Acórdão 55/84
Processo 83/83
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
I
O pedido e seus fundamentos
O procurador-geral da República requer a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade orgânica originária e inconstitucionalidade formal da norma constante do artigo 2.º do Decreto-Lei 306-A/83, de 30 de Junho, na parte relativa à organização do ministério público junto dos Ministros da República para as regiões autónomas, invocando os seguintes fundamentos:
O n.º 4 acrescentado ao artigo 6.º do Decreto-Lei 267/77, de 2 de Julho, pelo Decreto-Lei 306-A/83, de 30 de Junho, prevê o funcionamento junto de cada um dos Ministros da República de uma «auditoria jurídica dirigida pelo procurador da República no círculo judicial respectivo»;
Pelo artigo 6.º do Decreto-Lei 264-C/81, de 3 de Setembro, no uso de autorização legislativa pela Lei 12-E/81, de 27 de Julho, havia sido dada nova redacção ao artigo 41.º da Lei 39/78, de 5 de Julho, prevendo-se aí que «junto dos Ministros da República para as regiões autónomas pode haver um procurador-geral-adjunto, com a categoria de auditor jurídico» (n.º 1), sendo os encargos com os auditores jurídicos «suportados por verbas próprias do orçamento do Ministério da Justiça» (n.º 4);
Independentemente da questão da hierarquia das normas jurídicas - um diploma legal de valor hierárquico inferior a outro modificou o regime deste -, o Decreto-Lei 306-A/83, no ponto em aberto, invadiu a esfera da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, sem haver autorização ao Governo, por se tratar claramente de matéria de organização do ministério público e do estatuto dos respectivos magistrados, o que o fere de inconstitucionalidade orgânica [artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da Constituição];
Acresce que do mesmo Decreto-Lei 306-A/83, aprovado em Conselho de Ministros de 5 de Maio de 1983, não consta a assinatura do Ministro da Justiça, como determina o n.º 3 do artigo 204.º da Constituição, por ser o ministro competente em razão da matéria, estando também ferido de inconstitucionalidade formal;
Ora, havendo na Região Autónoma dos Açores um procurador-geral-adjunto com a categoria de auditor jurídico junto do respectivo Ministro da República, a aplicação da norma em causa levaria a que, por hipótese, na Região Autónoma da Madeira a auditoria jurídica fosse dirigida por um procurador da República.
Mandado ouvir sobre o pedido e seu fundamento o Primeiro-Ministro, este ofereceu o merecimento dos autos.
Em seguida, foi ordenada a distribuição.
Estando impedido nessa altura o relator a quem coube, por sorteio, o processo, fez-se logo segunda distribuição a outro relator.
Como, entretanto, aquele tivesse regressado ao serviço, este último ordenou conclusão àquele, dando-se baixa na segunda distribuição.
II
Apreciação
Dada a simplicidade da questão submetida a este Tribunal, não se tornam necessárias considerações prévias que ajudem quer a explicitar o objecto do pedido (norma arguida) e respectivos fundamentos [incompetência do Governo para legislar em matéria de organização do ministério público e estatuto dos respectivos magistrados, ex vi da alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º, e falta da assinatura do Ministro da Justiça, ex vi do n.º 3 do artigo 204.º] quer, por isso, a sua apreciação.
Assevera-se desde já a procedência do pedido, quer por inconstitucionalidade orgânica, quer por inconstitucionalidade formal.
a) Inconstitucionalidade orgânica
Segundo a alínea q) do artigo 168.º, n.º 1, da Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo autorização do Governo, em matéria de «organização e competência dos tribunais e do ministério público e estatuto dos respectivos magistrados».
O seu conteúdo coincide em boa medida com o respectivo texto originário [(artigo 167.º, alínea j)].
A norma arguida de inconstitucionalidade contém-se em diploma (decreto-lei) do Governo, sem ter havido prévia autorização legislativa da Assembleia, que, aliás, teria de ser, por expressa determinação constitucional (n.º 3 do artigo 201.º), invocada no formulário do mesmo diploma, o que não acontece.
Versa, além disso, sobre matéria respeitante à competência do ministério público.
Vejamos.
O artigo 6.º do Decreto-Lei 267/77, de 2 de Julho - diploma que versa sobre gabinetes ministeriais, designadamente sobre os Gabinetes dos Ministros da República para os Açores e para a Madeira -, dispunha no seu n.º 3 que «junto de cada um dos Ministros da República funcionará uma auditoria jurídica dirigida por um adjunto do procurador da República no círculo judicial respectivo [...]».
A Lei Orgânica do Ministério Público, aprovada pela Lei 39/78, de 5 de Julho, após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 264-C/81, de 3 de Setembro (editado no uso da autorização legislativa conferida pela Lei 12-E/81, de 27 de Julho), veio estatuir no n.º 1 do artigo 41.º que «junto dos Ministros da República para as regiões autónomas pode haver um procurador-geral-adjunto, com a categoria de auditor jurídico», o qual - conforme o disposto no n.º 2 do mesmo artigo - acumulará «as suas funções com as que lhe sejam atribuídas pelo procurador-geral da República no âmbito do ministério público».
Significa isto que, depois da publicação do Decreto-Lei 264-C/81, as funções de auditor jurídico, quando houverem de ser desempenhadas por um magistrado do ministério público, haverão de ser cometidas a um procurador-geral-adjunto e não - como antes sucedia - a um procurador da República, que é o correspondente ao adjunto do procurador da República previsto no Decreto-Lei 267/77, ex vi do artigo 61.º daquela Lei Orgânica (ver nota 1).
(nota 1) Transcrição do artigo 61.º citado no texto:
1 - Na sede de cada círculo judicial e com competência na respectiva área exerce funções um procurador da República.
2 - ...
3 - ...
Ora, o diploma que nos ocupa - Decreto-Lei 306-A/83 - veio estabelecer, no n.º 4 que aditou ao mencionado Decreto-Lei 267/77, que «junto de cada um dos Ministros da República funcionará uma auditoria jurídica dirigida pelo procurador da República no círculo judicial respectivo».
Daqui decorre que funções que a Lei Orgânica do Ministério Público comete a um procurador-geral-adjunto, atribui-as este Decreto-Lei 306-A/83, de 30 de Junho (editado sem qualquer autorização legislativa), a um procurador da República que, ainda por cima, terá de exercê-las em acumulação com as que lhe são cometidas pelo artigo 61.º da Lei Orgânica do Ministério Público.
O Governo legislou, pois, sem qualquer autorização parlamentar, sobre matéria da competência do ministério público e estatuto dos respectivos magistrados. E isto é quanto basta para se poder dizer que invadiu ele o domínio da reserva (relativa) da Assembleia da República [alínea q) do artigo 168.º, n.º 1, da Constituição].
b) Inconstitucionalidade formal
É também evidente que no diploma em análise falta a assinatura do Ministro da Justiça, uma vez que, pela Lei Constitucional 1/82 (de revisão), a Constituição passou a exigir não apenas a assinatura do Primeiro-Ministro, como até então para os diplomas aprovados em Conselho de Ministros (artigo 203.º, n.º 1, na versão originária), mas também a «assinatura dos ministros competentes em razão da matéria».
O n.º 3 do artigo 204.º da Constituição (texto actual) não faz a distinção que anteriormente se fazia no artigo 201.º, n.º 3, a contrário sensu.
Não se trata de inadvertência de redacção, mas de uma inovação desejada, pois não só foi eliminado o n.º 3 do artigo 201.º, aliás de harmonia com os trabalhos preparatórios (veja Barbosa de Melo, J. M. Cardoso da Costa e J. C. Vieira de Andrade, Estudo e Projecto de Revisão da Constituição, p. 234, observação 3), como se passou a exigir que todos os decretos-leis e não apenas os «decretos-leis que se traduzem em execução directa do Programa do Governo» [artigo 203.º, n.º 1, alínea d), na versão originária, confrontado com a actual redacção da mesma alínea] sejam aprovados em Conselho de Ministros, e daí a necessidade da assinatura do Primeiro-Ministro e dos ministros competentes em razão da matéria.
Ora, o diploma em causa - Decreto-Lei 306-A/83, de 30 de Junho -, não contém a assinatura do Ministro da Justiça do governo que o aprovou, embora ela fosse exigida somente em razão da inserção do novo preceito sobre matéria relativa aos magistrados do ministério público com funções de auditor jurídico junto dos Ministros da República para os Açores e para a Madeira.
III
Decisão
Pelas razões expostas, acordam em declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 6.º do Decreto-Lei 267/77, de 2 de Julho, introduzida pelo artigo 2.º do Decreto-Lei 306-A/83, de 30 de Junho, na parte em que comete aos procuradores da República nos círculos de Ponta Delgada e do Funchal as funções de auditor jurídico junto de cada um dos Ministros da República, por violar o disposto na alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º, bem como no n.º 3 do artigo 204.º, ambos da Constituição.
Lisboa, 12 de Junho de 1984. - Joaquim Costa Aroso (relator) - Jorge Campinos - José Manuel Cardoso da Costa - Mário Afonso - Luís N. Almeida - Antero Alves Monteiro Dinis - Messias Bento - Joaquim Martins da Fonseca - Vital Moreira - José Maria Magalhães Godinho - Raul Mateus [votei a inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 6.º do Decreto-Lei 267/77, introduzida pelo artigo 2.º do Decreto-Lei 306-A/83, na parte referida na decisão, apenas por violação da alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição] - Mário Brito [afigurou-se-me que, declarada a inconstitucionalidade da norma em apreciação por violação da alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, era inútil conhecer da constitucionalidade da mesma norma por violação do n.º 3 do artigo 204.º] - Armando M. Marques Guedes.