I - Relatório. - 1 - Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Comarca de Tomar, foi proferida a seguinte decisão:
"O Ministério Público, acusando o arguido dos factos descritos de fls. 46 a 49, imputa-lhe, além do mais, a autoria material de um crime de desobediência qualificada, previsto e punível pelas disposições conjugadas do artigo 348.º, n.os 1 e 2, do Código Penal e pelo artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção emergente do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro.
Todavia, salvo o devido respeito, estamos em crer que, nesta parte, os factos descritos na acusação correspondem, antes, ao crime de violação de proibições ou interdições, previsto e punível pelo artigo 353.º do Código Penal.
Senão, vejamos.
Na acusação vai dito que ao arguido foi aplicada, por sentença proferida no dia 15 de Junho de 2004, transitada em julgado no dia 30 de Junho de 2004, no âmbito do processo comum n.º 431/03.4.GBTMR, do 1.º Juízo deste Tribunal, a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 12 meses.
Todavia, o arguido viria - de acordo com a acusação - a conduzir veículo automóvel no dia 18 de Junho de 2005 (ou seja, ainda, dentro do prazo de 12 meses da proibição, contada esta, como é nosso entendimento, a partir do trânsito da respectiva sentença).
Daqui conclui a digna magistrada do Ministério Público que praticou o arguido o referido crime de desobediência qualificada, já que estaria bem ciente de que não podia conduzir veículos a motor e consciente de que a sua conduta era ilícita e penalmente punível.
Estamos em crer que o entendimento da digna magistrada do Ministério Público se estriba no facto de o Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, ter alterado a norma que previa a incriminação da conduta de todo aquele que conduzisse estando inibido de o fazer, por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva.
Na verdade, no domínio da precedente redacção do Código da Estrada, dispunha o n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada que quem conduzisse veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva era punido por desobediência qualificada.
Actualmente, o n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, dispõe no sentido de que quem praticar qualquer acto estando inibido ou proibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva que aplique uma sanção acessória é punido por crime de desobediência qualificada.
Como é bom de ver, existem relevantes diferença entre uma e outra das redacções. Assim, quando antes se dizia: 'quem conduzisse'; ora diz-se: 'quem praticar qualquer acto'; onde anteriormente se lia: 'estando inibido de o fazer';
hoje, lê-se: 'estando inibido ou proibido de o fazer'.
Parece, pois, que o legislador pretendeu estender a cominação por desobediência qualificada não só à conduta do indivíduo que conduza estando inibido de o fazer por força de decisão administrativa, como também, em derrogação da norma que prevê a tipificação do crime de violação de proibições ou interdições, à conduta do indivíduo que conduza um veículo automóvel estando proibido de o fazer por força de pena acessória aplicada por sentença criminal.
Sucede que, a nosso ver, a norma que se extrai do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada na redacção actual, quando interpretada neste último sentido, é organicamente inconstitucional.
Com efeito, aquele n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada reveste a natureza de uma norma penal. Ou seja, define os pressupostos objectivos de um tipo legal de crime, no caso, o de desobediência qualificada.
Conforme refere Cristina Líbano Monteiro, 'na alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, o crime de desobediência parece destinado a servir de norma auxiliar (em sentido forte, uma vez que fixa as condições básicas do ilícito e a sua pena) a alguns preceitos de direito penal extravagante que incriminam um determinado comportamento desobediente, sem contudo fixarem uma moldura penal própria'.
O Tribunal Constitucional teve já, de resto, oportunidade de dilucidar a questão de saber se, quanto ao crime de desobediência qualificada, a disposição legal a que se refere o n.º 2 do artigo 348.º pode ser uma norma contida em qualquer diploma legislativo ou apenas uma norma penal, a implicar, neste caso, que conste de lei parlamentar ou decreto-lei parlamentarmente autorizado, sob pena de padecer de inconstitucionalidade orgânica.
Entendeu aquele Tribunal que 'independentemente de saber se é ou não possível considerar que a desobediência simples se encontra tipificada no citado artigo 348.º, quanto ao critério da infracção e quanto aos seus destinatários no tocante às condutas realmente proibidas, já se afigura indiscutível que a desobediência qualificada não encontra ali qualquer critério distintivo relativamente à desobediência simples, pelo que a disposição legal 'que cominar a punição da desobediência qualificada procede necessariamente, ela própria, à definição do tipo de crime'.
Daí que tenha entendido, também, ser organicamente inconstitucional uma disposição legal que comine a desobediência qualificada, quando tal disposição não conste de lei parlamentar ou decreto-lei autorizado.
De resto, observando as anteriores alterações ao Código da Estrada, logo se vê que, quando o Governo decidiu proceder a modificações no regime sancionatório e, em especial, no que concerne aos ilícitos criminais que entendeu tipificar naquele diploma ou em matérias com ele relacionados, fê-lo habilitado por lei de autorização legislativa.
Assim sucedeu com a significativa alteração levada a efeito pelo Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, no uso da autorização legislativa concedida pelos artigos 1.º a 3.º da Lei 97/97, de 23 de Agosto.
Relembre-se que a alínea b) do artigo 3.º desta lei de autorização legislativa dispunha, muito concretamente, que o Governo ficava autorizado a estabelecer a punição como crime de desobediência qualificada do exercício da condução por pessoa inibida de conduzir por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva.
Sucede, porém, que a lei de autorização legislativa com base na qual o Governo aprovou o Decreto-Lei 44/2005 - a Lei 53/2004, de 4 de Novembro - não credenciava o Governo a tipificar qualquer conduta como crime, nem a alterar os pressupostos objectivos do tipo legal de crime de desobediência qualificada, que, anteriormente, estava previsto pelas disposições conjugadas do artigo 348.º, n.º 2, do Código Penal e do artigo 139.º, n.º 4, do Código da Estrada.
Na verdade, 'se as autorizações legislativas não querem limitar-se a cheques em branco, necessário se torna especificar o objecto da autorização, e não indicar apenas, de um modo vago, genérico ou flutuante, as matérias que irão ser objecto de decretos-leis delegados (princípio da especialidade das autorizações legislativas)', sendo certo que deve existir uma relação de conformidade entre o parâmetro superior representado pela lei autorizante e o decreto-lei que faz uso das autorizações legislativas, sob pena de, quando o decreto-lei incidir sobre uma matéria de competência reservada sem que tenha havido qualquer autorização legislativa se verificar uma hipótese de inconstitucionalidade orgânica.
Ora, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre a definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal, salvo autorização ao Governo.
Assim sendo, na ausência de autorização legislativa, é a norma do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada, na redacção resultante do Decreto-Lei 44/2005, na interpretação segundo a qual comete um crime de desobediência qualificada todo aquele que conduzir um veículo automóvel estando proibido de o fazer por força de pena acessória aplicada por sentença criminal transitada em julgado, organicamente inconstitucional, pelo que recuso aplicar uma tal norma no caso dos autos (artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa).
Resta dizer que, expurgado o ordenamento daquela norma, sempre sobra que a conduta do arguido, tal como descrita na acusação, continua a ser passível de censura criminal, na exacta medida em que se subsume à previsão do artigo 353.º do Código Penal: crime de violação de proibições ou interdições.
E, por assim ser, recebo a acusação pública de fls. 46 a 49, na medida em que os factos aí narrados correspondem à prática, pelo arguido, de um crime de violação de proibições ou interdições, previsto e punível pelo artigo 353.º do Código Penal, em concurso efectivo com a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelas disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 292.º do Código Penal e da alínea a) do n.º 1 do artigo 69.º do mesmo diploma legal."
O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade obrigatório, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro.
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
"1 - Qualquer que seja o sentido da decisão sobre a questão normativa que é objecto do recurso, a acusação deduzida contra o arguido será sempre recebida pelos factos aí descritos que integram a prática de um crime contra a autoridade pública, a que corresponde pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, motivo pelo qual, atenta a função instrumental do presente recurso de constitucionalidade, não deverá conhecer-se do seu objecto.
2 - A não se entender assim, deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade orgânica, que levou a decisão recorrida a recusar a aplicação da norma do artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada na redacção resultante do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, uma vez que o Governo legislou sobre matéria, a que alude a alínea c) do artigo 165.º, n.º 1, da Constituição, não tendo para tanto prévia autorização legislativa."
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação. A) Questão prévia. - 2 - O Ministério Público invoca a inutilidade da apreciação da conformidade à Constituição da norma desaplicada, já que a acusação contra o recorrido sempre será recebida em face da qualificação dos factos de acordo com o artigo 353.º do Código Penal.
Ora, é verdade que os factos em causa não sofreram qualquer alteração e que as penas previstas na norma do Código da Estrada e na norma do Código Penal são idênticas. No entanto, a qualificação de uma dada factualidade à luz de um determinado preceito tem consequências jurídicas que se repercutem (podem repercutir-se) na determinação da responsabilidade criminal do agente. Com efeito, o princípio da legalidade penal implica a vinculação da qualificação jurídica que o operador judiciário faz a um determinado regime jurídico, nomeadamente no que respeita à sucessão de leis no tempo. Na verdade, a qualificação dos factos à luz da norma do Código da Estrada submete a situação à hipotética alteração favorável do regime penal estradal, da qual o arguido sempre beneficiaria, em face do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal.
Desse modo, subsiste o interesse da apreciação da questão de constitucionalidade.
B) O artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada. - 3 - O tribunal a quo recusou a aplicação da norma do artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica.
O artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada tem a redacção do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro. Este preceito alarga a incriminação da desobediência qualificada que resultava do artigo 139.º, n.º 4, do Código da Estrada, na redacção anterior. Com efeito, enquanto esta disposição previa a punição da condução por quem estivesse inibido de o fazer por sentença ou decisão administrativa, o referido artigo 138.º, n.º 2, consagra a punição do agente que pratique qualquer acto para cuja prática esteja proibido ou inibido.
Cabe sublinhar que a norma a que se refere o artigo 348.º, n.º 2, do Código Penal (a norma que prevê o comportamento a punir como desobediência qualificada) consubstancia ainda a definição de crime, pelo que a sua emissão está abrangida pela reserva parlamentar a que se refere o artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição.
Ora, da Lei 53/2004, de 4 de Novembro, lei que autorizou o Governo a proceder à revisão do Código da Estrada, não consta qualquer referência à matéria penal em causa.
A nova norma, ainda que com zonas de sobreposição, abrange hipóteses distintas e implica ponderações diferentes, nomeadamente no que respeita à variação relativa da gravidade da ilicitude dos vários comportamentos tipificados, com consequências para os comportamentos que agora são abrangidos. Com efeito, o n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada, na redacção anterior ao Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, previa a punição por desobediência qualificada para quem conduzisse veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, ao passo que o n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, prevê a mesma punição quer para quem praticar qualquer acto, quer esteja inibido quer esteja proibido de o fazer. Independentemente de saber se, noutras hipóteses em que não existisse uma exacta coincidência de factualidade típica, ainda assim por razões de ilicitude material se teria de reconhecer o carácter inovatório da norma em causa, o certo é que, no presente caso, o agente violou a proibição de condução de veículo a motor decorrente da sanção acessória aplicada por sentença transitada em julgado que o condenou por crime rodoviário. Como se verifica, não existe total coincidência entre a factualidade típica constante das duas normas incriminadoras.
Conclui-se, pois, que o Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, procedeu a alterações para as quais não foi concedida autorização legislativa, pelo que se confirmará o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
III - Decisão. - 4 - Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide confirmar o juízo de inconstitucionalidade orgânica constante da decisão recorrida.
Lisboa, 18 de Outubro de 2006. - Maria Fernanda Palma - Paulo Mota Pinto - Benjamim Rodrigues - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.