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Parecer 1/2005, de 24 de Março

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Texto do documento

Parecer 1/2005. - A avaliação do ensino superior entre a clássica cooperação institucional e a pressão do comércio transnacional. - 1 - Dois anos volvidos sobre o parecer 11/2002, aprovado na 43.ª reunião, de 1 de Outubro de 2002, que analisou a realidade então nascente do ensino superior transnacional na perspectiva da sua regulação e avaliação, sente o Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior (CNAVES) necessidade de retomar o tema e enriquecê-lo com novas reflexões, fruto do decurso do tempo e do sedimentar de análises teóricas, bem como do conhecimento de experiências práticas preocupantes.

Feita a caracterização do ensino superior transnacional, consciencializado o seu enquadramento na cena europeia e mundial, delineados os modelos em que aquele ensino se pode concretizar e avaliadas as suas eventuais consequências, positivas e negativas, o CNAVES manifestou ao Governo as preocupações que a "evolução, previsivelmente estonteante, do ensino transnacional" lhe suscitava, recomendando seis linhas de actuação, que ora se recuperam sinteticamente:

a) Criação e desenvolvimento de um banco de dados nacional contendo informação actualizada sobre as instituições e os diplomas reconhecidos oficialmente, como forma de desmascarar as actividades de falsas instituições;

b) Definição, clara e rigorosa, dos requisitos necessários ao reconhecimento oficial do ensino superior e ao registo de cursos em Portugal, num quadro legal que consagre um sistema aberto de regulação que encoraje novos prestadores do ensino superior a obter o reconhecimento, desde que satisfaçam rigorosos requisitos de qualidade;

c) Acompanhamento do ensino superior transnacional por parte das agências nacionais de avaliação, desde logo a nível europeu, trocando informações de forma contextualizada, a fim de garantir a diversidade cultural e contribuir para a divulgação de boas práticas;

d) Internacionalização da avaliação, quer através da composição das equipas de avaliação, seleccionando avaliadores preferencialmente por via institucional, quer através da definição de um "código de boas práticas", susceptível de orientar as instituições nacionais e transnacionais;

e) Generalização do uso de um suplemento ao diploma que ofereça informação aos consumidores e introduza transparência nos procedimentos de reconhecimento dos graus;

f) Definição da posição portuguesa quanto à inclusão dos serviços educacionais no Acordo Geral do Comércio de Serviços - General Agreement on Trade in Services (GATS), tendo presente, de um lado, as posições divergentes dos Estados da União, de outro, a grande complexidade da temática e, de outro ainda, a necessidade de articular a posição do Governo com as instituições de ensino superior e as entidades representativas.

Para além de ter enunciado estas linhas de actuação, o CNAVES aceitou uma responsabilidade e assumiu um compromisso: a responsabilidade de acompanhar de perto a evolução do ensino superior transnacional e o compromisso de contribuir para a defesa dos consumidores de serviços educacionais em Portugal. O presente parecer insere-se no âmbito dessa responsabilidade e desse compromisso.

2 - O ensino superior, tradicionalmente vocacionado para se sediar em "centros de conhecimento" que irradiam ciência e desenvolvem investigação, tem hoje igualmente uma particular responsabilidade no aprofundamento da democracia e na coesão social, na divulgação da história nacional e da identidade linguística, na dinamização das especificidades culturais e, bem assim, no debate crítico de ideias, na consciencialização da liberdade e da importância de uma cidadania activa, o que tudo aponta para o reforço da sua dimensão institucional, para a intensificação de experiências de longa duração, para a exigente ponderação de procedimentos, para a indispensável reflexão sobre a formação humana plural. A pressão de políticas imediatistas e a proliferação de conhecimentos sem rosto nem autoria são-lhe, por isso, alheias, bem como lhe é estranha a decisão do tempo curto, que impede o apelo às raízes ou à memória cultural. Não admira que, no espaço português, o ensino superior seja considerado um bem público e a lei constitucional lhe tenha dado foros de cidadania, consagrando-o como direito fundamental (artigo 76.º).

De um modo não tão impressivo, porquanto fruto de consensos alargados, mas igualmente no sentido acabado de expressar, a Magna Charta Universitatum, proclamada em Bolonha em 8 de Setembro de 1998, considera que "a universidade é, no seio das sociedades diversamente organizadas e em virtude das condições geográficas e do peso da história, uma instituição autónoma que, de modo crítico, produz e transmite a cultura através da investigação e do ensino".

Foi neste enquadramento do ensino superior como bem público fundamental que, desde a primeira hora, a avaliação da qualidade se colocou, procurando atingir os equilíbrios sempre difíceis entre responsabilidade e melhoria da qualidade. E se colocou não só a nível nacional, na lei de bases do sistema de avaliação e acompanhamento das instituições de ensino superior (Lei 38/94, de 21 de Novembro), no diploma de criação do CNAVES (Decreto-Lei 205/98, de 11 de Julho) e, recentemente, na lei que aprovou o Regime Jurídico do Desenvolvimento e da Qualidade do Ensino Superior (Lei 1/2003, de 6 de Janeiro), como a nível europeu, se se acompanhar o desenvolvimento do processo de Bolonha.

Ora, sabendo que "a qualidade do ensino superior" está "no coração da criação da Área Europeia de Educação Superior", como se lê Comunicado de Berlim, de 19 de Setembro de 2003, compreende-se a apreensão e o desconforto dos Estados perante a proliferação de situações de ensino superior transnacional que, tendo inegáveis benefícios, desde logo no preenchimento de lacunas em áreas técnicas altamente especializadas, são voláteis por natureza e dificilmente caem nas malhas de uma rede de avaliação da qualidade pensada a partir do ensino superior tradicional, institucionalizado, acabado de mencionar.

Sujeito às regras comerciais e ao turbilhão da oferta e da procura, gerado sob pressão da oportunidade do "produto" ou do "serviço" e, por natureza, indiferente a padrões standards de qualidade, divulgado com rapidez por força das novas tecnologias da informação, não sofre dúvidas que o ensino superior transnacional foge ao modelo de ensino superior antes aludido e à avaliação que dele é feita no sentido da produção de equilíbrios de responsabilidade e melhoria. Como não sofre dúvidas constituir o ensino superior transnacional uma fonte de insegurança e incerteza para as instituições nacionais responsáveis pela avaliação do ensino superior, enquanto pressentem a sua dificuldade em credibilizarem o sistema e, consequentemente, nele manterem elevada a confiança da sociedade.

3 - É neste contexto de estabelecimento de um clima de confiança para lidar com o ensino superior transnacional, que nasce, como é sabido, no quadro de um movimento mais antigo e mais vasto, o da internacionalização do ensino superior, mas cujos contornos nem sempre são fáceis de definir, que o CNAVES se permite retomar o tema no exacto ponto em que o deixou. E permite-se retomá-lo ciente de que se trata de uma realidade que não pode ser esquecida, porque existe, nem ostracizada, porque contém inegáveis vantagens; ciente também de que comércio livre no ensino superior não significa necessariamente falta de qualidade nem impossibilidade de exigir o cumprimento de normas de qualidade; finalmente, ciente de que o movimento da internacionalização do ensino superior, no qual os actuais programas europeus de mobilidade de estudantes se inserem, está ligado à procura de qualidade. Ora é precisamente essa qualidade que se deve tentar preservar no ensino superior transnacional.

Comece-se, no entanto, por ter presente que o ensino superior transnacional nem sempre levanta particulares angústias no plano da avaliação da qualidade. Pode até acontecer ser a qualidade superlativa do ensino a razão exclusiva da existência do ensino superior transnacional. Tudo depende da lógica que subjaz à realidade de cada concreta situação.

Na verdade, este ensino pode estar fundamentalmente ligado ao aumento e melhoria das capacidades numa determinada sociedade política, como forma de relançar a sua economia ou reforçá-la. A sociedade opta entre subsidiar estudantes nacionais em universidades estrangeiras e instalar campus de instituições de ensino superior estrangeiras no espaço nacional, sendo que, neste último caso, tem a certeza de abarcar um leque mais alargado de estudantes e de ser uma alternativa de menor custo, uma vez que com a deslocação de poucos professores se atinge a formação superior de um número elevado de estudantes.

O ensino superior transnacional pode também estar ligado ao fomento da migração de pessoal qualificado - investigadores, professores - com o objectivo de o cativar a residir no país de recepção e, assim, contribuir para o desenvolvimento da sociedade em específicas áreas de investigação ou através de programas de formação especializada, que inclusivamente podem ser pensados em função das particulares necessidades locais. Neste caso, as subvenções públicas são, normalmente, importantes; para além disso, o Estado de recepção vê-se obrigado a desenvolver uma particular política de concessão de vistos, a fim de facilitar a permanência dos investigadores e professores no seu território.

Outra das justificações possíveis do ensino superior transnacional reside no encorajamento da mobilidade de professores e alunos, fundado numa estratégia de estreitamento de laços culturais, políticos e de ajuda ao desenvolvimento, fundamento presente também na mobilidade permitida pelos Programas ERASMUS e SÓCRATES, no seio da União Europeia, ou na mobilidade negociada em protocolos entre instituições de ensino superior portuguesas e angolanas ou moçambicanas, caso em que o financiamento público do ensino transnacional se revela, em regra, importante.

Mas uma outra razão pode estar na base do ensino superior transnacional, esta de índole estritamente económica: a captação de receitas por parte das instituições de ensino superior ou tão-só de empresas que exploram este ramo de negócio. Neste caso, as subvenções públicas não fazem sentido, porquanto é o espírito empresarial que norteia a localização do ensino, bem como as áreas científicas de intervenção. Consequentemente, o ensino superior transnacional com esta justificação passa ao largo das políticas governativas e culturais, quer do país de origem quer do país de acolhimento, desenvolvendo-se com autonomia, sendo importante ter presente que o seu desenvolvimento não pode estar somente ao sabor da oferta e da procura, como se de um bem ou serviço indiferenciado se tratasse. Não admira que seja neste domínio que a avaliação da qualidade se revela especialmente necessária e importante, desde logo porque o escopo lucrativo não pertence, por natureza, ao ensino superior. Além disso, o ensino superior não pode obnubilar a dimensão de liberdade crítica, cultural, essa sim a sua marca essencial.

4 - Do esforço desenvolvido pelos diferentes Estados no sentido de dar resposta a esta nova realidade do ensino superior resultou já o Código de Boas Práticas para a Prestação de Uma Educação Transnacional, cujo projecto foi elaborado pela UNESCO e pelo Conselho da Europa, posteriormente aprovado pela rede ENIC e adoptado pela Comissão da Convenção de Lisboa para o Reconhecimento, em 6 de Junho de 2001, em Riga.

Nesse Código se define educação transnacional como "todo o tipo de programa de estudos universitários ou de conjuntos de ciclos de estudos ou serviços de educação (aí compreendidos os de ensino a distância) nos quais os alunos estão localizados num país diferente daquele em que se encontra a instituição que atribui o diploma. Estes programas podem depender de um sistema de educação de um Estado diferente do Estado onde funcionam ou podem funcionar independentemente de todo o sistema nacional de educação". Tendo presente esta definição e sem entrar em considerações reflexivas sobre a sua justeza, importa retirar dela a assunção final, isto é, a afirmação de que o ensino superior transnacional pode não depender do sistema de educação onde se localiza o ensino ou sequer de um qualquer sistema de educação - "podem funcionar independentes de todo o sistema nacional de educação".

Paralelamente, no Forum on Trade in Educational Services, promovido em Washington em Maio de 2002, torna-se clara a existência de duas formas de caracterização do ensino transnacional, com reflexos no âmbito do fenómeno e na garantia da sua qualidade.

Com efeito, uns salientam nele o aspecto do serviço prestado por uma instituição de um Estado - Estado de origem - noutro Estado - Estado receptor ou de acolhimento. Outros, pelo contrário, põem em relevo a especificidade do ensino prestado, longe de um típico comércio de bens ou serviços, e optam por ver nele um fenómeno de internacionalização de culturas, o que não só restringe a realidade a que se dirige como alerta para o risco de, por seu intermédio, se diminuir a competitividade cultural. Em consequência, quem pensa o ensino superior como serviço tende a considerar que a sua qualidade pode ser garantida por órgãos do país de origem da instituição, interessados em defender a imagem dos seus nacionais. Porém, quem defenda a segunda opinião é levado a não abdicar de avaliar a qualidade do ensino no país de recepção, interessado em não criar fenómenos de exclusão cultural e, bem assim, em fomentar no ensino superior a dimensão crítica cultural.

Perante o exposto e levando mais além a reflexão, tendemos a analisar as duas anteriores opiniões como complementares. A primeira põe o acento tónico na actividade em si e na possibilidade de o ensino superior se apresentar como um bem sujeito a troca, concluindo ser uma actividade transaccionável. A segunda parte desta conclusão, isto é, de que o ensino superior é uma actividade transaccionável, e, analisando as diferenças de conteúdo relativamente ao ensino prestado no Estado que o consome, conclui ser uma actividade que põe em contacto culturas diferentes: a do Estado de origem do ensino e a do Estado que o recebe ou acolhe.

Sendo assim, parece que a avaliação da qualidade interessa sobremaneira ao Estado de origem, interessado na boa imagem dos seus serviços que vão para o exterior. Mas não interessa menos ao Estado de acolhimento ou recepção, preocupado com a defesa da sua cultura e com o desenvolvimento do espírito crítico no âmbito dos estudantes.

O que vem de dizer-se adquire especial acuidade quando se medita sobre a proposta de directiva sobre os serviços no mercado comum, apresentada pela Comissão, em Bruxelas em 13 de Janeiro de 2004, no seguimento da Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento, em Dezembro de 2000, que definiu uma estratégia para o mercado interior dos serviços.

Esta proposta de directiva, dirigida aos serviços, define o seu âmbito de aplicação de um modo muito amplo, não excluindo expressamente os serviços educacionais. Tal facto permite concluir que os integra, devendo o seu normativo aplicar-se-lhe. Ora, prevê-se precisamente no artigo 16.º que a qualidade do serviço deve ser garantida pelo país de origem. Porém, o mesmo artigo nada refere quanto à possibilidade de a avaliação da qualidade ser também feita no país receptor (ver nota 1) - tenha-se presente a expressa proibição de aplicação do artigo 16.º ao reconhecimento de qualificações profissionais.

Seja, porém, como for, a verdade é que enquanto o supra-referido Código de Boas Práticas para a Prestação de Uma Educação Transnacional admite a possibilidade de existir um ensino superior transnacional "independente de todo o sistema nacional de educação", e, logo, de um sistema de avaliação de qualidade, a proposta de directiva acima citada admite a avaliação da qualidade mas integra-a no sistema a que o Estado de origem do serviço pertence, nada men cionando quanto à possibilidade de a avaliação ser empreendida pelo Estado de recepção desse ensino.

Colocada a questão, ela merece ser acompanhada de perto e atentamente pelos órgãos competentes, a fim de salvaguardar os interesses nacionais da avaliação da qualidade do ensino superior. Tudo tendo presente que no ensino superior transnacional os potenciais destinatários se encontram mais fragilizados quanto ao juízo de qualidade que têm de fazer, por ser mais difícil, quer no plano linguístico quer técnico, e pelo facto de o referido ensino estar, em regra, coberto pela imagem de marca da instituição estrangeira que o veicula, cuja exacta dimensão desconhecem por se integrar num contexto educacional distinto. Tudo, ademais, tendo presente que a transparência de procedimentos e a clarificação das situações se tornam valores sem os quais aquele juízo tende a ficar viciado.

Os órgãos nacionais de avaliação da qualidade do ensino superior, nomeadamente o português, têm responsabilidades na protecção dos alunos e potenciais alunos daquele ensino bem como na protecção dos empregadores e potenciais empregadores. Têm ainda responsabilidades na defesa da competitividade do sistema de ensino superior entendido como um todo, no qual indiscutivelmente interfere o ensino transnacional. E têm finalmente responsabilidades em relação à própria evolução do ensino superior, garantindo que seja tendencialmente melhor.

Ora, tendo estas responsabilidades, a avaliação da qualidade do ensino transnacional não lhes pode ser indiferente, ainda que, por vezes, pela extrema complexidade e tecnicidade que, em regra, caracteriza este tipo de ensino, aliada ao tempo curto em que nasce, vive e se transforma, os órgãos nacionais de avaliação tenham de encontrar formas de exercer a sua actividade de modo diferente. Ponto é que não abdiquem do seu dever de acompanhar aquele ensino, monitorizando-o de um modo regular mas inteligente, dando-lhe espaço mas assinalando a sua presença, a fim de que o futuro não fique comprometido com desnecessários espartilhos no presente e o essencial do passado fique salvaguardado.

O cumprimento de princípios básicos de defesa do alargamento do acesso ao ensino superior, em condições de igualdade, ou de defesa de quem dele usufrui nas respectivas empresas, deve, pois, ser uma realidade a acompanhar. Como realidade a assegurar deve ser a protecção da concorrência, e, em especial, o cumprimento dos princípios da transparência, do livre acesso, da informação clara, útil e fundamentada e da publicidade, a fim de que o equilíbrio entre a oferta e a procura de ensino de qualidade seja tendencialmente garantido. Esta actividade deve ser empreendida em estreita ligação e colaboração com os organismos de avaliação de outros Estados, permitindo a identificação de critérios de comparabilidade e uma coordenação coerente das diferentes políticas. Os organismos de avaliação do ensino superior nacionais, nomeadamente o português, devem ser espectadores atentos das ondas de mudança, agindo na exacta medida do necessário à sustentação de tendências evolutivas e movimentos de promoção da qualidade, tudo com o especial cuidado de não privilegiar nenhuma em particular. Com o que, assim, se retoma e fortalece o entendimento do ensino superior como bem público - não deve haver ensino superior fora da órbita do sistema de avaliação, embora haja diferentes formas de proceder àquela avaliação, em razão da realidade concreta - e, no caso português, se cumpre a garantia constitucional.

A finalizar este ponto, chama-se ainda a atenção, no âmbito da União Europeia, para a proposta de recomendação do Conselho, de 12 de Outubro de 2004, elaborada com vista a permitir a execução da Recomendação do Conselho n.º 98/561/EC, de 24 de Setembro, sobre a cooperação europeia para a garantia da qualidade do ensino superior.

Com efeito, nesta proposta se recomenda a cooperação entre instituições do ensino superior, nacionais e regionais, com vista a assegurar a qualidade de ensino superior, incluindo o ensino superior transnacional (ver nota 2).

5 - Ao que acaba de ser dito acresce uma reflexão mais sobre o exercício do direito de reclamar e de se queixar que todo o "consumidor" possui, seja ele um aluno, um docente ou um empregador, bem como qualquer instituição de ensino que se sinta atingida pelo incumprimento das regras da concorrência por parte de quem empreende o ensino transnacional.

Vem esta reflexão a propósito do que seja em concreto "ensino superior transnacional", do necessário envolvimento de entidades várias e da plurilocalização dessas entidades, da possibilidade de esse ensino ser independente dos sistemas nacionais e do que daí pode decorrer para os destinatários desse tipo de ensino no momento em que pretendam endereçar uma reclamação ou uma queixa quer no que à qualidade do ensino respeita quer no que interessa à competitividade entre instituições. E não se diga que o acordo financeiro, de cooperação educativa ou outro que eventualmente esteja na base desse ensino tem a solução do problema. Primeiro, porque não é seguro que exista um tal acordo escrito; segundo, porque, a existir, pode não dar resposta a este tipo de questões; terceiro, porque, mesmo que exista um tal acordo com definição de uma identidade capaz de receber queixas e reclamações, a sua capacidade para resolver as que exigem o conhecimento de parâmetros de comparabilidade alargada estará longe de ser satisfatória.

O problema é real e tanto mais importante quanto é certo situar-se o ensino superior transnacional num campo particularmente fluido e propício a práticas fraudulentas, pelo que a inexistência de canais institucionalizados de resolução fácil dos problemas ou a existência de canais morosos e demasiado burocratizados tendem a espalhar desconfianças e a gerar o descrédito em redor.

O CNAVES sente, por isso, a necessidade de chamar a atenção para a falta de clareza quer quanto à entidade competente para receber queixas ou reclamações quer quanto ao procedimento a adoptar nessas queixas ou reclamações. E permite-se lembrar ser desejável que as soluções encontradas não entravem o dinamismo económico e social, não traduzam duplicações de vias ou entidades nem sejam excessivamente onerosas.

6 - Partindo de outro quadrante, e tendo presente, além do mais, as recentes recomendações do European Network of Education Council (EUNEC), adoptadas na Conferência de Bruxelas de 25, 26 e 27 de Outubro de 2004, sobre a transparência das qualificações enquanto integram nos objectivos de transparência a valorização dos "caminhos de aprendizagem flexíveis, diversos e eficazes" e a "acumulação de competências adquiridas", importa retomar a reflexão inicial sobre o ensino superior como bem público, reconhecido na Constituição, que também garante, nesta sede, a igualdade de oportunidades.

Num quadro de ensino superior transnacional, uma instituição pública que estabelece uma parceria com uma sociedade para prestar serviços de índole universitária num país terceiro aparece nesse país terceiro sem a veste pública que lhe é ou pode ser originária, antes com a capa de entidade privada, como tal sendo tratada. Apesar disso, o peso de autoridade institucional do país de origem não a abandona, pelo que a aceitação de um organismo de estrutura pública, nacional, do país de acolhimento do ensino, que lhe dirija recomendações pode apresentar complexidades várias, às quais se não deve fugir nem reagir de forma defensiva e fechada à evolução, desde logo porque não se pretende igualmente impedir a situação inversa de instituições públicas nacionais prestarem actividade de ensino superior num outro país. Nos extremos estão a liberalização do comércio do serviço do ensino superior e o conservadorismo estatista. Entre os dois encontra-se uma imensidade de situações possíveis, nas quais a definição das políticas educativas pelos governos nacionais deve ser soberana.

Porém, qualquer que seja a solução tenha-se a consciência de que não é politicamente neutra. O estudo das soluções graduadas é, neste quadro, importante, permitindo, sem pôr em causa o ensino superior como bem público, fazer o acompanhamento dos movimentos e ajudar a sustentar os equilíbrios que irão enriquecer a qualidade do ensino superior de amanhã.

Não se trata de tomar já posição sobre o assunto. Trata-se, antes, de equacionar os problemas e seguir o caminho da reflexão, paralelamente ao que tem vindo a ser feito internacionalmente, a fim de, aos poucos, se amadurecerem posições, necessárias à tomada de decisões, desde logo quanto à validação de graus e diplomas, no âmbito da qual a sugestão já feita de um suplemento ao diploma, dotado de informação adequada e clara, é fundamental.

7 - Embora sem implicações directas na actividade do CNAVES, são devidas duas palavras de alerta para a temática da defesa dos direitos de propriedade intelectual e de investigação.

Com efeito, a abertura do ensino superior ao comércio internacional impõe particulares cautelas, com vista à defesa dos direitos de autoria, em razão mesmo da sua natureza volátil, devendo, também neste campo, ser feito um acompanhamento passo a passo das situações, em colaboração com os organismos internacionais competentes.

8 - Na linha traçada há dois anos, tendo presente os estudos entretanto internacionalmente produzidos sobre a matéria, cuja referência se anexa, esta é uma nova reflexão sobre o ensino superior transnacional que o CNAVES entendeu por bem fazer.

No âmbito da sua acção e responsabilidade, o CNAVES propõe-se, desde já:

a) Encarregar um dos seus membros de acompanhar, passo a passo, a evolução do fenómeno, chamando a atenção para a sua integração no sistema de avaliação do ensino superior português. O objectivo será o de poder, deste modo, antecipar problemas, sugerindo para eles respostas que os previnam na prática, além de promover a indispensável intensificação da cooperação dos diversos organismos estaduais, com vista à desejável protecção dos "consumidores", no sentido amplo que aqui tem;

b) Reflectir sobre a necessidade de criar um grupo de trabalho com a especial incumbência de acompanhar o desenvolvi mento desta específica forma de ensino cuja marca é a fluidez e a ausência de base institucional no país de acolhimento, e, logo, em muito se afasta do modelo de ensino superior tradicional para que a avaliação da qualidade foi pensada;

c) Contribuir para o estudo dos procedimentos a adoptar pelo órgão de avaliação do ensino superior nacional quando se revelar necessário, por força da acção de avaliação por si desenvolvida, intervir na actividade de instituições de ensino superior de outros Estados, pertencentes ou não à União Europeia, a funcionar em Portugal.

Simultaneamente, o CNAVES entende dever recomendar aos decisores políticos a necessidade de:

a) Reforçar a consciência da complexidade acrescida do ensino superior transnacional, desde logo por força da sua informalidade, entendida esta por contraposição ao ensino tradicional, desenvolvido num ambiente formal de ensino, e ainda por força da introdução de formas de acção susceptíveis de distorcer e desequilibrar o sistema de ensino superior nacional;

b) Ter um banco de dados actualizado e disponível para uma correcta e pronta informação sobre as características deste ensino, nomeadamente no que ao acompanhamento do cumprimento do código de boas práticas, antes aludido, respeita;

c) Acompanhar os trabalhos da proposta de directiva sobre os serviços no mercado interior, a fim de adequadamente ponderar a intervenção dos órgãos de avaliação dos Estados de recepção nos serviços educacionais;

d) Não descurar a coordenação internacional estruturada, com vista a encontrar soluções coerentes de garantia da qualidade;

e) Definir a entidade competente para receber queixas ou reclamações de alunos, docentes e funcionários no âmbito do ensino superior transnacional, bem como os procedimentos a adoptar nessas queixas ou reclamações, tendo presente que a solução encontrada não deve duplicar entidades, ser excessivamente onerosa, nem travar o dinamismo económico e social;

f) Dar especial atenção aos direitos de autor no quadro do ensino, no superior transnacional, em razão da natureza volátil deste ensino e as consequentes dificuldades de defesa daqueles direitos.

(nota 1) Com efeito, diz-se na proposta de artigo, na versão francesa, a que se teve acesso:

"1 - Les États membres veillent à ce que les prestataires soient soumis uniquement aux dispositions nationales de leur État membre d'origine relevant du domaine coordonné.

Le premier alinéa vise les dispositions nationales relatives à l'accès à l'activité d'un service et à son exercice, et notamment celles régissant le comportement du prestataire, la qualité et le contenu du service, la publicité, les contrats et le responsabilité du prestataire.

2 - L'État membre d'origine est chargé du contrôle du prestataire et des services qu'il fournit, y compris lorsqu'il fournit ses services dans un autre État membre."

(nota 2) V., em especial, o n.º 3 do "Report from the Commission to the European Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions on the implementation of Council Recommendation 98/561/EC of the 24 September 1998 on European Cooperation in quality assurance in higher education", de 30 de Setembro de 2004.

(Aprovado, por unanimidade, na 75.ª reunião plenária, em 17 de Fevereiro de 2005.)

17 de Fevereiro de 2005. - O Presidente, Adriano Moreira.

ANEXO

Nota bibliográfica

Rolf Hoffmann, "Relatório geral", do Seminário de Malmo, sobre educação transnacional, em Março de 2001.

Dirk van Damme, "L'enseignement supérieur a l'ere de la mondialisation: le besoin d'un nouveau cadre régulateur pour la reconnaissance, l'assurance qualité et l'acréditation" (document introductif de la reúnion d'experts, UNESCO, Paris, 10 e 11 de Setembro de 2001).

Jane Knight, "Trade in higher education services: the implications of GATS", Março de 2002.

Sjur Bergan, "Providing standards for higher education: international education conventions as alternatives to trade agreements" (artigo preparado para o Fórum da UNESCO de Oslo, Maio de 2002).

Per Nyborg, "GATS in the light of increasing internationalisation of higher education. Quality assurance and recognition", Maio de 2002.

Documento, do National Committee for International Trade in Education, "US tables requests for trade liberalization with the WTO", Julho de 2002.

Documento, do Conselho da Europa, "Trade in higher education: a possible CD.ESR contribution in the contact of GATS", Outubro de 2002.

Declaração em que a Bélgica, empenhada contra a mercantilização da educação, recusa, em 2 de Maio de 2003, a aplicação do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços.

Documento, do Conselho de Europa, "Trade in higher education: GATS", Outubro de 2003.

Forum on Trade in Educational Services, "Enhancing consumer protection in cross-border higher education: key issues related to quality assurance, acreditation and recognition of qualifications", realizada em Trondheim, Noruega, em 3 e 4 de Novembro de 2003.

Proposta de directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos serviços no mercado interno, apresentada pela Comissão em Janeiro de 2004.

"Aperçu général de la séssion du conseil 'Education, jeunesse & culture'", em Bruxelas em 26 de Fevereiro de 2004.

Seminário "Instrumentos metodológicos comunes para la evaluación y la acreditación en el Marco Europeo", realizado em Santander de 28 a 30 de Junho de 2004.

Hans-Uwe Erichsen, "Instrumentos y criterios comunes para la acreditación", Julho de 2004.

Resposta do Comité de Ministros à recomendação 1620 (2003) do Conselho da Europa para o espaço do ensino superior, de 8 de Julho de 2004.

Declaração adoptada pelas redes ENIC (Conseil de l'Europe-UNESCO) e NARIC (Comissão Europeia), em Estrasburgo em 8 de Julho de 2004.

Oddvar Hangland, "Instrumentos para la acreditación", 30 de Julho 2004

Síntese da OCDE "L'internationalisation de l'enseignement supérior", Setembro de 2004.

Fórum UNESCO-OCDE sobre a comercialização dos serviços educativos, realizado em Sydney em 11 e 12 de Outubro de 2004.

Fórum de debate da UNESCO sobre o tema "Exporter l'enseignement supérieur: la question de la qualité".

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2293393.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1994-11-21 - Lei 38/94 - Assembleia da República

    Estabelece as bases do Sistema de Avaliação e Acompanhamento das Instituições de Ensino Superior Universitário e de Ensino Superior Politécnico, públicas e privadas.

  • Tem documento Em vigor 1998-07-11 - Decreto-Lei 205/98 - Ministério da Educação

    Estabelece as regras necessárias à concretização do sistema global de avaliação e os princípios a que deve obedecer a constituição das entidades representativas das instituições de ensino superior universitário e politécnico, públicas e não públicas. Dispõe sobre a constituição e funcionamento dos conselhos de avaliação. Cria o Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior e regula as suas atribuições, funcionamento e composição.

  • Tem documento Em vigor 2003-01-06 - Lei 1/2003 - Assembleia da República

    Aprova o Regime Jurídico do Desenvolvimento e da Qualidade do Ensino Superior.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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