Processo 700/06 - 1.ª Secção
Acordam no pleno da Secção de Contencioso Administrativo:
I Relatório
Do acórdão proferido pelo TCA/Norte, que negou provimento ao recurso jurisdicional interposto por Construções Marvoense, Lda., contra a sentença do TAF de Coimbra que, no âmbito de acção administrativa de contencioso pré-contratual, absolveu o município de Coimbra, veio aquela interpor o presente recurso por alegada oposição com o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 6 de Abril de 2000 pretensamente tomado sobre a mesma matéria.Nas respectivas alegações, apresentou as seguintes conclusões:
«A) A única questão que se coloca é a de saber se o facto de, havendo divergência entre o programa de concurso e o anúncio quanto ao prazo de apresentação das propostas, qual deve prevalecer, e o princípio geral, como é doutrina e jurisprudência pacíficas, é o de que "a discrepância entre o que se pôs no anúncio de um concurso público e o que se estabelece no programa do mesmo, resolve-se pela prevalência do programa", pois o programa é o documento destinado a esclarecer os termos da admissão ao concurso e da prossecução deste, o documento que se destina a definir os termos a que obedece o respectivo processo, o programa do concurso é, assim, o seu regulamento "ad hoc", onde se inscrevem, de forma imperativa, os trâmites e formalidades do procedimento adjudicatório, o seu regime fundamental.
B) O anúncio não é um regulamento - é o anúncio de haver um regulamento e não poderia, portanto, apelar-se a ele para considerar o próprio regulamento como não escrito: a Administração autovincula-se a comportar-se procedimentalmente tal como está no programa, incorrendo em invalidade quando dele se desviar.
C) O facto de o anúncio do concurso prever um prazo de 31 dias para a apresentação das propostas diferente do programa de concurso, que apenas prevê um prazo de 30 dias, que, em ambos os casos, se começa a contar do dia seguinte à publicação do anúncio no Diário da República, não significa, só por si, a sua obrigatoriedade, se ele estiver em oposição com o que resulta do programa do concurso, como decidiu e fundamentou o Acórdão do STA de 6 de Abril de 2000, publicado em Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 474, p. 812.
D) O acórdão recorrido limita-se a aderir aos fundamentos da sentença do TAF de Coimbra, apenas referindo brevitatis causa ao facto de se ter citado o acórdão fundamento do presente recurso, para dizer que a doutrina se aplica a outros aspectos do concurso i que denomina de "outros conteúdos mais substanciais do concurso", mas não se aplica quando a divergência diz respeito aos prazos, sendo certo que a citação de Jorge Andrade e Silva e Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira não tem o relevo que o acórdão recorrido lhe atribui, pois nem aquele nem estes se referem à divergência de prazos entre o concurso e o anúncio.
E) O desprezo pelo "princípio do formalismo" revela-se extremamente perigoso, pois a forma significa segurança para os diversos concorrentes a um concurso público de que não há golpadas.
F) Face à adesão feita no acórdão recorrido, repetem-se as críticas que foram dirigidas à sentença do TAF de Coimbra, desde logo considerando que a fundamentação da sentença do TAF de Coimbra, para além de ilegal, não é correcta.
G) A propósito da questão da normatividade ou força jurídica das menções do anúncio quando confrontado com outros documentos, que apenas são patenteados, como é, em geral, o caso do programa e o caderno de encargos, pelo que, como bem refere Mário Esteves de Oliveira, "no confronto das menções do programa do concurso - como na sua confluência - as do anúncio não valem nada: a norma do programa prevalece sobre a indicação constante do anúncio. Aliás, o anúncio não é um regulamento - é o anúncio de haver um regulamento e não poderia, portanto, apelar-se a ele para considerar o próprio regulamento como não escrito: a administração autovincula-se a comportar-se procedimentalmente tal como está no programa (artigo 62.º, n.º 1, do REOP), incorrendo em invalidade quando dele se desviar".
H) Pelo que cai por terra a invocação do princípio da boa fé que se faz na sentença do TAF de Coimbra, sendo certo que os concorrentes "tardios" tomaram conhecimento do constante no programa do concurso e, por isso, não há boa fé que resista.
I) Do mesmo modo, também se afigura despropositada a invocação do princípio da protecção da confiança, pois se não há boa fé não haverá confiança a proteger; pelo menos a confiança dos que «chegaram tarde», porque a dos outros, mais diligentes, é que urge proteger.
J) Acresce que a invocação daqueles princípios que regem o procedimento adjudicatório não pode postergar a efectivação do princípio da formalidade ou do formalismo concursal, pois que este assume aí um papel de destaque, servindo, inclusivamente, como garantia do respeito pelos princípios da imparcialidade, transparência, publicidade, concorrência, princípios estes que foram invocados para justificar a prevalência do anúncio sobre o programa, mas que, na verdade, deveriam ter sido invocados precisamente para justificar o inverso.
K) Conclui-se, assim que, dando prevalência ao anúncio em detrimento do constante do programa, o princípio da formalidade, assim como os princípios da imparcialidade, transparência, publicidade e concorrência foram, afinal, e bem vistas as coisas, "beliscados".
L) A sentença recorrida viola de forma clara e flagrante os princípios básicos de direito concursal e, entre outros, os artigos 62.º, n.º 1, 66.º, n.º 1, 80.º, n.º 1, e 81.º, n.º 1, todos do RJEOP.
M) Deste modo, deve, com fundamento na invalidade do prazo constante do anúncio por contrariar o programa de concurso, ser a presente acção julgada procedente e provada, condenando-se a entidade recorrida em todos os pedidos formulados, como é de lei e de justiça!» Em contra-alegações, o município de Coimbra limitou-se a pedir a improcedência do recurso.
Admitido o recurso (fl. 281), cumpre decidir.
II - Os factos
As instâncias deram por assente a seguinte factualidade:«A) Por anúncio publicado no Diário da República, 3.ª série, n.º 253, de 9 de Maio de 2005, foi publicitado pela Câmara Municipal de Coimbra a abertura do concurso público para execução da empreitada denominada "construção da sede da Junta de Freguesia de Trouxemil" (n.º II, n.º 1.5) - v. documento n.º 2 junto pela autora, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
B) No n.º IV, n.º 3.3, do referido anúncio, sob "Prazo para a recepção de propostas ou pedidos de participação", está previsto o seguinte: "31 dias a contar da publicação (do anúncio) no Diário da República", sendo que no n.º IV, n.º 3.7.2, se enuncia, sob "data", que a abertura das propostas ocorrerá "no dia útil seguinte à data limite para apresentação das propostas", sob "hora", que terá lugar às "9 horas e 30 minutos" e sob "local" que terá lugar no "Salão Nobre da Câmara Municipal de Coimbra" - v. o já referido documento n.º 2.
C) O n.º 4 do programa do concurso, que consta de fl. 1 a fl. 21 do PA - v. ainda o documento n.º 3, junto pela autora, cujo teor se dá por integralmente reproduzido - tem o seguinte teor:
"4 - Entrega das propostas:
4.1 - As propostas (documentos de habilitação e documentos que instruem a proposta de preço) serão entregues até às 16 horas e 30 minutos do 30.º dia a contar do dia seguinte da data de publicação deste anúncio no Diário da República, pelos concorrentes ou seus representantes, na Repartição de Documentação e Atendimento da Câmara Municipal de Coimbra, Praça de 8 de Maio, 3000-030 Coimbra, contra recibo, ou remetidas pelo correio, sob registo e com aviso de recepção."
D) O n.º 5 do programa do concurso tem o seguinte teor:
"5 - Acto público do concurso:
1) O acto do concurso é público, terá lugar no Salão Nobre e realizar-se-á pelas 9 horas e 30 minutos do 1.º dia útil seguinte ao termo do prazo fixado para apresentação das propostas [v. o já mencionado documento n.º 3]."
E) Da "acta do acto público do concurso", cuja certidão foi junta pela autora sob documento n.º 5 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, extrai-se o seguinte:
"Aos 9 dias do mês de Junho de 2005, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Coimbra, reuniu a comissão de abertura de concurso [...] a fim de se proceder ao acto público do concurso para adjudicação da empreitada de construção da sede da Junta de Freguesia de Trouxemil, cujo anúncio de abertura de concurso foi publicado no Diário da República, 3.ª série, n.º 89, de 9 de Maio de 2005.
Pelas 9 horas e 30 minutos declarou-se aberta a sessão, começando por identificar o concurso, procedendo-se de seguida à leitura da lista dos concorrentes pela ordem de entrada das respectivas propostas, em número de quatro e que são as seguintes:
1) Construdémia Construções, Lda.;
2) Construções Marvoense, Lda.;
3) Construtora Pinheirense, Lda.;
4) Consórcio José Nogueira Elias, Lda./RUVILFER, Lda. [...] Os representantes dos concorrentes não formularam qualquer reclamação.
Pela presidente da comissão foram informados os concorrentes que o acto público do concurso prosseguirá quarta-feira, dia 15 de Junho de 2005, pelas 9 horas e 30 minutos.
Nada mais tendo ocorrido nesta sessão do acto público, foi o mesmo suspenso pelas 11 e 15 minutos e para constar foi lavrada a presente acta que vai ser assinada pelos elementos da comissão.
Aos 15 dias do mês de Junho de 2005 foi retomada a sessão do acto público do concurso 'Construção da sede da Junta de Freguesia de Trouxemil', iniciando-se com o seguinte esclarecimento:
O anúncio do concurso em causa foi publicado no Diário da República, 3.ª série, n.º 89, de 9 de Maio de 2005, fixando aí em 31 dias o prazo para apresentação das propostas. Como tal e nos termos do artigo 82.º do Decreto-Lei 59/99, de 2 de Março, este prazo terminou em 9 de Junho de 2005 e não em 8 de Junho de 2005, como, por lapso, se considerou.
Este lapso originou, como consequência imediata, que se realizasse o acto público do concurso em 9 de Junho, ou seja, antes do termo para apresentação de propostas.
Por isso, para além dos concorrentes constantes da lista elaborada no acto público apresentaram ainda proposta, dentro do respectivo prazo, as seguintes concorrentes:
5) Construções Armindo Oliveira, Unipessoal, Lda.;
6) SOTEOL, Lda.;
7) VALTILAJE, Construções, Lda.;
8) HABIGRANJA, Lda.
Assim, considerando que as propostas dos concorrentes acima indicados foram entregues dentro do respectivo prazo; considerando ainda que, por ter sido suspenso o acto público para sanação da irregularidade do documento certificativo das habilitações profissionais do director técnico da empreitada do concorrente Construtora Pinheirense, Lda., não chegaram a ser abertos os invólucros contendo as propostas dos concorrentes, entendeu a comissão de abertura do concurso, por unanimidade, prosseguir com o acto público, incluindo na lista dos concorrentes, os que entretanto, dentro do respectivo prazo, apresentaram propostas; salvaguardados que estão os princípios da igualdade, publicidade, imparcialidade, transparência e intangibilidade das propostas que subjazem ao procedimento concursal e ainda em prossecução do 'favor' do concurso e dos concorrentes.
Encontrando-se presentes os representantes das empresas concorrentes, Sr.ª D.
Maria João Camarneiro Santos, da empresa Construções Marvoense, Lda., Sr. Paulo Andrade Inácio, da empresa Construtora Pinheirense, Lda., Sr. Engenheiro Carlos Alberto Marques Ferreira, da empresa Construções Armindo Oliveira, Unipessoal, Lda., Sr. Gabriel Paulino Ferreira, da empresa SOTEOL, Sociedade de Terraplanagens do Oeste, Lda., a presidente da comissão perguntou se havia alguma dúvida quanto ao esclarecimento ou alguma reclamação. Não tendo sido apresentada nenhuma dúvida ou reclamação, foi retomado o acto público às 9 horas e 50 minutos, informando os concorrentes da admissão do concorrente n.º 3), Construtora Pinheirense, Lda., por ter apresentado dentro do prazo estabelecido o documento exigido na alínea e) do n.º 15.1 do programa do concurso declaração da ANET, comprovativa da validade da sua inscrição; seguidamente a comissão procedeu à leitura da lista dos concorrentes pela ordem de entrada das respectivas propostas, em número de quatro e que são as seguintes:
5) Construções Armindo Oliveira, Unipessoal, Lda.;
6) SOTEOL, Lda.;
7) VALTILAJE, Construções, Lda.;
8) HABIGRANJA, Lda.
Tendo-se verificado que os invólucros exteriores das empresas concorrentes estavam devidamente fechados e lacrados, procedeu-se seguidamente à sua abertura, de onde foram retirados os invólucros que continham os documentos e as propostas.
De seguida procedeu-se à abertura dos invólucros que continham os documentos, tendo sido dado cumprimento preceituado no artigo 91.º do Decreto-Lei 59/99, de 2 de Março.
Pelas 10 horas e 10 minutos foi suspensa a sessão para a comissão de abertura do concurso analisar em sessão reservada a documentação e pelas 10 horas e 30 minutos foram retomados os trabalhos e a comissão de abertura do concurso, após a análise, deliberou por unanimidade a admissão de todos os concorrentes à fase de análise das propostas.
A comissão fixou um prazo de quinze minutos durante o qual os concorrentes ou os seus representantes podem examinar os documentos exclusivamente para efeito de fundamentação de eventuais reclamações contra as deliberações de admissão e as de não admissão dos concorrentes. [...] Tendo terminado o período fixado para consulta de documentos, pelas 10 horas e 45 minutos passou-se então à abertura dos invólucros que continham as propostas dos concorrentes admitidos, que foram devidamente rubricadas.
Às 11 horas a representante da empresa Construções Marvoense, Lda., a Sr.ª D.
Maria João Camarneiro Santos, apresentou reclamação contra a admissão dos concorrentes Construções Armindo Oliveira, Lda., SOTEOL, Lda., VALTILAJE, Construções, Lda., e HABIGRANJA, Lda., por terem sido admitidas fora do prazo, solicitando, assim, a sua exclusão do concurso e a suspensão do acto público.
Abertas as propostas, a comissão procedeu ao seu exame formal e deliberou por unanimidade admitir os concorrentes abaixo mencionados e verificar que estes se propunham a realizar a empreitada pelos valores que a seguir se descriminam, sem inclusão do IVA, indicando-se também os respectivos prazos [...] 1) Construdémia Construções, Lda. [...] 2) Construções Marvoense, Lda. [...] 4) Consórcio José Nogueira Elias Lda./RUVILFER, Lda. [...] 5) Construções Armindo Oliveira, Unipessoal, Lda. [...] 6) SOTEOL, Lda. [...] 7) VALTILAJE, Construções, Lda. [...] 8) HABIGRANJA, Lda. [...] Tendo terminado a abertura dos invólucros que continham as propostas, a comissão fixou um prazo de vinte minutos para, em sessão reservada, examinar formalmente as propostas.
Sendo 12 horas e 45 minutos, foi retomada a sessão e comunicada a decisão relativa à reclamação apresentada pela concorrente Construções Marvoense, Lda., tendo a comissão de abertura considerado, por unanimidade, não dar provimento à mesma, verificada que foi a apresentação das propostas daqueles concorrentes, dentro do prazo fixado no anúncio do concurso, em conformidade com o estipulado no artigo 82.º do Decreto-Lei 59/99, como aliás foi esclarecido no início da sessão do acto público. Mais deliberou, por unanimidade, a admissão de todos os concorrentes, à excepção do concorrente n.º 3), Construtora Pinheirense, Lda. [...] Nesta fase encontrava-se presente a Sr.ª Engenheira Ana Paula dos Santos Marques, representante da empresa Construções Marvoense, Lda.
Às 12 horas e 50 minutos a concorrente Construções Marvoense, Lda., apresentou nova reclamação e a comissão concedeu quinze minutos para análise da mesma.
Quando eram 13 horas foi retomada a sessão e a comissão deliberou que, tendo sido constatado que o pedido e a respectiva fundamentação coincidem com a anterior reclamação já analisada e respondida, se mantém a decisão de admissão dos concorrentes n.os 5), 6), 7) e 8)."
F) No dia 9 de Junho de 2005, entregaram as suas respectivas propostas no balcão da Câmara Municipal de Coimbra a Construções Armindo Oliveira, Unipessoal, Lda.
(pelas 11 horas, com o número de registo 36 588), a SOTEOL, Lda. (pelas 15 horas e 30 minutos, com o número de registo 36 589), a VALTILAJE (pelas 15 horas e 54 minutos, com o número de registo 36 590) e a HABIGRANJA (pelas 16 horas e 13 minutos, com o número de registo 36 591) - v. fl. 312 do PA e ainda o documento n.º 3 junto pela contra-interessada SOTEOL.
G) Na mesma data (9 de Junho de 2005), a presidente da comissão de abertura das propostas enviou a cada uma das concorrentes Construdémia Construções, Lda., José Nogueira Elias, Lda., Construções Marvoense, Lda., Construtora Pinheirense, Lda., RUVILFER, Lda., e ainda às contra-interessadas SOTEOL, Lda., HABIGRANJA, Lda., VALTILAJE, Lda., e Construções Armindo Oliveira, Unipessoal, Lda., uma mensagem por telefax, com o seguinte teor:
"A abertura das propostas referentes ao concurso público da empreitada 'Construção da sede da Junta de Freguesia de Trouxemil' [...] terá lugar no dia 15 de Junho de 2005, pelas 9 horas e 30 minutos, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Coimbra [v.
fl. 315 a fl. 334 do PA]."
H) A autora interpôs recurso hierárquico da decisão que procede à admissão das quatro últimas concorrentes admitidas, em 5 de Julho de 2005, nos termos e com os fundamentos constantes de fl. 448 a fl. 454 do PA - v. ainda a fl. 459 do PA.
I) O referido recurso hierárquico foi indeferido por deliberação de aprovação da Câmara Municipal de Coimbra tomada na sessão de 25 de Julho de 2005 e aposta sobre a proposta elaborada pela comissão de abertura em 14 de Julho de 2005 - v.
documento n.º 1 junto pela autora, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.»
III - O direito
1 - Para melhor se compreender o móbil do presente recurso, importa que revisitemos as decisões que o envolvem.Na acção administrativa especial intentada no TAF de Coimbra pretendia a autora, Construções Marvoense, Lda., obter a anulação da deliberação da Câmara Municipal de Coimbra de 25 de Julho de 2005, que negou provimento ao recurso hierárquico por si interposto do indeferimento da reclamação que tinha apresentado para a comissão de abertura das propostas da admissão fora do prazo previsto para a apresentação das propostas no concurso de empreitada de construção da sede da Junta de Freguesia de Trouxemil de quatro novos concorrentes.
Sustentava, então, que o prazo para a apresentação das propostas só podia ser o fixado no programa do concurso, ou seja, 30 dias, e não o que fora mencionado no anúncio do concurso, isto é, 31 dias.
Aquele tribunal, porém, conferindo prevalência ao anúncio do concurso e, por isso, entendendo que a admissão daqueles concorrentes tinha sido tempestiva, julgou a acção improcedente (de fl. 148 a fl. 162).
O TCA/Norte, em recurso jurisdicional, manteve a sentença recorrida com idênticos argumentos, extraídos basicamente dos artigos 82.º e 94.º, n.º 2, alínea a), do Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, ou RJEOP, instituído pelo Decreto-Lei 59/99, de 2 de Março (de fl. 226 a fl. 242). É esse, agora, o acórdão recorrido.
A recorrente, não convencida com a bondade de tal decisão, e defendendo que esse aresto se encontra em contradição com o Acórdão do STA de 26 de Abril de 2000, proferido no processo 45 808 (acórdão fundamento), pretende que este STA resolva o caso definitivamente através do presente meio de uniformização de jurisprudência.
Vejamos.
2 - É simples de enunciar a questão central, e única, que nos cumpre dilucidar e que se prende com o alcance do programa e do anúncio em matéria de concursos.
Especificando, ou recolocando melhor o tema ao jeito interrogativo, o que importa é saber se, havendo divergência entre o teor do programa e do anúncio do concurso a respeito do prazo estabelecido para a apresentação das propostas, a qual dos dois deve ser concedida prevalência.
O acórdão recorrido fez prevalecer a indicação do anúncio; o acórdão fundamento, diferentemente, inclinou-se para a do programa.
Equacionando a questão, poderíamos começar por dizer que, em matéria procedimental dos concursos, concorrem factores decisivos. Se é indiscutível que toda a série de actos e operações por que se desdobra o procedimento concursal tem de ter um fio condutor desde o princípio até ao fim, numa unidade de escopo que se pode exprimir pela existência de autovinculação a regras e critérios escolhidos pela entidade pública, o que é facto é que eles não podem deixar de se subordinar, igualmente, às regras, normas e princípios juridicamente relevantes, não só de âmbito específico e de matriz concursal, mas ainda de âmbito geral, assente, por exemplo, nos limites que o Código do Procedimento Administrativo também estabelece. O que domina aqui é, portanto, o princípio da conformação, de onde, desde logo, sobressai a noção de submissão do acto administrativo à força do regulamento (se apenas ele estiver em causa), sob pena de anulabilidade (artigos 120.º e 135.º). Mas a este propósito também se poderia dizer que, se o anúncio é meio de publicitação, parece lógico concluir que o conteúdo da publicitação não pode ir além do objecto definido para publicação. Isto é, aquilo que é transmitido tem de estar "de acordo" e conforme o que se quis transmitir.
E isso, regra geral, até nem constitui grande motivo de preocupação. Com efeito, se, quanto a este caso, o programa não tiver estabelecido nenhum prazo para a apresentação das propostas, bem o terá de fazer o anúncio (artigo 82.º) dentro dos limites consignados no artigo 83.º Quer dizer, não se colocam nesta hipótese, habitualmente, dificuldades de conformação.
Problemática é, ao invés, a situação hipotética em que o programa determina expressamente um determinado prazo para a presentação das propostas, que vem a ser contrariado pelo anúncio, ao estabelecer um prazo diferente e mais alargado, nem que seja de um dia mais, como aqui sucedeu. Nesse caso, não haverá conformação do anúncio ao programa, mas discrepância entre ambas as peças no que respeita aos prazos? Como resolver a dissensão? É claro que uma forma airosa e apetecível de sair desta divergência seria, pura e simplesmente, fazer prevalecer a peça procedimental que fixara o prazo mais longo, por ser essa a maneira mais perfeita de acolher o princípio da concorrência na sua maior pujança: porque se alargava o prazo, o interesse público poderia sair beneficiado, na medida em que teoricamente se permitiria alargar o número de concorrentes, abrindo assim o leque de possibilidades de uma escolha mais perfeita e consentânea com o objectivo da empreitada concreta.
Mas essa solução não deixaria de ter os seus riscos. É que a concorrência alargada à custa de uma irregularidade assente na divergência de estipulações procedimentais, se tentadora para o interesse público - pela eventualidade de uma maior presença de candidatos -, pode resvalar em concreto para uma fonte de conflitos de interesses com os concorrentes que se apresentaram ao concurso em observância estrita do programa e do prazo por ele fixado. Com efeito, para os concorrentes que cumpriram o período estipulado no programa de concurso não é indiferente o alargamento do prazo, nem a eventual ampliação da concorrência, porque quantos mais opositores esse alargamento permitir menores poderão vir a ser as suas chances de selecção e de adjudicação.
2.1 - Vejamos em primeiro lugar os argumentos em abono da tese da prevalência do programa.
Segundo o artigo 66.º do Decreto-Lei 59/99, de 2 de Março (RJEOP), o programa do concurso «destina-se a definir os termos a que obedece o respectivo processo».
Nesse sentido, ele conterá um conjunto de prescrições que deverão ser observadas, nomeadamente as que constam da alínea a) do n.º 1 do artigo. E, na medida em que define as regras e condições do concurso, desde as de admissão dos concorrentes e da apresentação das propostas, até aos critérios da adjudicação, percorrendo assim todo o iter procedimental, ele, pelo seu carácter imperioso e vinculativo, tem sido, de um modo geral, tomado como o próprio regulamento do concurso (Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in Concursos e Outros Procedimentos de Adjudicação Administrativa, Almedina, 2003, p. 135; Maria Olazabal Cabral, in O Concurso Público nos Contratos Administrativos, Almedina, 1997, pp. 234-244;
também, Marcelo Rebelo de Sousa, in «O concurso público na formação do contrato administrativo», p. 45, parecer da PGR n.º 80/99, in Diário da República, 2.ª série, de 11 de Julho de 1990; Acórdãos do STA de 14 de Janeiro de 2003, processo 01828/02, e de 21 de Maio de 2003, processo 0735/03).
É por causa dessa natureza que a violação das suas «definições», vinda ela da entidade pública ou dos concorrentes, está sujeita ao regime da invalidade jurídico-administrativa (M. Esteves de Oliveira, ob. cit. e loc. cit.). Quer isto dizer que, neste domínio, a regulação assim estabelecida integra um bloco de legalidade a que se deve respeito (Acórdãos do STA de 22 de Maio de 2003, processo 0808/03, de 1 de Julho de 2003, processo 0491/03, e de 30 de Julho de 2003, processo 01275/03).
Neste sentido, não nos deveríamos deixar impressionar pelo teor do artigo 82.º Quando ele diz que as propostas devem ser apresentadas no prazo fixado no anúncio, não está a afirmar nenhuma regra excludente, isto é, não está a afastar a possibilidade de nenhuma outra peça procedimental também o fixar. Contudo, também o programa pode, previamente, estabelecer o prazo para a apresentação das propostas, o que até está em sintonia com a estatuição genérica da alínea a) do n.º 1 do artigo 66.º do RJEOP («O programa de concurso [...] especificará as condições estabelecidas neste diploma para admissão dos concorrentes e apresentação das propostas») ou com o disposto na alínea f) do mesmo número («O programa de concurso [...] especificará quaisquer disposições especiais não previstas neste diploma nem contrárias ao que nele se preceitua relativas ao acto do concurso»). Isto, mesmo sem esquecer o regime da realização de despesas públicas com as empreitadas de obras públicas, que expressamente prevê a consignação no programa de concurso da menção da data limite para a entrega das propostas [cf. os artigos 40.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 55/95, de 29 de Março, e 89.º, alínea c), do Decreto-Lei 197/99, de 8 de Junho, diploma que procedeu à revogação daquele]. Aliás, se o programa do concurso teria de obedecer a modelo a aprovar por portaria do ministro (v. o artigo 62.º, n.º 1, do Decreto-Lei 59/99), então basta ver o n.º 4.º da Portaria 104/2001, de 21 de Fevereiro, que aprovou o respectivo modelo, para se perceber que «As propostas [...] serão entregues até às [...] horas do [...] dia (incluindo na contagem sábados, domingos e feriados), sendo este prazo contado a partir do dia seguinte ao da publicação do anúncio no Diário da República (ou da recepção do convite), pelos concorrentes ou seus representantes, na [...] (entidade e endereço), contra recibo, ou remetidas pelo correio, sob registo e com aviso de recepção». Por tudo isto se vê que esse papel definidor do prazo para a entrega das propostas cabe primacialmente ao programa (aliás, o anúncio, em princípio, só serve para isso mesmo, para divulgar o que já existe, o que está já predefinido).
O caminho a seguir seria, pois, aquele que haveria de conduzir até à energia «normativa» do programa. Tendo ele uma feição regulamentar, como se disse, e não se reconhecendo essa natureza ao anúncio, a falta de conformação deste àquele resolver-se-ia pela prevalência da força jurídica emanada do primeiro (M. Esteves de Oliveira e outro, ob. cit. p. 270). E, por fim, nem se viria dizer que, com isso, os concorrentes que se serviram do prazo mais longo - o estabelecido no anúncio - poderiam vir a ficar confrontados com uma decisão surpresa e inesperada, se não são admitidos ao concurso com fundamento em extemporaneidade das suas propostas. É que para eles se terem candidatado, com toda a certeza o terão feito depois de previamente consultarem o programa do concurso e nessa análise, por certo, terão reparado que o prazo constante dessa peça (programa) era inferior ao do anúncio.
Sendo assim, se o programa é imperativo, porque tem feição regulamentar que ao anúncio não é reconhecida, em caso de divergência de estipulações entre aquele e este sobre determinada matéria (por exemplo, sobre o prazo de entrega das propostas) prevalece o que sobre o assunto o primeiro prescrever.
Este é também o sentido do acórdão fundamento (de fl. 275 a fl. 279: Acórdão do STA de 26 de Abril de 2000, processo 045808).
2.2 - Argumentos que seriam procedentes, não fosse a existência de melhores motivos para se acolher a solução contrária, o que aqui, desde já, manifestamos.
Com efeito, o anúncio do concurso não deixa de merecer um importante destaque no diploma. Na verdade, se ele serve propósitos de publicitação (artigos 52.º e 80.º do EJEOP), também é uma peça vinculante do concurso (Alexandra Leitão, in A Protecção Judicial dos Terceiros nos Contratos da Administração Pública, Almedina, pp. 205-207).
Por ele se divulgam regras, critérios e todos os aspectos jurídica e tecnicamente relevantes a todos os potenciais interessados, de modo que conheçam o que está em jogo e saibam com o que contar. São, essencialmente, aspectos formais que se publicitam, como a identidade da entidade que põe a obra a concurso, o local e prazo de apresentação das propostas, critérios de adjudicação e aspectos relativos ao contrato a celebrar (v. o anexo IV ao referido diploma; M. Olazabal Cabral, ob. cit., p.
146). Também aqui, portanto, há autovinculação da Administração, de maneira a cumprir princípios como os da igualdade, concorrência e transparência, por exemplo.
E prova de que o anúncio é vinculante, demonstra-o o artigo 82.º do RJEOP - referente, precisamente, ao tema que neste momento se discute - ao estabelecer que «As propostas devem ser apresentadas no prazo fixado no anúncio do concurso, sob pena de não serem admitidas» (destaque nosso).
Pela maneira como o preceito está redigido, até parece que nada a esse respeito (a respeito do prazo da apresentação das propostas) precisa de estar definido no programa do concurso. E isso em parte até é verdade, uma vez que o artigo 66.º nada expressamente estatui de forma imperativa sobre esse aspecto ao tratar das especificações que devem constar do programa.
Pode parecer subtil e mal perceptível, mas está lá, na norma, o dever que é imposto aos interessados. Repare-se: a disposição legal não diz somente que o anúncio é a peça onde deve estar o prazo da apresentação das propostas. Ela assinala duas coisas mais:
A primeira é a de que esse «prazo» é o «fixado no anúncio». Fixado no anúncio e não, simplesmente, «mencionado», «referido», «contido» ou «divulgado». O legislador quis que a fixação fosse tarefa de «determinação» e «definição» que caberia ao anúncio.
Logo, não é mais possível fazer de conta que o legislador não estava atento ao que escreveu e que não se quis exprimir desse modo (artigo 9.º, n.os 2 e 3, do Código Civil);
A segunda é a de que as «propostas devem ser apresentadas no prazo (ali) fixado» (parêntesis nosso). Esta prescrição é dedicada aos potenciais concorrentes; é para eles que a norma se dirige. Ora, se é assim, tanto que a não observância do que ali está estatuído conduz à não admissão das propostas [«sob pena de não serem admitidas»; v. também o artigo 94.º, n.º 2, alínea a)], então parece óbvio que os interessados apenas ao anúncio devem obediência.
O legislador quis conferir ao anúncio, pelo especial destaque que lhe conferiu a propósito do prazo para a apresentação das propostas, uma especialíssima função que vai para além dos limites da mera divulgação. Será estritamente divulgador de algo que preexista e quando preexista, sem dúvida. Mas ele terá um papel autónomo e essencial nos casos em que o programa nada a esse respeito tiver estabelecido. São circunstâncias, essas, em que se deve dar ao anúncio um papel definitório ou dispositivo sobre esse peculiar desiderato. É aí que o artigo 82.º apresenta um cariz acentuadamente funcional, podendo até dizer-se ser de reserva a missão que em mais lado nenhum do diploma o legislador quis conferir a qualquer outra peça procedimental.
E assim sendo, também nos casos em que o programa tiver estabelecido prazo de apresentação das propostas, na falta de conformação entre aquele e o anúncio, deverá atender-se ao que deste resulta.
Aliás - outro argumento em defesa desta tese - sendo a mesma a entidade que estabelece as prescrições do programa e o conteúdo do anúncio, pode até dizer-se que ela terá querido que prevalecesse o prazo que fez consignar na peça posterior.
Pois, de facto, sabendo ela própria aquilo que anteriormente tinha feito incluir no programa, essa será mais uma razão a apontar no sentido de que a divergência detectada se deve resolver em favor da posição manifestada posteriormente. Caso em que, diríamos nós nesse caso, à vontade legislativa - a consignada no artigo 82.º - se juntara a vontade administrativa.
E, depois, sempre ainda nos restaria o argumento retirado da própria dinâmica da lei.
É que, assinalar-se que o programa é dominante apenas por causa do seu carácter regulamentar, isso equivaleria a uma afronta ao valor reforçado emanado de um decreto-lei, necessariamente de hierarquia superior. E não se toleraria, então, que uma disposição regulamentar do programa fizesse claudicar a robustez do anúncio, quando norma legal - como é a do artigo 82.º do Decreto-Lei 55/99 - a este manda atender no que concerne ao prazo para a apresentação das propostas.
Depois de todo o exposto, ainda se poderia dizer, em casos como o presente, que o alargamento do prazo do anúncio em relação ao do programa gera na esfera dos potenciais interessados uma confiança digna de tutela e uma expectativa eventualmente legítima que a boa fé, quando exista, obriga a proteger.
Posto isto, somos a entender que se deveria atender ao prazo de 31 dias para a apresentação das propostas. E como ele se contaria a partir do dia seguinte ao da publicação do anúncio no Diário da República, iniciar-se-ia no dia 10 de Maio de 2005 - tendo em conta que a publicação ocorreu no dia 9 desse mês (v. o ponto A da matéria de facto) - para terminar impreterivelmente no dia 9 de Junho de 2005, pelas 16 horas e 30 minutos [v. o n.º 4 do programa, constante da alínea C) da matéria de facto].
Significa que a deliberação praticada pela comissão de abertura do concurso no acto público do concurso não foi ilegal (por esse motivo), tal como do mesmo vício não sofre a deliberação de 25 de Julho de 2005, tomada no âmbito do recurso hierárquico.
E porque também assim ajuizou o acórdão recorrido, nenhuma censura ele merece.
IV Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.Custas pela recorrente Construções Marvoense, Lda.
Taxa de justiça: 10 UC [artigo 73.º, alínea D), n.º 3, do Código da Custas Judiciais], reduzida, porém, a metade [artigo 73.º, alínea E), n.º 1, alíneas a) e d), do Código da Custas Judiciais] e procuradoria em 40% (artigo 41.º do Código da Custas Judiciais).
Cumpra o artigo 152.º, n.º 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Lisboa, 6 de Fevereiro de 2007. - Cândido de Pinho (relator) - Azevedo Moreira - Santos Botelho - Rosendo José - Angelina Domingues - Pais Borges - João Belchior - Jorge de Sousa - Costa Reis - Adérito Santos - Rui Botelho - Madeira dos Santos - São Pedro - Políbio Henriques - Fernanda Xavier - Freitas Carvalho - Edmundo Moscoso.