I - Relatório
1 - O Procurador-Geral da República requer que o Tribunal Constitucional «aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 6.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 206/2001, de 27 de Julho, na medida em que exclui as associações mutualistas do exercício da actividade funerária aos seus associados».2 - Para fundamentar o seu pedido o Procurador-Geral da República alegou o seguinte:
«1.º
A norma a que se reporta o presente pedido - incluída em diploma legal regulador do exercício da actividade das agências funerárias - reserva tal actividade, expressa na prestação dos serviços referenciados nos artigos 3.º e 4.º, n.º 1, exclusivamente às agências funerárias (artigo 5.º), prescrevendo, como requisito para o respectivo exercício, a constituição sob qualquer das formas societárias legalmente permitidas.
2.º
Tal regime restritivo configura-se como violador do princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 236/2005, de 3 de Maio (no mesmo sentido, aderindo a tal entendimento, se pronunciou o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, no parecer 14/05, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 24 de Fevereiro de 2006).
3.º
Na verdade, a exigência de adopção da forma societária, em si mesma considerada, não consubstancia uma habilitação específica para o exercício da actividade funerária, não constituindo, só por si e necessariamente, garantia absoluta e adequada de prossecução com sucesso das finalidades de transparência, garantia da qualidade dos serviços e tutela dos interesses dos consumidores, subjacentes ao Decreto-Lei 206/2001.
4.º
Verificando-se que tal exigência - e a restrição dela emergente, estranha aos fins de saúde pública e tutela do interesse público - discrimina, sem fundamento legítimo, as associações mutualistas, já que a constituição sob forma societária, com o inerente fim lucrativo, se não adequa minimamente às entidades que, sem intenção lucrativa, apenas com uma finalidade de apoio social em benefício dos seus associados, pretendem agir naquele sector, fora dos quadros da iniciativa empresarial privada.» 3 - Notificado do pedido, vem o Primeiro-Ministro oferecer o merecimento dos autos, requerendo, caso a norma em causa seja julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, e por razões de segurança jurídica, que os efeitos da decisão se produzam a partir da data da publicação, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição.4 - Debatido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional e fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, procedeu-se à distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
II - Delimitação do objecto do pedido
Na parte final do seu requerimento, o Procurador-Geral da República diz requerer a «declaração de inconstitucionalidade material da norma que constitui objecto do presente pedido» (itálico nosso).
Tal norma mostra-se claramente definida no intróito e no artigo 1.º do mesmo requerimento - a que, exigindo a forma societária às agências funerárias e reservando a estas, em exclusivo, a actividade expressa na prestação dos serviços referenciados nos artigos 3.º e 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei 206/2001, de 27 de Julho, exclui da mesma actividade as associações mutualistas.
Não pode recusar-se que, no intróito do requerimento, quanto ao preceito que põe em causa, o Procurador-Geral da República apenas refere expressamente o artigo 6.º, n.º 1, alínea a), do citado diploma legal. Certo é, porém, que, no artigo 1.º do requerimento, se conjuga, para a formulação da aludida norma, também - e igualmente em termos expressos - o disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei 206/2001.
Haverá, pois, que interpretar o pedido, com o objecto normativo acima definido e reportado ao conjunto de preceitos formado pelos artigos 6.º, n.º 1, alínea a), e 5.º do Decreto-Lei 206/2001.
III - Fundamentação
1 - Dispõe a alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei 206/2001, de 27 de Julho, o seguinte:
«Artigo 6.º
Requisitos para o exercício da actividade
1 - Para o exercício da actividade referida no n.º 1 do artigo 4.º, deve cada agência funerária:
a) Constituir-se sob qualquer das formas societárias legalmente permitidas;
..............................................................................» Por seu turno, o artigo 4.º, n.º 1, do mesmo diploma, para o qual remete a norma em causa, estabelece:
«4.º
Objecto da actividade
1 - A actividade das agências funerárias consiste na prestação de serviços relativos à organização e realização de funerais, transporte de cadáveres para exéquias fúnebres, inumação, cremação ou expatriamento e trasladação de restos mortais já inumados.» O artigo 5.º, ainda do mesmo diploma, dispõe que:
«5.º
Reserva de actividade
O exercício das actividades mencionadas no n.º 1 do artigo anterior compete exclusivamente às agências funerárias.» É por força da conjugação destes dispositivos - em particular dos citados artigos 6.º, n.º 1, alínea a), e 5.º - que a norma questionada adquire o sentido que, no entendimento do requerente, a faz incorrer em inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade.Com efeito, a exigência de que a agência funerária se constitua «sob qualquer das formas societárias legalmente permitidas» releva, no caso, como justificação do pedido, no ponto em que o exercício da(s) actividade(s) acima referidas compete, em exclusivo, às agências funerárias, obstando consequentemente a que as associações mutualistas exerçam tais actividades.
Vejamos, pois, se tal ofende o princípio da igualdade.
2 - O Decreto-Lei 206/2001, alterado já pelo Decreto-Lei 41/2005, de 18 de Fevereiro, em termos que não relevam para o caso, surge com a finalidade, expressamente assinalada no seu preâmbulo, de definir «um conjunto de regras gerais para o exercício da actividade funerária».
Reconhecendo que a actividade das agências funerárias assume «uma expressiva relevância social», o legislador dá nota da ausência, até então, de qualquer legislação com aquela finalidade, estando apenas regulados alguns aspectos específicos da mesma actividade - é o caso do disposto nos Decretos-Leis n.os 47838, de 9 de Agosto de 1967, e 248/83, de 9 de Junho.
As regras disciplinadoras da actividade das agências funerárias têm o objectivo, igualmente expresso no preâmbulo, de «assegurar a transparência da actuação dos seus profissionais» (reconhece-se, «ao longo dos últimos anos», o «avolumar de situações menos transparentes») e «garantir a qualidade dos serviços, tendo em vista, designadamente, a defesa dos interesses dos consumidores».
As normas do Decreto-Lei 206/2001 hão-de, pois, ser compreendidas - e aqui, em particular, as que restringem o «livre acesso ao mercado» - com as assinaladas finalidades.
E é assim que a imposição de as agências funerárias se constituírem sob qualquer das formas societárias legalmente permitidas, com o inerente afastamento das associações mutualistas do exercício das actividades indicadas no artigo 4.º, estaria justificada, numa perspectiva de defesa dos interesses dos consumidores, antes do mais, pela garantia da qualidade dos serviços.
3 - Consta do Código das Associações Mutualistas, aprovado pelo Decreto-Lei 72/90, de 3 de Março, o regime jurídico das associações mutualistas. São estas, de acordo com o artigo 1.º do Código, «instituições particulares de solidariedade social, com um número ilimitado de associados, capital indeterminado e duração indefinida que, essencialmente através de quotização dos seus associados, praticam, no interesse destes e de suas famílias, fins de auxílio recíproco».
Constituem fins fundamentais das associações mutualistas, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do Código, «a concessão de benefícios de segurança social e de saúde destinados a reparar as consequências da verificação de factos contingentes relativos à vida e à saúde dos associados e seus familiares e a prevenir, na medida do possível, a verificação desses factos», permitindo, ainda, o n.º 2 do mesmo artigo a prossecução de «outros fins de protecção social e de promoção da qualidade de vida, através da organização e gestão de equipamentos e serviços de apoio social, de outras obras sociais e de actividades que visem especialmente o desenvolvimento moral, intelectual, cultural e físico dos associados e suas famílias».
A atribuição de benefícios aos associados é prevista como um direito que é contrapartida das quotizações pagas [artigo 8.º, n.º 1, alínea h), do Código].
A garantia do cumprimento da lei, a promoção da compatibilização dos fins e actividades das associações mutualistas com os fins legalmente estabelecidos e a defesa dos interesses dos associados são objectivos da acção tutelar do Estado a que estão sujeitas as associações mutualistas nos termos prescritos no capítulo VII do Código (artigos 109.º a 117.º).
4 - É inequívoco que o artigo 6.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 206/2001, em conjugação com o disposto no artigo 5.º do mesmo diploma, impede as associações mutualistas de, em benefício dos seus associados, exercerem as actividades que constituem o objecto das agências funerárias, estabelecendo, deste modo, uma discriminação negativa no tratamento que é dado àquelas associações, pelo que se impõe averiguar - disse-se já - se a norma, com tal sentido, suporta o teste da sua constitucionalidade, face ao princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.
Em sentido negativo respondeu já o Tribunal à questão, em fiscalização concreta de constitucionalidade. Fê-lo no Acórdão 236/2005 (Diário da República, 2.ª série, de 16 de Junho de 2005), de que se extracta o seguinte trecho:
«Entrevêem-se [...] no regime legal em questão objectivos que se relacionam com a transparência na actividade, com a organização das estruturas que exercem a actividade funerária (tendo em vista a dignidade exigível pela natureza dessa actividade), com a igualdade no tratamento dos agentes funerários e com a igualdade no acesso à actividade.
A legitimidade e o fundamento de tais finalidades, em face da Constituição, são inequívocos. No entanto, a questão a que importa dar resposta no presente recurso é a de saber se a exigência de constituição sob a forma societária exclui outros modos de alcançar tais desideratos, sendo essa exclusão compatível com a Constituição.
Ora, a forma societária, em si mesmo considerada, não consubstancia uma habilitação específica para o exercício da actividade funerária. Nem constitui, por si só, e necessariamente, garantia absoluta de prossecução com sucesso das finalidades que o Decreto-Lei 206/2001, de 27 de Julho, visa alcançar.
Trata-se de uma exigência que, tendencialmente, criará condições favoráveis para a realização dos referidos objectivos, dada as necessárias organização e institucionalização que a sociedade implica. Porém, a constituição como sociedade não é um meio especificamente vocacionado (e, sobretudo, único) para o exercício da actividade funerária de forma transparente e digna. Não o é, desde logo, porque o processo de constituição de uma sociedade nenhuma conexão apresenta com a actividade funerária. E, também não o é, porque a forma societária só por si não fornece garantias absolutas do exercício de uma (qualquer) actividade de modo transparente e digno.
Não se trata, aliás, de uma exigência que se prende com fins de saúde pública e de tutela do interesse público, como acontece, por exemplo, com a reserva legal da actividade farmacêutica (v. o Acórdão 187/2001, www.tribunalconstitucional.pt).
A qualidade do exercício da actividade funerária é, antes, assegurada por exigências que se prendem com o respectivo exercício e com o funcionamento das entidades que realizam serviços fúnebres, exigências cujo respeito deve ser rigorosamente controlado.
[...] constata-se que a exigência de constituição sob a forma societária, com o inerente fim lucrativo, não se revela mais garantística que a organização inerente a uma associação mutualista, sem intenção lucrativa, apenas com uma finalidade de apoio social em benefício dos associados. De resto, numa perspectiva institucional, existe, para o efeito que nos presentes autos se destaca, uma semelhança significativa entre a associação e a sociedade, já que a ambas as entidades é inerente uma organização jurídica (e social) que de igual modo cria condições para um exercício digno da actividade em questão (entre outras).
Por outro lado, às anteriores razões acresce a tutela constitucional do sector cooperativo (artigo 61.º da Constituição), tutela essa que se estende naturalmente às associações mutualistas que se fundam nos princípios cooperativos, exercendo actividades de apoio ou protecção social em benefício dos associados, fora dos quadros da iniciativa privada empresarial (cf. o artigo 2.º, n.º 2, do Código das Associações Mutualistas).
Em face de todas estas razões, não existe fundamento para vedar às associações mutualistas o exercício da actividade funerária em benefício dos seus associados no cumprimento dos princípios que regem essas instituições.
A restrição constante da norma do artigo 6.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 206/2001, de 27 de Julho, discrimina, pois, sem fundamento legítimo, as associações mutualistas, pelo que se afigura inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.» É este entendimento, fundado no princípio da igualdade - e também na tutela constitucional do sector cooperativo -, que agora se reitera.
Desde logo, a norma em causa não se conforma ao princípio da igualdade, tal como este Tribunal o tem conceptualizado numa jurisprudência de largos anos. Escreveu-se a propósito no Acórdão 187/2001 (Diário da República, 2.ª série, de 26 de Junho de 2001):
«É sabido que o princípio da igualdade, tal como tem sido entendido na jurisprudência deste Tribunal, não proíbe ao legislador que faça distinções - proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes. É esta, aliás, uma formulação repetida frequentemente por este Tribunal (cf., por exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.os 39/88, 325/92, 210/93, 302/97, 12/99 e 683/99, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente, 11.º vol., pp. 233 e segs., 23.º vol., pp. 369 e segs., 24.º vol., pp. 549 e segs., e 36.º vol., pp. 793 e segs., e no Diário da República, 2.ª série, de 25 de Março de 1999 e de 3 de Fevereiro de 2000).
Como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera, pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante.
Ao impor ao legislador que trate de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual, esse princípio supõe, assim, uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. E, justamente, a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade e, consequentemente, a justificação para o tratamento desigual não podem ser arbitrárias. Antes tem de se poder considerar tal justificação para a distinção como razoável, constitucionalmente relevante.
O princípio da igualdade apresenta-se, assim, como um limite à liberdade de conformação do legislador. Como se salientou no Acórdão 425/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10.º vol., pp. 451 e segs.):
"O âmbito de protecção do princípio da igualdade abrange diversas dimensões:
proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação pelos poderes públicos de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 2.ª ed., Coimbra, 1984, pp. 149 e segs.).
A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo do controlo.
Todavia, a vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente.
Só existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por carência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada.
Por outro lado, as medidas de diferenciação devem ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, não se baseando em qualquer razão constitucionalmente imprópria."
Mais recentemente, no Acórdão 409/99 (Diário da República, 2.ª série, de 10 de Março de 1999) disse-se que:
"O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (cf., quanto ao princípio da igualdade, entre outros, os Acórdãos n.os 186/90, 187/90, 188/90, 1186/96 e 353/98, publicados no Diário da República, respectivamente, de 12 de Setembro de 1990 e de 12 de Fevereiro de 1997, e o último ainda inédito)."
E no Acórdão 245/2000 (Diário da República, 2.ª série, de 3 de Novembro de 2000) salientou-se que "tem, de há muito, vindo a afirmar este Tribunal que 'é sabido que o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias - e assumem, desde logo, este carácter as diferenciações de tratamentos fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º da lei fundamental -, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot)' (cf., por entre muitos outros, o Acórdão 1186/96, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Fevereiro de 1997), ou, dito ainda de outra forma, o 'princípio da igualdade [...] impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e se trate diferentemente o que diferente for. Não proíbe as distinções de tratamento, se materialmente fundadas; proíbe, isso sim, a discriminação, as diferenciações arbitrárias ou irrazoáveis, carecidas de fundamento racional' (v. g., o Acórdão 1188/96, ob. cit., 2.ª série, de 13 de Fevereiro de 1997)".» Ora, pelo que se deixou dito no citado Acórdão 236/2005, não se vislumbra qualquer fundamento legítimo e racional para o tratamento discriminatório das associações mutualistas relativamente ao exercício da actividade funerária, surgindo como inadequada às finalidades da lei a proibição do exercício de tal actividade por estas associações em benefício dos seus associados. Salienta-se, ainda, que as finalidades não lucrativas destas associações - e, no caso, apenas desenvolvidas em proveito dos seus associados - podem atenuar, ou mesmo eliminar, o risco de ocorrência de «situações menos transparentes», que o legislador - e desde o Decreto-Lei 47838 - visou prevenir.
E não deixará, ainda, de se evidenciar que, sujeitas as associações mutualistas à tutela do Estado, nos termos já referidos, se poderá considerar reforçada a garantia de observância das imposições estabelecidas para o exercício da actividade funerária no Decreto-Lei 206/2001.
Em suma, pois, impõe-se concluir que a norma ínsita no artigo 6.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 206/2001, em conjugação com o disposto no artigo 5.º do mesmo diploma legal, enquanto veda às associações mutualistas o exercício da actividade funerária, viola o princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º da Constituição.
IV - Efeitos da declaração de inconstitucionalidade
Na sua resposta, o Primeiro-Ministro requer que, no caso de ser declarada a inconstitucionalidade da norma em causa, os efeitos da declaração se produzam apenas a partir da data da publicação, nos termos do artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, por razões de segurança jurídica.
Não se vislumbram, porém, razões de segurança jurídica - aliás não concretizadas na resposta - que possam justificar a restrição dos efeitos da inconstitucionalidade.
V - Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei 206/2001, de 27 de Julho, em conjugação com o disposto no artigo 5.º do mesmo diploma, enquanto exclui as associações mutualistas do exercício da actividade funerária aos seus associados, por violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.Lisboa, 21 de Novembro de 2006. - Maria João Antunes - Vítor Gomes - Mário José de Araújo Torres - Maria Helena Brito - Maria Fernanda Palma - Rui Manuel Moura Ramos - Paulo Mota Pinto - Benjamim Rodrigues - Gil Galvão (votei a decisão nos termos da declaração anexa) - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida quanto ao conhecimento e quanto ao fundamento da inconstitucionalidade. Junto declaração) - Bravo Serra (vencido nos termos da declaração de voto da Exma. Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza, para a qual, com vénia, remeto) - Carlos Pamplona de Oliveira (vencido quer quanto à delimitação do objecto do pedido quer quanto à decisão da inconstitucionalidade da norma, nos termos da declaração de voto em anexo) - Artur Maurício.
Declaração de voto
1 - Votei a inconstitucionalidade da norma identificada na decisão, afastando-me, todavia, da fundamentação utilizada no acórdão, no essencial pelas razões que, sumariamente, passo a expor:1.1 - Em primeiro lugar, porque considero não existir, no caso concreto, violação do princípio da igualdade. Desde logo e à partida, porque são diferentes as entidades em causa: de um lado sociedades comerciais e de outro associações mutualistas, sendo certo que se me afigura perfeitamente legítimo e razoável que o legislador, no âmbito da sua liberdade de conformação e dentro dos parâmetros constitucionais, restrinja a actividade de prestação de serviços funerários ao público em geral às agências funerárias, constituídas estas sob qualquer das formas societárias legalmente permitidas. Por outro lado, porque, também no âmbito da prestação de serviços, não existe igualdade entre as agências funerárias e as associações mutualistas. Estas não vão competir num mercado aberto com aquelas. Ou seja, a meu ver, a questão não é a de saber se as associações mutualistas podem ser agências funerárias - o que não podem -, mas antes a de saber se lhes é lícito prestar os serviços funerários aos seus associados, tal como tradicionalmente faziam.
E, em tais circunstâncias, não se me afigura violado o princípio da igualdade.
1.2 - Afigura-se-me, porém, que a restrição imposta às associações mutualistas quanto à prestação de serviços funerários aos seus associados - serviços que eram tradicionalmente prestados, constituindo, muitas vezes, parte importante da actividade de algumas destas associações - não será conforme às normas e princípios constitucionais. Na verdade, tendo os cidadãos, em princípio, nos termos do artigo 46.º da Constituição, o direito de constituir associações, que «prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas», e o direito à livre constituição de cooperativas, incluindo as de natureza mutualista (artigos 61.º, n.º 2, e 82.º, n.º 4, alínea d), todos da Constituição), e sendo certo que, nos termos do n.º 5 do artigo 63.º, também da Constituição, «o Estado apoia [...] a actividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social», aquela restrição não passa, seguramente, a exigência de proporcionalidade, expressamente mencionada no n.º 2 do artigo 18.º da lei fundamental, mas, em termos genéricos - como limitação geral ao exercício do poder público -, resultando iniludivelmente do próprio princípio do Estado de direito, consagrado no seu artigo 2.º Ora, no caso em análise, entendo que uma tal restrição não satisfaz o princípio da adequação (a medida restritiva não se revela um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos), nem o princípio da exigibilidade (essa medida restritiva não será exigida para alcançar os fins em vista), nem, tão-pouco, o princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito (por ser manifestamente excessiva e desproporcionada em relação às vantagens que apresenta).
2 - Neste contexto, votei a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma que se retira da conjugação da alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei 206/2001, de 27 de Julho, com o artigo 5.º do mesmo diploma, na medida em que exclui as associações mutualistas da prestação de serviços funerários aos seus associados. - Gil Galvão.
1 - Votei vencida quanto ao conhecimento do pedido por considerar que o requerente o delimitara formalmente à «norma constante do artigo 6.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 206/2001, de 27 de Julho, na medida em que exclui as associações mutualistas do exercício da actividade funerária aos seus associados», não podendo o Tribunal Constitucional, em meu entender, alargá-lo a outras normas, como se fez no acórdão aprovado.
Assim sendo, seria a meu ver inútil a apreciação do pedido, porque, ainda que fosse julgada inconstitucional a norma referida, sempre continuariam as associações mutualistas a não poder exercer «actividade funerária», mesmo que apenas em relação aos seus associados, uma vez que se mantinha o exclusivo do correspondente exercício às agências funerárias, nos termos do disposto no artigo 5.º do mesmo diploma, e que as associações mutualistas não podem ser agências funerárias (artigos 3.º e 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei 206/2001 e artigo 2.º do Código das Associações Mutualistas, aprovado pelo Decreto-Lei 72/90, de 3 de Março).
2 - Tendo, todavia, ficado vencida quanto à delimitação do objecto do pedido e, consequentemente, quanto ao respectivo conhecimento, votei a decisão de inconstitucionalidade, mas unicamente por violação do princípio da proporcionalidade, contido no princípio do Estado de direito (artigo 2.º da Constituição).
Entendo que a exclusão das associações mutualistas se revela manifestamente inadequada ao objectivo prosseguido pelo legislador com a regulamentação da «actividade funerária», e do qual o acórdão dá conta. Assim resulta dos fins que lhes são atribuídos e, consequentemente, da actividade de solidariedade social que desenvolvem, da limitação da sua actuação ao âmbito dos respectivos associados e, naturalmente, como se observa no acórdão, da tutela que a lei impõe ao Estado, nomeadamente quanto à fiscalização do cumprimento das regras impostas no exercício da actividade funerária (nomeadamente pelo Decreto-Lei 206/2001).
Não votei, assim, a violação do princípio da igualdade, já que não considero demonstrado que as diferenças entre uma associação mutualista e uma sociedade comercial não sejam suficientes para que o legislador possa exigir, para que uma empresa possa ser uma agência funerária, a sua constituição como sociedade. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.
Declaração de voto
Votei em sentido contrário ao do presente acórdão quanto à questão da delimitação do objecto do pedido e quanto à decisão sobre a inconstitucionalidade da norma impugnada.Na verdade, entendo que nos processos de fiscalização sucessiva de normas não é lícito ao Tribunal ampliar o pedido, nele abrangendo norma, ou normas, não especificamente indicadas pelo requerente no seu objecto.
No caso presente, salvo o devido respeito, o Tribunal não podia, como fez, ter declarado, «com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei 206/2001, de 27 de Julho, em conjugação com o disposto no artigo 5.º do mesmo diploma», pois o requerente apenas lhe tinha requerido que apreciasse a «norma constante do artigo 6.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 206/2001, de 27 de Julho». Embora reconheça que sem a consideração da norma constante do artigo 5.º do diploma não era possível extrair a interpretação normativa censurada pelo requerente, ainda assim a especial competência do Tribunal nesta matéria proibiria, em meu entender, a referida ampliação. Nesta conformidade, o Tribunal, limitando-se a analisar a norma indicada pelo requerente, tendo concluído que ela não consente a interpretação alegadamente inconstitucional que o requerente dela extraiu, deveria recusar-se a conhecer do pedido.
Mas, ultrapassado este obstáculo, entendo que as normas consideradas não ofendem a Constituição.
Há, com efeito, razões que justificam que o legislador reserve o exercício da actividade funerária a entidades cuja estrutura jurídica permite a sua responsabilização pelo incumprimento das exigências legais que se verificam nesta área, o que manifestamente não é garantido pelas associações mutualistas.
Não há, assim, razões para que se descortine nestas normas uma ofensa aos princípios e normas constitucionais invocados no acórdão. - Carlos Pamplona de Oliveira.