve apenas perspectivar-se se é inconstitucional a solução normativa alcançada no sentido de excluir a intervenção daquela entidade patronal na definição daqueles serviços, ex vi o disposto no artigo 61.º, n.º 1, da nossa norma normarum.

Cumpre, assim, responder ao problema sub judicio tendo em conta tal observação.

Como se infere da jurisprudência supracitada, o direito à livre iniciativa privada não se traduz num direito absoluto e insusceptível de limitação. Pelo contrário, os termos da sua previsão apontam claramente para a necessidade de perspectivar o seu exercício em função de diversas condicionantes.

É certo que se poderá afirmar que tal direito recua perante a afirmação constitucional do direito à greve, sofrendo, justificadamente, uma limitação que passa precisamente pelo facto de os poderes da entidade patronal estarem condicionados pelo exercício do direito à greve, não podendo, desde logo, exigir o cumprimento da prestação laboral.

Contudo, no domínio do problema da definição dos serviços mínimos que hão-de ser cumpridos para garantir a realização das necessidades sociais impreteríveis, a questão que se coloca, como se pode inferir das menções efectuadas, excede o âmbito da gestão da empresa, não se reconduzindo, por outras palavras, ao exercício estrito de um poder de gestão empresarial, ainda que se reconheça, na esteira de António Menezes Cordeiro (in Manual de Direito do Trabalho, op. cit., pp. 389 e segs.), que o problema do cumprimento da obrigação de prestação de serviços mínimos também se deva configurar como uma questão onde também releva a responsabilidade da empresa.

De facto, "a definição do nível, conteúdo e extensão dos serviços mínimos indispensáveis releva de interesses fundamentais da colectividade" e "depende em cada caso da consideração de circunstâncias específicas segundo juízos de oportunidade [...] condicionada por critérios de acomodação constitucional" (cf. o Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 100/89, de 5 de Abril de 1990), cuja assunção não está manifestamente integrada na esfera "da liberdade de gestão e actividade da empresa". Trata-se, apenas, de decidir quais os serviços que, em homenagem a um interesse público e social, hão-de continuar impreterivelmente em laboração, não podendo vislumbrar-se, no âmbito do artigo 61.º, n.º 1, da Constituição, quaisquer argumentos que façam recair forçosamente sobre a entidade patronal, a título de prerrogativa da empresa, a necessidade de ser esta a determinar apodicticamente quais serão as necessidades a satisfazer e qual o nível de serviço indispensável para as cumprir.

Nessa medida, e no limite, apenas poderá defender-se que a gestão empresarial sai afectada na estrita medida em que terá de conformar-se com um grau de laboração diferenciado daquele que resultaria "normal" na ausência de um processo de greve, impondo-se-lhe a laboração dentro desses limites. Contudo, como bem se observará, esse resultado decorre ineliminavelmente do exercício do direito à greve e com as limitações que este coloca, validamente, à liberdade de gestão empresarial.

C - Decisão. - 11 - Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucional o artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei 65/77, de 26 de Agosto, na interpretação segundo a qual a definição dos serviços mínimos a prestar em caso de greve que se destinem à satisfação de necessidades sociais impreteríveis compete às associações sindicais e aos trabalhadores, com exclusão do Governo;

b) Negar provimento ao recurso;

c) Condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 unidades de conta.

Lisboa, 19 de Abril de 2005. - Benjamim Rodrigues (relator) - Paulo Mota Pinto - Maria Fernanda Palma - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2314094.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1933-09-23 - Decreto-Lei 23050 - Presidência do Conselho - Sub-Secretariado de Estado das Corporações e Previdência Social

    Reorganiza os sindicatos nacionais.

  • Tem documento Em vigor 1939-09-15 - Decreto-Lei 29931 - Presidência do Conselho - Sub-Secretariado de Estado das Corporações e Previdência Social

    Torna obrigatório para todas as empresas singulares ou colectivas que exerçam a sua actividade em ramo de comercio ou de indústria organizado corporativamente nos termos dos Decretos nºs 24715 e 29232, o pagamento das jóias e quotas a que, por disposição estatutária, estejam sujeitos os sócios dos mesmos organismos - Autoriza o Sub-Secretário de Estado das corporações a determinar, sempre que as circunstancias o justifiquem, a obrigatoriedade de quotização para os profissionais não inscritos nos sindicatos (...)

  • Tem documento Em vigor 1972-07-03 - Portaria 367/72 - Ministérios das Corporações e Previdência Social e da Saúde e Assistência

    Regulamenta o registo de prática farmacêutica dos auxiliares de farmácia.

  • Tem documento Em vigor 1977-08-26 - Lei 65/77 - Assembleia da República

    Aprova o direito à greve.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1986-09-18 - Acórdão 272/86 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, e por violação do disposto no artigo 56.º, n.os 1, 2, alínea b), e 4, da Constituição da República Portuguesa [a que correspondia, na redacção primitiva da Constituição, o artigo 57.º, n.os 1, 2, alínea b), e 4], a inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 9.º da Portaria n.º 367/72, de 3 de Julho(As cadernetas fornecidas pelos sindicatos representativos dos profissionais de farmácia, serão propriedade destes), e limita os efeitos desta declaração, de forma que (...)

  • Tem documento Em vigor 1992-10-20 - Lei 30/92 - Assembleia da República

    ALTERA A LEI 65/77, DE 26 DE AGOSTO, QUE APROVA O DIREITO A GREVE.

  • Tem documento Em vigor 1993-08-13 - Acórdão 445/93 - Tribunal Constitucional

    DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 55, NUMEROS 1, 2, ALÍNEAS A) E B), E 4, E 56, NUMERO 1, DA CONSTITUICAO, DAS NORMAS DOS ARTIGOS 13, NUMEROS 1, E 14, NUMERO 2, DO ESTATUTO DO JORNALISTA, APROVADO PELO ARTIGO 1 DA LEI 62/79, DE 20 DE SETEMBRO, E 3, 6, 8, NUMERO 1, 9, 10, NUMEROS 1 E 7, 14, 15, NUMERO 2, 16, NUMERO 2, 17, NUMERO 3, 18, 19, NUMERO 1, 20, NUMERO 3, 22, NUMEROS 1, 25, 26 E 28 DO REGULAMENTO DA CARTEIRA PROFISSIONAL DO JORNALISTA, (...)

  • Tem documento Em vigor 1996-10-16 - Acórdão 868/96 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 171.º da Constituição da República, das normas contidas nos n.os 2, alínea g), 4, 5, 7, 8 e 9 do artigo 8.º da Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto, na redacção dada pelo artigo único da Lei n.º 30/92, de 20 de Outubro, e, consequencialmente, a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 6 do citado artigo (Processo n.º 613/92).

  • Tem documento Em vigor 2003-08-27 - Lei 99/2003 - Assembleia da República

    Aprova o Código do Trabalho, publicado em anexo. Transpõe para a ordem jurídica interna o disposto nas seguintes directivas: Directiva nº 75/71/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 10 de Fevereiro; Directiva nº 76/207/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 9 de Fevereiro, alterada pela Directiva nº 2002/73/CE (EUR-Lex), do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Setembro; Directiva nº 91/533/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 14 de Outubro; Directiva nº 92/85/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 19 de Outubro; Directiva nº 93/1 (...)

Aviso

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