Acórdão 187/2003/T. Const. - Processo 521/2000. - Acordam , em plenário, no Tribunal Constitucional:
1 - O Provedor de Justiça, no uso da competência prevista no artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa (CRP), requereu a este Tribunal Constitucional que fosse apreciada e declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da CRP, da norma constante do artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei 251/98, de 11 de Agosto.
Este diploma, que regula o exercício da actividade de transporte público de aluguer em veículos automóveis ligeiros de passageiros, no seguimento de autorização legislativa concedida pela Lei 18/97, de 11 de Junho, estabelece, nos seus artigos 4.º e 5.º, n.º 1, como um dos requisitos para o acesso a essa actividade a idoneidade de todos os gerentes, administradores ou directores da empresa candidata ao alvará, competindo a apreciação dessa idoneidade à Direcção-Geral de Transportes Terrestres (artigo 3.º, n.º 1), determinando o questionado artigo 5.º, n.º 2, que é considerado "inidóneo" quem tiver sido condenado em pena de prisão efectiva igual ou superior a 3 anos, salvo reabilitação, e por um período de três anos após o fim da pena.
Segundo o requerente, "esta consequência danosa é automática, não sendo permitido ao aplicador da norma qualquer juízo de necessidade, proporcionalidade e adequação na sua aplicação a um caso concreto", decorrendo, assim, "automaticamente da sentença condenatória a 3 ou mais anos de prisão efectiva a interdição de exercício da actividade em apreço pelo período de 3 anos", o que "viola frontalmente a regra inscrita no artigo 30.º, n.º 4, da lei fundamental", segundo a qual "nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos", já que se faz "corresponder à aplicação de uma pena de prisão com um mínimo de certa duração a restrição de um direito, estando em causa o teor não só do artigo 47.º, n.º 1, como o do artigo 61.º, n.º 1, da Constituição", que, respectivamente, consagram as liberdades de escolha de profissão e de iniciativa económica privada.
Admitindo como razoável que "a Administração, habilitada pela lei, pondere no caso concreto a idoneidade moral e cívica dos gerentes, administradores e directores de cada empresa candidata ao exercício da actividade de transportadora de táxi", entende, porém, o requerente que "não é de todo admissível a previsão mecânica que a lei faz no normativo em foco, desencadeando os efeitos precisamente contrários aos que a Constituição pretende salvaguardar com o teor do n.º 4 do seu artigo 30.º", fazendo-se "corresponder à aplicação de uma pena de prisão com um mínimo de certa duração uma verdadeira pena acessória, sem que esta tenha sido aplicada pela entidade judicial competente".
Por outro lado, a "excepção" resultante da previsão, nos artigos 15.º e 16.º da Lei 57/98, de 18 de Agosto, de mecanismos que, ope legis ou por mediação judicial, obstam aos efeitos gravosos previstos na norma impugnada, não pode servir, segundo o requerente, para legitimar a "regra", que é a da produção de efeitos automáticos, em violação do teor do artigo 30.º, n.º 4, da CRP.
2 - Na sua resposta, o Primeiro-Ministro sustentou a conformidade constitucional da norma questionada, desenvolvendo argumentação que condensou nas seguintes conclusões:
"Não deve ser declarada a inconstitucionalidade da norma ínsita no n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei 251/98 por violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
O conteúdo da norma arguida de inconstitucional não preenche o conceito jurídico-constitucional de perda de direitos profissionais (os únicos que estão aqui em causa), nem tão-pouco se poderá considerar ofensiva do princípio fundamental supremo da dignidade da pessoa humana.
Acresce que a norma ínsita no n.º 2 do artigo 5.º do diploma identificado nos autos não pode deixar de ser interpretada em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 47.º da Constituição.
No caso presente, o que está em causa não é a liberdade de escolha de uma determinada actividade ou profissão, mas a do exercício temporário da mesma. Enquanto a primeira se configura como independente do estatuto da actividade ou profissão em concreto, o mesmo não poderá dizer-se da segunda. Encontra-se submetida a um estatuto (ou normação) de natureza pública.
A esse estatuto público, determinado pelo Decreto-Lei 251/98, assiste-lhe constitucionalmente a possibilidade de discriminar condições ou limites mais intensos ao exercício da actividade dos transportes em táxi, sendo legítimo ao legislador discriminar pressupostos, subjectivos e objectivos, condicionadores do seu livre exercício.
Esses limites são admissíveis desde que resultem teleologicamente vinculados à realização de um fim de interesse público (qualidade do serviço a prestar, segurança rodoviária e a dos próprios utentes) e não violem o princípio jurídico-constitucional da proibição do excesso (necessidade, exigibilidade e proporcionalidade).
Não há violação de gozo de nenhum direito fundamental, mas a sujeição de uma actividade a um estatuto público constitucionalmente necessário, exigível, adequado e proporcional ao fim que o legislador visa prosseguir: o incremento da qualidade do serviço de transporte público de aluguer em veículos ligeiros de passageiros, o que implica exigências de qualificação adequadas em termos de segurança rodoviária e da segurança dos próprios utentes.
Do que se trata, única e exclusivamente, é de uma limitação temporária ao exercício de uma certa e determinada actividade ou profissão, pelo período de três anos após o cumprimento da pena, a quem tenha sido condenado em pena de prisão efectiva igual ou superior a 3 anos, salvo reabilitação.
Sobre esta matéria rege o disposto no n.º 1 do artigo 47.º da Constituição, que autoriza, em nome do 'interesse colectivo', o legislador a configurar, no caso concreto, o exercício de um direito fundamental. Trata-se de uma norma legal conformadora, que autoriza o legislador a definir, precisar e concretizar o conteúdo da protecção de um direito fundamental.
Não se trata da 'violação' de um direito fundamental, mas de uma 'restrição' constitucionalmente autorizada do mesmo. Consequentemente, o que esse venerando Tribunal terá de determinar é se essa restrição levada a cabo pelo legislador se mostra conforme à Constituição e, designadamente, ao disposto no n.º 1 do artigo 47.º
Este último apresenta-se como uma 'norma de competência', que autoriza o legislador a assim proceder. Mais: tanto quanto se sabe, uma 'restrição' não é o mesmo que uma 'violação' de um direito fundamental. A primeira é admitida pelo 'pressuposto de facto' desse direito, a segunda, não.
Nestes termos, e sem prescindir do douto suprimento de VV. Exmas., não deve a norma identificada nos autos ser julgada inconstitucional."
3 - Debatido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, nos termos do artigo 63.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro), e fixada a orientação sobre as questões a resolver, procedeu-se à distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
4 - O Decreto-Lei 251/98, de 11 de Agosto, que regula a actividade de transportes públicos de aluguer em veículos automóveis ligeiros de passageiros, adiante designados por transportes em táxi, prevê um triplo licenciamento: da actividade (artigos 3.º a 9.º), dos veículos afectos aos transportes em táxi (artigos 10.º a 12.º) e dos lugares nos contingentes fixados para cada concelho (artigos 13.º e 14.º).
Quanto ao licenciamento da actividade, dispunham os artigos 3.º a 5.º da versão originária do diploma:
"Artigo 3.º
Licenciamento da actividade
1 - A actividade de transportes em táxi só pode ser exercida por sociedades comerciais ou cooperativas licenciadas pela Direcção-Geral de Transportes Terrestres (DGTT), sem prejuízo do disposto no artigo 38.º
2 - A licença para o exercício da actividade de transportes em táxi consubstancia-se num alvará, o qual é intransmissível e é emitido por um prazo não superior a cinco anos, renovável mediante comprovação de que se mantêm os requisitos de acesso à actividade.
3 - A DGTT procederá ao registo de todas as empresas titulares de alvará para o exercício desta actividade.
Artigo 4.º
Requisitos de acesso
São requisitos de acesso à actividade a idoneidade, a capacidade técnica ou profissional e a capacidade financeira.
Artigo 5.º
Idoneidade
1 - O requisito de idoneidade deve ser preenchido por todos os gerentes, directores ou administradores da empresa.
2 - Para efeitos do disposto no presente diploma, não são consideradas idóneas, durante um período de três anos após o cumprimento da pena, as pessoas que tenham sido condenadas em pena de prisão efectiva igual ou superior a 3 anos, salvo reabilitação.
3 - Nos termos do Código de Processo Penal, podem verificar-se os seguintes impedimentos:
a) Proibição legal do exercício do comércio;
b) Condenação, com trânsito em julgado, qualquer que tenha sido a natureza do crime, nos casos em que tenha sido decretada a interdição do exercício da profissão de transportador;
c) Condenação, com trânsito em julgado, por infracções graves e repetidas à regulamentação sobre os tempos de condução e de repouso ou à regulamentação sobre a segurança rodoviária, nos casos em que tenha sido decretada a interdição do exercício da profissão de transportador;
d) Condenação, com trânsito em julgado, por infracções cometidas no exercício da actividade transportadora às normas relativas ao regime das prestações de natureza retributiva ou às condições de higiene e segurança no trabalho, nos casos em que tenha sido decretada a interdição do exercício da profissão de transportador."
O Decreto-Lei 251/98 foi objecto de alteração e revisão pelo Decreto-Lei 41/2003, de 11 de Março, com efeitos retrotraídos a 1 de Janeiro de 2003, conforme determinação do respectivo artigo 5.º
Um dos preceitos modificados foi o do artigo 5.º do Decreto-Lei 251/98, cuja redacção passou a ser a seguinte:
"Artigo 5.º
[...]
1 - ...
2 - São consideradas idóneas as pessoas relativamente às quais se não verifique algum dos seguintes impedimentos:
a) Proibição legal do exercício do comércio;
b) Condenação, com trânsito em julgado, qualquer que tenha sido a natureza do crime, nos casos em que tenha sido decretada a interdição do exercício da profissão de transportador;
c) Condenação, com trânsito em julgado, por infracções graves e repetidas à regulamentação sobre os tempos de condução e de repouso ou à regulamentação sobre a segurança rodoviária, nos casos em que tenha sido decretada a interdição do exercício da profissão de transportador;
d) Condenação, com trânsito em julgado, por infracções cometidas no exercício da actividade transportadora às normas relativas ao regime das prestações de natureza retributiva ou às condições de higiene e segurança no trabalho, nos casos em que tenha sido decretada a interdição do exercício da profissão de transportador.
3 - (Revogado.)"
Desta alteração resultou a revogação da norma do primitivo n.º 2 deste artigo 5.º, cuja declaração de inconstitucionalidade constitui o objecto do presente pedido.
Face à revogação operada, coloca-se a questão da manutenção da utilidade no conhecimento do mérito do pedido.
Constitui entendimento reiterado deste Tribunal - cf., por todos, o Acórdão 269/2001 (Diário da República, 2.ª série, n.º 167, de 20 de Julho de 2001, p. 12 157, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., p. 109), que seguiremos de perto e do qual consta extensa referência a jurisprudência anterior - que o facto de as normas objecto de um pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, haverem sido, entretanto, revogadas não impossibilita automaticamente o conhecimento desse pedido (atentos os efeitos ex tunc que aquela declaração, em princípio, produzirá: artigo 282.º, n.º 1, da CRP): ponto é que o conhecimento do pedido conserve, no caso, utilidade ou interesse relevantes.
A constatação desta utilidade e deste interesse depende do resultado da indagação sobre se a eventual declaração da inconstitucionalidade da norma poderá ter alguma projecção significativa sobre os efeitos por ela já produzidos.
A norma impugnada no presente processo respeita ao acesso a uma actividade dependente de prévio licenciamento administrativo, consubstanciado na emissão de alvará (cf. o artigo 3.º). O indeferimento do pedido de acesso à actividade, designadamente com fundamento na idoneidade prevista no impugnado n.º 2 do artigo 5.º, na sua redacção originária, traduz-se num acto administrativo, cuja falta de oportuna impugnação conduz à sua consolidação na ordem jurídica, como caso decidido ou resolvido, figura que, segundo a jurisprudência deste Tribunal - cf. entre outros, os Acórdãos n.os 804/93 (Diário da República, 2.ª série, suplemento ao n.º 76, de 31 de Março de 1994, p. 2952-(33), e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 26.º vol., p. 51) e 786/96 (Diário da República, 2.ª série, n.º 192, de 20 de Agosto de 1996, p. 11 654, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 458, p. 45, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34.º vol., p. 23) -, é de equiparar ao caso julgado, para o efeito de excluir a possibilidade de as correspondentes situações serem afectadas pela declaração de inconstitucionalidade da norma à sombra da qual foram criadas (artigo 282.º, n.º 3, da CRP). Assim, relativamente aos casos pretéritos em que, por força da norma impugnada, se consumou a impossibilidade de eventuais interessados exercerem as actividades em causa, quer porque, conhecedores da questionada causa legal de idoneidade, espontaneamente se abstiveram de requerer o acesso às mesmas quer porque, tendo-o requerido, se conformaram com os actos de indeferimento alicerçados nessa norma, nenhum efeito útil derivaria de eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
Daqui decorre que só poderia conjecturar-se a subsistência de alguma utilidade da eventual declaração de inconstitucionalidade quanto a situações residuais, respeitantes a pedidos pendentes, isto é, quanto a situações relativamente às quais já tenham sido impugnados (mas ainda não judicialmente decididos com trânsito em julgado) ou ainda possam vir a ser impugnados actos relativos aos respectivos procedimentos administrativos de acesso à actividade.
Só que o Tribunal Constitucional tem entendido - cf., entre outros, os Acórdãos n.os 17/83 (Diário da República, 2.ª série, n.º 26, de 31 de Janeiro de 1984, p. 940, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 334, p. 234, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1.º vol. p. 93), 453/95 (Diário da República, 2.ª série, n.º 232, de 7 de Novembro de 1995, p. 11 963, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31.º vol., p. 221), 786/96 (já citado) e 270/2000 (Diário da República, 2.ª série, n.º 256, de 6 de Novembro de 2000, p. 18 030, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47.º vol., p. 27) - que, em tal tipo de hipóteses, o conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade de normas entretanto revogadas deixa de ter interesse juridicamente relevante, já que seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta para os (residuais) casos concretos em que a aplicação da norma subsistiu. Nestes casos residuais, os possíveis beneficiários da eventual declaração de inconstitucionalidade poderão obter idêntico efeito suscitando a inconstitucionalidade da norma sub judice em impugnação contenciosa do acto de indeferimento do pedido de acesso à actividade.
5 - Em face do exposto, acordam em não tomar conhecimento, por inutilidade superveniente, do pedido de declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei 251/98, de 11 de Agosto, na sua redacção originária.
Lisboa, 8 de Abril de 2003. - Mário José de Araújo Torres - Carlos Pamplona de Oliveira - Benjamim Rodrigues - Luís Nunes de Almeida - Artur Maurício - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Paulo Mota Pinto - Alberto Tavares da Costa - Bravo Serra - Gil Galvão - Maria Helena Brito - Maria Fernanda Palma - José Manuel Cardoso da Costa.