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Acórdão 418/2003/T, de 7 de Abril

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Texto do documento

Acórdão 418/2003/T. Const. - Processo 585/2003. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Paulo José Fernandes Pedroso, arguido em processo de inquérito do 1.º Juízo de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, em 5 de Junho de 2003, da decisão do juiz que, na sequência do primeiro interrogatório judicial, lhe aplicou a medida de coacção de prisão preventiva com fundamento em fortes indícios da prática de 5 crimes previstos e puníveis nos termos do artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal e de 10 crimes previstos e puníveis nos termos do artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal e por se verificarem, no caso concreto, os perigos de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas e de perturbação do inquérito.

A motivação do recurso interposto pelo arguido culminava com as seguintes conclusões:

"1 - O M.mº Juiz, ao decidir (despacho de fl. 4783 a fl. 4789) não fornecer à defesa os elementos que constituem a fundamentação fáctica do despacho impugnado, para efeitos de esta poder impugnar a justeza da aplicação da medida de coacção da prisão preventiva, efectua uma interpretação inconstitucional do artigo 86.º, n.os 5 a 7 e 9 do Código de Processo Penal, violando assim esse preceito e os princípios constitucionais da legalidade, da proporcionalidade, da garantia do contraditório e da igualdade das armas consagrados no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

2 - O mesmo despacho, ao assim decidir, viola também o artigo 5.º, § 2.º e § 4.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que prevalece sobre o direito interno, nos termos do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa.

3 - O despacho do M.mº Juiz entregue na Assembleia da República para pedir o levantamento da imunidade parlamentar - doc. n.º 1 - e o despacho que aplica a medida de coacção da prisão preventiva - doc. n.º 7 - não carreiam fundamentos que permitam concluir pela existência de 'fortes indícios da prática de crime doloso com pena de prisão de máximo superior a 3 anos', conforme a exigência do artigo 202.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.

4 - Não tendo sido indicados nem fornecidos ao arguido - não obstante ter por ele sido formulado pedido nesse sentido - outros elementos que não os constantes dos documentos n.os 1 e 2 que se juntam com a presente motivação, têm de se haver por inexistentes quaisquer outros que, abstractamente invocados, não possam concretamente ser conhecidos pelo arguido.

5 - Na verdade, interpretação diferente que se tente efectivar do disposto no artigo 202.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, no sentido de se poder admitir a existência de fortes indícios no processado, completamente subtraídos ao conhecimento do arguido, padece de vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio da legalidade, proporcionalidade, garantia do contraditório e da igualdade de armas consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da nossa lei fundamental e não pode, obviamente, fundamentar a aplicação da medida cautelar da prisão preventiva.

6 - Por outro lado, não pode fundamentar-se a verificação do mesmo conceito [fortes indícios, para efeito do disposto no artigo 202.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal], - como faz o douto despacho recorrido, em depoimentos que se diz terem sido produzidos em relação a fotografia, cujas deficiências são expressamente reconhecidas, sem se ter procedido à identificação cabal referida no artigo 147.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

7 - Do mesmo modo, porque não foi efectuada a identificação cabal prevista no artigo 147.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, não podia nunca deixar de se ter recorrido ao mecanismo previsto no n.º 2 do mesmo artigo, sob pena de não poderem tais elementos ser valorados como meio de prova (cf. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto atrás citados).

8 - Temos pois que o douto despacho recorrido, ao valorar elementos que a lei expressamente impede (artigo 147.º, n.os 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal), viola claramente estes dispositivos legais, os quais, na concreta interpretação que deles faz o douto despacho recorrido, não podem deixar de considerar-se feridos de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios e preceitos referidos na conclusão 58 da presente motivação.

9 - Também os próprios elementos de prova indicados no douto despacho recorrido e conhecidos da defesa (depoimentos e escutas telefónicas) ou são completamente vazios e inócuos para o fim pretendido (caso das escutas) ou são insuficientes, ambíguos, vagos, dubitativos e contraditórios (caso do depoimento), sempre absolutamente inadequados para fundamentar a evidência do conceito de fortes indícios e, consequentemente, a aplicação da medida de prisão preventiva.

10 - Pelo que, e concluindo nesta parte, não pode deixar de considerar-se que o douto despacho recorrido, por errada interpretação e aplicação, viola claramente o disposto no artigo 202.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, por fazer funcionar tal preceito prescindindo da base de sustentação segura que o seu texto e o seu espírito exigem.

11 - Também não existem quaisquer elementos que permitam vislumbrar sequer a possibilidade de existência dos perigos consagrados nas alíneas b) e c) do artigo 204.º do CPP, porquanto a actuação do arguido, ao contrário do que conclui o douto despacho recorrido, se pautou rigorosamente pelo favorecimento da aceleração da acção da justiça, propondo-se dispensar a necessidade do pedido de levantamento da respectiva imunidade parlamentar, para, suspendendo imediatamente o seu mandato, ela se disponibilizar dentro da maior celeridade possível, como aliás havia já anteriormente feito mediante a apresentação, na Procuradoria-Geral da República, do requerimento constante do documento n.º 2.

12 - O douto despacho recorrido inverte completamente o sentido de tal actuação, concluindo contra os factos realmente ocorridos, conforme se prova pelo documento n.º 3, que teve a intenção contrária, ou seja, a de retardar o andamento da diligência!

13 - É com base neste manifesto erro de facto e com base nas conversas de terceiros - a que o arguido é completamente alheio e que aliás nenhuma relevância têm para os autos - que se considerou haver o perigo por parte deste (?), de perturbação do inquérito ou da tranquilidade pública, apesar de se encontrarem reconhecidamente excluídos, no caso concreto, tanto o perigo de fuga como o de continuação da actividade criminosa.

14 - Violou assim o douto despacho recorrido, por errada interpretação e aplicação, o disposto no artigo 204.º, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, preceitos que, na concreta interpretação que por ele lhes é dada, se têm sempre de considerar feridos de vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio da legalidade e da proporcionalidade consagrados, designadamente, no artigo 32.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa e também no artigo 27.º, n.º 3, alínea b), da mesma lei fundamental.

15 - Tais perigos têm sempre de referir-se ou fundamentar-se em actuação do arguido, sob pena de discricionariedade e, no caso vertente, embora se refira em abstracto a conivência do arguido nesses actos de terceiros, certo é que nenhum elemento concreto é indicado, para além daquele que - como demonstrámos - teve a intenção completamente contrária àquela que lhe é assacada pelo douto despacho recorrido.

16 - Ora, é o próprio despacho recorrido a aceitar que são as conversas de terceiros (do alvo 21379), apresentadas ao arguido já após a detenção deste - aliás completamente inócuas e relevantes para o objecto do processo 'que denotam sobremaneira, quanto a nós, não o perigo mas a perturbação do inquérito', o que se revela legalmente inadmissível e gravemente violador do texto e das razões subjacentes das alíneas b) e c) do artigo 204.º do Código de Processo Penal.

17 - Aliás as escutas telefónicas de terceiros não suspeitos não podem ser efectuadas nem constituem meios de prova fora das hipóteses excepcionais previstas na Lei 5/2002 (artigos 1.º e 6.º), de 11 de Janeiro, o que não é o caso dos autos, sob pena de cometimento de nulidade insuprível por violação da lei ordinária (artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal) e do travejamento constitucional consagrado no artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa.

18 - Assim, por tudo quanto atrás se deixa exposto e factualmente o douto despacho recorrido reconhece, não existe, no caso vertente, fuga ou perigo de fuga [artigo 204.º, alínea a), do Código de Processo Penal]; não há perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, porque ela se encontra protegida nos autos [artigo 204.º, alínea b), do Código de Processo Penal], não podendo por isso haver perturbação do inquérito ou da instrução do processo por parte do arguido, já que este é alheio a actos de terceiros, bem como ao natural tratamento mediático típico das sociedades modernas.

19 - E ainda, como se encontra documentado nos autos, todos os actos efectuados por terceiros não visavam nem podiam perturbar o inquérito, uma vez que se torna inadmissível pensar que tanto o Sr. Presidente da República, como o Sr. Presidente da Assembleia da República, como o Sr. Procurador-Geral da República pudessem efectuar ou sequer contribuir para tal invocada perturbação, dado que todos os contactos efectuados o foram dentro das competências constitucionais dos diversos cargos por eles desempenhados.

20 - E ainda, como reconhece o douto despacho recorrido, o arguido tem a sua vida estruturada, não decorrendo qualquer perigo da sua personalidade para a perturbação da ordem e tranquilidade públicas, como demonstra a sua exigência de levantamento da imunidade parlamentar para que fosse descoberta a verdade e todas as suas intervenções públicas anteriores a 21 de Maio de 2003, bem como a conferência de imprensa em que directamente exigiu ao Parlamento a eliminação de qualquer impedimento legal ou burocrático ao funcionamento da justiça, pelo que falece claramente a verificação do perigo da perturbação da tranquilidade pública [artigo 204.º, alínea c)].

21 - Como o despacho recorrido também reconhece, não invocando aliás qualquer fundamento em contrário, não existe o perigo de continuação da actividade criminosa nem, em razão das circunstâncias dos eventuais factos do crime, existe qualquer perturbação da tranquilidade pública, encontrando-se pois afastada a verificação dos requisitos das alíneas a), b) e c) do artigo 204.º do Código de Processo Penal, por não ser invocado, como é jurisprudência pacífica, qualquer facto concreto susceptível de corporizar os referidos requisitos legais.

22 - Assim, e face a tudo quanto se deixa alegado, verifica-se também que o douto despacho recorrido, ao aplicar a medida de prisão preventiva, violou claramente o princípio da adequação e proporcionalidade previstos no artigo 193.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por as exigências cautelares do caso afastarem completamente a necessidade de tal medida.

23 - E, com a aplicação de tal medida cautelar, viola claramente, por errada interpretação, não só aquele princípio de adequação mas também o princípio da subsidiariedade consagrado nos artigos 193.º, n.º 2, e 202.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, pois que sendo a prisão a extrema ratio das medidas de coacção, qualquer outra medida menos gravosa, designadamente as que são previstas nos artigos 196.º, 197.º, 198.º e 200.º do Código de Processo Penal, estariam em condições de defender os mesmos interesses que com aquela se visa proteger, sendo mesmo o douto despacho a reconhecer expressamente que a medida por ele adoptada não acautela totalmente os interesses em jogo, o que constitui mais uma razão acrescida para a sua não aplicação e, em substituição dela, se determinar a aplicação de outra, menos gravosa, em que as eventuais obrigações a impor ao arguido sejam susceptíveis de defender os mesmos interesses em jogo.

24 - Na verdade, dispondo os artigos 193.º, n.º 2, e 204.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, que a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção - e nada disto sucede -, segue-se que, na interpretação que deles é feita no douto despacho recorrido, estão aqueles preceitos feridos de vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio da legalidade e subsidiariedade previstos no artigo 28.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

25 - Finalmente diga-se que, não existindo contra o arguido qualquer acusação definitiva nem se tendo configurado no caso a situação de flagrante delito, segue-se que não poderia ter-lhe sido aplicada a medida de prisão preventiva, sob pena de violação do princípio constitucional de garantia das imunidades parlamentares, previstas no artigo 157.º, n.os 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa, que não podem ser contrariadas pelas normas da Lei 7/93, na redacção da Lei 3/2001, de 23 de Fevereiro, designadamente o seu artigo 11.º, n.os 1 e 3, que têm de ser considerados inconstitucionais materialmente, por violação daqueles princípios e preceito constitucionais, quando interpretados no sentido de admitir a prisão de deputado fora da situação de flagrante delito.

Termos em que deve o presente recurso merecer, da parte de VV. Exmas., o consequente provimento, por ser de lei e de justiça, e, consequentemente, deve ser revogado o douto despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que restitua imediatamente o arguido à liberdade, com as consequências legais, assim se fazendo a habitual justiça!"

Em 16 de Julho de 2003, antes do julgamento do recurso, foi junta aos autos uma certidão de despacho do juiz de instrução criminal de 15 dos mesmos mês e ano, no qual foi reapreciada e mantida a medida de coacção imposta ao arguido. Tal decisão foi proferida antes de ter decorrido o prazo a que se refere o artigo 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

2 - Em 17 de Julho de 2003, foi prolatado acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do qual se julgou extinto o recurso por inutilidade superveniente no que se refere aos pontos da respectiva motivação (I a VI) que impugnavam os diversos fundamentos concretos da prisão preventiva e se rejeitou liminarmente o recurso quanto à questão da inconstitucionalidade do artigo 11.º, n.os 1 e 3, da Lei 7/93, na redacção dada pela Lei 3/2001, por alegada violação do artigo 157.º, n.os 3 e 4, da Constituição.

A fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação no que respeita ao não conhecimento do recurso por inutilidade superveniente é a seguinte:

"Conforme certidão que antecede, por despacho do M.mº Juiz de instrução criminal proferido em 15 de Julho de 2003, foram reavaliados os indícios da prática dos crimes imputados ao arguido recorrente e os pressupostos de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva."

Desse despacho extrai-se, com relevância, que:

"[...] Do conteúdo de fls. 6076 a 6081, 6082 a 6088 e 6303 a 6306 resultam reforçados os indícios de perigo de perturbação do inquérito. Tais indícios surgem ainda reforçados do teor da sessão 1892 do alvo 21379, cuja junção de transcrição foi hoje ordenada e validada supra.

Do teor de fls. 6184 a 6186 e 6152 a 6159 resultam reforçados os fortes indícios da prática pelo arguido dos crimes que indiciariamente lhe são imputados.

Não há nenhuma circunstância que justifique a alteração do seu estatuto coactivo e os indícios recolhidos desde a sua prisão preventiva reforçam os fundamentos de facto e de direito que a determinaram [...]".

E ainda:

"[...] Por todo o exposto, mantenho a prisão preventiva aplicada ao arguido Paulo Pedroso. Notifique."

No que respeita à revisibilidade ou reexame dos pressupostos da prisão preventiva, dispõe o artigo 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que "o juiz procede oficiosamente, de três em três meses, ao reexame da subsistência dos pressupostos da prisão preventiva, decidindo se ela é de manter ou deve ser substituída ou revogada".

E esta disposição legal não significa que tal reapreciação tenha de ser feita por períodos certos de três meses, mas sim que entre cada apreciação - que pode acontecer em consequência de alguma circunstância ou ocorrência, como seja o requerimento de algum arguido, a reapreciação global da situação de co-arguidos ou mesmo a aproximação de férias judiciais de verão em processos complexos - e a seguinte não medeiem mais de três meses (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Outubro de 1994, processo 51/94).

O despacho que o juiz então profere resulta de um exame actual, ou actualizado, dos pressupostos da prisão preventiva e se mantiver esta medida coactiva a situação posterior do arguido fica definida, autonomamente, por aquele despacho.

Por outras palavras, o despacho inicial que decreta a prisão preventiva esgota os seus efeitos (como que "caduca") à data da prolação do despacho previsto no artigo 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quer esta mantenha a prisão, a substitua ou a revogue.

Concomitantemente, de todas as decisões que aplicarem ou mantiverem medidas de coacção cabe recurso, a julgar no prazo máximo de 30 dias a partir do momento em que os autos foram recebidos (artigo 219.º).

Com estas soluções, "o legislador pretendeu acentuar que as medidas aplicadas não devem manter-se para além do necessário e por isso, disciplinar a reapreciação da situação dos arguidos sujeitos a medida de coacção, impondo-a periodicamente nos casos mais graves e permitindo-a sempre, quer oficiosamente quer a requerimento" (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, p. 252).

Resulta, em consequência, o efeito consumptivo do despacho que mantém a prisão preventiva - assente em novos factos (actuais dando por verificada a existência agora reforçada de fortes indícios da prática dos crimes e do perigo de perturbação do inquérito) o despacho de manutenção da prisão preventiva cobra inteira autonomia.

O recurso tem de produzir um efeito útil e é isso que permite considerar relevante o interesse em agir do recorrente.

Não é o caso dos autos em relação aos temas I a VI do requerimento de interposição do recurso.

Quanto à decisão de rejeição liminar, o acórdão do Tribunal da Relação fundamentou o seu juízo nos seguintes termos:

"Quanto ao tema VII, dir-se-á que a audição do recorrente como arguido, em face dos crimes que se mostram indiciados nos presentes autos, teria de ser sempre autorizada pela Assembleia da República, não detendo, nesta matéria, qualquer poder discricionário, sob pena de, de outra forma, se violarem grosseiramente os princípios constitucionais da separação dos poderes e o da independência do poder judicial consagrados nos artigos 111.º e 203.º da Constituição da República Portuguesa.

O que necessitou da autorização da Assembleia da República foi a circunstância de o arguido poder vir a ser detido e preso, sendo que, este sim, é um poder discricionário desta, pois a concessão dessa autorização não depende de nenhum requisito particular, mas tão-só da vontade e da decisão dos seus membros.

É este o regime consagrado no artigo 157.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e no artigo 11.º, n.º 2, da Lei 3/2002. Assim, e desde que a Assembleia da República autorize tal detenção e prisão de um dos seus Deputados, tal detenção e prisão [e esta prisão só pode ser a prisão preventiva, uma vez que, depois de deduzida uma acusação e no caso de crimes puníveis com penas de prisão de máximo superior a 3 anos é obrigatória a suspensão do mandato por parte do Deputado em causa - artigo 11.º, n.º 3, alínea a), da Lei 3/2001] nunca serão inconstitucionais, ainda que não ocorram em flagrante delito da prática de crime punido com pena de prisão superior a 3 anos.

A Assembleia da República autorizou a sua audição como arguido e a sua sujeição a qualquer medida de coacção - cf. a fl. 4579 -, pelo que a decisão judicial que lhe aplicou tal medida não padece de nenhum vício de inconstitucionalidade."

3 - Paulo José Fernandes Pedroso recorreu deste acórdão do Tribunal da Relação para o Tribunal Constitucional, propugnando a inconstitucionalidade das normas do artigo 11.º, n.os 1 e 3, do Estatuto dos Deputados (Lei 7/93, de 1 de Março, com as alterações introduzidas pela Lei 24/95, de 18 de Agosto, pela Lei 55/98, de 18 de Agosto, pela Lei 8/99, de 10 de Fevereiro, pela Lei 45/99, de 16 de Junho, e pela Lei 3/2001, de 23 de Fevereiro), quando "concretamente interpretadas no sentido de permitir a aplicação da medida de prisão preventiva a deputado fora da situação de flagrante delido ou da existência de acusação definitiva", por violação das garantias de imunidades consagradas no artigo 157.º, n.os 3 e 4, da Constituição.

Sustentou ainda a inconstitucionalidade do artigo 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil, por remissão dos artigos 4.º e 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, "em caso de manutenção superveniente de prisão preventiva por nova decisão do juiz de instrução, se torna inútil o conhecimento do recurso da decisão que primeiramente decretou essa medida de coacção", por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

4 - Por despacho de 7 de Agosto de 2003, o relator no Tribunal da Relação, após admitir o recurso de constitucionalidade, considerou o seguinte:

"O acórdão recorrido seguiu 'à letra' a orientação do douto acórdão proferido por esse superior Tribunal Constitucional, no âmbito deste mesmo processo em que foi recorrente o co-arguido Carlos Pereira da Cruz - processo 309/03, Tribunal Constitucional - 1.ª secção e cuja certidão se junta.

Igualmente a orientação predominante dos tribunais superiores - Supremo Tribunal de Justiça e Relações de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora, de que se junta, a título exemplificativo breve colheita no site oficial da Direcção-Geral dos Serviços Informáticos."

O recorrente não foi notificado do teor dos documentos citados nesta última parte do despacho e efectivamente juntos ao processo.

5 - No Tribunal Constitucional, a ora relatora proferiu despacho convidando os sujeitos a apresentarem alegações e solicitando ao Tribunal de Instrução Criminal informação sobre se o recorrente interpusera recurso do despacho de manutenção da prisão preventiva. Este pedido de informação foi objecto de resposta afirmativa.

Durante o prazo previsto para apresentar as respectivas alegações, o recorrente veio requerer, "para efeitos de elaborar fundamentadamente as suas alegações", certidão de "todos os documentos mandados juntar pelo douto despacho que admitiu o presente recurso, proferido em 7 de Agosto de 2003, pelo Ilustre Desembargador, Doutor Trigo Mesquita". Tal pedido foi deferido pela relatora. Especificamente quanto ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 296/2003, de 12 de Junho (processo 309/2003, 1.ª Secção), o aludido deferimento foi precedido de consulta da 1.ª Secção deste Tribunal, que autorizou que se desse conhecimento do citado aresto para os estritos efeitos de o recorrente fundamentar as suas alegações.

6 - No Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu do modo seguinte:

"1.ª O artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa assegura a garantia de recurso em processo criminal, como uma garantia de defesa (princípio do duplo grau de jurisdição).

2.ª Conforme resulta tanto da letra do preceito como dos trabalhos preparatórios, a garantia de recurso não é restrita à decisão condenatória e abrange seguramente, no quadro constitucional de valorações, a decisão que determine prisão preventiva, por esta envolver gravíssima limitação da liberdade individual (Constituição da República Portuguesa, artigos 27.º e 28.º).

3.ª De qualquer modo, o Código de Processo Penal prevê recurso do despacho que determine prisão preventiva e as normas em que o faz [artigos 399.º e 407.º, n.º 1, alínea c)] representam concretizações da garantia constitucional de recurso em processo criminal, ficando submetidas ao regime próprio desta.

4.ª De harmonia com o n.º 5 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, os procedimentos judiciais para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais têm de ser adequados a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos (princípio da tutela jurisdicional efectiva).

5.ª O recurso do despacho que determine a prisão preventiva representa um procedimento judicial destinado a prevenir violações de direitos e liberdades pessoais, que constitui ele próprio uma garantia pessoal, e encontra-se assim submetido ao princípio da tutela jurisdicional efectiva.

6.ª A tutela jurisdicional efectiva não é assegurada pelo recurso interposto do segundo despacho de manutenção antecipada de prisão preventiva porque tal recurso (que no caso foi aliás interposto) não permite uma decisão em tempo útil, na acepção do artigo 20.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, da violação da liberdade pessoal.

7.ª De resto, na interpretação do artigo 287.º, alínea e), do CPC, no âmbito do processo criminal, conjugado com o artigo 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, efectuada pelo douto acórdão recorrido, seria possível através de sucessivos reexames antecipados dos pressupostos da prisão preventiva e de sucessivas extinções da instância por inutilidade superveniente do recurso impedir que alguma vez a decisão determinante de prisão preventiva fosse apreciada por tribunal superior.

8.ª A norma resultante da interpretação conjugada do artigo 287.º, alínea e), do CPC, aplicável e aplicado por remissão do artigo 4.º do Código de Processo Penal, e do artigo 231.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual, em caso de manutenção superveniente de prisão preventiva por nova decisão do juiz de instrução (em especial por reexame oficioso antecipado da subsistência dos pressupostos desta medida), se torna inútil o conhecimento do recurso da decisão que primeiramente decretou essa medida de coacção, afasta a tutela jurisdicional efectiva quanto à violação da liberdade pessoal pelo despacho que tenha determinado a prisão preventiva e ofende, assim, o artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 20.º, n.º 5, ambos da Constituição da República Portuguesa, sofrendo por isso de inconstitucionalidade material.

9.ª Aliás, tal norma seria sempre, e é, materialmente inconstitucional por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado agora com o artigo 27.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, em virtude de excluir as condições para reparação por prisão ilícita.

10.ª O artigo 11.º, n.os 1 e 3, do Estatuto do Deputados (Lei 7/93, de 1 de Março, com as alterações introduzidas pela Lei 24/95, de 18 de Agosto, pela Lei 55/98, de 18 de Agosto, pela Lei 55/98, de 18 de Agosto, pela Lei 8/99 de 10 de Fevereiro, pela Lei 45/99, de 16 de Junho, e pela Lei 3/2001, de 23 de Fevereiro), quando interpretados, como foram, pela decisão recorrida no sentido se permitir a aplicação da medida de prisão preventiva a deputado fora da situação de flagrante delito ou da existência de acusação definitiva, padecem do vício de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios garantísticos das imunidades consagrados no artigo 157.º, n.os 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa."

Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:

"1.º Não é inconstitucional a previsão - como pressuposto ou requisito dos recursos penais - do interesse em agir do recorrente, conduzindo à inutilidade superveniente daqueles cuja dirimição se configure como absolutamente irrelevante, por estar inteiramente precludida ou consumida, pelo posterior decurso do processo, a decisão recorrida.

2.º É, porém, violador do direito ao recurso, ínsito no princípio das garantias de defesa, a interpretação normativa dos preceitos legais consagradores da exigência do interesse em agir que conduzam à preclusão de um recurso, interposto pelo arguido da decisão que inicialmente lhe aplicou medida de coacção privativa de liberdade, e que conserva para o recorrente interesse secundário ou residual, implicando a respectiva dirimição um juízo sobre a legalidade da situação detentiva sofrida, relevante e decisivo enquanto pressuposto de uma ulterior e eventual acção indemnizatória, tutelada pelo artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, destinada ao ressarcimento dos danos alegadamente sofridos.

3.º Conserva utilidade substancial a dirimição do recurso - cuja preclusão radicou decisivamente no reexame antecipado dos pressupostos da prisão preventiva - num caso em que foi autonomamente questionada pelo recorrente a legalidade de tal procedimento, tido por violador do disposto no artigo 213.º, n.º 1 - antes de sobre tal questão vir a ser proferida no processo decisão definitiva.

4.º É inconstitucional a norma que prevê a inutilidade superveniente do recurso, incidente sobre a imposição ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva, com fundamento em que foi proferido nos autos despacho que procedeu ao reexame antecipado de tal medida de coacção, mantendo-a, tendo, porém, o arguido questionado, em novo recurso, ainda não decidido, a legalidade de tal decisão, incluindo a antecipação do reexame da prisão preventiva.

5.º Não é inconstitucional a norma constante do artigo 11.º do Estatuto dos Deputados, já que a lei fundamental não limita a possibilidade de prisão preventiva dos deputados aos casos de flagrante delito ou de prévia dedução de acusação definitiva."

II - Fundamentação. - A) A alegada inconstitucionalidade dos n.os 1 e 3 do artigo 11.º do Estatuto dos Deputados. - 7 - O recorrente suscita a questão da inconstitucionalidade das normas contidas nos n.os 1 e 3 do artigo 11.º do Estatuto dos Deputados (Lei 7/93, de 1 de Março, com as alterações introduzidas pelas Leis 24/95, de 18 de Agosto, 55/98, de 18 de Agosto, 8/99, de 10 de Fevereiro, 45/99, de 16 de Junho e 3/2001, de 23 de Fevereiro), quando concretamente interpretadas no sentido de permitirem a aplicação da prisão preventiva a deputado fora da situação de existência de acusação definitiva ou de flagrante delito, por violarem o artigo 157.º, n.os 3 e 4 (certamente por lapso, nas alegações o recorrente identifica os n.os 2 e 3 do artigo), da Constituição.

As normas em crise têm o seguinte teor:

"Artigo 11.º

Inviolabilidade

1 - Nenhum Deputado pode ser detido ou preso sem autorização da Assembleia, salvo por crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos e em flagrante delito.

3 - Movido procedimento criminal contra um Deputado e acusado este definitivamente, a Assembleia decide, no prazo fixado no Regimento, se o Deputado deve ou não ser suspenso para efeito do seguimento do processo, nos termos seguintes:

a) A suspensão é obrigatória quando se tratar de crime do tipo referido no n.º 1;

b) A Assembleia pode limitar a suspensão do Deputado ao tempo que considerar mais adequado, segundo as circunstâncias, ao exercício do mandato e ao andamento do processo criminal."

Por seu turno, os n.os 3 e 4 do artigo 157.º da Constituição possuem, presentemente, a seguinte redacção:

"Artigo 157.º

Imunidades

...

3 - Nenhum Deputado pode ser detido ou preso sem autorização da Assembleia, salvo por crime doloso a que corresponda a pena de prisão referida no número anterior e em flagrante delito.

4 - Movido procedimento criminal contra algum Deputado, e acusado este definitivamente, a Assembleia decidirá se o Deputado deve ou não ser suspenso para efeito de seguimento do processo, sendo obrigatória a decisão de suspensão quando se trate de crime do tipo referido nos números anteriores."

Estas normas constitucionais devem ser ainda conjugadas com o n.º 2 do artigo 157.º da Constituição, que dispõe o seguinte:

"2 - Os Deputados não podem ser ouvidos como declarantes nem como arguidos sem autorização da Assembleia, sendo obrigatória a decisão de autorização, no segundo caso, quando houver fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos."

8 - No entender do recorrente, a Constituição só admite que a Assembleia da República autorize a detenção ou prisão de deputado em duas hipóteses: acusação definitiva e flagrante delito. A autorização só é dispensada quando esteja em causa crime doloso punível com prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos e haja flagrante delito (2.ª parte do n.º 3 do artigo 157.º da Constituição).

Para atingir tal conclusão, o recorrente faz uma conjugação do n.º 4 com o n.º 3 do artigo 157.º pela qual sustenta que a autorização para um Deputado ser detido ou preso coincide temporalmente com a decisão sobre se o deputado deve ou não ser suspenso para efeito de seguimento do processo. Ora, esta última autorização, obrigatória quando se trate de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos, é decidida após acusação definitiva (artigo 157.º, n.º 4).

9 - Conduz o regime previsto no artigo 157.º, n.os 2, 3 e 4, da Constituição à conclusão sustentada pelo recorrente?

A interpretação do artigo 157.º da Constituição é determinada, necessariamente, pelo sentido geral da figura das imunidades dos deputados. As imunidades dos deputados exprimem, na Constituição portuguesa, um modo de protecção da instituição parlamentar e de concretização do princípio da separação e interdependência de poderes, que se traduz num relevante corolário do Estado de direito democrático (artigo 2.º).

No plano processual (abstraindo da condição negativa de punibilidade prevista no n.º 1, que constitui uma verdadeira causa pessoal de isenção de responsabilidade penal situada ao nível do direito substantivo), o regime do artigo 157.º visa impedir que o Parlamento seja afectado pela perseguição penal dos respectivos membros em casos de gravidade diminuta. Nesta medida, prevalece-se de um critério de ponderação de interesses conflituantes que elege como tópicos atendíveis a gravidade do crime (crime doloso punível com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos) e a nitidez e o grau de consolidação dos indícios do seu cometimento (flagrante delito e acusação definitiva, respectivamente). E tal regime pretende ainda obstar a qualquer abuso do procedimento criminal contra os membros do Parlamento.

É este o traço comum aos n.os 2, 3 e 4 do artigo 157.º da Constituição, os quais estabelecem genericamente para os crimes não dolosos ou que, sendo dolosos, não sejam puníveis com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos um regime de perseguibilidade que carece de autorização prévia da Assembleia da República. Por outro lado, estes três preceitos - os n.os 2, 3 e 4 do artigo 157.º da Constituição - têm ainda em comum uma certa vinculação da Assembleia da República à viabilização do procedimento criminal no caso de haver fortes indícios da prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos.

Assim, o n.º 2 do artigo 157.º prevê nesta situação a obrigatoriedade de decisão de autorização se o deputado dever ser ouvido como arguido (mas já não como "declarante"). O n.º 3 prevê mesmo a possibilidade de o deputado ser detido ou preso sem autorização quando se trate daquele tipo de crime e ocorra flagrante delito. Finalmente, o n.º 4 estabelece que a decisão de suspensão de deputado pela Assembleia da República é obrigatória quando se trate do mesmo tipo de crime e haja acusação definitiva.

10 - O sistema previsto nos n.os 2, 3 e 4 do artigo 157.º obedece pois à lógica de uma vinculação dos poderes da Assembleia da República à viabilização do procedimento criminal quando se trate de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos, na medida em que nesse caso se presume uma incompatibilidade com o exercício do cargo de deputado.

Neste sistema, porém, não existe uma total uniformidade de soluções. Assim, para a audição do deputado como arguido é obrigatória a decisão de autorização quando haja fortes indícios de prática de "crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos", não sendo necessário o flagrante delito. Já para a detenção ou prisão de deputado é necessária a autorização da Assembleia, excepto se se tratar de crime doloso cujo limite máximo de pena seja superior a 3 anos e ocorrer flagrante delito. Por fim, a suspensão de deputado contra o qual foi movido procedimento criminal e proferida acusação definitiva (para efeito de seguimento do processo) é sempre decidida pela Assembleia, sendo obrigatória decisão positiva se se tratar de crimes daquele tipo.

Explicam-se estas diferenciações pela diversidade de momentos processuais e de problemas a que se referem os n.os 2, 3 e 4 do artigo 157.º Deste modo, por exemplo, a obrigatoriedade da autorização para a audição de deputado como arguido por crime doloso a que corresponda pena de prisão com limite máximo superior a 3 anos não está prevista para a detenção ou prisão fora de flagrante delito. E se houver flagrante delito, nem sequer é necessária autorização para se proceder à detenção ou prisão de deputado. Por outro lado, a obrigatoriedade de decisão de suspensão de deputado só é prescrita quando haja acusação definitiva em relação àquele tipo de crime.

Uma tal discrepância de critérios revela que não há continuidade absoluta entre os n.os 3 e 4 do artigo 157.º Com efeito, as situações previstas na regra do n.º 3 podem referir-se à prisão preventiva anterior à acusação definitiva, como se infere, desde logo, da expressa referência ao flagrante delito. E também a obrigatoriedade de suspensão de deputado após acusação definitiva por crime doloso punível com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos (artigo 157.º, n.º 4) permite concluir que a prisão preventiva de deputado já suspenso não é regulada pelo artigo 157.º, n.º 3, e não carece de autorização da Assembleia da República em hipótese alguma.

11 - Não é possível, deste modo, retirar do artigo 157.º, n.º 4 - que se refere à decisão de suspensão dos deputados e à respectiva obrigatoriedade no caso de crime doloso punível com pena de prisão com limite máximo superior a 3 anos após acusação definitiva -, qualquer argumento no sentido de vedar a possibilidade de a Assembleia da República autorizar, ao abrigo do n.º 3 do artigo 157.º, a prisão preventiva de deputado fora da situação de flagrante delito e antes de acusação definitiva. Na verdade, pelo facto de não resultar da Constituição que seja obrigatória e nem sequer porventura possível a suspensão de deputado preso preventivamente antes de acusação definitiva não se poderá concluir que não seja possível a prisão preventiva de deputado fora da situação de flagrante delito.

Da obrigatoriedade ou não obrigatoriedade da suspensão - problema de que se ocupa o artigo 157.º, n.º 4 -, não resulta nem lógica nem sistematicamente nada para a resolução do problema de saber se um deputado pode ser preso preventivamente fora de flagrante delito antes de acusação definitiva. Para resolver esta última questão, a Constituição apenas formula o critério do artigo 157.º, n.º 3, segundo o qual a regra é a de a detenção ou prisão (incluindo necessariamente a prisão preventiva antes de acusação definitiva) carecer de autorização da Assembleia da República, com excepção da hipótese de crime doloso punível com pena de prisão com limite máximo superior a 3 anos e desde que ocorra flagrante delito - caso em que nenhuma autorização é exigível.

Deve concluir-se, pois, que são diferentes os âmbitos de previsão e estatuição dos n.os 3 e 4 do artigo 157.º da Constituição. A primeira norma ocupa-se simplesmente das condições em que um deputado pode ser detido ou preso sem necessidade sequer de autorização da Assembleia da República e prescreve uma genérica necessidade de autorização da Assembleia da República para que a detenção e a prisão se efectivem nos casos restantes. O legislador constitucional não associa este regime à suspensão, seja obrigatória, seja facultativa, do mandato de deputado. Aliás, nos casos de detenção, o problema da suspensão pode nem se colocar, visto que o prazo máximo de duração é de quarenta e oito horas (artigo 28.º, n.º 1, da Constituição). Por isso, é ao legislador ordinário que compete precisar as decorrências (no plano do exercício das funções parlamentares) de uma autorização concedida pela Assembleia da República para a prisão de um Deputado, ao abrigo do n.º 3 do artigo 157.º da Constituição.

Diferentemente, o n.º 4 do artigo 157.º trata dos casos em que a Assembleia da República pode ou deve decidir a suspensão do mandato de Deputado. Mas este regime não é associado à privação de liberdade do próprio deputado. Este pode encontrar-se em liberdade e ter sido acusado definitivamente pela prática de um crime doloso punível com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos, o que até sucederá em regra dada a natureza excepcional da prisão preventiva (artigo 28.º, n.º 2, da Constituição). Todavia, o deputado será obrigatoriamente suspenso nesse caso, por força do n.º 4 do artigo 157.º da Constituição. É claro, nesta situação, que a suspensão se não deve a uma impossibilidade material de exercer funções, mas sim a uma incompatibilidade considerada relevante pelo legislador entre o exercício do cargo de deputado e a sujeição a julgamento por crime grave, incompatibilidade essa que é presumida inilidivelmente em benefício da dignidade da própria instituição parlamentar.

O que se afirmou vale, com as necessárias adaptações, para as situações em que a Assembleia da República não é obrigada, mas pode decidir a suspensão do mandato de um deputado acusado definitivamente em relação a um crime não doloso ou não punido com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos. Na verdade, o critério seguido pela Assembleia para salvaguardar a dignidade da instituição parlamentar não tem de coincidir com o que preside, em termos legais, à aplicação da prisão preventiva.

12 - Assim, desta combinação de autorizações e decisões obrigatórias e facultativas não resulta que um deputado não possa ser preso preventivamente fora de flagrante delito e antes de acusação definitiva, mediante autorização da Assembleia da República, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 157.º da Constituição.

Do facto de uma tal situação (contemplada no artigo 157.º, n.º 3) não implicar literalmente a obrigatoriedade ou o carácter facultativo da decisão de suspensão do Deputado nos termos do artigo 157.º, n.º 4, não decorre, como se disse, que seja atentatório dos princípios e normas constitucionais aqui relevantes que um deputado seja preso preventivamente fora de flagrante delito e antes de acusação definitiva. Apenas se pode reconhecer, eventualmente, que existe uma lacuna na Constituição quanto à suspensão do mandato de Deputado ou, noutra perspectiva, que o legislador constitucional optou por não regular as consequências de uma prisão preventiva anterior à acusação definitiva, remetendo tal questão para o legislador ordinário.

B) A alegada inconstitucionalidade dos artigos 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil, e 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

13 - O recorrente suscita ainda a questão da inconstitucionalidade do artigo 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicado por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal, e do artigo 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na medida em que estes preceitos terão sido objecto de uma interpretação conjugada segundo a qual, em caso de manutenção superveniente de prisão preventiva por nova decisão do juiz de instrução, se torna inútil o conhecimento do recurso da decisão que primeiramente decretou essa medida de coacção. Entende o recorrente que uma tal interpretação viola as garantias de defesa consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, em especial o direito de recurso.

O artigo 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil, estabelece o seguinte:

"Artigo 287.º

Causas de extinção da instância

A instância extingue-se com:

e) A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide."

Por seu lado, o artigo 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, dispõe que:

"Artigo 213.º

Reexame dos pressupostos da prisão preventiva

1 - Durante a execução da prisão preventiva o juiz procede oficiosamente, de três em três meses, ao reexame da subsistência dos pressupostos daquela, decidindo se ela é de manter ou deve ser substituída ou revogada."

A norma constitucional alegadamente violada - o artigo 32.º, n.º 1 - possui, presentemente, a seguinte redacção:

"Artigo 32.º

Garantias de processo criminal

1 - O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso."

14 - Relativamente a este ponto, colocam-se algumas questões prévias.

Em primeiro lugar, o recorrente não suscitou durante o processo, antes da prolação do acórdão recorrido, tal questão, pelo que importa analisar se estão verificados os pressupostos processuais do recurso de constitucionalidade requeridos pela Lei do Tribunal Constitucional [artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2]. Em segundo lugar, coloca-se ainda a questão de saber se o presente recurso de constitucionalidade relativo à aplicação originária da prisão preventiva mantém, ele próprio, a utilidade, atendendo ao facto de ter sido entretanto proferido novo despacho de manutenção da prisão preventiva. Em terceiro e último lugar, interessa verificar se as normas invocadas foram efectivamente aplicadas pela decisão recorrida.

15 - Resulta claramente da Lei do Tribunal Constitucional [artigo 70.º, n.º 1, alínea b)] que as questões de constitucionalidade normativa que são objecto do recurso de constitucionalidade devem ser suscitadas antes da prolação da decisão recorrida, de modo que o tribunal a quo se possa pronunciar sobre elas. Esta exigência só não é válida se estivermos perante uma decisão surpresa, relativamente à qual não seja possível a arguição prévia por falta da indispensável oportunidade processual (cf., entre muitos outros, os Acórdãos n.os 136/85, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 21 de Janeiro de 1986, 391/89, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 10 de Setembro de 1989, 47/90, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 6 de Julho de 1990, e 51/90, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Julho de 1990).

No caso sub judicio, a questão de constitucionalidade agora em análise foi suscitada apenas no próprio recurso de constitucionalidade. Seria exigível ao recorrente que colocasse esta questão em fase anterior, isto é, no momento da interposição do recurso para a Relação?

A resposta a uma tal questão deve distinguir o plano abstracto, dos critérios jurisprudenciais cognoscíveis sobre a inutilidade superveniente do recurso de despacho que aplicou a prisão preventiva em face de decisões posteriores de manutenção daquela medida de coacção, do plano concreto, da previsibilidade, no momento da interposição do recurso, de vir a ser proferido novo despacho de manutenção daquela medida de coacção antes de estar decidido esse mesmo recurso. Ora, se relativamente ao primeiro plano seria admissível considerar que os critérios jurisprudenciais eram previsíveis, já no que se refere ao segundo plano a resposta há-de ser diferente. Com efeito, constituiria um ónus processual desproporcionado exigir aos recorrentes que antecipassem, no momento da interposição do recurso do despacho que aplicou a prisão preventiva, que tal recurso poderia vir a ser apreciado num momento em que já havia sido proferido novo despacho de manutenção daquela medida.

Mesmo que haja um certo número de decisões que considere supervenientemente inútil a apreciação do recurso do despacho que aplica a prisão preventiva quando o novo despacho de manutenção dessa medida já tenha sido proferido, não é exigível a configuração prévia dessa hipótese para efeitos do recurso de constitucionalidade.

Na verdade, não só o novo despacho será proferido em regra, nos termos do artigo 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, num prazo posterior à apreciação necessariamente urgente do recurso, como também a exigência de previsão da antecipação do despacho de manutenção da medida de coacção no âmbito do próprio recurso do despacho inicial corresponderia à imposição absurda de ter de se suscitar uma questão de constitucionalidade relativa a uma situação futura, hipotética e pouco normal. E essa imposição confrontaria, além disso, o recorrente com o paradoxo processual de, ao mesmo tempo, pressupor a vigência do despacho impugnado e a sua revogação.

Por conseguinte, abstraindo de quaisquer considerações sobre a constitucionalidade de uma interpretação do n.º 1 do artigo 213.º do Código de Processo Penal, que admita a antecipação temporal do reexame dos pressupostos da prisão preventiva com o objectivo exclusivo de a manter, não é exigível a arguição prévia da constitucionalidade da solução do não conhecimento do recurso por inutilidade superveniente nessa hipótese. Assim, o Tribunal Constitucional considera que a questão de constitucionalidade não teria de ser suscitada antes do recurso para o Tribunal Constitucional, sendo tal situação abrangida pelos critérios formulados nos arestos anteriormente citados.

16 - A segunda questão prévia respeita à utilidade do conhecimento do objecto do presente recurso, na medida em que uma eventual revogação do despacho que aplicou a prisão preventiva poderá não afectar o subsequente despacho que a manteve, o que implicará a ausência de interesse do recorrente (artigo 401.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).

O Tribunal Constitucional pronunciou-se já sobre a utilidade do recurso de constitucionalidade nas situações em que, sendo a questão relativa à aplicação da prisão preventiva por um primeiro despacho, veio entretanto a ser proferido um despacho de manutenção daquela medida de coacção. Segundo essa jurisprudência, distinguem-se duas espécies de situações: os casos em que o segundo despacho foi proferido antes da apreciação do recurso de constitucionalidade mas ainda não transitou em julgado, nomeadamente por dele ter sido interposto recurso, e os casos em que tal despacho transitou em julgado sem ter sido objecto de recurso.

Nos primeiros casos, vários acórdãos se pronunciaram no sentido da utilidade do recurso, apesar de a situação da prisão preventiva não se fundamentar já no despacho recorrido, relativamente ao qual se colocavam os problemas de constitucionalidade. O Tribunal Constitucional considerou, ainda assim, que uma eventual afectação do despacho recorrido devido a um juízo de inconstitucionalidade sempre poderia repercutir-se no direito a indemnização (cf. os Acórdãos n.os 90/84, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 6 de Fevereiro de 1985, 339/87, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 19 de Setembro de 1987, 137/92, de 7 de Abril, 144/93, de 28 de Janeiro, e 116/96, de 6 de Fevereiro, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 21.º, 24.º e 33.º, respectivamente).

Nos segundos casos, porém, o Tribunal vem entendendo que o trânsito em julgado do segundo despacho indiciaria, na prática, uma renúncia ao direito de indemnização, gerando, por isso, a inutilidade superveniente do recurso de constitucionalidade (cf. os Acórdãos n.os 722/97, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 13 de Fevereiro de 1998, e 296/2003, de 12 de Junho, inédito).

Tomando em consideração a mencionada jurisprudência, o presente caso é enquadrável, inequivocamente, no primeiro grupo. Com efeito, o recorrente protestou, desde logo, no recurso para o Tribunal Constitucional, contra o despacho que manteve a prisão preventiva e veio de facto a interpor recurso de tal despacho, não se revelando de algum modo, como a citada orientação jurisprudencial requer, falta de interesse quanto a um eventual direito a indemnização.

Aliás, não tendo transitado em julgado o despacho de manutenção da prisão preventiva, que foi objecto de recurso, nunca poderia deixar de se considerar útil o julgamento do recurso do primeiro despacho, ainda não caducado, recurso do qual pode vir a depender, em absoluto, a persistência da prisão preventiva.

De todo o modo, independentemente de saber se a única justificação para a manutenção da utilidade do recurso de constitucionalidade, em situações como a dos autos, é o direito à indemnização, ou se também serão de considerar outros valores constitucionais determinantes da utilidade do recurso, é certo que a jurisprudência constitucional conduz ao conhecimento do objecto do presente recurso.

17 - Por último, o Tribunal Constitucional considera suficientemente definida pelo recorrente a questão de constitucionalidade normativa, atendendo ao modo como foi formulada e à indicação do preceito do Código de Processo Civil [artigo 287.º, alínea e)], apesar de ser discutível se o preceito implicitamente aplicado pelo tribunal a quo não terá sido outro - por exemplo, o artigo 401.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sem necessidade de considerar que há um caso omisso a regular nos termos do processo civil (artigo 4.º do Código de Processo Penal).

Com efeito, não tendo o tribunal a quo explicitado os preceitos legais em que se ancorou, torna-se óbvio que a questão de constitucionalidade se terá apenas de referir ao critério normativo fundamento da decisão, não sendo exigível que o recorrente indique o preciso preceito que foi implicitamente aplicado. É a esta conclusão que nos conduz o conceito de norma para efeitos do controlo de constitucionalidade, o qual se patenteia em vastíssima jurisprudência constitucional (cf., por último, o Acórdão 395/03, de 22 de Julho - inédito - onde são referidos outros arestos).

18 - A questão de constitucionalidade que é objecto do presente recurso consiste na eventual violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, pela interpretação conjugada dos artigos 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil, e 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Segundo tal interpretação, no caso de manutenção da prisão preventiva por nova decisão do juiz de instrução torna-se inútil o conhecimento do objecto do recurso do despacho que primeiramente decretou essa medida de coacção.

O Tribunal da Relação de Lisboa sustenta que a inutilidade superveniente decorre do efeito "consumptivo" do despacho que mantém a prisão preventiva assente em novos factos (factos actuais que permitiriam considerar reforçados os fortes indícios da prática dos crimes e do perigo da perturbação do inquérito). O despacho de manutenção da prisão preventiva seria, segundo o teor do acórdão recorrido, inteiramente autónomo, definindo a situação do arguido e determinando a caducidade do despacho inicial que decretou a prisão preventiva, o qual esgotaria os seus efeitos à data da prolação do despacho previsto no artigo 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Como anteriormente se referiu, este entendimento não se identifica com a jurisprudência do Tribunal Constitucional. Esta considera que há utilidade no conhecimento do recurso interposto do despacho que aplicou a prisão preventiva, ainda que ele tenha sido confirmado por despacho subsequente, invocando, decisivamente, o direito a uma indemnização que pode advir da ilegalidade ou do erróneo julgamento dos pressupostos da aplicação da medida de coacção pelo primeiro despacho (artigo 225.º do Código de Processo Penal). O Tribunal Constitucional só tem vindo a reconhecer que falta o pressuposto processual da utilidade nos casos em que o recorrente haja renunciado a arguir a ilegalidade da prisão preventiva - e tem inferido essa renúncia, repete-se, da ausência de impugnação do despacho de manutenção da prisão preventiva.

No entanto, o que agora se questiona é se o entendimento propugnado pelo tribunal a quo é não só divergente daquele que o Tribunal Constitucional perfilha, mas também inconstitucional por violar o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição. Isto é, pergunta-se se a interpretação normativa acolhida pelo acórdão impugnado inviabiliza o exercício do direito de recurso nestes casos.

19 - É verdade que o artigo 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, estabelece um prazo máximo de garantia de três meses para o reexame da subsistência dos pressupostos da prisão preventiva. Mas antes de exaurido esse prazo o juiz de instrução pode revogar ou substituir essa medida por outra menos gravosa, em conformidade com o próprio carácter excepcional da prisão preventiva (artigo 28.º, n.º 2, da Constituição). Podendo, evidentemente, um tal despacho de reapreciação traduzir-se na manutenção da prisão preventiva (e ainda antes, recorde-se, do decurso do prazo máximo de três meses estipulado pela norma), a conclusão inferida dos preceitos legais que regulam o interesse em agir e a utilidade do recurso nos termos da qual o recurso perderia a utilidade supervenientemente já inviabiliza, contudo, a garantia de defesa prevista na parte final do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição. Com efeito, esta solução impossibilitaria em absoluto o arguido de impugnar o despacho que determinou e aplicou a prisão preventiva naqueles casos em que tal medida fosse reapreciada e mantida na pendência do recurso.

Esta interpretação conduziria assim a consequências constitucionalmente insustentáveis: a inatacabilidade absoluta de eventuais decisões ilegais fundadas no primeiro despacho; a inviabilização consequente do direito à reparação do lesado pelos prejuízos que as decisões ilegais possam determinar; no limite, a inimpugnabilidade da própria prisão preventiva pela possibilidade de repetição de despachos antecipados de manutenção daquela medida.

Ora o direito ao recurso, consagrado expressamente no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, desde a Revisão de 1997 (e já antes configurado como garantia de defesa pela doutrina e pela jurisprudência constitucionais - cf., por exemplo, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 3.º vol., 1994, pp. 303 e seg., e, na jurisprudência, Acórdãos n.os 31/87, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 1 de Abril de 1987, 259/88, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 11 de Fevereiro de 1989, e 353/91, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 20 de Dezembro de 1991), não pode deixar de abranger decisões que determinem a restrição da liberdade decorrente da aplicação da prisão preventiva (cf. o Acórdão 524/98, de 29 de Julho, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 40.º).

Apesar de estar em causa uma medida de coacção que visa fins processuais e não a condenação definitiva do arguido, salvaguardando-se a presunção de inocência, a gravidade da afectação de direitos que ela comporta (privação do direito à liberdade, consagrado no n.º 1 do artigo 27.º da Constituição) torna necessário acautelar a possibilidade de impugnação dessa medida através de recurso, como tem sido reconhecido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (cf. os Acórdãos n.os 31/87, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 1 de Abril de 1987, e 178/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 30 de Novembro de 1988).

No caso sub judicio, verifica-se que a função de garantia de defesa só realizável pelo recurso, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, fica prejudicada pela interpretação das normas em crise. Assim, conclui-se que são inconstitucionais as normas que constituíram o fundamento decisório do tribunal a quo.

III - Decisão. - 20 - Em consequência do exposto, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucionais as normas contidas nos n.os 1 e 3 do artigo 11.º do Estatuto dos Deputados (Lei 7/93, de 1 de Março, com as alterações introduzidas pelas Leis 24/95, de 18 de Agosto, 55/98, de 18 de Agosto, 8/99, de 10 de Fevereiro, 45/99, de 16 de Junho e 3/2001, de 23 de Fevereiro);

b) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma segundo a qual em caso de manutenção superveniente da prisão preventiva por nova decisão do juiz de instrução antes de decorrido o prazo a que se refere o artigo 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na pendência de recurso da primeira decisão, se torna inútil o conhecimento deste recurso;

c) Determinar, consequentemente, a reforma do acórdão recorrido em consonância com o anterior julgamento de inconstitucionalidade.

Lisboa, 24 de Setembro de 2003. - Maria Fernanda Palma (relatora) - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - Paulo Mota Pinto - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2204430.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1993-03-01 - Lei 7/93 - Assembleia da República

    Aprova o Estatuto dos Deputados.

  • Tem documento Em vigor 1995-08-18 - Lei 24/95 - Assembleia da República

    ALTERA O ESTATUTO DOS DEPUTADOS APROVADO PELA LEI 7/93 DE 1 DE MARCO, RELATIVAMENTE AO REGIME DE IMPEDIMENTOS E INCOMPATIBILIDADES. CRIA UM REGISTO DE INTERESSES NA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, O QUAL CONSISTE NA INSCRIÇÃO EM LIVRO PRÓPRIO, DE TODAS AS ACTIVIDADES SUSCEPTÍVEIS DE GERAREM INCOMPATIBILIDADES OU IMPEDIMENTOS E QUAISQUER ACTOS QUE POSSAM PROPORCIONAR PROVEITOS FINANCEIROS OU CONFLITOS DE INTERESSES. CONSTITUI UMA COMISSAO PARLAMENTAR DE ÉTICA E DEFINE A SUA COMPOSICAO E COMPETENCIAS. A PRESENTE LEI (...)

  • Tem documento Em vigor 1998-08-18 - Lei 55/98 - Assembleia da República

    Altera a Lei 7/93, de 1 de Março, que aprovou o Estatuto dos Deputados.

  • Tem documento Em vigor 1999-02-10 - Lei 8/99 - Assembleia da República

    Altera o Estatuto dos Deputados, aprovado pela Lei 7/93 de 1 de Março e alterado pelas Leis 24/95 de 18 de Agosto e 55/98 de 18 de Agosto.

  • Tem documento Em vigor 1999-06-16 - Lei 45/99 - Assembleia da República

    Altera o Estatuto dos Deputados aprovado pela Lei nº 7/93, de 1 de Março, com as posteriores alterações, no que respeita às imunidades e aos deveres e direitos dos deputados.

  • Tem documento Em vigor 2001-02-23 - Lei 3/2001 - Assembleia da República

    Revê do Estatuto dos Deputados. Republicado em anexo.

  • Tem documento Em vigor 2002-01-08 - Lei 3/2002 - Assembleia da República

    Reconhece o título de residência para efeitos de recenseamento eleitoral no estrangeiro.

  • Tem documento Em vigor 2002-01-11 - Lei 5/2002 - Assembleia da República

    Estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira e altera a Lei nº 36/94, de 29 de Setembro, bem como o Decreto-Lei nº 325/95, de 2 de Dezembro.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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