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Acórdão 535/2001/T, de 25 de Fevereiro

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Texto do documento

Acórdão 535/2001/T. Const. - Processo 142/2001. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Hermínio Moreira Pinto, com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, "ao abrigo do disposto nos artigos 69.º e seguintes da Lei 28/82, de 15 de Novembro (organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional), na redacção que lhe foi dada pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro", indicando a "alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º" dessa lei e acrescentando o seguinte:

"A norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie é o artigo 853.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, dada a interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal a quo na decisão recorrida;

As normas que o recorrente considera violadas pelo artigo 853.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, dada a interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal a quo na decisão recorrida, são os artigos 13.º, 18.º, 62.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa;

A peça processual em que o recorrente suscitou a questão da sua inconstitucionalidade foi o requerimento de 'motivação' (do recurso vindo do processo 85/96, 2.º Juízo, Crime, Chaves)."

Posteriormente, a convite do relator, veio esclarecer que o "acórdão com o qual o recorrente não se conforma é o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 7 de Junho de 2000, esclarecido pelo douto acórdão que vai no sentido do douto despacho recorrido do processo 85/86 do 2.º Juízo do Tribunal da Comarca de Chaves", e que a interpretação em causa "é a que entende ser inadmissível a compensação como forma extintiva da obrigação que impende sobre o recorrente (uma obrigação decorrente da prática de um facto ilícito doloso por si praticado), compensação essa realizada com um crédito legal e legítimo que o recorrente tem sobre o recorrido, Jorge Gonçalves", ou seja, "a interpretação que o recorrente entende levar à inconstitucionalidade do artigo 853.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil é a interpretação vertida nos despacho e acórdão recorridos, segundo a qual, apesar de a referida norma dizer expressamente que 'l - Não podem extinguir-se por compensação: a) os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos', também não poderão extinguir-se por compensação com um crédito lícito os débitos provenientes de factos ilícitos dolosos". ["E, no caso concreto, tal interpretação é ainda mais grave na medida em que, caso a compensação não fosse possível e tal interpretação fosse mantida, não poderia o recorrente (titular de um crédito lícito) utilizar tal crédito para extinguir uma dívida proveniente da prática de um facto ilícito doloso (que, além do mais, o recorrente afirma não ter praticado), sendo a extinção de tal dívida essencial para assegurar a sua liberdade" - é a ideia essencial expressa pelo recorrente].

2 - Nas suas alegações, o recorrente espraia-se em longo articulado para querer demonstrar a violação, pelo artigo 853.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida, dos artigos 13.º, 18.º, 27.º e 62.º da Constituição, concluindo pela procedência do recurso e pelo julgamento de inconstitucionalidade da norma questionada, por violação daqueles artigos da lei fundamental.

3 - O Ministério Público apresentou contra-alegações, concluindo que "deveria improceder o presente recurso", porque a "norma constante do artigo 853.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, ao excluir a possibilidade de compensação entre o crédito do lesado - decorrente da prática de um facto ilícito doloso e criminalmente censurável - e um invocado crédito - emergente de negócio jurídico lícito - do arguido sobre a vítima, não se configura como estabelecimento de uma solução legislativa arbitrária, violadora do princípio da igualdade, por tal diferenciação de regimes se fundar numa base material razoável e insusceptível de censura constitucional".

4 - O assistente e ora recorrido, Jorge Manuel Fernandes Gonçalves, com os sinais identificadores dos autos, não contra-alegou.

5 - Tudo visto, cumpre decidir.

O acórdão recorrido, depois de relatar que o recorrente "foi condenado, por sentença transitada em julgado, como autor material de um crime de emissão de cheque sem cobertura, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 11.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, e 314.º, alínea c), do Código Penal na pena de dois anos de prisão, cuja execução foi declarada suspensa pelo período de três anos, subordinada ao pagamento ao demandante civil Jorge Manuel Fernandes, no prazo de 18 meses, da quantia de 15 500 000$, acrescida de juros de mora, à taxa anual de 15% desde 2 de Dezembro de 1994 até 30 de Setembro de 1995, e de 10% desde então, até integral pagamento" e que o recurso apenas foi admitido pelo M.mº Juiz a quo "no que concerne à parte do despacho que apreciou da pertinência da invocada compensação como forma extintiva da obrigação que impende sob o arguido, em sede de processo penal", é do seguinte teor:

"Como é sabido, a compensação traduz-se fundamentalmente na extinção de duas obrigações, sendo o credor de uma delas devedor na outra e o credor desta última devedor da primeira. É, assim, um encontro de contas que se justifica pela conveniência de evitar pagamentos recíprocos - cf. o artigo 847.º do Código Civil.

Porém, nos termos do artigo 853.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma legal, estão legalmente excluídos da compensação os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos. Neste caso, o devedor da respectiva indemnização não pode impor ao lesado a extinção da dívida com qualquer crédito de que o lesante disponha contra o seu credor.

Como refere Antunes Varela, 'a razão justificativa da medida está em que, podendo a compensação traduzir-se num benefício para o compensante (que tem, através dela, plenamente assegurada a realização indirecta do seu contra-crédito), não se considera justo que o autor do facto ilícito doloso aproveite de semelhante regime. O devedor terá, nesses casos, de cumprir a obrigação de indemnização e de correr, quanto à cobrança do seu crédito, os riscos que suportam todos os demais credores' v., Das Obrigações em Geral, 2.ª ed., vol. II, Livraria Almedina, pp. 172 e 173.

Ora, não há duvida nenhuma de que o crédito de que o demandante civil é titular sobre o arguido/recorrente - no montante de 15 500 000$, acrescido de juros legais - provém de um facto ilícito doloso, pois advém da prática de um crime doloso praticado por este último, reconhecido em sentença com trânsito em julgado.

Sendo assim, tal crédito - que corresponde, do ponto de vista do arguido, à obrigação de pagamento dos aludidos montante e juros, enquanto condição suspensiva da execução da pena de prisão em que foi condenado - não é, manifestamente, face ao aludido normativo, susceptível de extinção por compensação.

É que, como se decidiu no Acórdão da RC de 10 de Dezembro de 1985, 'a regra contida no artigo 853.º, n.º 1, do Código Civil significa que o crédito causado por facto ilícito doloso do devedor não pode ser compensado, pelo mesmo devedor, com crédito que este tenha sobre o titular daquele crédito' - cf. o Boletim do Ministério da Justiça, n.º 352, p. 436.

Também Antunes Varela, a este propósito, refere: 'o que a ratio legis permite acrescentar [...] é que a compensação pode operar os seus efeitos se o compensante for o credor (e não o devedor) da indemnização pelos danos provenientes do facto ilícito doloso'.

Por último, cabe referir que não se vê como é que o entendimento ora sufragado possa estar ferido de inconstitucionalidade, por ofensa do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, certo como é que a causa primeira da prisão é a condenação do recorrente, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime punido por lei com pena de prisão."

Daí a decisão de rejeitar o recurso, "por manifesta improcedência, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal".

6 - Centralizando a atenção na invocada violação do princípio da igualdade consignado no artigo 13.º da Constituição - como faz o Ministério Público, ao considerar aí "enquadrada adequadamente a questão de constitucionalidade a dirimir" -, o que de essencial diz a tal respeito o recorrente é que "existe uma igualdade de situações jurídico-constitucionalmente relevante, tratada de forma desigual caso a interpretação do acórdão for sufragada, e não existe razão material para uma desigualdade de tratamento, pelo que estamos perante uma regulação arbitrária, violadora do artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa".

E é este o desenvolvimento resumido da argumentação do recorrente:

"28.º O artigo 853.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil dispõe que 'não podem extinguir-se por compensação os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos'.

29.º Uma correcta interpretação desta norma apenas pode levar a entender-se que o mesmo pretende estabelecer que 'não podem extinguir-se por compensação os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos quando o compensante é o credor'.

30.º A interpretação do douto acórdão recorrido entende que da mesma norma se deve extrair que 'não podem extinguir-se por compensação os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos quando o compensante for devedor de montante proveniente da prática de facto ilícito doloso'.

31.º Tal interpretação estabelece uma desigualdade de tratamento injustificável entre:

Compensante credor de montante proveniente de facto lícito, mas devedor de montante proveniente de facto ilícito doloso; e

Compensante credor de montante proveniente de facto lícito e devedor de montante proveniente de facto lícito."

Só que aquela diferenciação de situações que decorre do regime estabelecido na norma questionada não se revela uma "regulação arbitrária", como pretende fazer crer o recorrente.

Na verdade, a causa de exclusão da compensação, quando se trata da proveniência (do crédito principal) de facto ilícito doloso - e trata-se sempre de factos (excepções) que não permitem que o devedor considere extinta a sua dívida por compensação com o crédito de que dispõe sobre o seu credor -, supõe que "o devedor da respectiva indemnização não pode impor ao lesado a extinção da dívida com qualquer crédito de que o lesante disponha contra o seu credor" (cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2.ª ed., vol. II, Almedina, 1974, p. 172, e que aqui se segue de perto). E a razão justificativa dessa causa "está em que, podendo a compensação traduzir-se num benefício para o compensante (que tem, através dela, plenamente assegurada a realização indirecta do seu contra-crédito), não se considera justo que o autor do facto ilícito doloso aproveite de semelhante regime"; e daí que o devedor terá, nesses casos, de cumprir a obrigação de indemnização em causa e de correr quanto à cobrança do seu crédito os riscos que suportam todos os demais credores (loc. cit., pp. 172 e 173).

In casu, o recorrente, condenado por sentença transitada em julgado pela prática de um crime doloso - um facto ilícito doloso, sem dúvida - e obrigado a pagar determinada quantia em dinheiro ao ofendido e demandante civil, pretendeu aproveitar a compensação com um crédito de montante superior àquela quantia que diz ser titular sobre o mesmo ofendido, para o efeito de se considerar verificada a condição à qual estava sujeita a suspensão da execução da pena que lhe foi imposta na dita sentença (e foi o indeferimento de tal pretensão na primeira instância que originou a interposição de recurso para o Tribunal da Relação do Porto e depois o presente recurso de constitucionalidade).

Ora, não se vê que seja uma solução legal arbitrária ou materialmente infundada a do Código Civil que impede o devedor de indemnização proveniente de crime doloso, aqui o recorrente, de impor ao lesado e credor dessa indemnização a extinção da dívida com qualquer crédito de que ele disponha contra aquele credor.

A ratio legis de tal solução revela a sua razoabilidade material e coerente e adequado fundamento, pois, como diz o Ministério Público, nas suas alegações, a "especial censurabilidade do facto ilícito gerador do direito à indemnização por parte do lesado justifica, pois, plenamente a exclusão da possibilidade de compensação com um puro e vulgar crédito contratual e lícito, 'cruzado' - no que respeita à sua titularidade - com o referido direito ao ressarcimento por parte da vítima, justificando, deste modo, que o lesante deva assegurar o seu real e efectivo pagamento, sem se poder prevalecer do efeito extintivo da compensação".

Tanto basta para concluir que não se tem por verificada a alegada violação do princípio da igualdade.

E também, pelas mesmas razões, não pode concluir-se que se está, como quer o recorrente, perante uma restrição que "só seria justificável caso fosse necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos", pelo que não pode dar-se por verificada a apontada violação do artigo 18.º da Constituição.

7 - O recorrente avança ainda com a violação dos artigos 27.º e 62.º da Constituição, pretendendo dizer, por um lado, que "estaríamos perante um caso em que [...] veria a sua liberdade atingida sem que tal fosse justificado por qualquer direito ou interesse constitucionalmente protegido" e, por outro, "qualquer restrição às garantias legalmente existentes do direito de propriedade apenas poderá ser permitida para defesa de qualquer direito ou interesse constitucionalmente protegido" e pretende-se "retirar ao credor de obrigação proveniente de facto lícito que seja simultaneamente devedor de obrigação proveniente de facto ilícito uma garantia fundamental do seu crédito: a possibilidade de o compensar com o crédito da outra parte".

Porém, tal-qualmente entende o Ministério Público, não faz sentido "invocar como parâmetros constitucionais de aferição quer a norma do artigo 62.º da Constituição (conjugada com o artigo 18.º) quer a constante do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa - não se vendo em que medida é que a exclusão de certa forma de extinção dos créditos pode contender com a tutela constitucional da propriedade e o princípio da proporcionalidade das restrições a (tal) direito fundamental; por outro lado - e no que concerne ao 'direito à liberdade e segurança' é manifesto que uma norma civilística - situada no estrito campo do direito das obrigações - não pode obviamente afrontar a liberdade e segurança dos cidadãos".

E é mesmo assim, pois não é da norma questionada que se retira qualquer lesão ao direito à liberdade que a todos é reconhecido no n.º 1 do artigo 27.º (é, ou poderia ser, da norma em que se fundou o condicionamento da suspensão da pena de prisão ao pagamento de determinada indemnização ao ofendido e lesado, nomeadamente o artigo 51.º do Código Penal, mas isto não vem ao caso, por não constituir aquele preceito objecto do presente recurso).

De igual modo não se vê como possa ser atingida a garantia do direito à propriedade privada que a todos é garantido no n.º 1 do artigo 62.º, quando a lei estabelece limitações ou modo de extinção das obrigações.

8 - Termos em que, decidindo, se nega provimento ao recurso e condena-se o recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta.

Lisboa, 5 de Dezembro de 2001. - Guilherme da Fonseca (relator) - Maria Fernanda Palma - Bravo Serra - José Manuel Cardoso da Costa.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1984721.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1991-12-28 - Decreto-Lei 454/91 - Ministério da Justiça

    Estabelece normas relativas ao uso do cheque e fixa o regime penal e contra-ordenacional do cheque.

  • Tem documento Em vigor 1998-02-26 - Lei 13-A/98 - Assembleia da República

    Altera a lei orgânica sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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