Acórdão 245/2002/T. Const. - Processo 146/2002. - Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Fernando Raimundo da Costa Oliveira Beja e Luís Manuel Almeida, com os sinais identificadores dos autos, vieram apresentar reclamação, "nos termos do disposto nos artigos 77.º e 78.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro", do despacho do relator do processo pendente no Supremo Tribunal Militar que não admitiu o recurso por eles interposto para este Tribunal Constitucional com fundamento na sua intempestividade, porque, "sendo o prazo de recurso de 10 dias contados do dia em que foi publicada a decisão decorrida, o recurso foi interposto extemporaneamente".
Na reclamação invocam os reclamantes que o "douto acórdão proferido pelo STM não transitou em julgado", porque os "arguidos não estiveram presentes à sua leitura", o "processo não foi depositado na secretaria" e "os reclamantes não foram notificados da douta sentença proferida pelo STM".
E depois discorrem desta forma:
"11.º É direito constitucional dos arguidos que lhes fossem asseguradas todas as garantias de defesa, incluindo o recurso - artigo 32.º, n.º 1, 12.º Existindo a presunção da sua inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação - artigo 32.º, n.º 2, da CRP, 13.º E devendo ter-lhes sido assegurados os direitos de defesa, nomeadamente, a sua presença na audiência de discussão e julgamento - artigo 32.º, n.º 6, do mesmo diploma.
Acontece que [...]
14.º Os arguidos não foram notificados para, querendo, estarem presentes na audiência que discussão julgamento realizada no STM.
15.º E não lhes foi notificada, por qualquer modo, a douta sentença.
16.º Nos termos do disposto no artigo 113.º, n.º 7, do Código de Processo Penal, ex vi dos artigos 4.º e 331.º do Código de Justiça Militar, deviam ter sido, obrigatoriamente, feitas nas pessoas dos reclamantes as notificações respeitantes à designação do dia para o julgamento, no STM, e à sentença,
17.º O que não aconteceu,
18.º Omissões que, para lá de acarretarem as inconstitucionalidades referidas no pretérito,
19.º Violam, também, o direito processual consignado no artigo 61.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal. Acresce que [...]
20.º As referidas omissões consubstanciam mesmo as nulidades insanáveis a que aludem quer o artigo 458.º, alínea d), do Código de Justiça Militar quer o artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal.
Aliás [...]
21.º A realização da audiência de discussão e julgamento, no STM, sem a presença dos arguidos - facto que foi omitido da acta - foi procedimento, igualmente, violador do que constitucionalmente está estabelecido sob o artigo 32.º, n.os 1 e 3.
Ora [...]
22.º Porque aos arguidos não lhes foram reconhecidos os direitos invocados no pretérito, nomeadamente porque não lhes foi notificado, pessoalmente, o teor do douto acórdão do STM,
23.º Este não pode ter transitado em julgado,
24.º Pelo que o recurso interposto para esse venerando Tribunal tem de ser admitido."
2 - No seu visto, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de que "deverá improceder a presente reclamação", na base das seguintes considerações:
"A lei que regula o processo constitucional limita-se a estabelecer qual o prazo de interposição de recurso perante o Tribunal Constitucional, sendo naturalmente as normas que regem o processo pretexto que dispõem acerca das formalidades a que deve obedecer a conferência ou a audiência em que é proferida a decisão de que se pretende recorrer, bem como a forma por que a mesma deve ser notificada ao arguido e seu defensor.
No caso dos autos - situado no âmbito do processo penal militar - é naturalmente ao CJM que incumbe regular tal matéria, bastando-se com a publicação do acórdão condenatório, em sessão em que o arguido haja sido representado por defensor oficioso, nomeado em consequência da falta do mandatário constituído.
Ora - independentemente das dúvidas que no plano jurídico constitucional tal regime poderá, porventura, suscitar (cf. Acórdão 59/99) -, consideramos que não é possível controverter, no âmbito da presente reclamação, a ocorrência de nulidades ou inconstitucionalidades no procedimento que, no tribunal a quo, conduziu à notificação ou ao conhecimento (ou cognoscibilidade) do acórdão condenatório pelo arguido e seu defensor.
Na verdade, o defensor constituído do arguido sabia (ou tinha oportunidade de saber, se agisse com a diligência devida) em que data ocorreu a sessão em que iria presumivelmente ser proferido o acórdão a dirimir o recurso interposto perante o STM, cumprindo-lhe naturalmente (se não esteve presente em tal sessão) certificar-se ulteriormente da tramitação aí seguida e da forma como tal acórdão fora publicitado - suscitando tempestivamente, perante o próprio STM, as nulidades ou inconstitucionalidades que considerasse afectarem a notificação ou o conhecimento de tal decisão pelo arguido e seu defensor.
Não tendo sido cumprido tal ónus, não é obviamente possível inserir na presente reclamação a apreciação de uma nova questão de constitucionalidade (aparentemente, reportada ao artigo 428.º do Código de Justiça Militar, interpretado como possibilitando a simples 'publicação' do acórdão condenatório na presença do defensor ad hoc do arguido, nomeado por falta do seu mandatário) sobre a qual o tribunal a quo não teve qualquer possibilidade de se pronunciar.
Na verdade, ocorrendo nulidades no procedimento ocorrido perante o tribunal a quo,recai inquestionavelmente sobre as partes ou sujeitos processuais o ónus de aí as invocarem, provocando a prolação de uma decisão judicial sobre as mesmas - só ulteriormente (e na sequência dessa apreciação jurisdicional das irregularidades pretensamente cometidas) sendo lícito recorrer, nos termos gerais, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo, nomeadamente, do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82.
Nestes termos, somos de parecer que deverá improceder a presente reclamação."
3 - Vistos os autos, cumpre decidir.
A sequência processual evidenciada pelos autos é a seguinte:
3.1 - Por acórdão do Supremo Tribunal Militar, de 13 de Dezembro de 2001, foi concedido provimento a um recurso interposto pelo promotor de justiça, mas continuando os réus, ora recorrentes e reclamantes, "condenados nas mesmas penas que lhes foram impostas, mas pela prática, em co-autoria, de um crime de corrupção previsto e punível pelo artigo 19.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar; e revogando-se a parte do acórdão recorrido em que foi decretada a suspensão da execução daquelas mesmas penas impostas a cada um dos réus".
3.2 - Na acta de audiência de julgamento desse dia 13 de Dezembro consta que não se encontravam presentes os "Exmo.s Defensores Constituídos dos réus Drs. Carlos Sá Correia, Carla Sá Correia e Margarida Galinha", estando presente o defensor oficioso, "assumindo o seu lugar" e, no final, "reaberta a sessão, pelo meritíssimo juiz relator do processo foi lido, em voz alta, o precedente acórdão, lavrado por unanimidade".
3.3 - Depois de certificado nos autos que aquele acórdão, de 13 de Dezembro de 2001, "transitou em julgado em 7 do corrente mês" (Janeiro de 2002), foram os mesmos remetidos à secretaria do 1.º Tribunal Militar de Lisboa, onde deram entrada, em 9 de Janeiro de 2002 (e nesse Tribunal foi proferido despacho a mandar notificar as partes da "descida dos autos", o que foi cumprido).
3.4 - Com data de 17 de Janeiro de 2002, foi interposto pelos reclamantes o recurso do citado acórdão para este Tribunal Constitucional, dizendo-se que na decisão "foram aplicadas normas, cuja inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações do recurso para o STM - artigos 70.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 75.º-A, n.º 2, da Lei 28/82, de 15 de Novembro" -, e que as normas que se "pretendem ver apreciadas são os artigos 427.º, alínea e), 428.º, 219.º, 254.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, a Lei 29/82, de 11 de Dezembro, e a circular n.º 19/79", por a sua aplicação "violar o disposto nos artigos 32.º, n.os 1, 3, 5, 6, 7 e 9, 202.º e segs., 219.º, n.os 1, 2 e 3, 133.º, 135.º, 197.º e 201.º da Constituição da República".
3.5 - Esse requerimento foi indeferido, "porque intempestivo", na base da seguinte consideração:
"O prazo de recurso é de 10 dias - artigo 75.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
Como se considerou no Acórdão 753/96 do Tribunal Constitucional, de 11 de Junho de 1996, proferido no processo 187/95 da 1.ª Secção, no foro militar, o término a quo daquele referido prazo é o dia em que foi publicada a decisão recorrida (artigo 428.º do Código de Justiça Militar).
Ora, a decisão de que se recorre foi publicada em 13 de Dezembro de 2001.
Nesta mesma data teve, pois, início o prazo de 10 dias.
O requerimento de interposição de recurso em causa foi apresentado na secretaria do 1.º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, em 17 de Janeiro de 2002, altura em que, havia muito tempo, se tinha esgotado aquele prazo de 10 dias.
É, pois, intempestiva a interposição do recurso."
4 - Do relato feito resulta que os recorrentes e ora reclamantes vieram interpor o recurso de constitucionalidade, no prazo de 10 dias (n.º 1 do artigo 75.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na redacção do artigo 1.º da Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro), a contar da notificação a que se refere o n.º 3.3, e esse prazo recaiu no período que se seguiu ao trânsito em julgado do acórdão recorrido, que foi certificado nos autos em 7 de Janeiro de 2002, pois o respectivo requerimento deu entrada em 17 do mesmo mês e ano, embora no 1.º Tribunal Territorial de Lisboa e não no Supremo Tribunal a quo.
Há que saber se o respeito desse prazo, nas circunstâncias relatadas, ainda pode relevar, face à arguição dos reclamantes, de que nem eles nem os seus mandatários judiciais estiveram presentes à leitura do acórdão de que pretendem recorrer (apenas esteve presente o defensor oficioso), o "processo não foi depositado na secretaria" e "não foram notificados da douta sentença, proferida pelo STM", não sendo igualmente "notificados para, querendo, estarem presentes na audiência de discussão do julgamento realizada no STM". Arguição que se segue à afirmação de que esse "foi procedimento, igualmente, violador do que constitucionalmente está estabelecido sob o artigo 32.º, n.os 1 e 3", da Constituição, o que tudo corresponde, no fundo, ao que o Ministério Público, no seu parecer, chama "de uma nova questão de constitucionalidade (aparentemente, reportada ao artigo 428.º do Código de Justiça Militar, interpretado como possibilitando a simples publicação do acórdão condenatório na presença do defensor ad hoc do arguido, nomeado por falta do seu mandatário)".
Daqui resulta que não se pode escapar, à luz do artigo 204.º da Constituição, ao confronto com a lei fundamental do sistema de conhecimento dos acórdãos proferidos pelo STM, que decorre dos artigos 428.º e 463.º do Código de Justiça Militar, segundo os quais o acórdão é publicado na "sessão pública" do Tribunal, sendo o prazo de recurso contado do dia em que foi "publicada a decisão". E confronto que pode acabar por uma recusa de aplicação daquelas normas, a propósito do conhecimento das decisões do Supremo Tribunal Militar que é dado arguido (e só no artigo 423.º, n.º 3, se prevê a notificação da decisão se "o réu estiver na prisão").
Ora, do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/99, publicado nos Acórdãos, 42.º vol., p. 251, retira-se que as "garantias de defesa de um arguido só serão plenamente adquiridas se ao mesmo for dado um cabal conhecimento da decisão condenatória que a seu respeito foi tomada; por isso se deverá entender que esse cabal conhecimento atinge-se, sem violação das garantias de defesa que o processo criminal deve comportar, desde que o seu defensor - constituído ou nomeado oficiosamente -, contanto que se trate do primitivo defensor, seja notificado da decisão condenatória tomada pelo tribunal de recurso", pois "os deveres funcionais e deontológicos que impendem sobre esse defensor, na vertente do seu relacionamento com o arguido, apontam no sentido de que o mesmo, que a seu cargo tomou a defesa daquele, lhe há-de, com propriedade, transmitir o resultado do julgamento levado a efeito no tribunal superior, não se passando, porém, outrotanto, se se tratar de um defensor meramente nomeado para a audiência em substituição do defensor que, para ela notificado, não compareceu" (e daí a conclusão de que "norma constante o n.º 5 do artigo 113.º do Código de Processo Penal - interpretada no sentido de a decisão tomada pelos tribunais superiores em via de recurso poder ser feita ao defensor do arguido, que foi nomeado para intervir na audiência em substituição do primitivo defensor, não tendo, assim, de lhe ser notificada pessoalmente -, se revela contrária ao n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, por isso que se não almejam as garantias que o processo criminal deve assegurar ao arguido").
Aderindo a essa doutrina, que se lê no sumário do acórdão, e aos fundamentos nele desenvolvidos, perfeitamente transponíveis para a hipótese sub juditio, tem de recusar-se a aplicação das citadas normas do Código de Justiça Militar, por violação dos n.os 1 e 3 do artigo 32.º da Constituição, pelo que a conhecimento que os recorrentes tiveram do acórdão recorrido só se consumou com a notificação feita pela secretaria do 1.º Tribunal Militar de Lisboa (n.º 3.3) e é daí que se tem de contar o prazo legal de 10 dias para interpor um recurso de constitucionalidade.
E, assim sendo, é tempestiva a interposição do presente recurso.
5 - Nem se diga, como quer o Ministério Público, que não é "possível controverter, no âmbito da presente reclamação, a ocorrência de nulidades ou inconstitucionalidades no procedimento que, no tribunal a quo, conduziu à notificação ou ao conhecimento (ou cognoscibilidade) do acórdão condenatório pelo arguido e seu defensor", porque, "ocorrendo nulidades no procedimento ocorrido perante o tribunal a quo, recai inquestionavelmente sobre as partes ou sujeitos proces suais o ónus de aí as invocarem, provocando a prolação de uma decisão judicial sobre as mesmas".
Se é certo que na regulação do processo ante o Supremo Tribunal Militar, o Código de Justiça Militar enumera taxativamente no artigo 458.º as "nulidades essenciais" - mas não é destas que aqui se trata - e determina que aquele Supremo "não poderá tomar conhecimento de falta, omissão ou causa da nulidade se a arguição não tiver sido feita em ocasião oportuna e não houver sido interposto recurso da respectiva decisão" (n.º 1 do artigo 457.º), a verdade é que não se trata de situar a questão da relevância do dies a quo para contagem do aludido prazo nesse plano de ocorrência de "nulidades no procedimento", em ordem a obter efeitos no procedimento, com a reforma deste, perante o próprio Supremo Tribunal Militar (e a arguição delas teria de socorrer-se das "disposições da lei processual comum", como manda o artigo 331.º do mesmo Código), mas antes no plano distinto da tempestividade do recurso de constitucionalidade, de modo que a questão de inconstitucionalidade relacionada com a matéria surge ao Tribunal Constitucional tão-só como uma questão incidental dessa outra versada no recurso, de tal modo que o Tribunal não pode deixar de considerá-la nos mesmos termos em que o deve fazer qualquer tribunal, isto é, nos termos do artigo 204.º da Constituição, segundo o qual impende sobre os tribunais - e também sobre o Tribunal Constitucional - o dever de não se aplicarem normas "que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados", e a partir daí extrair os efeitos pertinentes.
E tais efeitos apontam, como atrás ficou dito, para a relevância da notificação da "descida dos autos", a que se refere o n.º 3.3 - a única que foi directamente feita aos reclamantes já na fase de execução do julgado -, para a partir dela contar-se o prazo de interposição do recurso de constitucionalidade.
Aliás, considerando o regime processual tal como consta da lei, a própria existência no caso de uma eventual nulidade é que dependeria da resolução daquela questão de inconstitucionalidade.
Com o que não pode manter-se o despacho reclamado.
6 - Termos em que, decidindo, se defere, embora com outra fundamentação, a reclamação.
Lisboa, 4 de Junho de 2002. - Guilherme da Fonseca (relator) - Paulo Mota Pinto - José Manuel Cardoso da Costa.