Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão do Tribunal Constitucional 187/2009, de 17 de Junho

Partilhar:

Sumário

Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que submete ao regime do crime de desobediência qualificada quem conduzir veículos automóveis estando proibido de o fazer por força da aplicação da pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal, constante de sentença criminal transitada em julgado, por violação do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa. (Proc. nº 760/08)

Texto do documento

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/2009

Processo 760/08

Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que determina que seja punido por crime de desobediência qualificada quem conduzir veículos automóveis estando proibido de o fazer por força da aplicação da pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal, constante de sentença criminal transitada em julgado.

O pedido funda-se no facto de o Tribunal Constitucional já ter julgado, no âmbito da fiscalização concreta, tal norma organicamente inconstitucional, por preterição do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, no Acórdão 574/2006 e nas decisões sumárias n.os 58/2008 e 137/2008.

Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Primeiro-Ministro, em resposta, ofereceu o merecimento dos autos.

2 - Discutido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, cumpre formular a decisão em conformidade com a orientação fixada.

II - Fundamentação

3 - A norma que agora é objecto do pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral consta do artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estada, na redacção dada pelo Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, que estatui o seguinte:

«Quem praticar qualquer acto estando inibido ou proibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva que aplique uma sanção acessória é punido por crime de desobediência qualificada.» Este preceito remete, pois, para o artigo 348.º, n.º 2, do Código Penal, que estabelece a pena aplicável ao crime de desobediência qualificada nos termos seguintes:

«A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.» A razão pela qual o Tribunal, em sede de fiscalização concreta nas decisões invocadas pelo requerente, julgou organicamente inconstitucional a norma do artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, foi o facto de ela ter alargado o âmbito de aplicação da norma que pretendeu substituir, sem que houvesse na Lei 53/2004, de 4 de Novembro, que concedeu ao Governo a autorização para proceder à revisão do Código da Estrada ao abrigo da qual foi publicado o Decreto-Lei 44/2005, qualquer referência à possibilidade de o fazer.

De facto, o artigo 139.º, n.º 4, da redacção anteriormente vigente do mesmo Código da Estrada, tinha o seguinte teor:

«Quem conduzir veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva é punido por desobediência qualificada.» Ora, limitando-nos neste passo à comparação das versões do Código da Estrada em sucessão, o teor destes dois preceitos não coincide. Como se explicou no Acórdão 114/08, houve uma alteração do âmbito de aplicação:

«Cotejando os preceitos transcritos, verifica-se que, além da diferente numeração, e da alteração da epígrafe do preceito, existem as seguintes diferenças entre os textos legais em comparação:

i) Onde anteriormente se dizia 'Quem conduzir veículo a motor [...]', agora

diz-se 'Quem praticar qualquer acto';

ii) Onde se dizia '[...] estando inibido de o fazer', passou a dizer-se '[...] estando inibido ou proibido de o fazer'.» Na parte em que a norma não é inovadora, explica o mesmo Acórdão, não há qualquer inconstitucionalidade:

«Com efeito, o Tribunal já por diversas vezes afirmou, em jurisprudência que remonta à Comissão Constitucional, que o facto de o Governo aprovar actos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República não determina, por si só e automaticamente, a invalidação das normas que assim decretem, por vício de inconstitucionalidade orgânica. Força é que se demonstre que as normas postas sob observação não criaram um regime jurídico materialmente diverso daquele que até essa nova normação vigorava, limitando-se a retomar e a reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente [Cf. os Acórdãos n.os 502/97, 589/99, 377/02, 414/02, 450/02, 416/03 e 340/05 estes tirados em Secção e publicados no Diário da República, 2.ª série, de 4 de Novembro de 1998, de 20 de Março de 2000, de 14 de Fevereiro de 2002, de 17 de Dezembro de 2002, de 12 de Dezembro de 2002, de 6 de Abril de 2004 e de 29 de Julho de 2005, bem como o Acórdão 123/04 (plenário) publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 30 de Março de 2004. Cf. ainda, aliás com posição discordante, a indicação de Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. v, pp. 234/235].» Contudo, a norma do artigo 138.º, n.º 2, agora impugnada, não se limitou a substituir o antigo artigo 139.º, n.º 4, do Código da Estrada; alargou o seu âmbito de aplicação. Foi, por isso, julgada organicamente inconstitucional no Acórdão 574/2006 e nas decisões sumárias n.os 58/2008 e 137/2008.

Os fundamentos para esse julgamento de inconstitucionalidade foram assim expressos no Acórdão 574/2006:

«O artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, tem a redacção do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro. Este preceito alarga a incriminação da desobediência qualificada que resultava do artigo 139.º, n.º 4, do Código da Estrada, na redacção anterior. Com efeito, enquanto esta disposição previa a punição da condução por quem estivesse inibido de o fazer por sentença ou decisão administrativa, o referido artigo 138.º, n.º 2, consagra a punição do agente que pratique qualquer acto para cuja prática esteja proibido ou inibido.

Cabe sublinhar que a norma a que se refere o artigo 348.º, n.º 2, do Código Penal (a norma que prevê o comportamento a punir como desobediência qualificada) consubstancia ainda a definição de crime, pelo que a sua emissão está abrangida pela reserva parlamentar a que se refere o artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição.

Ora, da Lei 53/2004, de 4 de Novembro, lei que autorizou o Governo a proceder à revisão do Código da Estrada, não consta qualquer referência à matéria penal em causa.

A nova norma, ainda que com zonas de sobreposição, abrange hipóteses distintas e implica ponderações diferentes, nomeadamente no que respeita à variação relativa da gravidade da ilicitude dos vários comportamentos tipificados, com consequências para os comportamentos que agora são abrangidos. Com efeito, o n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada, na redacção anterior ao Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, previa a punição por desobediência qualificada para quem conduzisse veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, ao passo que o n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, prevê a mesma punição quer para quem praticar qualquer acto, quer esteja inibido quer esteja proibido de o fazer. [...] Como se verifica, não existe total coincidência entre a factualidade típica constante das duas normas incriminadoras.

Conclui-se, pois, que o Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, procedeu a alterações para as quais não foi concedida autorização legislativa, pelo que se confirmará o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.» O carácter inovador da norma em crise, na dimensão agora impugnada, foi bem explicitado no já citado Acórdão 114/08, de harmonia com o texto que se segue:

«O legislador pretendeu abranger na punição da desobediência qualificada prevista no n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada não só o agente que conduza estando inibido de o fazer por força de decisão administrativa ou judicial, como sanção acessória de contra-ordenação (anterior n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada), mas também a conduta do indivíduo que viole, no domínio rodoviário, as proibições ou interdições que resultem da imposição de pena acessória por sentença criminal (artigo 353.º do Código Penal). Unificou-se a punição criminal de condutas que se traduzam em desrespeito de decisões judiciais ou administrativas que imponham ao agente proibições ou inibições de conduzir ou outras condutas no domínio da circulação rodoviária, seja qual for a natureza da infracção (crime ou contra-ordenação) cuja prática pelo agente levou a essa proibição de agir ou a natureza da decisão que a impôs (decisão judicial ou administrativa).

Nesta interpretação, o n.º 2 do artigo 138.º, na nova redacção, numa parte (dimensão ou segmento ideal) sobrepõe-se e noutra é inovador, relativamente ao anterior n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada. Seguramente que se limita a manter o regime anterior na parte em que sanciona o desrespeito pelo cumprimento da inibição de conduzir veículo a motor resultante da imposição de sanção acessória pela prática de contra-ordenações, porque essa conduta, já punida nos mesmos termos na redacção anterior do Código, cabe na expressão «qualquer acto». E é inovador na parte em que transpõe para o Código da Estrada o desrespeito por proibições atinentes à circulação rodoviária, impostas a título de pena acessória ou medida de segurança por sentença criminal, subtraindo-a do domínio geral da punição do não cumprimento das obrigações impostas por sentença criminal.» E a mesma consideração foi posteriormente reiterada na decisão sumária n.º 137/08:

«A distinção entre a inibição de conduzir e a proibição de conduzir veículos com motor consiste em que a primeira é uma sanção acessória aplicável às contra-ordenações graves e muito graves (artigo 139.º, n.os 1 a 3, do Código da Estrada, na redacção anterior ao Decreto-Lei 44/2005, e artigo 138.º, n.º 1, do mesmo Código, na redacção deste diploma) e a segunda é uma pena acessória aplicável no caso da condenação por determinados crimes (artigo 69.º do Código Penal). Por isso, a redacção dada ao artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada pelo Decreto-Lei 44/2005 é divisível em duas partes: uma, não inovatória, em que se limita a manter o regime anterior na parte em que sanciona o desrespeito pelo cumprimento da inibição de conduzir imposta como sanção acessória à condenação por contra-ordenação rodoviária grave ou muito grave; outra, inovatória, em que estende a incriminação por desobediência qualificada ao desrespeito pelas proibições impostas, como pena acessória, em condenações criminais, subtraindo-a ao precedente regime geral de sancionamento da violação de proibições ou interdições impostas por sentença criminal, constante do artigo 353.º do Código Penal.

Tendo o Decreto-Lei 44/2005 sido editado ao abrigo da Lei 53/2004, de 4 de Novembro, que não continha autorização ao Governo para inovar em matéria de definição de crimes, a redacção dada ao artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada é organicamente inconstitucional na parte em que inovatoriamente manda punir como desobediência qualificada a condução de veículos por quem esteja proibido de o fazer por sentença criminal [...].» 4 - É certo que o artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, na parte em que determina que seja punido por crime de desobediência qualificada quem conduzir veículos automóveis estando proibido de o fazer por força da aplicação da pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal constante de sentença criminal transitada em julgado, veio apenas dar uma nova qualificação («desobediência qualificada») a factos que eram e são punidos, nos termos do artigo 353.º do Código Penal, como «violação de proibição ou interdição». E é também certo que essa diferente qualificação será por via de regra irrelevante, pois as penas aplicáveis à desobediência qualificada e à violação de proibição ou interdição são as mesmas: «pena de prisão até dois anos ou pena de multa até 240 dias».

Nessa medida, poderia dizer-se que não houve inovação, não devendo, portanto, declarar-se a inconstitucionalidade orgânica por falta de autorização legislativa, de acordo com a jurisprudência do Tribunal mencionada no Acórdão 114/08.

Todavia, há que ter presente que condutas que fariam o agente incorrer num crime de violação de proibições ou interdições passaram a ser susceptíveis de punição como desobediência qualificada, uma vez que, quanto à incriminação do desrespeito pela pena acessória de proibição de conduzir, passou a haver uma relação de especialidade entre a norma do Código da Estrada e a norma do Código Penal. Ora, a diferente qualificação poderá não ser totalmente irrelevante, em especial no caso de futuras medidas legislativas cuja aplicação implique referências à qualificação ou conexões sistemáticas. Foi o que ficou afirmado no Acórdão 574/06, cujos termos se transcrevem:

«É verdade que os factos em causa não sofreram qualquer alteração e que as penas previstas na norma do Código da Estrada e na norma do Código Penal são idênticas.

No entanto, a qualificação de uma dada factualidade à luz de um determinado preceito tem consequências jurídicas que se repercutem (podem repercutir-se) na determinação da responsabilidade criminal do agente. Com efeito, o princípio da legalidade penal implica a vinculação da qualificação jurídica que o operador judiciário faz a um determinado regime jurídico, nomeadamente no que respeita à sucessão de leis no tempo. Na verdade, a qualificação dos factos à luz da norma do Código da Estrada submete a situação à hipotética alteração favorável do regime penal estradal, da qual o arguido sempre beneficiaria, em face do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal.» Visto que a qualificação dos factos respeita à definição legal do crime, o Governo não pode, sem uma prévia lei de autorização, alterar essa qualificação. Ao fazê-lo, estará a alterar a definição legal de um crime, entrando, desse modo, em colisão directa com o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, que reserva à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a competência para legislar sobre a «definição dos crimes» e «respectivos pressupostos».

A inovação é ainda patente, mesmo para quem não acompanhe inteiramente as razões cima referidas, se levarmos em consideração a natureza do bem jurídico protegido em cada um dos tipos legais entre os quais o Decreto-Lei 44/2005 fez transitar a punição da conduta considerada.

É certo que o crime de desobediência e o crime de violação de proibições ou interdições, ambos inseridos no capítulo do Código Penal dos «crimes contra a autoridade pública» (capítulo ii - Dos crimes contra a autoridade pública, do título v - Dos crimes contra o Estado, da parte especial do Código) mas em diferentes secções, protegem o mesmo bem jurídico geral ou primário que pode designar-se como a autonomia intencional do Estado (Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, t. iii, p. 336). Em qualquer deles, o agente frustra as intenções estaduais manifestadas num acto jurídico-público individual e concreto que lhe é dirigido, fazendo prevalecer a sua vontade sobre legítimas imposições, proibições ou interdições emanadas da autoridade pública (administração ou tribunais) de que é destinatário.

Mas cada um dos tipos de ilícito em referência protege um bem jurídico específico ou intermédio que, sendo concretização ou refracção daquele bem jurídico mais abrangente, o intérprete tem de ter presente ao procurar «soluções justas e operatórias» para os problemas concretos de aplicação. O «bem jurídico» é um topos argumentativo fundamental na interpretação e aplicação da lei penal.

Mediante a incriminação prevista no artigo 353.º do Código Penal o legislador constitucionalmente legitimado tratou de sancionar o incumprimento de sanções impostas por sentença criminal que não possuam outro meio de assegurar a sua eficácia. Com isso destacou, enquanto valor merecedor de protecção penal, a efectividade da sentença criminal impositora de penas acessórias, quer relativamente às demais decisões dos tribunais - cuja violação não tem o reforço da tutela penal ou, quando o tem, é a título de desobediência (cf. artigo 391.º do Código de Processo Civil) - , quer dos gerais mandamentos qualificados da autoridade pública. Ora, a norma em causa tem por efeito, relativamente às sentenças que imponham penas acessórias relativas à condução de veículos com motor, diluir esse âmbito de protecção na proibição mais extensa da frustração das ordens ou mandados legítimos da autoridade pública.

Esta alteração de lugar sistemático não é isenta de significado jurídico-político e de valor simbólico. A protecção penal autónoma da «desobediência» às sentenças criminais denota a primazia que na protecção da ordem democrática constitucional se atribui a esse acto do poder público. Pelo menos, para dizê-lo de modo neutral, significa uma intenção diferenciadora relativamente aos demais mandamentos da autoridade pública que se entendem carecidos do reforço de tutela de eficácia pela ameaça penal para que não fiquem inermes. O Decreto-Lei 44/2005, mesmo mantendo a previsão e a pena, concebe para certo tipo de sentenças criminais (as que impõem a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor) protecção a outro título. Não pode, portanto, afirmar-se que a medida legislativa considerada seja uma mera recompilação a todos os títulos neutra, certeza que é necessário que o Tribunal adquira para que possa julgar o defeito da respectiva autoria irrelevante enquanto vício de inconstitucionalidade orgânica, sobretudo num domínio onde imperam exigências de segurança jurídica.

Assim, uma vez que, ao editar a norma em causa, o Governo interveio sem a necessária credencial da Assembleia da República, há que concluir pela violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República.

III - Decisão

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que submete ao regime do crime de desobediência qualificada quem conduzir veículos automóveis estando proibido de o fazer por força da aplicação da pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal, constante de sentença criminal transitada em julgado, por violação do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa.

Lisboa, 22 de Abril de 2009. - Vítor Gomes - Benjamim Rodrigues - Carlos Fernandes Cadilha - Ana Maria Guerra Martins - Mário José de Araújo Torres - Gil Galvão - Joaquim de Sousa Ribeiro - Maria Lúcia Amaral - José Borges Soeiro - Maria João Antunes (votei a decisão nos termos da declaração que junto) - João Cura Mariano (votei a decisão nos termos da declaração que junto) - Rui Manuel Moura Ramos.

Declaração de voto

Votei no sentido da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que submete ao regime do crime de desobediência qualificada quem conduzir veículos automóveis estando proibido de o fazer por força da aplicação da pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal, constante de sentença criminal transitada em julgado, por violação do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa.

Da fundamentação da decisão acompanho exclusivamente a passagem em que se conclui que a alteração de lugar sistemático - o comportamento em causa deixou de ser incriminado no artigo 353.º do Código Penal (violação de proibições) para passar a sê-lo no artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada - não é isenta de significado jurídico-político e de valor simbólico.

Entendendo que as alterações de lugar sistemático e que o «nome» dado às incriminações não são determinantes para a descoberta do bem jurídico protegido no tipo legal de crime, considero que se justificaria um juízo de inconstitucionalidade, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, ainda que a descrição típica constante do Código da Estrada coincidisse totalmente com a do Código Penal.

A reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, em matéria de definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos [artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição], abrange necessariamente a opção de inserir determinada incriminação no Código Penal ou, antes, em legislação extravagante. Trata-se de uma opção que o legislador constitucional reservou ao Parlamento, salvo autorização ao Governo, dado o significado político-criminal de uma tal escolha.

O juízo de inconstitucionalidade funda-se, estritamente, em razões jurídico-políticas atinentes à repartição de competência legislativa entre o Parlamento e o Governo [artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição]. E não em qualquer razão extraída do conteúdo de sentido do princípio da legalidade em matéria criminal. - Maria João Antunes.

Declaração de voto

Subscrevi a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que submete ao regime do crime de desobediência qualificada quem conduzir veículos automóveis, estando proibido de o fazer por força da aplicação da pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal, constante de sentença criminal transitada em julgado, por razões algo diferentes das apontadas na fundamentação deste acórdão.

A condução de veículos automóveis por quem estava proibido de o fazer, devido a ter sido condenado por sentença criminal, transitada em julgado, na pena acessória prevista no artigo 69.º, do Código Penal, anteriormente ao Decreto-Lei 44/2005, era uma conduta que era abrangida pelo tipo legal do artigo 353.º do Código Penal, que genericamente punia criminalmente quem violasse proibições ou interdições impostas por sentença criminal, a título de pena acessória ou de medida de segurança não privativa de liberdade.

O Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, passou a prever no n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada que quem praticasse qualquer acto, estando inibido ou proibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa que aplique uma sanção acessória, era punido por um crime de desobediência qualificada, passando, assim, a abranger as referidas condutas de condução de veículo automóvel por quem estava proibido de o fazer, devido a ter sido condenado por sentença criminal, transitada em julgado, na pena acessória prevista no artigo 69.º, do Código Penal.

A pena prevista para o crime de desobediência qualificada no artigo 348.º, n.º 2, do Código Penal, é exactamente a mesma que se encontra estatuída no artigo 353.º do Código Penal.

Do exposto resulta que o Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, não procedeu a uma nova incriminação, tendo apenas subtraído a incriminação desta conduta da previsão geral do artigo 353.º do Código Penal para um tipo especial, em razão da matéria da proibição, mas abrangendo também as desobediências a sanções administrativas, incluído no Código da Estrada, sem modificação do regime da incriminação.

A alteração levada a cabo pelo Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, nesta matéria traduziu-se, pois, apenas numa diferente inserção sistemática da tipificação como crime da conduta em causa.

Mas, como refere Karl Larenz, a posição sistemática de um preceito na lei pode contribuir para conhecer o contexto significativo (em Metodologia da Ciência do Direito, p. 373, da trad. da 2.ª ed. de Methodenlehere der Rechtswissenschaft, da ed. de 1978, da Fundação Calouste Gulbenkian).

Na verdade, o local e a «companhia» da tipificação de uma determinada conduta como crime fornecem dados interpretativos importantes sobre o seu conteúdo e pressuposições, nomeadamente sobre o bem jurídico protegido com essa incriminação.

Se não parece possível dizer-se, como faz o presente acórdão, que a mera alteração sistemática pode provocar uma modificação do bem jurídico protegido por uma dada incriminação, não deixa de ser verdade que, sendo essa modificação significativa, ela emite sinais de uma determinada vontade legislativa.

Daí que a inserção sistemática da tipificação criminal não seja um elemento neutro, tendo antes um significado jurídico que não pode ser desprezado na actividade interpretativa e aplicativa de um determinado tipo legal de crime.

Fornecendo a inserção sistemática sinais relevantes sobre a «vontade do legislador» na criminalização de uma determinada conduta, ela só pode ser efectuada por quem a Constituição autoriza a proceder à definição dos crimes, penas e respectivos pressupostos, considerando a participação desse elemento nessa definição.

Só o órgão a quem é atribuída a competência para legislar sobre tal matéria poderá proceder à inserção sistemática dos tipos legais de crime por si criados, uma vez que essa operação não deixa de transmitir informações sobre os pressupostos, o conteúdo e as finalidades da operação de criminalização.

Sendo a definição de crimes, penas e respectivos pressupostos matéria da reserva relativa da Assembleia da República, o Governo só poderia proceder à alteração aqui analisada com autorização específica daquele órgão.

Não tendo existido essa autorização, não podia o Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, proceder à deslocação para o artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, da incriminação da conduta aqui em causa, pelo que nessa parte tal norma violou a Constituição. - João Cura Mariano.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/06/17/plain-254694.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/254694.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1998-02-26 - Lei 13-A/98 - Assembleia da República

    Altera a lei orgânica sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2004-11-04 - Lei 53/2004 - Assembleia da República

    Autoriza o Governo a proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio.

  • Tem documento Em vigor 2005-02-23 - Decreto-Lei 44/2005 - Ministério da Administração Interna

    No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, altera o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio e posteriormente alterado. Republicado na íntegra com todas as alterações.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda