Acórdão 50/2003/T. Const. - Processo 214/2002. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - O Banco Comercial Português, S. A., interpôs recurso para o Tribunal de Trabalho de Tomar da decisão da subdelegação do Instituto de Defesa e Inspecção das Condições de Trabalho de Tomar, que aplicou ao Banco Português do Atlântico, S. A., a coima de 1 800 000$, por violação do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei 421/83, de 2 de Dezembro, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei 398/91, de 16 de Outubro, e pela Lei 118/99, de 11 de Agosto. O texto da decisão impugnada (excluindo, por não interessar agora, a advertência que a antecede e as indicações exigidas pelo n.º 2 do artigo 58.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro) tinha sido o seguinte: "Concordo com a proposta acima referida, de fl. 28 a fl. 35 dos autos, que aqui dou por inteiramente reproduzida, passando a fazer parte integrante da presente decisão."
Nas alegações apresentadas no recurso, a recorrente sustentou que a decisão enferma de falta de fundamentação, uma vez que "limita-se a remeter para a proposta da Sr.ª Instrutora que dá por reproduzida, o que, obviamente, não cumpre o requisito de fundamentação da decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 374.º, n.º 2, do CPC [Código de Processo Penal] e 58.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, como constitui jurisprudência pacífica dos nossos Tribunais" (cf. fl. 55).
E foi na sequência desta alegação da recorrente que o Tribunal de Trabalho de Tomar, que confirmou a decisão recorrida, entendeu que "a decisão sob recurso mostra-se devidamente fundamentada, com clareza e suficiência e resulta de forma clara e inequívoca a remissão para a proposta de decisão, o que é válido, legal e regular, como aliás resulta do disposto no artigo 125.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo" (sentença de 19 de Outubro de 2001, a fls. 132 e seguintes).
Inconformado, o Banco Comercial Português, S. A. recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra. Na motivação do recurso, veio sustentar, designadamente, a inconstitucionalidade do artigo 112.º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, "por violação dos artigos 30.º, n.º 3, e 32.º, n.º 10, da CRP se, e na exacta medida em que, a sua previsão incluir a transmissão da responsabilidade contra-ordenacional para a sociedade incorporante" (observando que a "personalidade jurídica da arguida originária extinguiu-se com a fusão desta no Banco Comercial Português, S. A.") e do artigo 125.º do CPA, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição "quando interpretado no sentido de que a sua previsão abrange matéria contra-ordenacional, ou seja, o caso dos autos".
O Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão de 31 de Janeiro de 2002, a fls. 176 e seguintes, negou provimento ao recurso, nos seguintes termos (também apenas para o que agora releva):
"Em suma: não estando determinado por via normativa - antes pelo contrário - que o 'fim' da infractora em causa conduza à extinção da sua responsabilidade contra-ordenacional, é a sua sucessora responsável, conforme se disse e determina a alínea a) do artigo 112.º citado.
Salvo o devido respeito, não se vislumbra onde tal ofenda pelo exposto o tal artigo 30.º, n.º 3, da CR ou o artigo 32.º, n.º 10, da lei fundamental, pois que não só ao 'primitivo' arguido (BPA) foram assegurados todos os direitos de defesa e audiência, antes de operada a aludida fusão (como se constata pelo simples compulsar do processo administrativo contra-ordenacional) como igualmente ao arguido (BCP) para quem foi transmitido entretanto e por força de lei, a responsabilidade pelo pagamento da coima, foram garantidos esses mesmos direitos, nomeadamente o de impugnação judicial do acto administrativo sancionatório e o de recurso da decisão proferida na 1.ª instância (artigos 59.º, n.º 1, 64.º, n.º 1, e 73.º, n.º 1, alínea a), todos do Decreto-Lei 433/82, de 17 de Outubro).
Em suma não ocorre igualmente ofensa do disposto no citado artigo 32.º, n.º 10.
Não está em causa que é da exclusiva competência da AR (salvo autorização ao Governo) legislar sobre o regime geral de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.
Di-lo expressamente o artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CR.
Mas se se tem como certo - repete-se - que o processo contra-ordenacional assume natureza administrativa, pelo menos até à impugnação judicial prevista no artigo 59.º citado, não se vislumbra, salvo melhor entendimento, que não possa ter aqui aplicação o referido artigo 125.º, que exactamente está previsto para todos os tipos de procedimento administrativo, não se crendo que a aceitação deste princípio viole qualquer normativo constitucional mormente o referido artigo 165.º, n.º 1, alínea d).
Não se trate aqui de legislar sobre as contra-ordenações (seus regimes de punição e processo).
Mas, tão-só, de aplicar uma norma que por se conter no CPA, tem pleno cabimento no referido processo de contra-ordenação laboral, como procedimento administrativo, que até certa altura, efectivamente é."
2 - Novamente inconformado, o Banco Comercial Português, S. A. recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo que o Tribunal aprecie "a inconstitucionalidade dos artigos 127.º e 128.º do Código Penal na interpretação feita pelo Tribunal da Relação de Coimbra de que tais disposições não consignam o princípio da intransmissibilidade da responsabilidade criminal e contra-ordenacional das pessoas colectivas", que viola o artigo 30.º, n.º 3, da Constituição da República e "a inconstitucionalidade do artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo na interpretação de que essa disposição se aplica ao regime do processo de contra-ordenação laboral", por ofensa do "normativo constitucional constante do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição da República, segundo o qual é da exclusiva competência da Assembleia da República afixação do regime processual aplicável à punição dos actos ilícitos de mera ordenação social".
Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as respectivas alegações, que a recorrente concluiu da seguinte forma:
"Conclusões:
Única. O artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo é inconstitucional se interpretado no sentido de que a sua previsão inclui matéria contra-ordenacional. Naquela interpretação o artigo 125.º, concebido ao abrigo de uma autorização legislativa que não abrange o artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP, viola-o, porquanto a autorização legislativa ao abrigo da qual foi feito não abrange a alínea d) do citado n.º 1 do artigo 165.º, mas sim a alínea u) do mesmo número e artigo da lei fundamental".
Por seu lado, o Ministério Público, para além de ter observado que, nas alegações, a recorrente "abandonou" a questão de constitucionalidade, que colocara no requerimento de interposição de recurso, relativa "aos artigos 127.º e 128.º do Código Penal", formulou estas conclusões:
"1.ª Não traduz invasão do âmbito da competência legislativa reservada ao Parlamento a circunstância de os tribunais - para preencherem lacunas de regulamentação em áreas abrangidas por tal reserva - aplicarem subsidiariamente normas que não constem de diplomas editados com autorização da Assembleia da República.
2.ª Termos em que deverá improceder o presente recurso."
3 - Cabe começar por fixar o objecto do recurso.
Com efeito, nas alegações que apresentou no Tribunal Constitucional, a recorrente abandonou a questão de constitucionalidade que, no requerimento de interposição de recurso, referira aos artigos 127.º e 128.º do Código Penal.
Assim, nos termos conjugados do disposto no n.º 3 do artigo 684.º do Código de Processo Civil e no artigo 69.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, considera-se o objecto do presente recurso reduzido à apreciação da alegada inconstitucionalidade do artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo, cujo texto é o seguinte:
"Artigo 125.º
Requisitos da fundamentação
1 - A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituirão neste caso parte integrante do respectivo acto.
2 - Equivale à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.
3 - Na resolução de assuntos da mesma natureza, pode utilizar-se qualquer meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que tal não envolva diminuição das garantias dos interessados."
É manifesto que, no presente recurso, apenas está em causa o n.º 1 deste preceito, que a recorrente acusa de ser inconstitucional quando interpretado "no sentido de que a sua previsão inclui matéria contra-ordenacional".
Ora o que o tribunal recorrido afirmou, com mais precisão, foi que, configurando-se o processo contra-ordenacional também como um procedimento administrativo até ao momento da impugnação judicial, a fundamentação da decisão de aplicação de coima emitida pela autoridade administrativa pode ser formulada nos termos previstos no n.º 1 deste artigo 125.º
O objecto do presente recurso consiste, assim, na norma do n.º 1 do artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo quando interpretada no sentido de que uma decisão de aplicação de uma coima pode ser fundamentada por remissão para os termos constantes de proposta anterior.
4 - Antes de passar à análise do objecto assim definido, cumpre observar que não há qualquer incompatibilidade entre o n.º 1 do artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo e o regime previsto no n.º 1 do artigo 58.º do Decreto-Lei 433/82, uma vez que é possível que a decisão de aplicação da coima contenha, ainda que por via de remissão - como, aliás, se verificou no caso presente -, todos os elementos ali exigidos; note-se, aliás, que a recorrente nem sequer põe em causa, nem que esses elementos constassem da proposta de decisão, nem que tenham sido levados ao seu conhecimento, mas apenas que o foram por essa via.
Como é manifesto, há que distinguir as exigências relativas à especificação dos elementos que a decisão deve conter do modo como esses elementos são apresentados na decisão.
5 - Equacionada a questão de constitucionalidade objecto do presente recurso, pode desde já afirmar-se que a posição sustentada pela recorrente - e que significa que às decisões proferidas por uma autoridade administrativa no âmbito de um processo contra-ordenacional só podem ser aplicadas normas editadas ao abrigo do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, sob pena de inconstitucionalidade orgânica -, carece de fundamento.
Senão, vejamos a que conduziria tal entendimento.
O artigo 33.º do Decreto-Lei 433/82 prescreve que o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias competem às autoridades administrativas. Por seu turno, o artigo seguinte estabelece as regras que determinam a competência em razão da matéria das mesmas autoridades administrativas.
De acordo com essas regras, tal competência pertencerá às autoridades indicadas pela lei que prevê e sanciona as contra-ordenações; no seu silêncio, serão competentes os serviços designados pelo membro do Governo responsável pela tutela dos interesses que a contra-ordenação visa defender ou promover. Por último, o mesmo artigo 34.º permite que os dirigentes dos serviços aos quais tenha sido atribuída a competência a deleguem, nos termos gerais, nos dirigentes de grau hierarquicamente inferior.
Ora, poder-se-ia pensar que os aspectos de regime jurídico-administrativo aplicáveis no âmbito de um processo de contra-ordenação são-no apenas em virtude de uma norma remissiva para esse efeito contida em diploma credenciado por autorização parlamentar emitida ao abrigo do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, como sucedeu com o Decreto-Lei 433/82.
Imagine-se, todavia, que uma lei que prevê e sanciona uma contra-ordenação determina que a competência em razão da matéria, para o processamento da contra-ordenação e da aplicação da coima e sanções acessórias que no caso caibam, pertence a um órgão colegial. Faz sentido admitir sequer a possibilidade de as regras de funcionamento desse órgão, no silêncio daquela lei, não se encontrarem sujeitas ao disposto nos artigos 14.º e seguintes do Código de Procedimento Administrativo? Ou sustentar que o funcionamento dos órgãos administrativos colegiais deixa de estar sujeito às regras previstas no Código do Procedimento Administrativo, quando esses órgãos apliquem coimas, a não ser que exista uma norma emitida ao abrigo do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, que remeta para o mesmo Código?
Parece evidente que a resposta a estas questões não pode deixar de ser negativa. Tal resposta negativa é, aliás, mera decorrência lógica da opção legislativa de atribuir competência às autoridades administrativas para o processamento do processo contra-ordenacional e aplicação de coimas, opção essa que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão 158/92 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., pp. 713 e seguintes), considerou já isenta de censura constitucional, atendendo à diferença dos princípios jurídico-constitucionais que regem a legislação penal, por um lado, e aqueles a que se submetem as contra-ordenações, por outro (desde que esteja garantido, naturalmente, o direito de impugnação judicial das decisões de autoridades administrativas que hajam aplicado coimas, o que agora não está em causa).
6 - O mesmo se pode dizer no caso dos autos, nos quais se coloca a questão da aplicação (directa) do artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo à fundamentação de uma decisão de imposição de uma coima por uma autoridade administrativa.
Também neste caso não é passível de censura, numa perspectiva jurídico-constitucional, o entendimento segundo o qual as autoridades administrativas, competentes, nos termos da lei, para o processamento das contra-ordenações e para a aplicação de coimas, não perdem a sua natureza jurídico-administrativa e, nessa medida, não deixam de estar submetidas às regras e princípios a que devem obedecer o funcionamento dos órgãos administrativos e a respectiva actividade, previstos no Código do Procedimento Administrativo, ressalvadas as especialidades previstas no regime geral das contra-ordenações ou em diplomas especiais.
Este entendimento é, aliás, aquele que de modo mais correcto harmoniza o disposto no artigo 2.º, n.os 6 e 7, do Código do Procedimento Administrativo com o artigo 33.º do Decreto-Lei 433/82, na redacção do Decreto-Lei 244/95, de 14 de Setembro.
De acordo com o disposto no artigo 2.º, n.os 6 e 7, do Código do Procedimento Administrativo, as disposições do Código relativas à organização e à actividade administrativa são aplicáveis a todas as actuações da Administração Pública no domínio da gestão pública, sendo as restantes disposições do mesmo Código aplicáveis supletivamente aos procedimentos especiais, no domínio da actividade de gestão pública, desde que não envolvam diminuição das garantias dos particulares (cf. Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª ed., Coimbra, 1997, pp. 77 e 80).
Por seu turno, o artigo 33.º do Decreto-Lei 433/82 estabelece, como se viu, que o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias competem às actividades administrativas, ressalvadas as especialidades previstas no mesmo diploma.
Da leitura conjunta destes preceitos pode concluir-se, desde logo, que as disposições relativas a organização e actividade administrativas (as primeiras contidas na parte II e as segundas na parte IV do Código do Procedimento Administrativo) se aplicam directamente a todas as actuações da Administração Pública no domínio da gestão pública, e, nessa medida, também às autoridades administrativas competentes para o processamento das contra-ordenações e aplicação das coimas; mas que as disposições procedimentais (aquelas que se encontram previstas na parte III do Código), aplicáveis supletivamente aos procedimentais especiais, também só supletivamente valem para o processamento das contra-ordenações pelas autoridade administrativas competentes (embora apenas na medida em que não envolvam uma diminuição da garantia dos particulares).
A verdade, todavia, é que, no caso dos autos, não é sequer necessário tomar posição sobre a questão de saber se o processo de contra-ordenação se configura, pelo menos até à fase de decisão de aplicação da coima pela autoridade administrativa, como um procedimento especial para efeitos do disposto no artigo 2.º, n.º 7, do Código do Procedimento Administrativo. É que não foi por efeito de qualquer remissão que a decisão recorrida aplicou o disposto no n.º 1 do artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo; aplicou-o directamente, considerando estar ainda em causa uma actividade de natureza administrativa.
É, aliás, muito duvidoso que a norma impugnada se possa considerar apenas uma norma procedimental ou apenas uma norma sobre trâmites processuais; a próprio colocação do preceito, que o Código do Procedimento Administrativo inclui na sua parte IV, respeitante à actividade administrativa, e não na parte III, relativa ao procedimento administrativo, revela não ter sido assim considerada pelo legislador.
Assim, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que toca à questão da constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC.
29 de Janeiro de 2003. - Maria dos Prazeres Beleza - Alberto Tavares da Costa - Bravo Serra - Gil Galvão - Luís Nunes de Almeida.