O Presidente da República, nos termos dos artigos 278.º, n.os 1 a 3, e 279.º da Constituição e dos artigos 57.º e seguintes da Lei 28/82, de 15 de Novembro, requereu que em sede de fiscalização preventiva seja apreciada pelo Tribunal Constitucional a constitucionalidade dos artigos 1.º e 3.º do Decreto 32/III da Assembleia da República, que cria um imposto extraordinário sobre rendimentos colectáveis sujeitos a contribuição predial, imposto de capitais e imposto profissional, aprovado em 23 de Setembro do ano em curso e recebido na Presidência da República para promulgação em 29 do mesmo mês. O prazo para emissão de pronúncia foi encurtado para 8 dias. Invoca os seguintes fundamentos:
1) De harmonia com o seu artigo 1.º, o decreto em apreço lança ex novo um imposto extraordinário que incide sobre determinados rendimentos auferidos no ano de 1982 [alíneas a), b) e d)] e no ano de 1983 [alínea c)], mas reportando sempre, em qualquer dos casos, a incidência de tal imposto a factos já inteiramente verificados antes da sua entrada em vigor e que já foram objecto da respectiva tributação, de acordo com a legislação vigente;
2) Embora a Constituição não contenha expressamente uma norma impeditiva da retroactividade da lei fiscal, o princípio da legalidade tributária, consagrado no artigo 106.º, n.º 2, o princípio do Estado de direito democrático, constante do preâmbulo e dos artigos 2.º e 9.º, alínea b), bem como os princípios da confiança e da capacidade contributiva dos cidadãos, apontam para a consagração constitucional implícita da não retroactividade da lei fiscal. Em nenhum caso, porém, a retroactividade da lei fiscal será constitucionalmente admissível sempre que, por indevida, implicar uma violação demasiado acentuada do princípio da confiança do contribuinte. No caso das normas cuja inconstitucionalidade ora se questiona verifica-se que a incidência deste novo imposto era improvável e imprevisível no momento em que os factos ocorreram, com a agravante de as respectivas taxas serem em si mesmas significativas e o seu pagamento se processar por inteiro e de uma só vez.
Sustenta-se ainda que o imposto extraordinário, criado pelo artigo 1.º do decreto em análise, ao incidir sobre rendimentos passados, nomeadamente rendimentos do trabalho, é de duvidosa constitucionalidade, uma vez que, para além da natureza e grau da sua retroactividade, se mostra acentuadamente desconforme ao princípio da confiança e legítimas expectativas dos contribuintes.
Deste modo, os artigos 1.º e 3.º do decreto em causa violam materialmente o princípio da legalidade tributária, previsto no n.º 2 do artigo 106.º da Constituição, e o princípio do Estado de direito democrático, consagrado no preâmbulo e com tradução expressa nos artigos 2.º e 9.º, alínea b), designadamente os princípios da confiança e da capacidade contributiva do cidadão traduzidos nas legítimas expectativas no domínio das suas obrigações fiscais.
O processo seguiu os termos devidos. Notificado, o Presidente da Assembleia da República, nos termos do artigo 54.º da Lei 28/82, veio informar que a Comissão Permanente resolveu não se pronunciar sobre o pedido de fiscalização preventiva de constitucionalidade e, do mesmo passo, fez envio de cópia do relato da sessão da Assembleia da República em que foram recusados os recursos apresentados quanto à admissibilidade daquela proposta de lei.
No curtíssimo prazo fixado não se poderão debater, com a profundidade devida, os complexos problemas que se levantam.
Tudo visto:
Os artigos 1.º e 3.º do Decreto 32/III da Assembleia da República, enviado ao Presidente da República para promulgação, estão assim redigidos:
ARTIGO 1.º
É criado um imposto extraordinário cujo produto reverte integralmente para o Estado e que incide separadamente:a) Sobre os rendimentos colectáveis respeitantes ao ano de 1982 sujeitos a contribuição predial;
b) Sobre os rendimentos colectáveis respeitantes ao ano de 1982 sujeitos a imposto de capitais, secções A e B, exceptuados os juros de obrigações emitidos por qualquer sociedade e depósitos confiados a estabelecimentos legalmente autorizados a recebê-los;
c) Sobre as remunerações certas e permanentes respeitantes aos meses de Janeiro a Setembro de 1983:
I) Sujeitas a imposto profissional;
II) Dos servidores do Estado a qualquer título, civis e militares, e de qualquer dos seus serviços, estabelecimentos e organismos, ainda que personalizados, compreendidos os órgãos de coordenação de assistência, incluindo os titulares de cargos políticos;
III) Dos servidores das autarquias locais e das suas associações;
IV) Dos servidores das pessoas colectivas de direito público, de utilidade pública e utilidade pública administrativa, incluindo instituições privadas de solidariedade social;
V) Dos servidores das cooperativas, suas federações e uniões;
VI) Percebidas por quaisquer pessoas que trabalhem, a qualquer título, para pessoas singulares ou colectivas;
d) Sobre o rendimento colectável dos que exerçam por conta própria algumas das actividades constantes da tabela anexa ao Código do Imposto Profissional relativo a 1982.
ARTIGO 3.º
As taxas do imposto extraordinário previsto na presente lei são as seguintes:a) Sobre os rendimentos previstos nas alíneas a), b) e d) do artigo 1.º - 6%;
b) Sobre os rendimentos previstos na alínea c) do artigo 1.º - 2,8%.
A questão suscitada gira fundamentalmente em torno do problema da retroactividade de um decreto da Assembleia da República.
Todavia, o Tribunal Constitucional é livre para fundamentar uma eventual declaração de inconstitucionalidade, nos termos do n.º 5 do artigo 51.º da Lei 28/82, na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles que foram invocados pelo Presidente da República.
O Decreto 32/III será assim analisado não só em função da questão de inconstitucionalidade levantada pelo Presidente da República, como ainda à luz de outras regras constitucionais cuja eventual violação possa suscitar dúvidas.
Em resumo, abordar-se-ão de seguida, numa óptica resolutiva, os seguintes pontos:
I) Se o princípio da irretroactividade é constitucionalmente consagrado ou, não sendo, se a retroactividade que caracteriza os artigos 1.º e 3.º do Decreto 32/III atingiu um grau tal que se possa ter por violador de outras regras constitucionais;
II) Se houve violação das regras formais que constitucionalmente regem a articulação dos diplomas que criam impostos com a lei anual do orçamento do Estado;
III) Se houve infracção de regras materiais da constituição fiscal;
IV) Se houve violação dos artigos 229.º, alínea f), e 255.º da Constituição.
I - Quanto ao primeiro ponto
1 - Perspectiva histórica e antecedentes imediatos:Uma das mais importantes noções do direito intertemporal é incontestavelmente a noção de retroactividade.
Em regra, reconheceu-se sempre que a retroactividade é um mal, que a lei não deve ter efeitos retroactivos e que toda a retroactividade é uma injustiça (Pires da Cruz, Aplicação das Leis no Tempo, p. 201).
Mas uma coisa é a consagração do princípio da não retroactividade da lei, outra é conceder-se a tal princípio dignidade constitucional.
Apenas na Carta Constitucional de 1826 o princípio foi consagrado, no seu artigo 141.º, § 2.º Mas desapareceu de todos os textos constitucionais subsequentes. Mais ainda: todas as tentativas de inserção de tal princípio foram sistematicamente rejeitadas.
Assim, quando na Assembleia Nacional Constituinte de 1911 o Dr. Bernardino Roque propôs a inclusão do princípio da não retroactividade das leis, que o primeiro projecto de Constituição inserira no n.º 50 do artigo 54.º e o segundo eliminara, não houve, além do proponente, quem defendesse tal proposta, que foi vivamente combatida pelos constituintes Afonso Costa e Barbosa de Magalhães, tendo sido retirada pelo proponente.
E observe-se que já na altura os principais argumentos aduzidos a favor da não inclusão do princípio foram os seguintes:
a) O princípio da retroactividade não tinha já, nem podia ter, a força, a intangibilidade que tivera antigamente, quando predominavam no direito a orientação individualista e a doutrina dos princípios e dos direitos absolutos, imutáveis e intangíveis;
b) A Constituição da República tinha de tomar uma posição mais social, para não dizer socialista, e tinha de acompanhar a evolução jurídica que se fizera no sentido de negar a tais direitos e princípios esses caracteres;
c) A necessidade de dar a algumas leis efeito retroactivo não só nas épocas excepcionais, como sejam as de guerra, mas mesmo em épocas de normalidade, para defesa de superiores interesses públicos, fizeram que esse princípio perdesse a sua importância, deixasse de se considerar constitucional, para ficar sendo um princípio de interpretação das leis de direito privado, tendo, portanto, o seu lugar próprio nos respectivos códigos;
d) As leis não se fizeram só para regular o futuro. São inúmeros os exemplos em todos os tempos e em todos os países;
e) Não se trata de fazer observar leis ainda não existentes, trata-se de sujeitar ao domínio de uma lei nova actos jurídicos realizados no domínio de uma lei anterior, o que pode ser aconselhado e até imposto pelos interesses e necessidades públicas, ou, como se dizia antes, pela razão de Estado, ou pela salvação pública (cf. parecer e relatório do Provedor de Justiça de 1977, processo 76-D1-8).
Na mesma linha, e no domínio da vigência da Constituição de 1911, o Prof.
Oliveira Salazar escrevia:
Pode, portanto, o poder legislativo ordinário, sem ir de encontro a qualquer garantia individual [...], fazer leis retroactivas ou dar efeito retroactivo às leis.
(Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, ano IX, p. 54.) Do mesmo modo, a Constituição de 1933 não deu acolhimento a tal princípio, com a ressalva, já aliás existente na Constituição de 1911, referente a normas penais. Assim, a justo título, Cabral de Moncada, a propósito da lei fundamental de 1933, escreveu:
A Constituição actual não sanciona, não vincula, o legislador ordinário. Este pode dar efeito retroactivo a todas as leis que queira. Falta-nos aqui esta garantia de liberdade dos cidadãos. (Lições de Direito Civil, Coimbra, 1939, 1.º vol., p. 249.) No mesmo sentido, isto é, admitindo a retroactividade das normas de direito público em geral, sem excluir a lei fiscal, que particularmente cita, se pronunciaria alguns anos mais tarde Marques Guedes (cf. «Interpretação, aplicação e integração das normas jurídicas», in Ciência e Técnica Fiscal, n.os 44-45, 1962).
Prosseguindo a mesma tradição, a Constituição de 1976, no seu texto originário, não tutelou o princípio em questão, salvo pelo que respeita a certas normas penais (artigo 29.º).
Não obstante isso, alguns autores defenderam a inconstitucionalidade de leis que estabelecessem em matéria fiscal a retroactividade, entre eles, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição Anotada, Coimbra, 1978, p. 241). Pelo contrário, outros autores, como Brás Teixeira, sustentaram doutrina oposta (Princípios de Direito Fiscal, Coimbra, 1979, pp. 134 e 135).
Foi esta última a posição uniforme e constantemente seguida pela Comissão Constitucional e sempre ratificada pelo Conselho da Revolução (v., entre outros, Pareceres n.os 25/79, 5/81, 16/81, 28/81 e 14/82).
Sentindo a necessidade de a questão ficar suficientemente esclarecida, Francisco Sá Carneiro, em Uma Constituição para os Anos 80, inclui, no artigo 96.º do seu projecto, um n.º 4, a que deu a seguinte redacção:
Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição e cuja liquidação e cobrança se não façam nas formas previstas na lei, que em caso algum poderá ser dotada de eleitos retroactivos.
E em comentário escreveu:
O n.º 4 acrescentou ao n.º 3 do actual artigo 106.º o princípio da não retroactividade da lei fiscal.
Por razões idênticas, Jorge Miranda, no seu Projecto de Revisão Constitucional, apresentou proposta similar, escrevendo:
No n.º 3.º consagra-se a regra da não retroactividade da lei tributária, que alguns entendem já incluída na reserva de lei formal (assim, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição ..., cit., p. 241, e A. L. de Sousa Franco, Sistema Financeiro e Constituição Financeira, no texto constitucional de 1976, in Estudos sobre a Constituição, III, p. 534). Esta regra é um corolário do princípio da legalidade e também uma garantia fundamental do princípio da capacidade contributiva, por sua vez corolário do princípio geral da igualdade (p. 90).
Por seu turno, Barbosa de Melo, Cardoso da Costa e Vieira de Andrade escreveram, no seu Estudo e Projecto de Revisão da Constituição - Organização Económica:
O n.º 3 consagra uma clássica garantia dos cidadãos em matéria de impostos e reproduz integralmente o actual n.º 3 do artigo 106.º Isto quer dizer que não se acolheu a sugestão tanto do projecto Sá Carneiro como do projecto Jorge Miranda no sentido de incluir aqui o princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal (rectius, de normas de tributação agravadoras). Entende-se com efeito que seria injustificado e sobretudo extremamente perigoso consignar na Constituição, com tal latitude, semelhante princípio: a verdade é que a restrição e o sacrifício que os impostos representam não podem equiparar-se aos das sanções penais [...] (p. 125).
2 - Perspectiva actual:
Consubstanciando estas preocupações, foram apresentadas várias propostas de alteração ao artigo 106.º da Constituição visando a inclusão do princípio da não retroactividade da lei fiscal. Contudo, depois de longos debates, durante os trabalhos de revisão de 1982, o poder constituinte derivado entendeu não dar acolhimento a tais propostas (Diário da Assembleia da República, 2.ª série, suplemento ao n.º 18, de 21 de Novembro de 1981).
Tudo isso levou Sousa Franco, já depois de concluída a revisão da Constituição de 1976, a escrever:
I - O legislador de 1976 estabeleceu preceitos orientadores de uma reforma fiscal que obviamente desejava. O facto de ela ter permanecido letra morta - quando não invertida pela prática - não impede que o quadro essencial em matéria de impostos se mantenha, com ligeiras alterações.
II - Apesar das críticas que neste ponto vêm sendo formuladas, a revisão constitucional não consagrou o princípio da irretroactividade das leis fiscais. Na verdade, o artigo 106.º, n.º 3, C76 (inalterado) exige que exista lei prévia e respeito pelos princípios constitucionais na criação de impostos, atribuindo direito de resistência aos cidadãos relativamente a impostos que não hajam sido criados de acordo com a Constituição e cuja liquidação e cobrança não obedeçam à lei; mas não proíbe à lei que cria os impostos a possibilidade de dispor retroactivamente. Também o não faz qualquer outro preceito. No entanto, a garantia de não retroactividade das leis foi consideravelmente alargada, em diversos outros domínios, nesta revisão constitucional. No artigo 18.º, n.º 3, CR82, determina-se que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias não podem ter efeito retroactivo; no artigo 29.º, n.º 1, estende-se o princípio da irretroactividade da lei incriminadora às medidas de segurança, assim como os seus n.os 3 e 4 alargam às medidas de segurança as garantias da não retroactividade da lei criadora das penas e medidas de segurança e do não agravamento retroactivo da penalidade ou da medida de segurança aplicável; e o artigo 19.º, n.º 4, CR82, determina que a declaração do estado de sítio não pode afectar o princípio da não retroactividade da lei criminal.
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Salvo diferente interpretação - que fosse ressuscitar a velha argumentação individualista liberal sobre a natureza e fundamento do imposto, que parece alheia ao próprio modelo doutrinário, compromissório também neste domínio, que é o da Constituição -, nem este nem outro preceito evita ou proíbe constitucionalmente a retroactividade da lei fiscal. Infelizmente, digamo-lo com clareza; mas o intérprete não pode substituir o legislador, fazendo-lhe dizer o que não disse só por agradar aos seus conceitos ou preconceitos. (Revista da Ordem dos Advogados, ano 42, Setembro-Dezembro 1982, «A Revisão da Constituição Económica», pp. 629 e 630.) No passo acabado de transcrever não há dúvida que se resume a situação presente do direito constitucional português no que toca ao ponto em questão:
efectivamente, de nenhum preceito ou princípio da Constituição de 1976 pode retirar-se uma proibição genérica de leis fiscais retroactivas.
Desde logo, não se poderá ir buscar a proibição da retroactividade da lei fiscal ao artigo 18.º, n.º 3, pois, mesmo para quem considere o direito de propriedade como um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias para efeitos daquele artigo 18.º, as imposições tributárias, porque têm um fundamento autónomo, não podem ser vistas como restrições para aquela finalidade.
Hão-de antes ser consideradas como limites implícitos do referido direito de propriedade.
Por outro lado, também não se pode extrair do princípio da legalidade tributária a dita proibição.
É certo que a invocação deste princípio vem sendo um dos pilares fundamentais da doutrina que propugna a tese de inconstitucionalidade de leis fiscais retroactivas. Dizia-se, com efeito, que, na falta da norma que expressamente consagrasse a irretroactividade da lei fiscal, a sua aplicação retroactiva deveria entender-se vedada por força do princípio da legalidade. O raciocínio era esquematicamente o seguinte: o princípio da legalidade do imposto não esgotava o seu conteúdo e significado pela simples imposição da sua criação por lei parlamentar. O seu fundamento encontrava-se em razões de segurança jurídica e protecção da confiança, que objectivam a possibilidade dada ao contribuinte de conhecer os encargos tributários com base, directa e exclusivamente, na lei (cf. Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, 1974, vol. I, p. 191).
A verdade, porém, é que a Constituição de 1976, reiterando a consagração do princípio da legalidade da lei tributária, conferiu-lhe o significado constante do artigo 106.º, ao estatuir que «os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes» e ainda que «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição e cuja liquidação e cobrança se não façam nas formas prescritas na lei».
Logo, uma primeira constatação, aliás evidente, a de que os constituintes não verteram para o texto da lei fundamental, sequer como elemento formal do princípio da legalidade, a prescrição da irretroactividade da lei fiscal.
A lei fundamental, ao recolher o princípio da legalidade, fê-lo numa dimensão que explicitamente aparta a questão da retroactividade: recolheu, em suma, o princípio da legalidade em múltiplas incidências, mas não no que tange à aplicação da irretroactividade.
Mantêm, é certo, alguns autores que, embora não expresso, o princípio da não retroactividade decorre, de forma implícita, do princípio da legalidade.
Trata-se, porém, de tese que não pode ser acolhida, pois, tal como a Comissão Constitucional já considerou, «o princípio da legalidade é, em si e por si, insuficiente para dele se extrair, como consequência, um princípio constitucional proibitivo da retroactividade» (Parecer 25/81, in Pareceres ..., vol. 16, p. 265). A mesma Comissão, noutra ocasião, escreveu também:
No tocante ao princípio da legalidade tributária, também ele, em si mesmo e articulado com o princípio da legalidade orçamental (ou da anualidade dos impostos, artigo 108.º), não se mostra inconciliável com a retroactividade de leis fiscais. É o que parece mais razoável e conforme ao entendimento natural das disposições constitucionais pertinentes, mormente do artigo 106.º, e, quando menos, tal regra ou directiva, «sobretudo em face das razões históricas [...], não é suficiente para conduzir à conclusão de um princípio não escrito de irretroactividade da lei fiscal nas leis constitucionais». (Cf. Parecer 14/82, in Boletim do Ministério da justiça, n.º 318, p. 224.) Insiste, contudo, alguma doutrina em considerar decorrente do princípio da legalidade a proibição da lei fiscal retroactiva, mas sob um outro perfil, centrado agora na questão de saber se há ou não razões análogas às que, no domínio do direito penal, levaram à consagração como tête de chapitre da regra nullum crimen, nulla poena sine lege proevia, de forma a aplicar no direito fiscal idêntico princípio: nullum tributum sine lege proevia. Diga-se que esta perspectiva não pode colher pela diversidade da natureza dos conceitos que tem por referência. De facto, não pode dizer-se que a ratio de uma disposição como a do artigo 29.º da lei fundamental, ou mesmo do n.º 7 do artigo 32.º, se identifica com o fundamento do princípio da legalidade a que há-de obedecer-se no domínio fiscal. No primeiro, estabelece-se, como decorrência da regra da legalidade, a proibição da incriminação, definição de perigosidade, pena ou medida de segurança que não derivem da lei anterior, vedando-se, assim, o agravamento retroactivo, mas admitindo-se a aplicabilidade retroactiva da lex mitior.
No n.º 7 do artigo 32.º consagra-se a regra do juiz natural, proibindo-se que uma causa criminal possa ser subtraída a tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
Ora, é fácil de ver que estes fundamentos, por estrutura e natureza, não são transferíveis, à luz de qualquer artificial transmutação, para o campo do direito fiscal. Só o seriam se o imposto, como ente jurídico, fosse reconduzível à figura de sanção penal, o que é, a todas as luzes, um absurdo.
O tributo é hoje encarado como um instrumento de política, social e, em qualquer regime, ele cumpre a sua função típica, tradicional, de colectar receitas para as afectar às despesas exigidas pelo funcionamento e intervenção do Estado na vida social (função fiscal), de distribuição equitativa dos encargos públicos pelos contribuintes (função distributiva) e, mais intensamente desde a terceira década do nosso século, tem sido utilizado como meio actuante na definição de políticas económico-financeiras integrantes das welfare policies do nosso tempo (função económica).
Outro dos argumentos igualmente utilizados por quem vê na não retroactividade da lei fiscal um princípio constitucional é o de que a lei tributária retroactiva viola o princípio do Estado de direito democrático.
Vejamos, porém, se assim é.
Ao elevar tal princípio a fundamento da ordem constitucional, o legislador constituinte não pretendeu esquecer, nem esqueceu, toda a evolução das instituições políticas que compõem o Estado, do seu papel e das suas relações com a sociedade e o indivíduo. O sentido do princípio proclamado há-de colher-se, não numa formulação teorética, mas sim sobre a globalidade da ordem jurídica constituída, na exacta ponderação da sua evolução. Daí que o Estado de direito dos nossos dias não possa ser enformado pelos mesmos momentos caracterizadores do Estado sujeito à lei e ao direito do período liberal. Se assim fosse, ficariam sem sentido as conquistas sociais que encontraram sede na lei fundamental de 1976. A ideia da realização da justiça não se obtém já, como no período liberal, pela limitação dos fins e tarefas do Estado à garantia da liberdade e segurança da pessoa e da propriedade individual. As ideias de justiça, liberdade e segurança passaram, no Estado social de direito - no Estado de direito democrático, como se diz na actual Constituição -, a ter conotações diversas que inculcam a necessidade da intervenção do poder político, sacrificando muitas vezes o individual ao social, respeitados os direitos fundamentais. Nasce, assim, o conceito de justiça social.
O princípio do Estado de direito resultará, pois, de uma clara dialéctica, de um constante equilíbrio entre outros princípios ordenadores, havendo, em cada momento, que sopesar os interesses em questão em termos de se vislumbrar se há ou não subversão do princípio.
Será dispensável enunciar agora, ainda que resumidamente, todos os elementos que caracterizam um Estado de direito democrático. Mas é indiscutível que entre tais elementos se contém o da protecção da confiança dos cidadãos face à actuação do Estado: é decerto uma exigência jurídica fundamental a de que o Estado não actue por forma a pôr em crise os direitos e as expectativas que os cidadãos legitimamente constituíram à sombra da ordem jurídica vigente - o Estado não deve agir de forma a trair a confiança dos cidadãos.
A protecção destes direitos e expectativas não pode, porém, deixar de levar em conta a dimensão de justiça social que o Estado de direito hoje comporta, e que atrás se sublinhou.
Ora, se se tiver isto em consideração, pensa-se que nem mesmo desse princípio genérico - verdadeiramente basilar da nossa ordem constitucional -, que é o princípio do Estado de direito democrático, se pode extrair uma proibição absoluta de leis fiscais retroactivas.
Em suma: à luz de quanto precede, pensa-se que este Tribunal Constitucional não pode concluir - contrariamente ao que se afirma no requerimento apresentado pelo Presidente da República - que a actual Constituição consagra implicitamente o princípio da proibição, em geral, de leis fiscais retroactivas.
3 - Perspectiva actual (sequência):
Da circunstância de a Constituição não consagrar, sequer implicitamente, um princípio genérico de proibição de leis fiscais retroactivas, deverá então concluir-se pela constitucional idade de toda e qualquer norma fiscal com aquele alcance? Decerto que não.
É que, se o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, não exclui em absoluto a possibilidade de leis fiscais retroactivas, exclui-a seguramente quando se esteja perante uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos contribuintes.
Esta a doutrina que entre nós já a Comissão Constitucional teve oportunidade de firmar em diversas ocasiões, mormente no Parecer 14/82, já citado, de que vale a pena transcrever os passos mais significativos. Assim:
É o que desde logo se passa com o princípio do primado do Estado de direito democrático, consignado no preâmbulo da Constituição e que se precipita em muitas das suas normas. Um tal princípio garante seguramente um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica [...]. Daí não deriva que toda a norma retroactiva deve reputar-se inconstitucional, mas só aquela que viola de forma intolerável a segurança jurídica e a confiança que as pessoas e a comunidade têm obrigação (e também o direito) de depositar na ordem jurídica que as rege.
E a seguir:
No desenvolvimento desta ideia, o Acórdão 437 refere que o princípio da confiança não pode haver-se por intoleravelmente ofendido - não havendo, assim, uma retroactividade constitucionalmente ilegítima - quando, entre outras hipóteses [...], a confiança (do cidadão) no reconhecimento da situação jurídica ou das suas consequências se revele materialmente injustificada, sempre que a situação jurídica não era clara ou inequívoca, de tal modo que o cidadão poderia e deveria contar com a eventualidade do seu posterior esclarecimento num ou noutro sentido; ou, de uma maneira geral, quando razões imperiosas de interesse público - e, nomeadamente, nas palavras de Gomes Canotilho, a adopção de medidas positivas de conformação social - se sobrepõem visivelmente à tutela dos valores da segurança e da certeza jurídica.
E mais adiante:
Tais soluções, se bem entendemos as coisas, conduzirão, afinal, à ideia de que a retroactividade das leis fiscais será constitucionalmente legítima quando semelhante retroactividade não for «arbitrária» ou «opressiva» e não envolver assim uma «violação demasiado acentuada» do princípio da confiança do contribuinte. Equivale isto a dizer - visualizada a questão de outro ângulo - que a retroactividade tributária terá o beneplácito constitucional sempre que as razões de interesse geral o reclamem e o encargo para o contribuinte se não mostrar desproporcionado e mais ainda o terá se tal encargo aparecia aos olhos do contribuinte como verosímil ou mesmo como provável.
E em nota esclarece-se:
Afastadas deste modo as soluções extremistas sub specie constitutionis, a retroactividade não é sempre proibida, mas também não é sempre permitida-caberá encontrar, caso a caso, a solução adequada sob o ponto de vista da constitucionalidade das leis tributárias de aplicação retroactiva. No mesmo sentido concluíram Barbosa de Melo, Cardoso da Costa e Vieira de Andrade, no seu Estudo e Projecto, já referido: «não se pretende afirmar que devam considerar-se constitucionalmente lícitos todos e quaisquer impostos retroactivos, nomeadamente os eivados de autêntica retroactividade: há aqui limites que de modo algum podem transpor-se e que derivam do princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito. Simplesmente, e sem que para isso haja necessidade de referi-los expressamente na Constituição, há-de ser a jurisprudência, com o apoio da doutrina, a traçá-los em cada caso».
Resta acrescentar que a doutrina que acaba de ser exposta vai em conformidade com os ensinamentos que se colhem em ordenamentos constitucionais particularmente significativos: quer, v. g., no da República Federal da Alemanha - cujo Tribunal Constitucional não deixa de admitir a retroactividade de leis fiscais em situações como as consideradas no Parecer 14/82 da Comissão Constitucional, e desde logo quando se esteja perante o que considera retroactividade «inautêntica» -, quer no dos Estados Unidos da América, onde a jurisprudência quase uniforme se tem orientado no sentido de admitir a inconstitucionalidade unicamente quando a lei retroactiva se revele arbitrary, very oppressive, drastic (cf. as indicações respectivas, para ambos os ordenamentos constitucionais, ainda no citado parecer).
4 - Aplicação da doutrina precedente ao caso em apreço:
É indiscutível que o imposto estabelecido pelo diploma em apreço assume carácter retroactivo, em maior ou menor grau; pode mesmo falar-se, no caso, de uma manifesta retroactividade e até de uma intencional retroactividade: de facto, são apenas rendimentos produzidos antes da entrada em vigor do diploma em causa que são atingidos pelas suas normas de incidência.
É, pois, indiscutível que o imposto em questão vem afectar a expectativa que os contribuintes podiam ter criado de que os seus rendimentos por ele atingidos ou não seriam pura e simplesmente tributados ou não viriam a sofrer uma nova tributação.
A pergunta que se põe a este Tribunal, à luz da doutrina que precedentemente ficou exposta, é, portanto, e em resumo, a seguinte: deverá essa modificação das expectativas dos contribuintes considerar-se como envolvendo uma intolerável violação do princípio da confiança, essencial à ideia do Estado de direito democrático, tal que a retroactividade do imposto em apreço deva ter-se como constitucionalmente inadmissível? A resposta que o Tribunal dá, ponderadas atentamente todas as circunstâncias que se impõem à sua consideração, é que não.
Decerto que não pode deixar de conhecer-se que a retroactividade que afecta o imposto criado pelo Decreto 32/III da Assembleia da República é bem mais intensa do que a que caracterizava as espécies tributárias sobre que recaíram os pareceres já referidos da Comissão Constitucional, nomeadamente o Parecer 14/82. É inquestionável que o Tribunal tem agora diante de si uma hipótese, sob esse ponto de vista, mais grave ou mais gravosa para os contribuintes, e uma hipótese - deverá mesmo dizer-se que não pode constituir paradigma do comportamento normal e usual, em matéria tributária, num Estado de direito democrático.
Sem embargo disto, porém, entende o Tribunal que no presente caso ocorrem circunstâncias que se sobrepõem à que acaba de se salientar, circunstâncias que logo se manifestam no carácter extraordinário e transitório do imposto em questão.
É que não se está perante uma tributação «normal» e destinada o integrar duradouramente o sistema fiscal como instrumento corrente de obtenção de recursos em cada ano económico. Trata-se, sim, de um imposto que visa atalhar uma situação excepcional de défice, ocorrendo numa conjuntura económico-financeira de crise e reclamando medidas urgentes e imediatas para a sua contenção. Ora, este condicionalismo específico em que o imposto em causa é criado e a natureza que em vista disso o mesmo imposto assume não podem ser ignorados por este Tribunal na emissão do juízo que lhe é solicitado. Um juízo que - como antes se viu - a doutrina reclama como devendo ser eminentemente casuístico.
Com efeito, é facto notório a grave crise financeira que o País atravessa, sendo disso testemunho quantificável os sucessivos e cada vez mais onerosos empréstimos internacionais contraídos.
A esta luz sobressai ainda com mais vigor a ideia expressa por Grottanelli de Santi, nestes termos: «a retroactividade pode ser de todo reclamada e tornada necessária para a consumação dos objectivos da Constituição e para a realização do tipo de sociedade que ela visa» (in Profili castituzionali della irretrottività delle legge, Milano, 1970, p. 239).
Desde logo, quem poderá razoavelmente negar que é legítimo ao Estado, e muito em particular à Assembleia representativa da comunidade política, tomar medidas provisórias da natureza daquelas que estão em apreciação, independentemente da sua bondade, popularidade ou justeza? Tanto mais que essas medidas, assumidas em manifesto ambiente de crise financeira, não poderão ser reputadas como de todo «improváveis» ou «imprevisíveis» e ainda porque existe uma proporcionalidade entre a necessidade actual, momentânea e provisória, de receitas extraordinárias e as medidas parlamentares impostas, também com carácter momentâneo e provisório. Daí dever falar-se em razoabilidade destas medidas e não em arbitrariedade. Destarte a confiança dos cidadãos também não terá sido intoleravelmente atingida por elas.
Tanto mais que a situação financeira do Estado ao longo do ano de 1983 não foi perfeitamente definida, pois que não chegou a ser emitida lei que «acertasse» as linhas gerais do orçamento do Estado para 1983; apenas e fundamentalmente a Assembleia da República aprovou a Lei 2/83, de 18 de Fevereiro, que se limitou a dispor sobre o orçamento provisório do Estado para 1983. Sem essa peça fundamental da nosso organização financeira não seria de todo inverosímil admitir que se registassem alterações de fundo na legislação tributária, ainda que em referência a factos passados.
E relativamente à situação particular dos funcionários públicos e equiparados, agora extraordinariamente tributados, não se quer deixar de dizer que já os artigos 18.º, n.º 1, alínea b), da Lei 40/81, de 31 de Dezembro, e 16.º, n.º 1, alínea b), da Lei 2/83, de 18 de Fevereiro, haviam autorizado o Governo a sujeitá-los a imposto profissional, pelo que neste caso específico a sua tributação pelos rendimentos profissionais de 1983 não seria de todo em todo inesperada.
Seja, porém, como for, e ainda que não se queira atribuir às considerações anteriormente referidas um particular relevo, sempre será de relembrar, para concluir, que a protecção de uma expectativa verosímil e do cálculo provável do contribuinte não poderá ser, de per si, tomada como um valor absoluto, aferidor, sem mais, da legitimidade constitucional do tributo. De facto, e isto ainda na linha do Parecer 14/82, da Comissão Constitucional, o princípio do Estado de direito democrático não é postergado quando razões imperiosas de interesse público se sobrepuserem visivelmente à tutela dos valores da segurança e da certeza jurídicas.
II - Quanto ao segundo ponto
Outra questão que se poderia suscitar seria a de o diploma em apreço haver sido apresentado e votado na AR desenquadrado de qualquer alteração orçamental. Ou seja: criam-se receitas mas não se diz que despesas vão elas cobrir, assim se torneando uma das funções constitucionalmente cometidas ao Orçamento do Estado, que é a de, num documento unitário, relacionar o conjunto das receitas e das despesas públicas. Daí que - pode dizer-se ou se está a violar a regra da unidade orçamental ou então a alterar o Orçamento por uma via constitucionalmente inidónea: o que se impunha, sim, era fazer aprovar uma lei de alteração orçamental, observando os cânones explícita ou implicitamente estabelecidos no artigo 108.º da Constituição.A verdade, porém, é que esta argumentação seria de todo improcedente, porquanto se baseia numa premissa constitucionalmente inexacta - ou seja, porquanto pressupõe uma exigência que a Constituição não faz: a de que qualquer lei criadora de receitas tenha de constar de uma lei orçamental ou então, e pelo menos, de ser acompanhada de alteração simultânea do Orçamento. Debalde se percorrerá a Constituição à procura de tal princípio:
ele não se encontra efectivamente lá. Certo que tem sido prática corrente entre nós a de incluir anualmente na Lei do Orçamento as alterações fiscais destinadas a vigorar no ano a que essa lei respeita (ou, e mais vulgarmente, as autorizações legislativas ao Governo para ir introduzindo essas alterações); e certo que essa prática é legítima e até pode ter-se como saudável. Mas a verdade é que ela não é constitucionalmente imposta (e deve dizer-se, de resto, que em certos outros ordenamentos constitucionais não seria mesmo autorizada); em lugar dessa prática, bem podia o Governo apresentar e a Assembleia aprovar, primeiro, as leis criadoras de novas receitas ou modificadoras das receitas existentes e, depois, aprovar a lei orçamental em conformidade com essas outras leis. Mas, se o Governo podia fazer isto no início do ano, então é seguro que também o pode e podia fazer a meio do ano económico, quando confrontado com a necessidade de obter novas receitas para cobrança imediata. Em suma: uma coisa é a criação de receitas e a respectiva lei e outra a sua orçamentação. Trata-se de dois momentos diversos, e no caso em apreço está apenas em questão o primeiro; ora, como a Constituição não impõe a sua ligação incindível, nem sequer cronológica, da falta dessa ligação não pode extrair-se nenhuma inconstitucionalidade.
Assim, parece fora de dúvida que o decreto em apreço não altera, por si só, o orçamento em vigor, limitando-se a criar um novo imposto, na sequência do qual serão cobradas receitas não previstas no orçamento vigente, o que apenas postula a necessidade de, oportunamente, a Assembleia da República aprovar um orçamento suplementar para o ano económico em curso, no qual terão obrigatoriamente de ser contempladas as receitas provenientes do mencionado imposto.
III - Quanto ao terceiro ponto
Uma outra ordem de questões que poderia eventualmente ser suscitada diz respeito ao cumprimento das disposições constitucionais atinentes à estruturação do sistema fiscal.Numa primeira linha, poder-se-ia dizer que o objectivo da «repartição igualitária da riqueza e dos rendimentos», fixado para o sistema fiscal pelo n.º 1 do artigo 106.º da Constituição, não é respeitado pelo decreto em apreço, na medida em que o novo imposto tributaria essencialmente os rendimentos do trabalho, e com uma taxa proporcional e não progressiva, especialmente gravosa para aqueles que têm rendimentos mais baixos.
Não se tem por exacta esta argumentação, na parte em que pretende concluir pela violação do mencionado n.º 1 do artigo 106.º da Constituição.
Com efeito, o objectivo perseguido por aquela disposição constitucional é atribuído ao sistema fiscal na sua globalidade, e não a todos e a cada um dos impostos que parcelarmente o integram. Assim, aquele normativo constitucional apenas seria violado caso se comprovasse que a introdução do novo imposto alteraria irremissivelmente a actual estrutura do sistema fiscal português, de tal forma que os objectivos que hoje o animam resultariam distorcidos, verificando-se uma contradição com o objectivo constitucional apenas como resultado da criação do novo imposto.
Ora, não se vê que tal facto se possa considerar demonstrado, tendo em conta, por um lado, o peso relativo do imposto que ora se pretende criar no conjunto do nosso sistema fiscal e, por outro lado, o carácter extraordinário e meramente transitório do mencionado imposto.
Numa segunda linha, poder-se-ia ainda dizer que o imposto em causa não respeitaria o preceituado no n.º 1 do artigo 107.º da Constituição, o qual determina que «o imposto sobre o rendimento pessoal visará a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar».
Por esta via, resultaria violado o princípio da progressividade da taxa tributária do imposto sobre o rendimento, com manifesto desfavor para os rendimentos pessoais mais exíguos, e isto porque as taxas fixadas no artigo 3.º do decreto cobrem um universo indiscriminado, não prevendo situações de riqueza e de fortuna diversificadas.
Cumpre, porém, atalhar, antes de mais, que aquelas regras constitucionais se dirigem a um imposto único sobre o rendimento pessoal, imposto esse ainda não implementado pela lei ordinária. Poder-se-á, não obstante, ripostar que, até à sua implementação, aqueles princípios hão-de ser necessariamente respeitados pelos impostos parcelares que incidem sobre os rendimentos pessoais e que, de alguma maneira, representam na actualidade a essência daquele imposto único.
Todavia, e ainda que se aceite que tais impostos parcelares devem respeitar, enquanto globalmente considerados, o apontado princípio da progressividade, não parece que se deva exigir o respeito de tal princípio relativamente a cada um deles, de per si, na medida em que essa progressividade tem de ser aferida relativamente ao conjunto da carga fiscal incidente sobre o rendimento pessoal. Com efeito, só deste modo se alcançaria inteiro acatamento do espírito do citado preceito constitucional, o qual estabelece o princípio da progressividade relativamente ao imposto único, hoje ainda «representado» pelo conjunto dos diversos impostos parcelares sobre o rendimento e pelo imposto complementar, e não por qualquer deles, autonomamente considerado.
Assim sendo, muito embora as taxas previstas no artigo 3.º do decreto não respeitem o princípio da progressividade, nem por isso deixa de continuar a tributação do rendimento pessoal a ser sujeita a uma taxa progressiva, tendo em conta as taxas fixadas na lei fiscal para outros impostos sobre o rendimento, designadamente o imposto profissional e o imposto complementar.
Dir-se-á que a progressividade originária dos impostos sobre o rendimento pessoal resulta diminuída ou mitigada com a criação do novo imposto. Assim acontece, efectivamente. Todavia, este facto não prejudica nem põe em causa o respeito pelo princípio da progressividade que por inteiro permanece, na medida em que a progressividade da tributação do rendimento pessoal, embora atenuada, não é suficientemente afectada por forma a poder considerar-se violado o conteúdo essencial daquele preceito constitucional.
De resto, esta atenuação da progressividade tem um carácter meramente transitório, dada a natureza extraordinária do imposto.
IV - Quanto ao quarto ponto
O artigo 1.º do decreto em apreço dispõe que o produto do imposto extraordinário por ele criado «reverte integralmente para o Estado».Este inciso pode ser interpretado no sentido de que se pretendeu excluir da participação na respectiva receita quer as regiões autónomas quer os municípios, em eventual contradição com o disposto, respectivamente, na segunda parte da alínea f) do artigo 229.º e no artigo 255.º da Constituição.
Ainda, porém, que assim deva ser interpretado o artigo 1.º em questão, o que se não tem inteiramente por seguro, o certo é que tal circunstância também não é susceptível de gerar a inconstitucionalidade daquele preceito.
É que as disposições constitucionais acima citadas não podem deixar de ser interpretadas no sentido de consentirem o lançamento de impostos de carácter extraordinário cujo produto reverta inteiramente para o Estado quando ocorram circunstâncias excepcionais, nomeadamente de crise económico-financeira, que justifiquem esse comportamento legislativo.
Decerto que o legislador constitucional, ao estabelecer os princípios constantes dos artigos atrás mencionados, teve basicamente presente um quadro de normalidade financeira e, consequentemente, tão-só os impostos ordinários correntes, razão pela qual devem poder haver-se por excluídos daquele quadro os impostos extraordinários e não permanentes ditados por razões de manifesta excepcionalidade.
Nestes termos, o Tribunal Constitucional não se pronuncia pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1.º e 3.º do Decreto 32/III da Assembleia da República.
Lisboa, 12 de Outubro de 1982. - José Joaquim Martins da Fonseca - Messias José Caldeira Bento - Luís Manuel César Nunes de Almeida - Joaquim Jorge de Pinho Campinos - Raul Domingos Mateus da Silva - Antero Alves Monteiro Dinis - José Maria Barbosa de Magalhães Godinho - José Manuel Moreira Cardoso da Costa - Mário Augusto Fernandes Afonso - Mário Brito (vencido, conforme a declaração de voto anexa) - Vital Martins Moreira (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Armando Manuel de Almeida Marques Guedes.
Declaração de voto
A tese da ilegitimidade constitucional da retroactividade das leis fiscais ou, mais precisamente, das «normas de tributação», como é o caso das normas em causa, tem sido defendida, mais recentemente (e sem que a indicação pretenda ser exaustiva), pelos seguintes autores: Prof. Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, I, 1974, n.os 77 e 78 (ainda à face do artigo 70.º da Constituição de 1933); Prof. Afonso Rodrigues Queiró, Lições de Direito Administrativo, 1976, título II, capítulo IV, n.º 3 (ressalva apenas «situações extremas, quando razões superiores do bem comum o exijam»); Prof. Jorge Miranda, «O Preâmbulo da Constituição», em Estudos sobre a Constituição, vol. 1.º, 1977, p. 17, n.º 6; Diogo Leite de Campos, «Da inconstitucionalidade do imposto complementar», in Boletim da Faculdade de Direito, vol. LIII, 1977, p. 335, n.º 20, e «Tributação da família: carga fiscal e inconstitucionalidade», no mesmo Boletim, vol. LV, 1979, p. 91, n.º 4; António L. de Sousa Franco, «Sistema financeiro e constituição financeira no texto constitucional de 1976», in Estudos sobre a Constituição, vol. 3.º, 1979, p. 487, n.º 6, a), IV [o autor veio a modificar a sua opinião no estudo «A revisão da constituição económica» (in Revista da Ordem dos Advogados, ano 42, 1982, p. 601), n.º 4, d), II];Francisco Sá Carneiro, Uma Constituição para os Anos Oitenta, 1979, artigo 96.º, n.º 4, e nota respectiva; Alberto F. Amorim Pereira, Noções de Direito Fiscal, 1981, parte I, capítulo VI, B, c); Carlos Pamplona Corte Real, Curso de Direito Fiscal, vol. I, 1982, n.º 76; Prof. Pedro Soares Martinez, Manual de Direito Fiscal, 1983, 1 parte, capítulo VI, n.º 2.
No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão da 2.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 29 de Outubro de 1980, in Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 230, p. 197.
Por mim, aceito o critério que, em matéria de legitimidade constitucional da retroactividade das leis em geral, e não apenas no domínio da retroactividade das leis fiscais - exceptuadas, é claro, as leis criminais e, depois da revisão operada pela Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro, também as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (artigos 29.º, n.º 1 a 4, e 18.º, n.º 3, da Constituição, respectivamente) -, foi definido pela Comissão Constitucional, v. g., nos Pareceres n.os 25/81, de 28 de Julho (in Pareceres da Comissão Constitucional, 16.º volume, p. 257) e 14/82, de 22 de Abril (in Boletim, do Ministério da Justiça, n.º 318, p. 217), e nos Acórdãos n.os 437, de 26 de Janeiro de 1982, 444, de 22 de Abril de 1982 (ambos no Apêndice ao Diário da República, de 18 de Janeiro de 1983, pp. 78 e 86, respectivamente), e 463, de 13 de Janeiro de 1983 (in Apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de 1983, p. 133) - critério que é, no fundo, coincidente com o defendido anteriormente por José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 1977, n.º 13.1.3, e Direito Constitucional, vol. II, 1981, n.º 16.2.4.4, b) [reformulado em termos idênticos in Direito Constitucional, 3.ª edição, 1983, n.º 8.2.4.4, b)], e que veio a ser também adoptado por Barbosa de Melo, Cardoso da Costa e Vieira de Andrade, Estudos e Projecto de Revisão da Constituição, 1981, nota 3) ao artigo 99.º, e por Cardoso da Costa, «Sobre as autorizações legislativas na lei do Orçamento», 1982, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito - «Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Teixeira Ribeiro», nota 34. E, assim, não havendo embora na actual Constituição uma proibição de «normas de tributação», «o que o legislador não poderá nunca é impor a retroactividade em termos que choquem a consciência jurídica e frustrem as expectativas fundadas dos contribuintes cuja defesa constitui um dos princípios do Estado de direito social» (citado Parecer 25/81). Por outras palavras, que são as do Parecer 14/82: a retroactividade das leis fiscais será constitucionalmente legítima quando semelhante retroactividade não for «arbitrária» ou «opressiva» e não envolver assim uma «violação demasiado acentuada» do princípio da confiança do contribuinte. Ou ainda de outro modo: «a retroactividade tributária terá o beneplácito constitucional sempre que razões de interesse geral a reclamem e o encargo para o contribuinte se não mostrar desproporcionado - e mais ainda o terá se tal encargo aparecia aos olhos do contribuinte como verosímil ou mesmo como provável» (citado Parecer 14/82).
Que dizer das normas em apreciação? Antes de mais, convém salientar que o imposto extraordinário por elas criado diz respeito apenas a factos passados - são objecto de incidência, num caso, rendimentos colectáveis respeitantes ao ano de 1982 [alíneas a) e b) do artigo 1.º] e, no outro, remunerações respeitantes aos meses de Janeiro a Setembro de 1983 [alínea c) do mesmo artigo] - e isso não pode desde logo deixar de causar a minha estranheza.
Quanto aos interesses em presença:
De um lado está - sem que no-lo seja dito em qualquer relatório ou preâmbulo - a necessidade de angariar receitas para ocorrer a défices das contas do Estado; do outro, o sacrifício do contribuinte. Neste conflito deveria prevalecer, em princípio, o primeiro interesse, por ser geral. Mas em primeiro lugar - e não se sabe, pelo menos a nível oficial, se essa ou outras medidas foram, ou estão para ser, tomadas - haveria de recorrer, para minorar aqueles défices, à redução das despesas públicas, ao aumento das taxas dos impostos existentes (para o futuro), à criação de um novo eventual imposto (também para o futuro). A criação deste imposto com efeitos retroactivos é que me parece «arbitrária» e envolver uma «violação demasiado acentuada» do princípio da confiança do contribuinte.
Nem se diga que a medida assim tomada era esperada, que o contribuinte já devia contar com ela. Pois a existência de um tão grande número de especialistas que defendem a inconstitucionalidade da tributação retroactiva (daí a lista que comecei por apresentar), mais ainda, a própria «falta de rigidez» ou «flexibilidade» da solução que nesta matéria se teve por preferível não são disso um cabal desmentido?! Cito apenas, a título de exemplo, a aquisição, com o produto de empréstimo, de prédio urbano destinado a habitação própria, isenta de contribuição predial por quinze anos, ao abrigo do artigo 12.º, n.º 7, do Código da Contribuição Predial: podia o respectivo adquirente razoavelmente contar que ao fim de catorze anos viessem exigir-lhe este imposto relativamente ao ano de 1982? E já não quero falar da injustiça relativa do novo imposto sobre as remunerações, na medida em que para ela se estabelece uma taxa uniforme de 2,8% [alínea b) do artigo 3.º], em oposição, ao que julgo, com a norma do n.º 1 do artigo 107.º da Constituição, que manda que o imposto sobre o rendimento pessoal seja «progressivo» e tenha em conta «as necessidades e os rendimentos do agregado familiar».
É que tal consideração já tem a ver com outro fundamento de inconstitucionalidade e, embora o Tribunal Constitucional possa declarar a inconstitucionalidade «com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada» (n.º 5 do artigo 51.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro), o recurso a essa faculdade só se justifica quando o fundamento invocado não proceda, o que, como resulta do exposto, não é o caso.
Em resumo: as normas em apreciação, porque retroactivas e envolvendo uma «violação demasiado acentuada» do princípio da confiança do contribuinte, inerente a um Estado de direito, são inconstitucionais.
Por isso votei vencido o presente acórdão. - Mário Brito.
Declaração de voto
1 - Votei vencido porque entendo que o decreto em apreço é realmente e irremissivelmente inconstitucional. E é inconstitucional a vários títulos: não apenas pelas razões invocadas no documento do Presidente da República, mas também - e, em certo sentido, sobretudo - por outras não alegadas nesse documento (o que, aliás, não levanta qualquer dificuldade, pois, segundo o artigo. 51.º, n.º 5, da Lei 28/82, o Tribunal Constitucional pode declarar a inconstitucionalidade com fundamento «em normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada», estando, portanto, obrigado a apreciar todos os fundamentos que eventualmente sejam invocados na discussão do próprio Tribunal).São três os fundamentos - ou, melhor, categorias de fundamentos - que a meu ver conduzem à inconstitucionalidade das normas cuja apreciação foi requerida. A saber: o decreto da Assembleia da República afronta o princípio constitucional do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), infringe os preceitos materiais que regem a repartição dos encargos fiscais (designadamente os artigos 106.º, n.º 1, e 107.º, n.os 1 e 4), viola as regras de distribuição das receitas fiscais entre o Estado, por um lado, e as regiões autónomas e os municípios, por outro lado (artigos 229.º, n.º 7, e 255.º).
2 - As normas cuja apreciação é requerida são inconstitucionais, em primeiro lugar, pelos motivos aduzidos, na sua essência, no documento do Presidente da República, ou seja, por violação do princípio do Estado de direito democrático, expressamente contido no artigo 2.º da CRP.
A natureza, o grau e a extensão de retroactividade do(s) imposto(s) criado(s) pelo decreto em análise são tais que violentam componentes essenciais desse princípio primacial da ordem constitucional, nomeadamente a segurança e a confiança e boa fé dos cidadãos.
É indiscutível que a CRP não contém uma proibição expressa de retroactividade da lei fiscal e não podem ter-se também por inquestionáveis os argumentos que pretendem provar a consagração implícita de tal princípio, pese embora ser extensa (e valiosa muita dela) a doutrina a sustentar tal ponto de vista.
A revisão constitucional não trouxe qualquer alteração do estado de coisas constitucional anterior, não sendo possível retirar qualquer ilação líquida do facto de não ter sido aprovada uma proposta no sentido de consagrar o princípio da irretroactividade (e muito menos concluir daí que tenha havido uma consagração implícita do princípio contrário ...). Por sua vez, o estado da jurisprudência constitucional encontra-se consubstanciado sobretudo num importante parecer da extinta Comissão Constitucional (o parecer 14/82), que, não abonando a tese da ilegitimidade constitucional absoluta da lei fiscal retroactiva e não aderindo, portanto, à tese da existência de um princípio constitucional de proibição de leis fiscais retroactivas, nem por isso deixa de afirmar que a retroactividade pode ser fundamento mediato da inconstitucionalidade.
Pode, pois, discutir-se se a CRP estabelece ou não um princípio de não retroactividade da lei fiscal; pode até conceder-se que a solução correcta é de sentido negativo. Mas, ainda que não possa afirmar-se que exista um princípio constitucional de irretroactividade da lei (e da lei fiscal em particular), nunca poderia, porém, afirmar-se que a questão da retroactividade é constitucionalmente irrelevante ou que perante a CRP é indiferente que uma lei seja retroactiva ou não.
A verdade é que, por natureza, a vocação primeira de qualquer norma é valer apenas para o futuro. Só assim ela pode valer como norma, como regula agendi, como determinante ou condicionante da acção ou conduta jurídica dos cidadãos; quando pretende aplicar-se ao passado, passa a valer apenas como padrão de juízo sobre os factos transactos mas não como autêntica norma.
Quer isto dizer que a retroactividade não pode ser regra, mas apenas excepção, e que, mesmo quando não seja proibida esta, sempre ela terá de ser justificada e, ainda quando justificada, nunca poderá pôr em causa valores ou princípios constitucionalmente protegidos.
Concedido, pois, que o facto de ser retroactivo não basta, só por si e apenas por isso, para o tornar inconstitucional, haverá sempre que indagar se a retroactividade era necessária (os males, mesmo os não ilícitos, têm ao menos de não serem gratuitos ou arbitrários) e se a retroactividade não assume tal dimensão e tal natureza que atinja no seu cerne o próprio princípio do Estado de direito democrático.
Também este ponto faz parte integrante da doutrina estabelecida pelo citado parecer da Comissão Constitucional (que não pode, pois, ser lido só por metade). Com maior força vale o argumento após a revisão constitucional, agora que o princípio do Estado de direito democrático entrou expressamente a fazer parte do léxico normativo da Constituição, nos artigos 2.º e 9.º (quando antes apenas era mencionado no preâmbulo).
Ora, o «imposto extraordinário» que o decreto em apreço pretende criar cai flagrantemente sob a alçada dos critérios então definidos por aquela jurisprudência. Note-se à partida que o caso agora em análise difere completamente do que fora analisado pela Comissão Constitucional. Nessa altura tratava-se da criação de um adicional ao imposto complementar relativo ao ano anterior, numa altura em que tal imposto ainda não tinha sido liquidado nem cobrado. Agora, porém, trata-se de uma retroactividade integral, de primeiro grau, a 100%. Os cidadãos vão ser obrigados a pagar novos impostos por rendimentos cujos impostos já pagaram. Trata-se de uma autêntica e verdadeira repetição fiscal, de uma novação de relações fiscais já extintas.
Noutros casos, aliás, nem disso se trata, pois estão em causa rendimentos que não estavam sujeitos a imposto ou estavam dele isentos.
Uma fronteira entre a retroactividade fiscal admissível e a inadmissível haveria de ser, segundo julgo, precisamente o facto de um facto fiscalmente relevante já se encontrar ou não totalmente extinto. Cabe, aliás, referir, para quem atribui significado ao elemento histórico na interpretação constitucional, que se há conclusão que razoavelmente possa ser retirada da discussão da AR aquando da revisão constitucional, essa é a de que tal limite esteve sempre presente como fronteira decisiva. E talvez seja importante também referir que, achando-se relevante a jurisprudência estrangeira (sobretuda alemã e italiana) sobre o assunto, não conheço caso nenhum em que os respectivos tribunais constitucionais tenham considerado não desconformes à constituição casos de retroactividade desta natureza.
Em segundo lugar, tal imposto retroactivo era totalmente imprevisível. Nem a lei orçamental, nem o Programa do Governo, nem as declarações oficiais dos governantes, nem os programas eleitorais dos partidos ora coligados no Governo alguma vez adiantaram, ou sequer sugeriram, a eventualidade de criação de impostos desta natureza. Alguns impostos novos eram sugeridos realmente na lei orçamental, a impender sobre os «sinais exteriores de riqueza», entre os quais eram mencionados impostos que pela sua natureza não colocariam, nos mesmos termos, o problema de retroactividade.
Acontece, porém, que esses tais impostos não vieram a ser criados (na sua maior parte), tendo sido substituídos por impostos de natureza radicalmente diversa: em vez dos «sinais exteriores de riqueza» veio o imposto sobre os rendimentos do trabalho já tributados, ou que estavam isentos ... Este «imposto extraordinário» surge, assim, de surpresa, inesperadamente, ainda por cima quase no final do ano, e para ser liquidado e cobrado a curto prazo, de tal modo que lesa gravemente as expectativas e os planos de vida dos cidadãos - se não mesmo as responsabilidades financeiras assumidas por eles - e a sua segurança económica e jurídica. Não vejo como seja possível imaginar hipóteses de mais profundo atentado à boa fé e segurança dos cidadãos e ao princípio da confiança no Estado. Para referir um caso exemplar, veja-se o dos cidadãos que, tendo adquirido casa para habitação própria, tinham a garantia de isenção, nos termos do Código da Contribuição Predial, da respectiva contribuição durante vários anos e que agora, subitamente, se vêem também obrigados a pagar um imposto de que razoavelmente se julgavam isentos ...
Em terceiro lugar, não se pode argumentar seriamente que o montante do imposto seja despiciendo. Para tomar em conta apenas a parte respeitante ao imposto profissional, talvez este imposto «extraordinário» possa ser julgado de pequena monta por quem, sendo titular de altos rendimentos, vai pagar uma taxa substancialmente inferior à do imposto profissional «ordinário». Mas já o mesmo não pode, sem insensatez, dizer-se em relação àqueles que, tendo baixas remunerações, vão ter de pagar outro tanto do que já pagaram em imposto pelos mesmos rendimentos.
Finalmente, nem sequer se pode dizer que tal imposto retroactivo possa ser justificado por uma necessidade de salvação pública. Não se questiona a decisão dos órgãos políticos de direcção do Estado de criar novas receitas fiscais, de modo a diminuir o défice orçamental previsível para este ano. O que não pode, todavia, deixar de ser relevante em sede de juízo de legitimidade constitucional é o que o Estado não pode argumentar com a necessidade pública para justificar medidas que lesem direitos e legítimos interesses dos cidadãos, quando poderia obter o mesmo resultado por meios não inconstitucionais. Ora, estavam abertas ao Estado várias outras vias fiscais para obter o mesmo volume de receita, sem ser através de impostos tão retroactivos como aqueles criados por este decreto e tão violentamente lesivos dos direitos e expectativas dos cidadãos. Os órgãos de direcção política do Estado são certamente livres de escolher os meios de política para prosseguir os objectivos por eles estabelecidos: mas, de entre os meios possíveis, devem escolher os que não conflituem com a Constituição. Não sucede isto neste caso. Com efeito, a retroactividade deste imposto não deixa de ser caracterizada por uma alta dose de arbitrariedade. Arbitrário, desde logo, porque não está provado (pelo contrário) que não havia meios de obter o mesmo resultado (cerca de 18 milhões de contos em receitas fiscais) sem recurso a medidas retroactivas, ou tão retroactivas. Arbitrário também na selecção dos rendimentos colectáveis escolhidos - sobretudo assente nos respeitantes ao imposto profissional -, deixando de lado impostos como o complementar (em relação ao qual se poderia mesmo dizer que não haveria autêntica retroactividade, pois no ano em curso a competente relação fiscal ainda se não encontra extinta) ou outros impostos sobre o património, como, por exemplo o de sucessões e doações (em relação ao qual dificilmente se poderia falar em qualquer violação de confiança dos cidadãos).
Uma das razões que a doutrina costuma mencionar para julgar não intolerável a retroactividade de leis fiscais é a de que esta tenha objectivos de conformação social: seriam os objectivos do «Estado social» a justificar excepções ao Estado de direito. O argumento não deixa de ter ressonâncias historicamente equívocas e comprometedoras e só inadvertidamente poderá ser aceite pelo seu valor facial. Mas no caso concreto o argumento seria totalmente inapropriado. Não se vislumbra neste imposto qualquer objectivo - pelo menos legítimo - de conformação social, sendo finalidade declarada de todo o «pacote fiscal» tão chãmente a de obter alguns milhões de contos que minorem, aliás em escassa percentagem, o défice orçamental. E quando esses milhões vão ser obtidos sobretudo à custa de rendimentos do trabalho e pesando em particular sobre os titulares de menores rendimentos, invocar como justificação da retroactividade a realização dos objectivos sociais da Constituição ou da edificação da sociedade que ela visa - que, é bom lembrá-lo, é a sociedade socialista enquanto democracia económica, social e cultural plenamente realizada (artigo 2.º da CRP) -, isso não seria apenas descabido, tocaria porventura as raias da perversidade.
Eis porque, em minha opinião, a retroactividade qualificada deste imposto o torna intoleravelmente violador de componentes essenciais do Estado de direito democrático configurado na Constituição.
3 - O segundo fundamento determinante da inconstitucionalidade das normas do decreto em análise reportam-se à violação dos princípios materiais da constituição tributária, designadamente dos constantes dos artigos 106.º e 107.º da CRP.
Com efeito, existe na CRP uma «constituição fiscal», ou seja, um conjunto de preceitos relativos à matéria fiscal, e, em sentido mais restrito, à matéria de impostos. Essa constituição fiscal não é simplesmente formal, não se limita a regular o modo, o tempo, a forma de criar, lançar, liquidar e cobrar impostos. É também uma constituição fiscal material, abrangendo um conjunto de normas relativas à estrutura do sistema fiscal, ao modo de repartição da carga fiscal e de cada um dos mais importantes impostos.
Para que um imposto seja conforme a Constituição não basta respeitar as regras formais. É necessário respeitar também as normas materiais que regem o lançamento de qualquer novo encargo fiscal, em geral, e a incidência de cada imposto em particular. Ora é isso que não sucede no presente caso.
3.1 - O modo de repartição da carga fiscal não é constitucionalmente indiferente. O estado não é livre na selecção das fontes das receitas fiscais, na maneira como distribui pelos cidadãos e categorias sociais a quota de cada um na contribuição obrigatória para as receitas públicas.
Há na CRP princípios que regem essa matéria. Desde logo o n.º 1 do artigo 107.º, segundo o qual o sistema fiscal pode ter como objectivos a «repartição igualitária de riqueza e do rendimento e a satisfação das necessidades financeiras do Estado».
Tais objectivos não são separáveis. Todos os impostos que visam satisfazer necessidades financeiras do Estado têm de ter em conta também o outro objectivo. Para isso é necessário que a carga fiscal pese mais levemente sobre os mais pobres e os que menos rendimentos têm e mais fortemente sobre os que mais têm e mais ganham. É certamente contrário a este princípio um conjunto de medidas fiscais que, visando realizar um certo montante de receitas, vá obtê-las sobretudo junto de quem menos tem ou menores rendimentos percebe.
Por outro lado, a «constituição fiscal» é apenas um capítulo da «constituição económica» (ou seja da parte da Constituição respeitante à economia), não podendo portanto deixar de estar subordinada aos respectivos princípios gerais. Especificando: os objectivos fiscais constantes do n.º 1 do artigo 107.º da CRP (integrado no título V da parte II da CRP) são apenas uma particularização dos princípios gerais constantes das normas do respectivo título I, entre as quais, por exemplo, se conta a de que «incumbe prioritariamente ao Estado operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza do rendimento [alínea b) do artigo 81.º].
Afrontam certamente este princípio as leis que, para realizar um determinado montante de receitas fiscais, distribuam de tal modo a carga fiscal que em vez de diminuir as desigualdades, as aumentem, gravando sobretudo os que menos têm.
Finalmente, a própria «constituição económica» é apenas uma parte integrante do ordenamento constitucional global, compartilhando por isso dos princípios fundamentais desse mesmo ordenamento, designadamente os contidos nos artigos 1.º, 2.º e 9.º da CRP. Entre esses princípios fundamentais conta-se o do Estado de direito democrático apostado na realização de uma «democracia económica e social». Contende certamente com este princípio um conjunto de medidas fiscais que faça impender principalmente sobre os economicamente mais débeis o maior peso dos respectivos encargos.
O Estado de direito democrático também significa a substancial igualdade fiscal. E a igualdade material neste domínio supõe que quem mais pode arque em maior proporção dos encargos.
Ora não é isso que ocorre com esta lei. Ela é apenas parte integrante de um «pacote fiscal» destinado a realizar um determinado montante financeiro. Não é facto desconhecido. Está publicitado pelo Governo na memória justificativa apresentada à Assembleia da República, nas declarações produzidas pelos responsáveis governamentais no debate parlamentar. Trata-se de conseguir realizar cerca de 18 milhões de contos com vista a reduzir em certa percentagem o défice orçamental do corrente ano.
Não compete à judicatura constitucional ajuizar dos meios mais ou menos adequados que estavam disponíveis para conseguir esse objectivo. Mas não pode a instância de controle de constitucionalidade deixar de verificar se os meios escolhidos pelo Estado são ou não conformes à Constituição.
Este decreto não é, pois, uma medida avulsa que tenha de ser apreciada isoladamente. Pelo contrário: ele é parte integrante de um conjunto articulado, de um «pacote fiscal» autónomo, virado para a consecução de um objectivo unitário concretamente identificado. Não é descabido, muito menos impróprio, analisar este conjunto de medidas fiscais na sua referência à CRP. O argumento de que não se pode apreciar a distribuição da carga fiscal por se tratar de um imposto isolado é por isso improcedente. Trata-se de saber se na repartição dos novos encargos fiscais agora criados se respeitaram os critérios constitucionais. Não se apresenta difícil provar que não.
Para obter o seu objectivo, o Estado propõe-se criar alguns impostos novos (sobre saídas para o estrangeiro, sobre casas de lazer nocturno, etc.) e renova alguns impostos correntes (selo, imposto profissional, contribuição predial, uma parcela do imposto de capitais). Mas a quota-parte do produto previsível de cada imposto no «bolo» dos pretendidos 18 milhões de contos é muito desigual. Assim, de acordo com dados colhidos do debate parlamentar, fácil é verificar que a maior parte provém do chamado imposto extraordinário sobre o rendimento e, dentro desse, seguramente o do imposto que incide sobre os rendimentos do trabalho.
Embora não seja possível desagregar com exactidão as várias componentes, não será temerário confiar nos números que apontam para que a parte dos rendimentos do trabalho monte a mais de 10 milhões de contos.
A participação do imposto profissional neste imposto extraordinário excederia substancialmente a quota do imposto profissional no montante global do produto dos impostos previstos no OGE em vigor no presente ano. Basta reparar que no OGE deste ano, para um total de receitas fiscais de cerca de 437 milhões de contos, o imposto profissional contribui com cerca de 43 milhões, ou seja, cerca de 10%.
Por sua vez, neste pacote fiscal extraordinário, para um montante de cerca de 18 milhões de contos a parte do imposto extraordinário correspondente ao imposto profissional montaria a mais de 10 milhões, ou seja, mais de 55%. De 10% a 55% é um salto abissal. Quer dizer: este «pacote fiscal» faz impender desmesuradamente sobre os rendimentos do trabalho o peso da carga fiscal gerada, privilegiando assim os rendimentos do capital (uma boa parte dos quais não são sequer abrangidos por qualquer imposto do «pacote», nem directa nem indirectamente).
E fá-lo de modo tão discriminatório, em tal medida, que não se vê como pode ter-se por cumprido o objectivo constitucional da repartição igualitária da riqueza e dos rendimentos e da diminuição das desigualdades sociais. É precisamente do contrário que se trata.
2.3 - O decreto sujeito à apreciação do TC, na parte respeitante ao imposto profissional, infringe ainda directamente a CRP no que respeita aos princípios que devem reger a tributação pessoal, designadamente o n.º 1 do artigo 107.º Fácil será argumentar que tal disposição respeita apenas ao imposto único sobre o rendimento, que ainda não existe. O argumento será tão descabido quanto fácil é. A verdade é que os princípios constitucionais que hão-de reger o futuro imposto único sobre o rendimento não podem deixar de valer, na medida em que seja aplicável, aos impostos sobre o rendimento actualmente existentes. A progressividade e a personalização da tributação dos rendimentos pessoais não podem deixar de valer para os impostos que existem. De outro modo, a inconstitucionalidade por omissão em que o Estado está incurso, em vez de ser penalizada, seria premiada: ficaria livre de conformar a tributação dos rendimentos pessoais. Pior do que isso: uma tal solução levaria a ser possível sustentar uma total anomalia constitucional em matéria de tributação do rendimento pessoal, posição que ninguém decerto, sensatamente, sustentaria. Seria o mesmo que admitir que nada na Constituição obrigaria a que o imposto profissional tenha taxa progressiva ou que o imposto complementar tenha taxa progressiva e seja personalizado (isto é, tenha em conta a situação pessoal e familiar do contribuinte). Para atentar no absurdo de tal lógica basta reparar que ela conduziria a nada ver de inconstitucional, por exemplo, numa futura lei que viesse tornar regressivo qualquer daqueles impostos.
Não pode ser. A verdade é que as normas constitucionais «positivas» - ou seja, aquelas que impõem uma acção ou prestação ao Estado - não se esgotam em tornar censurável a omissão indevida do Estado. Têm uma contrapartida «negativa»: tornam ilícito qualquer acto que contrarie o sentido dessas normas.
Se o Estado está obrigado a criar um imposto único sobre o rendimento, personalizado e de taxa progressiva, ele não atenta contra a Constituição apenas por não reformular o sistema fiscal no sentido de criar tal imposto.
Infringe também a Constituição quando cria novas tributações do rendimento obedecendo a princípios discrepantes dos princípios constitucionais.
Salvo a censura em sede de fiscalização de inconstitucionalidade por omissão, nada pode forçar o Estado a substituir os actuais impostos sobre o rendimento por um imposto único. Mas pode e deve sem dúvida impedir-se o Estado de, além de não fazer o que a Constituição manda, fazer coisas contrárias àquilo que a Constituição ordena.
É uma situação dessa natureza que está contida neste espécime protolegislativo no que respeita em particular ao imposto profissional. Criando um novo imposto - um imposto extraordinário sobre o rendimento -, o Estado não apenas não vai ao encontro das normas constitucionais como, pelo contrário, vai de encontro a elas (melhor se dirá: de encontrão nelas). Criando um imposto profissional (aliás dois: um para os rendimentos por conta de outrem, outro para os restantes rendimentos do trabalho), não se respeitam os princípios constitucionais relativos à tributação do rendimento pessoal, ao menos na parte em que, sem qualquer dificuldade técnica, elas podem ser respeitadas, ou seja, na progressividade, como aliás já sucede hoje com o imposto profissional «ordinário».
Ao estabelecer uma taxa única para cada categoria de contribuinte (2,8% e 6%, aliás estabelecendo uma discriminação cujo fundamento não se vislumbra), o artigo 3.º do decreto em apreciação infringe frontalmente o princípio constitucional da progressividade da tributação do rendimento pessoal. Institui-se um imposto de taxa única: paga a mesma percentagem aquele cujo rendimento mal excede o salário mínimo e aquele que tem de rendimento um ou dois milhares de contos anuais. Enquanto a taxa do imposto profissional ordinário vai de 2% a 22%, estabelece-se para este novo imposto uma taxa uniforme. O princípio constitucional é: paga por maior medida quem mais recebe. O princípio do decreto é: todos pagam pela mesma medida.
Só que a mesma medida é de uma flagrante injustiça, discriminando fortemente contra os que menos recebem. Assim, se considerarmos que a taxa de 2,8%, aplicável como é aos rendimentos de 10 meses, corresponderia sensivelmente a uma taxa de 2% anual, teremos que o titular de rendimentos superiores a 1350 contos pagará cerca de 10% do montante do imposto profissional «ordinário» que pagou (ou pagaria, se os seus rendimentos não estivessem isentos desse imposto); por sua vez, o titular de rendimentos até 210 contos irá pagar outro tanto do que já pagou (ou teria de pagar) pelo imposto profissional ordinário. É um salto de menos de 10% para 100%! Ainda que se considerasse que este imposto se haveria de conceber como simples adicional ao imposto profissional «ordinário» - o que aliás não pode ser de modo algum pensado, pois não pode acrescentar-se um adicional a um imposto já liquidado e pago -, não diminuiria com isso a flagrante discriminação contra os titulares de mais baixos rendimentos. É que, enquanto o escalão de mais altos rendimentos sofreria um agravamento de apenas 9,1% (de 22% para 24%), os titulares de mais baixos rendimentos sofreriam um agravamento de 100%! O quadro seguinte é elucidativo.
(ver documento original) Há mais: é que um tal «adicional» não deixaria de implicar uma substancial redução da progressividade do imposto profissional «ordinário». Enquanto na tabela das respectivas taxas a relação entre o 1.º escalão e o último é de 1 para 11 (2% para 22%) - e não existe outra forma de aferir a progressividade! -, uma vez adicionado o imposto extraordinário a relação ficará reduzida a 1 para 6 (4% para 24%), ou seja: a taxa de progressividade é reduzida em nada menos de 45,4%! Por menos exigente que se seja em admitir retrocessos nos níveis realizados de justiça social, será difícil admitir que se considere admissível um tão sensível recuo (sobretudo quando ele tem efeito retroactivo).
A retroactividade de impostos é, com certeza, matéria susceptível de discussão; não se vê, porém, como é que são constitucionalmente admissíveis retrocessos na justiça fiscal com efeitos retroactivos.
4 - O artigo 1.º do decreto em apreciação, ao reservar para o Estado o produto deste novo imposto, afronta mais dois preceitos constitucionais: os constantes, respectivamente, da alínea f) do artigo 229.º e do artigo 255.º O primeiro estabelece que as regiões autónomas têm o poder de dispor das receitas fiscais nelas cobradas. Não se vê como furtar à aplicação desta norma as receitas a cobrar através do imposto cuja criação este decreto se propõe.
Dizer que a norma se não aplica a este decreto porque este cria um imposto «extraordinário» e que aquela norma valeria apenas para os impostos ordinários é um argumento tão fácil quanto falaz, tão débil quanto insustentável. A verdade é que tal distinção não tem qualquer fundamento constitucional. Para a CRP há apenas impostos. Nem se vê em que é que a CRP lhe haveria de dar relevância, dado que não se vislumbra que critério é que assiste a tal distinção.
Por outro lado, as normas constitucionais mencionadas são normas de repartição objectiva das receitas públicas entre o Estado, por um lado, e as regiões autónomas e os municípios, por outro lado. Não tem a ver com a qualidade dos impostos (salvo, no que respeite aos municípios, a restrição aos impostos directos); tem, sim, a ver com a parte de cada um no «bolo» produzido através do fisco. Em relação às regiões autónomas, estas têm direito a todas as receitas fiscais nelas cobradas; no que concerne aos municípios, têm direito a uma quota-parte das receitas provenientes dos impostos directos. Note-se que a parte final do artigo 255.º não autoriza qualquer restrição da participação municipal a certos impostos - a expressão «nos termos definidos por lei» tem a ver com a medida e a forma por que os municípios acedem à sua quota, mas não com o número dos impostos directos em que participam «por direito próprio» -, que têm de ser todos.
Nem se entenderia como é que a qualificação do imposto «extraordinário» pudesse bastar para afastar a aplicação de normas tão inambíguas como as referidas disposições constitucionais. Bastaria então ao Estado pôr a etiqueta de «extraordinário» a todo e qualquer novo imposto - ou até aos velhos - para assim circunvir os limites dos seus poderes. E não apenas no domínio fiscal.
Não há maneira mais simples de esvaziar uma Constituição de qualquer sentido do que legitimar as infracções às suas normas com o argumento de que o caso em apreço é um caso «especial» não abrangido pela norma constitucional ... Nessa lógica, as piores infracções, as infracções «extraordinárias», são exactamente aquelas que ficam legitimadas.
Ora, à face da CRP, um dado de partida na criação de qualquer imposto é o de que o Estado sabe que não pode contar com o produto integral deles. A parte cobrada nas regiões autónomas reverte a favor delas. Uma parte maior ou menor do produto, quando se trate de impostos directos, há-de reverter a favor dos municípios.
Não se vê como excepcionar legitimamente estas regras.
As normas constitucionais pertinentes são claras. E, de qualquer modo, uma das componentes irrenunciáveis do Estado de direito democrático consagrada na CRP é o respeito pelos direitos das regiões autónomas e das autarquias locais.
5 - Eis, pois, as razões fundamentais por que se me afigura ser o decreto grave e extensamente inconstitucional. A posição contrária pode certamente invocar a seu favor alguns argumentos; mas são, a meu ver, poucos os que têm algum relevo, e o resultado, esse considero-o de todo em todo inconveniente.
Alguns dos argumentos trazidos à discussão são mesmo, no meu ponto de vista, totalmente despidos de pertinência.
O principal deles é o argumento da natureza extraordinária, excepcional e única das medidas consubstanciadas no decreto em apreço, argumento com que de forma expedita se recorre como ultime ratio. A verdade é que as inconstitucionalidades «extraordinárias», «excepcionais», não são menos graves do que as ordinárias, comuns e reiteradas.
Todas estas começaram por ser extraordinárias, excepcionais e únicas, e não consta que qualquer órgão de direcção política em qualquer Estado alguma vez tenha deixado de invocar o carácter extraordinário e excepcional para justificar medidas inconstitucionais. Mais: essa invocação é muitas vezes indício seguro da consciência da ilegitimidade constitucional das medidas em causa.
Mas se existem argumentos que não se me afigura lícito serem invocados para tomar legítimos impostos insuportavelmente retroactivos e grosseiramente atentadores dos princípios materiais da constituição fiscal, entre esses contam-se pelo menos dois: o de que tais medidas foram democraticamente aprovadas por confortável maioria na Assembleia da República e o de que as dificuldades financeiras do País impõem sacrifícios especiais aos cidadãos. E se cito estes argumentos é porque não faltou a insinuação de tais juízos na tentativa de justificar estas medidas fiscais.
Em primeiro lugar, a fiscalização da constitucionalidade vale sobretudo contra as maiorias parlamentares (pois são elas que aprovam as leis) e não principalmente contra as oposições, sendo aliás que a dimensão da maioria não tem qualquer relação directa com a medida do respeito da Constituição;
em segundo lugar, é sobretudo em período de dificuldades financeiras e de exigência de sacrifícios aos cidadãos que mais importante se torna respeitar escrupulosamente as regras constitucionais que regem a justiça fiscal, a distribuição da carga fiscal, a repartição das quotas de cada um na penalização a favor da colectividade. É precisamente nessas circunstâncias que mais chocante se torna o sacrifício excessivo a pesar sobre uns e o privilégio injustificável a favorecer outros. É nessas ocasiões que mais preciso é não atentar contra a confiança dos cidadãos e não defraudar as suas expectativas.
A invocação de argumentos dessa natureza é tanto mais inapropriada quanto é certo que eles vêm potenciar aquilo que já de si existe de virtualmente polémico e melindroso no processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, quando ela incide sobre matérias recentemente discutidas acaloradamente na Assembleia da República e sob a pressão de correntes opostas da opinião pública.
Somente a capacidade de contenção, prudência, distanciação e «desconjunturalização» da instância de fiscalização constitucional pode diminuir os riscos inerentes ao processo de fiscalização preventiva de constitucionalidade em tais circunstâncias.
Numa obra de que fui co-autor, publicada em 1977 (Constituição da República Portuguesa Anotada), pude escrever que a fiscalização preventiva da constitucionalidade correrá o risco de se converter, não num meio de entravar a consumação de projectos legislativos inconstitucionais, mas sim num meio de legitimação política de leis mais ou menos inconstitucionais.
Aquando da revisão constitucional parecia haver razões para esperar que o novo regime de fiscalização preventiva, somado ao facto de ela passar a competir a um órgão de natureza jurisdicional, contribuísse para alterar tal estado de coisas.
Confrontado com esta primeira experiência de fiscalização preventiva após a revisão constitucional e a instalação do Tribunal Constitucional, fica-me a questão de saber se não era demasiado esperançosa tal convicção ...
Qualquer que seja a resposta a esta questão, a verdade é que ela não poderá ser favorável quando reste qualquer margem para a mínima dúvida acerca do mais escrupuloso respeito do princípio de que nenhuma (real ou suposta) razão de Estado (muito menos de mera oportunidade política ...) pode prevalecer sobre a razão da Constituição. - Vital Moreira.