Acórdão 301/2001/T. Const. - Processo 684/99. - Acordam no Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Luís Lourinho propôs e fez seguir contra CP - Caminhos de Ferro Portugueses a presente acção declarativa de condenação na indemnização global de 11 127 000$00, por danos patrimoniais e não patrimoniais, no pagamento da importância diária de 5 000$00, pela impossibilidade de utilização do automóvel, tudo em consequência do acidente que sofreu em colisão com um comboio da CP ao atravessar uma passagem de nível sem guarda da linha do Norte e em que a sinalização era muito deficiente.
Aos autos, veio a ser apensada uma acção que a CP moveu contra a companhia de seguros Fidelidade para obter o pagamento da quantia de 346 737$00, relativa aos danos causados na composição ferroviária, na sequência do acidente a que se reporta o presente processo.
O Tribunal de Círculo de Oliveira de Azeméis, por sentença de 14 de Julho de 1998, decidiu julgar a acção principal totalmente improcedente, e procedente a acção apensa, condenando a ré Fidelidade a pagar à CP a quantia de 346 737$00, acrescida de juros de mora, desde a citação.
2 - Inconformado com o assim decidido, Luís Lourinho interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 25 de Fevereiro de 1999, decidiu negar provimento à apelação, confirmando a decisão recorrida.
Ainda inconformado, Luís Lourinho recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que, por acórdão de 23 de Setembro de 1999, negou a revista, mantendo o acórdão impugnado.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, em que o recorrente pretende que se aprecie a inconstitucionalidade material dos artigos 2.º, 3.º e 29.º do Decreto-Lei 156/81, de 8 de Junho, na interpretação do acórdão recorrido.
O recorrente, notificado pela primitiva relatora para esclarecer qual o sentido atribuído a tais normas na decisão recorrida, veio esclarecer o seguinte:
"a) A inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, resulta do facto (aceite expressamente pelo douto acórdão recorrido) de o seu texto colocar na disponibilidade das empresas de caminho-de-ferro a entrada em vigor (progressivamente) dessa lei.
A fl. 4 do douto acórdão do STJ (no qual, por lapso, falam em artigo 1.º, mas se vê claramente que se referem ao artigo 2.º, n.º 1) aceita-se expressamente esse entendimento, que, no entender do recorrente, viola os princípios constitucionais de legalidade e da igualdade, consagrados nos artigos 12.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa.
Pretende-se, pois, que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, nessa parte, a inconstitucionalidade de tal preceito;
b) A alegada inconstitucionalidade dos artigos 3.º e 29.º do Regulamento das Passagens de Nível, aprovado por aquele Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, resulta do facto de o douto acórdão recorrido expressamente interpretar aqueles dois preceitos (cf. p. 4 e segs. do acórdão recorrido) no sentido de eles afastarem a responsabilidade da CP com base no risco ou em presunção legal de culpa ou em outros casos fora dos que aí taxativamente se indicam, restringindo inadmissivelmente os casos em que a CP se pode ver obrigada a indemnizar, em violação frontal dos princípios gerais do nosso ordenamento jurídico na matéria e dos princípios da legalidade e da igualdade."
Produzidas as pertinentes alegações, o recorrente concluiu as que apresentou pela forma seguinte:
"1.ª Sofre do vício de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da legalidade, da igualdade e da universalidade, consignados nos artigos 12.º e 13.º da CRP, o artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, na interpretação que dele faz o douto acórdão do STJ segundo a qual é a própria CP que, a seu livre-alvedrio, promove a entrada em vigor das normas que definem as exigências legais que a vinculam, assim se subtraindo à obrigação de indemnizar.
2.ª Sofrem do mesmo vício, por violação dos mesmos princípios e normas constitucionais, os artigos 3.º e 29.º do Regulamento das Passagens de Nível, aprovado por aquele diploma legal (Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho), na interpretação que dele faz o douto acórdão do STJ segundo a qual a concessão de prioridade a veículos da CP exclui sempre que sobre esta recaia o dever de indemnizar com base na responsabilidade objectiva ou pelo risco."
Pelo seu lado, a CP também alegou, tendo formulado a seguinte conclusão:
"O artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, como os artigos 3.º e 29.º do Regulamento das Passagens de Nível por aquele diploma aprovado não violaram qualquer princípio constitucional, por isso que, por razões de interesse público, dispõem para as situações que contemplam por forma legal, adequada, universal e igual, respeitando, nomeadamente, os princípios ínsitos nos artigos 12.º e 13.º da CRP, devendo, como tal e pelo mais que VV. Exmas. doutamente suprirão, ser negado provimento ao recurso, assim se fazendo a habitual justiça."
3 - Após a discussão do projecto apresentado, houve mudança de relator por vencimento.
4 - Importa fazer um resumo do iter processual que levou ao presente recurso.
4.1 - O recorrente foi vítima de um acidente quando começava a atravessar a linha do Norte no local onde existia uma passagem de nível sem guarda e onde a sinalização era deficiente, acidente de que resultaram os danos patrimoniais e não patrimoniais que fundamentam o pedido formulado.
Na 1.ª instância, decidiu-se que o acidente ocorreu "pela violação das regras de prioridade e de circulação, por parte do condutor do automóvel, e pela sua falta de atenção e imprudência ao volante, que não só não soube adaptar a condução às circunstâncias que encontrou como ainda não foi suficientemente hábil para evitar pôr em perigo os restantes utentes da via (neste caso, via férrea).
Em suma, o embate descrito nos autos deveu-se exclusivamente àquela violação negligente das regras já estudadas, causa real do evento infortunístico."
Considerando, assim, que "tendo sido o condutor do veículo automóvel o único culpado no acidente, não goza ele de qualquer direito a indemnização pelos prejuízos por si sofridos". Daí, a decisão de absolvição da CP no processo principal.
4.2 - Interposto recurso de apelação para a Relação, em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 2.º do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, e dos artigos 3.º e 29.º, do Regulamento das Passagens de Nível, que aquele diploma aprovou, a Relação apreciou a questão de saber "se a apelada CP violou algum dever geral ou especial de diligência, resultando dessa violação, como causa adequada, a ocorrência do acidente."
A Relação veio a concluir que "o apelante podia, pois, aperceber-se da PN a cerca de 50 m da mesma, o que lhe permitia tomar as devidas precauções a fim de se certificar da eminente passagem do comboio, que, como ficou dito, gozava de prioridade de passagem.
E essas precauções, face àquela eminência, não podiam ser outras senão parar a marcha do veículo e não atravessar a linha férrea.
Ao contrário do que fez."
A Relação, julgou assim improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida.
4.3 - O recorrente interpôs, de seguida, recurso de revista para o STJ, voltando a suscitar a questão da inconstitucionalidade da interpretação feita na decisão recorrida do artigo 2.º do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, e dos artigos 3.º e 29.º do Regulamento de Passagens de Nível e pedindo a condenação da ré, CP, por estar assente a sua culpa efectiva, por violação dos deveres gerais e especiais de diligência e cuidado.
O STJ, no acórdão recorrido, deu como provada toda a matéria de facto apurada nas instâncias, designadamente a seguinte:
"[...] Naquele troço, a velocidade máxima permitida para os veículos ferroviários é superior a 120 km/h.
A passagem de nível em que ocorreu o embate não tinha guardas nem cancelas.
À data do embate, as bermas das estradas encontraram-se cheias de alta e espessa vegetação.
Do lado direito da estrada, atento o sentido em que seguia o autor, encontrava-se implantado um muro em toda a extensão da via em que o autor circulava, desde o seu início.
No local não existia iluminação pública, para além de um poste de iluminação pública a cerca de 300 m da passagem de nível.
No lado direito da estrada, atento o sentido do autor, existia um sinal denominado 'cruz de Santo André' colocado junto à passagem de nível, a cerca de 4 m do carril mais próximo.
E no lado esquerdo da estrada, atento o mesmo sentido, existia um sinal em cimento com indicação 'Pare, escute e olhe'.[...]
O sinal especificado em M) [cruz de Santo André] era visível desde o início da recta que antecede a passagem de nível, mesmo de noite, quando iluminado pelos faróis dos automóveis. [...]
O comboio circulava a 70 km/h, indo parar na estação a cerca de 440 m do local do embate.[...]
A CP encerrou a passagem de nível posteriormente com a construção de uma passagem desnivelada.[...]
À data do acidente, não havia junto à passagem de nível qualquer outro equipamento ou sinais, nomeadamente, pré-sinalização de passagem de nível ou sinal de stop marcado no pavimento ou colocado no sinal referido em D. [...]
Na parte decisória do acórdão, a fundamentação, na parte relevante, foi como segue:
"A CP responde pelos acidentes ocorridos em passagens de nível, em princípio, nos termos do artigos 483.º e seguintes do CC.
Responde, inclusive, pelo risco, artigo 503.º e seguintes do CC.
[...]
O mesmo se faz notar no acórdão deste Tribunal, de 12 de Junho de 1996, onde se defende doutrina que reputamos correcta.
Dissemos 'em princípio' porque, como todos compreendem, há uma diferença fundamental entre um veículo que se desloca em estrada ou fora dela e um comboio em marcha numa linha de caminho-de-ferro.
Assim, enquanto o dono do veículo pode ser obrigado a indemnizar ainda que se não prove qualquer ilícito, o mesmo já se não pode entender relativamente à exploração dos caminhos-de-ferro.
Nos caminhos-de-ferro circulam só os comboios.
E circulam, dado o interesse colectivo em que assim seja, com prioridade sobre as demais vias de comunicações.
Os comboios não podem estar sujeitos a prioridades de outros meios de circulação.
Pessoas e condutores de veículos (todos eles) tem de estar atentos e dar prioridade aos comboios.
É utópico exigir que um maquinista abrande a velocidade ou apite sempre que o comboio passe por uma passagem de nível sem guarda.
Desejável será, isso sim, é que elas desapareçam quanto antes.
A circulação dos comboios, tendo em vista as passagens de nível, está regulada por lei.
A responsabilidade pelo risco só pode surgir se for feita a prova de que houve violação de alguma norma por parte da CP.
Se assim for, surge a responsabilidade objectiva da CP.
Teremos de concluir que provocou danos cujos custos deve suportar como contrapartida do benefício representado por "estradas privativas" que usou, no entanto, saindo dos limites legais.
Caso se prove ainda que o maquinista foi negligente na condução, surgirá responsabilidade subjectiva deste, com ele sendo responsável, solidariamente, a CP - artigo 500.º, n.º 1, e 497.º, n.º 1, do CC.
Aqui chegados, impõe-se a análise do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, que aprovou o Regulamento de Passagens de Nível (RPN).
No relatório explica-se que se classificaram as PN em quatro tipos, atendendo ao tráfego rodoferroviário ('momento da circulação'), às condições de visibilidade e à velocidade dos comboios.
O artigo 1.º do diploma (deve querer referir-se o artigo 2.º) prescreve que os artigos 1.º, 11.º, 15.º, 16.º e 17.º do RPN entrarão em vigor 'progressivamente', por decisão do CF (caminho-de-ferro).
Não consta que tal tenha ocorrido neste caso.
[...]
Tendo em conta este artigo 4.º, sem dúvida que a PN em causa se deve incluir no tipo D - artigo 9.º
Refere-se o artigo 12.º à sinalização em geral.
'A aproximação das PN é sinalizada conforme previsto na legislação rodoviária, cabendo às entidades referidas na mesma legislação proceder à sua implantação.
Os sinais de perigo indicando o local da PN sem guarda ou o eventual sinal ... são colocados da marcha e à distância de 5 m do carril mais próximo.
Esta distância pode, quando justificado, ser reduzida, mas nunca para menos de 3,5 m.'
Relativamente às PM do tipo D prescreve o artigo 15.º que nas hipóteses dos autos deve existir a cruz de Santo André, devendo estar marcada no pavimento linha de paragem com a inscrição 'STOP'.
O artigo 29.º exclui o dever de indemnizar da CP em hipóteses de PN como a dos autos.
Concluindo:
A não ser que o lesado prove culpa do maquinista, uma acção nos moldes da dos autos não pode proceder.
Salvo se entendermos que o artigo 29.º viola algum preceito da CR.
Invoca o A. os artigos 12.º e 13.º da CR.
Mas nós interpretamos o artigo 29.º no sentido de apenas afastar a responsabilidade da CP com base no risco e até com base em presunção de culpa do artigo 503.º, n.º 1, do CC.
Esta última, como se sublinha, e bem, no citado acórdão deste Tribunal, está, por natureza, afastada, face à prioridade 'absoluta' do caminho-de-ferro - artigo 3.º do Regulamento de PN.
Provando o lesado a culpa efectiva do maquinista, já a CP responde nos termos gerais.
E assim sendo, não se vê como possa considerar-se ofendido o diploma fundamental.
Pode argumentar-se com a ausência do sinal de stop e com as condições de visibilidade (que não eram tão deficientes assim em relação à linha - ver fotos juntas).
Como vimos, o sinal de stop é imposto pelo artigo 15.º, que foi ressalvado de aplicação imediata.
Não há indicação de que tenha sido posto em vigor.
Nem é necessário saber se devia ter sido a CP a providenciar pela sua colocação ou a autarquia.
Relativamente às condições de visibilidade, bem parece que a falha não é em primeira linha da CP - artigo 11.º, n.º 5 (que nem estará em vigor, como se viu).
Sendo a estrada municipal, a autarquia deveria ter tomado providências - artigo 5.º
O que não significa, entenda-se, isentar a CP do dever geral de cuidar da existência de condições mínimas de segurança.
De todo o modo, não se vê que por aí possa atribuir-se-lhe culpa em termos de a poder responsabilizar civilmente."
II - Fundamentos. - 5 - Face à decisão atrás transcrita, o recorrente questiona a conformidade constitucional do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, enquanto coloca na disponibilidade da CP a entrada em vigor de vários preceitos do Regulamento de Passagens de Nível, que aquele diploma aprovou, e dos artigos 3.º e 29.º do Regulamento de Passagens de Nível, quando interpretados no sentido de afastarem a responsabilidade da CP com base no risco ou em presunção legal de culpa, ou em outros casos fora dos que aí são taxativamente previstos, restringindo de forma inadmissível os casos em que a CP se pode ver obrigada a indemnizar.
Vejamos o teor das normas em questão.
O artigo 2.º do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, estabelece o seguinte:
"1 - O presente diploma entra em vigor 20 dias após a sua publicação, exceptuando-se os artigos 10.º, 11.º, 15.º, 16.º e 17.º, cuja aplicação terá lugar progressivamente, por decisão do caminho-de-ferro (CF), abrangendo quer passagens de nível (PN) isoladas quer conjuntos de passagens de nível integradas em programas periódicos.
2 - [...]"
Por outro lado, o artigo 3.º do Regulamento de Passagens de Nível, aprovado por aquele Decreto-Lei 156/81, estabelece que "[o]s veículos ferroviários gozam de prioridade absoluta de passagem nas PN".
Finalmente, o artigo 29.º, inserido no capítulo "Responsabilidade civil", sob a epígrafe "Responsabilidade do CF e dos utentes", estabelece o seguinte:
"1 - Em caso de acidente ocorrido durante o atravessamento de PN públicas por peão, veículo ou animal, o CF só é obrigado a indemnizar os danos causados nos seguintes casos e condições:
a) Tratando-se de passagem de nível equipada com barreiras completas ou meias barreiras, de funcionamento manual ou automático, quando estas se encontrarem abertas ou o forem espontaneamente por pessoal do CF;
b) Tratando-se de passagem de nível equipada apenas com sinalização luminosa e ou sonora, quando não houver sinal indicativo de impedimento, ou, havendo permissivo, só este estiver em funcionamento e, quer num caso quer noutro, o utente tenha tomado as precauções necessárias para se assegurar de que não se aproxima qualquer veículo circulando sobre carris;
c) Tratando-se de passagem de nível equipada com barreiras completas ou meias barreiras e sinalização luminosa e ou sonora, quando nenhum destes elementos der indicação impeditiva.
2 - Se a PN estava fechada e foi aberta por agente do CF a pedido de quem pretendia passar, a responsabilidade cabe ao CF.
3 - Se o acidente tiver ocorrido em PN particular, observar-se-á o disposto nos n.os 1 e 2, salvo quanto à obrigação de indemnização, que recai sobre o titular da licença de passagem ou do direito de servidão.
4 - Os utentes da PN respondem pelos danos causados ao CF ou a terceiros, nos termos da lei geral sobre a responsabilidade civil."
O Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, visou actualizar a legislação existente sobre passagens de nível, reunindo-a num único diploma, uma vez que se constatou que "o problema das passagens de nível (PN) tinha um carácter preocupante, nomeadamente por constituírem condicionamento grave para as circulações ferroviária e rodoviária e por envolverem elevados custos e serem um factor de permanente insegurança" (preâmbulo do referido diploma).
De acordo com o mesmo preâmbulo, "as inovações de maior alcance reportam-se à classificação das PM em quatro tipos, atendendo ao tráfego rodoferroviário ('momento da circulação'), às condições de visibilidade e à velocidade dos comboios. A zona de visibilidade passa a ser variável em função da velocidade dos veículos rodoviários e da velocidade das circulações ferroviárias que circulam na zona.
Porque o alcance e a complexidade das inovações introduzidas não consentem diferente procedimento, prevê-se que a aplicação da nova regulamentação seja gradual, efectuando-se à medida que sejam criadas as necessárias condições."
É, pois, neste contexto que surge o já transcrito artigo 2.º do Decreto-Lei 156/81, que estabelece a aplicação progressiva de várias disposições do Regulamento de PN, dependendo a decisão de tal aplicação dos CF, quer se trate de passagens de nível isoladas quer de conjuntos de passagens de nível integradas em programas periódicos.
O Regulamento de Passagens de Nível (RPN), aprovado por aquele diploma, depois de dar (artigo 1.º) a definição de passagem de nível ("todo o cruzamento de nível de via pública ou privada com as linhas ferroviárias"), classifica as PN em particulares e públicas (artigo 2.º), estabelece a prioridade nas passagens de nível (artigo 3.º) e a responsabilidade geral do utente das PN (artigo 4.º). Ainda dentro do capítulo I ("Disposições gerais"), o RPN regula (artigo 5.º) a construção, beneficiação ou reparação de vias públicas, a supressão de PN (artigo 6.º), a proibição de existência de PN em linhas de alta velocidade (artigo 7.º) e, por último, a repartição de encargos (artigo 8.º).
No capítulo II do diploma em causa, importa salientar os diferentes tipos de PN: tipo A (com barreiras completas), tipo B (com meias barreiras), tipo C (sem barreiras, mas com sinalização de aproximação de circulações ferroviárias) e, por último, tipo D (sem barreiras e sem sinalização luminosa e ou sonora de aproximação de circulações ferroviárias), bem como as características de cada tipo de PN (artigo 10.º), visibilidade (artigo 11.º), sinalização geral (artigo 12.º), equipamento (artigo 13.º), início e fecho das PN (artigo 14.º), equipamento por tipo de PN (artigo 15.º), telefones (artigo 17.º), regimes de funcionamento (artigo 18.º). Nos artigos 23.º e 24.º estabelecem-se os deveres do CF e do pessoal de guarnecimento e os deveres dos utentes.
No capítulo III tratam-se as PN particulares (artigo 26.º), a segurança (artigo 27.º) e os deveres dos utentes (artigo 28.º).
No capítulo IV trata-se da responsabilidade civil e no capítulo V, das sanções.
Para o caso dos autos, importa referir que a PN em causa, sendo do tipo D - por não ter barreiras nem sinalização luminosa e ou sonora de aproximação de circulações ferroviárias -, devia ter o sinal previsto na alínea f) do n.º 3 do artigo 13.º, e, eventualmente outros, previstos nas alíneas g) e h) do mesmo número, "salvo quando se trate de estradas nacionais ou municipais, devendo, neste caso, ser colocado no mesmo suporte o sinal atrás referido e ainda marcada no pavimento linha de paragem com a inscrição 'STOP'" (n.º 4 do artigo 15.º). De acordo com o preceituado no artigo 13.º, as PN a implantar podem dispor do seguinte equipamento:
"2 - Obstáculo físico, representado por barreiras completas ou meias barreiras, de funcionamento manual ou automático.
3 - Sinais:
...
f) Cruz de Santo André;
g) Sinal de stop;
h) Outros sinais previstos na legislação rodoviária ou dispositivos que possam melhorar a segurança no atravessamento das PN.
..."
O recorrente suscita, assim, a inconstitucionalidade da interpretação feita na decisão recorrida da norma do artigo 2.º do Decreto-Lei 156/81 e dos artigos 3.º e 29.º do RPN. Quanto à primeira norma, a interpretação questionada é a de que a norma deixa na disponibilidade da CP, por decisão própria, a entrada em vigor e aplicação progressiva de vários preceitos desse diploma (designadamente os artigos 10.º, 11.º, 15.º, 16.º e 17.º do RPN). Quanto às restantes normas, a interpretação que o recorrente considera desconforme com a lei fundamental consiste no facto de elas afastarem a responsabilidade da CP com base no risco ou em presunção de culpa ou, em outros casos fora dos referidos no artigo 29.º, em violação dos princípios constitucionais da legalidade e da igualdade.
6 - Antes de apreciar as questões de constitucionalidade que vêm suscitadas, importa apurar se todas as normas referidas pelo recorrente foram, de facto, aplicadas na decisão recorrida.
Desde logo, no que respeita ao artigo 2.º do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, o recorrente abrange, como implicado na questão de constitucionalidade, todo o seu n.º 1, na medida em que a inconstitucionalidade deriva do facto de ser a própria CP a poder determinar a entrada em vigor de normas que definem as exigências legais que vinculam a mesma CP, permitindo, assim, que ela se subtraia à obrigação de indemnizar.
Todavia, nem todo o n.º 1 da norma em causa foi aplicado na decisão recorrida.
De facto, o n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, estabelece que o diploma entra em vigor 20 dias após a sua publicação, salvo quanto a certas normas do Regulamento de Passagens de Nível, cuja aplicação "terá lugar progressivamente, por decisão do caminho-de-ferro". As normas referidas no preceito são os artigos 10.º, 11.º, 15.º, 16.º e 17.º do RPN. O artigo 10.º estabelece a caracterização dos diversos tipos de PN, segundo os diferentes critérios fixados no diploma e no preceito; o artigo 11.º estabelece junto das PN zonas de visibilidade e fixa os respectivos requisitos; os artigos 15.º, 16.º e 17.º estabelecem as diferente formas de equipamento que devem existir em cada tipo de PN.
Destes preceitos, apenas o artigo 11.º, n.º 5, e o artigo 15.º, n.º 4 foram referidos pela decisão recorrida, em relação com o artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81. O n.º 5 do artigo 11.º coloca "a manutenção da zona de visibilidade referida no n.º 1 deste artigo" a cargo dos proprietários ou possuidores dos terrenos abrangidos, mediante notificação do CF, por carta registada com aviso de recepção. Quanto ao artigo 15.º, n.º 4, ao fixar o equipamento que deve existir na PN do tipo D, estabelece: "As PN dos tipos C e D terão o sinal previsto na alínea f) do n.º 3 do artigo 13.º [cruz de Santo André] e eventualmente outros, previstos nas alíneas g) e h) do mesmo número, salvo quando se trate de estradas nacionais ou municipais, devendo, neste caso, ser colocado no mesmo suporte o sinal atrás referido e ainda marcado no pavimento linha de paragem com a inscrição 'STOP'."
Assim, embora o recorrente tenha indicado como objecto do recurso o artigo 2.º do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, o certo é que a decisão recorrida apenas referiu na sua fundamentação as normas atrás identificadas, pelo que o objecto do recurso tem de ser restringido à norma do artigo 2.º, n.º 1, enquanto estabelece a aplicação progressiva, por decisão do CF, dos artigos 11.º, n.º 5 e 15.º, n.º 4, do Regulamento das PN.
Nos termos do requerimento de interposição do recurso, para além da norma acabada de delimitar, o recorrente pretende que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade dos artigos 3.º e 29.º do RPN, na interpretação segundo a qual a concessão de prioridade a veículos do CF exclui sempre que sobre esta recaia o dever de indemnizar com base na responsabilidade da CP com base no risco ou em presunção legal de culpa ou em outros casos fora dos taxativamente previstos.
7 - A questão da inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81.
De acordo com a decisão recorrida, a passagem de nível onde ocorreu o acidente é do tipo D: passagem de nível sem barreiras e sem sinalização luminosa e ou sonora de aproximação de circulações ferroviárias. Ainda nos termos da decisão, "do lado direito da estrada, atento o sentido do autor, existia um sinal denominado 'cruz de Santo André' colocado junto à passagem de nível, a cerca de 4 m do carril mais próximo"; havia também, no mesmo sentido, um sinal do lado esquerdo da estrada a dizer "Pare, escute e olhe"; não havia quaisquer barreiras ou sinalização nem sinal de stop pintado no pavimento ou colocado por cima da cruz de Santo André.
Estas afirmações da decisão recorrida estribam-se no disposto no artigo 2.º do Decreto-Lei 156/81, conjugado com o n.º 5 do artigo 11.º e com o artigo 15.º, n.º 4, do RPN. É certo que o acórdão em apreço refere, relativamente à "entrada em vigor" progressiva dos preceitos em causa, que "não consta que tal tenha ocorrido neste caso" e, mais adiante, a respeito do sinal de stop, "que foi ressalvado de aplicação imediata", não havendo indicação "de que tenha sido posto em vigor".
Porém, o que o recorrente questiona é o facto de a lei colocar na disponibilidade do CF a entrada em vigor de determinados preceitos legais, o que violaria os princípios da legalidade, da universalidade e da igualdade.
Será assim?
A existência de passagens de nível constitui um grave condicionamento para a circulação rodoviária, conforme se afirma no preâmbulo do diploma. No entanto, não é possível proceder, em curto espaço de tempo, à eliminação das passagens de nível existentes ou à sua substituição por outras com melhores condições de segurança, dado que o seu número é certamente elevado. De tal modo que, em 23 de Dezembro de 1999, ou seja, 18 anos depois do diploma de 1981, ainda se escrevia no relatório do diploma que veio revogar o Decreto-Lei 156/81, o seguinte:
"As passagens de nível, como uma das componentes mais perturbadoras do sistema de exploração ferroviária, são também pontos de conflito geradores de permanente insegurança.
Nos últimos anos, tem-se assistido a uma redução do número de acidentes ali verificados, situação que se pode relacionar directamente com o incremento do esforço de supressão de passagens de nível. A progressão tem sido, no entanto, mais lenta que o desejável. Por outro lado, o aumento dos fluxos de tráfego ferroviário e de velocidade das composições ferroviárias podem inverter a tendência referida.
Dado o elevado número de passagens de nível ainda existente, considera-se necessária uma intervenção planeada com vista ao incremento das acções de supressão. O presente diploma define um quadro institucional para esse fim.
Quanto ao regime legal das passagens de nível existentes, a prática dos últimos 18 anos revelou impossível a aplicação integral do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, designadamente no que respeita à sua classificação[...]"
Mostram-se, assim, inteiramente justificados os receios do legislador de 1981. Compreende-se que, de facto, não seja possível em curto espaço de tempo a substituição ou a modificação das passagens de nível, pelo que a solução da lei de fazer a aplicação de forma progressiva, à medida que estivessem prontas as alterações, é uma solução razoável e justificada. E, dado que é sobre o CF que impende a obrigação de proceder às modificações necessárias para a reclassificação das PN, é uma solução aceitável, não arbitrária, que recaia sobre o CF a decisão da aplicação progressiva dos preceitos que impõem tais modificações.
Não é violado o princípio da legalidade, uma vez que não era legitimamente admissível outra solução face à situação concreta em apreço. Efectivamente, significando o princípio da legalidade o dever de agir conforme a lei, não se vê como uma norma legal que prevê um dever de actuar por etapas possa violar tal princípio.
Também não há violação do princípio da universalidade uma vez que a situação abrangia todos os utentes quer antes quer depois da reclassificação da passagem de nível, não se podendo ver qualquer discriminação no facto de não ser possível fazer uma reclassificação simultânea de todas as passagens de nível do tipo D.
Por último, não existe também qualquer violação do princípio da igualdade, não só porque a solução encontrada não é arbitrária ou desrazoável, mas também porque o princípio da igualdade não funciona diacronicamente, por isso que, enquanto a PN não tiver sido reclassificada, todos os utentes estão sujeitos aos mesmos riscos e a uma responsabilização igual para todos.
Não ocorre, portanto, nos autos qualquer violação quer do princípio da legalidade, quer da universalidade, quer da igualdade, no que respeita ao artigo 2.º do Decreto-Lei 168/81, de 9 de Junho, conjugado com os artigos 11.º, n.º 5, e 15.º, n.º 4, estes do RPN.
8 - A questão de constitucionalidade dos artigos 3.º e 29.º do Regulamento de Passagens de Nível.
Segundo o recorrente, estas normas são inconstitucionais na medida em que a concessão de prioridade a veículos da CP exclua que sobre esta recaia o dever de indemnizar com base em responsabilidade objectiva ou pelo risco.
Importa, todavia, apurar qual o exacto sentido que deve ser atribuído às referidas disposições na decisão recorrida.
O artigo 3.º do RPN determina que "os veículos ferroviários gozam de prioridade absoluta de passagem nas PN".
Por sua vez, o artigo 29.º estabelece a responsabilidade civil do CF e dos utentes em dados casos que descreve, mas dentro destes casos não se encontra incluído o caso de uma passagem de nível sem barreiras e sem sinalização sonora ou luminosa.
Começando pelo artigo 3.º que estabelece, como se referiu, uma prioridade "absoluta" de passagem nas passagens de nível para os veículos ferroviários, vejamos qual o conceito comum de prioridade de passagem. Este conceito consta do Código da Estrada vigente ao tempo do acidente (11 de Julho de 1993) e era o seguinte:
"A prioridade de passagem permite aos condutores que dela gozam, uma vez tomadas as indispensáveis precauções, não modificar a sua velocidade ou direcção, e obriga todos os outros a abrandar ou parar de forma a facultar-lhes a passagem". Tal conceito foi posteriormente alterado (Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio, por sua vez modificado pelo Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, que alterou aquele diploma e republicou o Código da Estrada, mas que não interessa aqui referir, por posterior à data do acidente).
Ao estabelecer que o condutor que goza de prioridade deve, não obstante, tomar as indispensáveis precauções ou observar as cautelas necessárias à segurança do trânsito (na formulação do Decreto-Lei 2/98), o preceito em causa sublinha que o direito de prioridade não é um direito inteiramente absoluto, pois cede em alguns casos, como, por exemplo, os veículos da polícia e colunas de militares ou militarizadas.
Ora, se a prioridade normal tem este conteúdo, a prioridade absoluta há-de significar uma prioridade mais intensa: tem de significar que quem dela beneficia não tem de se preocupar com quem pretenda atravessar a via em que circula. E, assim, um comboio nunca é obrigado a ceder passagem a um veículo de outro tipo que pretenda atravessar a linha férrea, "não sendo, de facto, exigível ao condutor do comboio, para que possa beneficiar do direito de prioridade, que, antes de cada PN do tipo D, tome precauções especiais, nomeadamente emitindo sinais acústicos ou diminuindo a velocidade". As possíveis medidas de precaução apenas se justificam face a circunstâncias excepcionais, como, por exemplo, no caso em que o condutor do comboio é avisado de qualquer perigo na linha ou pode aperceber-se durante o trajecto de um eventual perigo.
E isto porque a circulação ferroviária, dadas as suas particularíssimas características - circulação obrigatória e necessária sobre carris, com impossibilidade de o condutor poder controlar as circunstâncias do restante trânsito - impõe que "nos cruzamentos [...] os condutores devem ceder a passagem aos veículos que se desloquem sobre carris", como prescreve o actual Código da Estrada (Decreto-Lei 2/98, 3 de Janeiro), no seu artigo 32.º, n.º 2.
No que se refere ao artigo 29.º do RPN, importa desde logo salientar que o caso em apreço diz respeito a um acidente ocorrido numa passagem de nível do tipo D, isto é, uma PN sem barreiras e sem sinalização luminosa e ou sonora de aproximação de circulações ferroviárias.
O artigo 29.º estabelece a responsabilidade do CF e dos utentes em quatro casos específicos, dois dos quais visam a hipótese de acidente em PN particular; em nenhuma das hipóteses elencadas no preceito se consideram as PN do tipo D. Daí entender a decisão recorrida que "o artigo 29.º exclui o dever de indemnizar da CP em hipóteses de PN como a dos autos".
Mas a decisão recorrida não fica por aqui. Nela também se escreveu:
"Mas nós interpretamos o artigo 29.º no sentido de apenas afastar a responsabilidade da CP com base no risco e até com base em presunção de culpa do artigo 503.º, n.º 1, do CC.
Esta última, como se sublinha e bem no citado acórdão deste Tribunal, está por natureza afastada face à prioridade 'absoluta' do caminho-de-ferro - artigo 3.º do Regulamento de PN.
Provando o lesado a culpa efectiva do maquinista, já a CP responde nos termos gerais."
Assim, a decisão recorrida entende que o artigo 29.º afasta a responsabilidade com base no risco e até com base na presunção de culpa, mas já não exclui a responsabilidade com base na culpa efectiva.
Cabe então perguntar: estas normas, assim entendidas, violam os princípios da legalidade e da igualdade (artigos 12.º e 13.º da Constituição)?
9 - Importa começar por referir que, no caso em apreço, as instâncias deram como provada a culpa do condutor do veículo automóvel na verificação do acidente. E este elemento tem este Tribunal que o aceitar, uma vez que, in casu, apenas lhe cabe apreciar a conformidade à lei fundamental da norma de que decorre a responsabilidade do agente que, pela sua conduta, provocou danos ao lesado.
Existe responsabilidade civil quando uma pessoa deve reparar um dano sofrido por outra (o responsável é o devedor, e a vítima o credor). A responsabilidade pode fundar-se na culpa (responsabilidade subjectiva, por facto intencional ou meramente imprudente ou negligente) ou pode ser independente de culpa e, então, estar-se-á perante a responsabilidade objectiva (isto é, sem culpa), designadamente sob a forma de responsabilidade pelo risco, que caracteriza a evolução das possibilidades e modos da actuação do homem, cujo desenvolvimento multiplicou os riscos gerados por essa actividade. Sendo esta uma distinção "clássica", não falta hoje quem defenda que "toda a responsabilidade é, de algum modo, uma responsabilidade pelo risco criado, sendo apenas diferentes os graus de possibilidade ou de probabilidade de verificação de um dano (veja-se, neste sentido, Werner Rother, Der Begriff der Gefährdung im Shadensrecht, Göttingen, 1972, pp. 250 e segs., citado por Júlio Gomes, "Responsabilidade subjectiva e responsabilidade objectiva", in Revista de Direito e Economia, ano XIII (1987) pp. 116 e segs.).
Como quer que seja, o certo é que o nosso direito, ao lado da responsabilidade pela culpa regulada no artigo 483.º do Código Civil (CC), prevê casos de responsabilidade pelo risco (artigo 500.º e seguintes do CC), havendo ainda hipóteses de responsabilidade por intervenções lícitas causadoras de danos.
Simplesmente, quanto à responsabilidade pelo risco, é princípio geral, com expressão no artigo 505.º do Código Civil, que o risco não tem lugar quando houver responsabilidade do lesado ou de terceiro. O que significa que o entendimento que o STJ deu ao artigo 29.º no tocante à exclusão da responsabilidade pelo risco está de acordo com aquele princípio geral.
De facto, o STJ, ao excluir o risco num caso em que ficou provado que há culpa do condutor do veículo automóvel, limitou-se a aplicar uma interpretação de um princípio geral do nosso direito.
Conclui-se, assim, que o fundamento da responsabilidade pela condução de veículos de circulação terrestre tanto assenta no risco como na culpa, havendo hipóteses em que se presume a culpa.
Mas o STJ entendeu ainda que a norma exclui igualmente a responsabilidade da CP com base na presunção de culpa.
Relativamente a este aspecto - isto é, ao facto de, na decisão recorrida, se afastar também a responsabilidade com fundamento na presunção de culpa -, importa desde logo reconhecer que a Constituição não impõe a existência de presunções de culpa.
Na verdade, o princípio do Estado de direito democrático, em sede de responsabilidade civil, não pode deixar de postular a exigência de culpa do agente para daí extrair as consequências de censura e reprovação pelo seu comportamento, e, eventual indemnização pelos danos causados. De idêntico modo, mas de forma mais intensa, também no direito penal a censura da comunidade não pode deixar de assentar no comportamento culposo ou doloso do agente que põe em perigo os valores mais relevantes da comunidade a que pertence.
Aquele princípio do Estado de direito democrático abrange ainda, dada a multiplicidade de actividades perigosas que a vida actualmente impõe e cria, a responsabilidade pelo risco, em que o legislador prescinde do elemento subjectivo, da culpa e em que o fundamento da responsabilidade reside na criação de uma fonte de riscos ou de potenciais danos pelo desenvolvimento de determinadas actividades.
Para efeitos de responsabilidade civil - ao contrário do que se passa em matéria contratual - a culpa não se presume: é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, a menos que a lei estabeleça uma presunção legal de culpa - v., o artigo 487.º do Código Civil (cf. os artigos 491.º, 492.º e 493.º, do Código Civil, que prevêem casos de presunção legal de culpa). As presunções de culpa representam, assim, uma inversão do ónus da prova justificada como forma de tornar razoável e proporcional a solução porventura excessiva que decorreria da aplicação singela do princípio geral.
Mas, sendo assim, é manifesto que a Constituição não impõe a existência de presunções de culpa: estas são de criação legal e com fins correctores.
No caso em apreço, em que as instâncias deram como provada a culpa do condutor do veículo automóvel, a não previsão pelo artigo 29.º do RPN de uma presunção de culpa não torna este preceito inconstitucional.
Por último, importa afrontar a questão da violação do princípio da igualdade, podendo, desde já, afirmar-se que não ocorre, também, no caso, qualquer violação do princípio da igualdade.
Este Tribunal tem afirmado repetidamente que a igualdade não recusa regimes jurídicos diferenciados. Recusa apenas o arbítrio legislativo, isto é, a adopção de regimes jurídicos diferentes para situações que, essencialmente, sejam iguais. Só neste caso a diferença de tratamento jurídico se apresenta como irrazoável ou arbitrário, já que carece de fundamento material ou racional.
Ora, no caso dos autos, ficou já evidenciado que o trânsito de veículos sobre carris é substancialmente diferente do restante trânsito terrestre. Justifica-se, assim, plenamente, que ao regime jurídico das passagens de nível seja dado um tratamento necessariamente diferenciado, do que a legislação sobre tráfego em vias terrestres concede aos cruzamentos e entroncamentos de estradas e outros caminhos.
Não ocorre, pois, qualquer violação da igualdade quando a lei concede aos veículos que transitam sobre carris a prioridade absoluta nas passagens de nível.
No caso apreço, como ficou referido, a 1.ª instância concluiu pela existência de culpa exclusiva do condutor do veículo automóvel no acidente (fls. 149 e 149 v.º), o que, sem o afirmar expressamente, foi também confirmado pela Relação (fl. 195). O STJ, por seu lado, analisou a questão da sinalização da PN, concluindo que, se alguma falta havia, ela não podia ser imputada à CP, pelo que "não se vê que por aí possa atribuir-se-lhe culpa, em termos de a responsabilizar civilmente".
Há então que concluir que os preceitos questionados interpretados no sentido que atrás se apontou (ou seja, no sentido de que o artigo 3.º estabelece o direito de prioridade das composições ferroviárias no atravessamento de passagens de nível e o artigo 29.º na medida em que não se aplica especificamente às passagens de nível do tipo D) não excluem, de forma desigual, desproporcionada ou excessiva, a responsabilidade civil da CP que possa resultar do atravessamento de passagens de nível como a dos autos.
E, assim, tais preceitos não violam nem o princípio da legalidade nem o princípio da igualdade, pelo que o presente recurso tem de improceder.
III - Decisão. - Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, nem as dos artigos 3.º e 29.º do Regulamento de Passagens de Nível, por aquele diploma aprovado, na interpretação feita nos autos;
b) E, em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC.
Lisboa, 27 de Junho de 2001. - Vítor Nunes de Almeida - Artur Maurício - Luís Nunes de Almeida - Maria Helena Brito (vencida, nos termos da declaração de voto junta) - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto. - O projecto de acórdão que apresentei como primeira relatora deste processo não obteve vencimento.
Nesse projecto sustentei a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 22.º, 2.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa, da norma contida no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho (na parte em que determina o diferimento da entrada em vigor dos artigos 15.º, n.º 4, e 11.º, n.os 5 e 6, do Regulamento de Passagens de Nível), e da norma contida no artigo 29.º do Regulamento de Passagens de Nível, aprovado pelo mesmo decreto-lei, na medida em que de tais normas resulta a exclusão da responsabilidade civil do caminho-de-ferro, seja qual for a natureza e o fundamento de tal responsabilidade quanto aos acidentes ocorridos com veículos de circulação ferroviária em passagem de nível sem guarda ("passagem de nível sem barreiras e sem sinalização luminosa e ou sonora de aproximação de circulações ferroviárias").
São os seguintes os fundamentos da minha posição, expressa no projecto de acórdão que oportunamente apresentei:
A) Delimitação do objecto do recurso
1 - O recorrente requereu a este Tribunal a apreciação da constitucionalidade das normas constantes do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, e do artigo 29.º, conjugado com o artigo 3.º, do Regulamento de Passagens de Nível, aprovado por aquele mesmo diploma, "na interpretação que delas fez o acórdão recorrido", "por violação dos princípios constitucionais da legalidade, da universalidade e da igualdade consagrados nos artigos 12.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa".
As normas impugnadas encontram-se transcritas no acórdão (cf. n.º 5 do acórdão).
2 - Entendo que não estão preenchidos os pressupostos processuais do recurso interposto quanto a todas as questões suscitadas pelo recorrente.
2.1 - Na perspectiva do recorrente, seria materialmente inconstitucional, "por violação dos princípios da legalidade, da igualdade e da universalidade consignados nos artigos 12.º e 13.º da CRP, o artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, na interpretação que dele faz o douto acórdão do STJ segundo o qual é a própria CP que, a seu livre alvedrio, promove a entrada em vigor das normas que definem as exigências legais que a vinculam, assim se subtraindo à obrigação de indemnizar" (conclusão 1.ª das alegações apresentadas neste Tribunal).
O artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, contém as regras sobre a entrada em vigor do diploma. Como regra geral, determina-se que o diploma entra em vigor 20 dias após a sua publicação.
Mas estabelecem-se excepções: desta norma resulta efectivamente uma entrada em vigor diferida quanto a determinados preceitos do Regulamento de Passagens de Nível, cuja aplicação se verificará progressivamente, "por decisão do caminho-de-ferro", abrangendo quer passagens de nível isoladas quer conjuntos de passagens de nível integradas em programas periódicos.
Nos termos da segunda parte do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, excepcionam-se da entrada em vigor imediata do diploma o artigo 10.º, sobre a caracterização dos diversos tipos de passagens de nível (enumerados no artigo 9.º), o artigo 11.º, sobre a constituição, junto das passagens de nível, de zonas de visibilidade, os artigos 15.º, 16.º e 17.º, relativos ao equipamento das passagens de nível, respectivamente sinalização luminosa e ou sonora, consoante o tipo de passagens de nível, à sinalização das passagens de nível para uso exclusivo de peões e à instalação dos telefones.
Decorre, porém, do teor do acórdão recorrido que nem todos os preceitos cuja entrada em vigor é ressalvada por aquele artigo 2.º, n.º 1, foram considerados para efeitos de decisão. Verdadeiramente, naquele acórdão apenas se faz referência expressa à entrada em vigor diferida do artigo 15.º e do artigo 11.º, n.º 5, do Regulamento de Passagens de Nível, nos seguintes termos:
"[...]
Relativamente às PN do tipo D, prescreve o artigo 15.º que nas hipóteses dos autos deve existir a cruz de Santo André, devendo ser marcada no pavimento linha de paragem com a inscrição 'STOP'.
[...]
Pode argumentar-se com a ausência de sinal de stop [...]
Como vimos, o sinal stop é imposto pelo artigo 15.º, que foi ressalvado de aplicação imediata.
Não há indicação de que tenha sido posto em vigor.
[...]
Relativamente às condições de visibilidade, bem parece que a falha não é em primeira linha da CP - artigo 11.º, n.º 5 (que nem estará em vigor, como se viu).
[...]"
Ou seja: para eventual apreciação da responsabilidade da CP, e na perspectiva do tribunal recorrido, só interessaria considerar, de entre os preceitos referidos no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, o do artigo 15.º e o do artigo 11.º, n.º 5, do Regulamento de Passagens de Nível.
Todavia, como esses preceitos haviam sido "ressalvados de aplicação imediata" e, no caso concreto do artigo 11.º, n.º 5, se estabelecia um dever de manutenção de uma zona de visibilidade que não incidia prioritariamente sobre a CP - ocorrendo o "deferimento do direito de assegurar a manutenção da zona de visibilidade" à CP, nos termos do n.º 6 deste artigo 11.º -, o tribunal recorrido acabou por considerá-los insusceptíveis de fundamentar uma qualquer responsabilidade da CP.
Significa isto que a norma constante do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, apenas foi aplicada pela decisão recorrida na interpretação segundo a qual o artigo 15.º do Regulamento de Passagens de Nível - mais concretamente o n.º 4 deste preceito, como facilmente se deduz da leitura do acórdão -, bem como o artigo 11.º, n.os 5 e 6, desse Regulamento, entrariam em vigor progressivamente. Ou, dito de outro modo: a norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, não foi aplicada na parte em que se refere aos restantes preceitos desse Regulamento que teriam uma entrada em vigor diferida.
Significa isto também que, no que diz respeito à norma constante do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, há que restringir o objecto do presente recurso e, consequentemente, conhecer da sua conformidade constitucional apenas na parte em que difere a entrada em vigor do artigo 15.º, n.º 4, e do artigo 11.º, n.os 5 e 6, do mencionado Regulamento.
Dispõe o artigo 15.º, n.º 4, do Regulamento de Passagens de Nível:
..."
4 - As PN dos tipos C e D terão o sinal previsto na alínea f) do n.º 3 do artigo 13.º ['Cruz de Santo André'] e eventualmente outros previstos nas alíneas g) e h) do mesmo número, salvo quando se trate de estradas nacionais ou municipais, devendo, neste caso, ser colocado no mesmo suporte o sinal atrás referido e ainda marcada no pavimento linha de paragem com a inscrição 'STOP'."
Dispõe, por sua vez, o artigo 11.º, n.os 5 e 6, do Regulamento de Passagens de Nível:
..."
5 - A manutenção da zona de visibilidade referida no n.º 1 deste artigo está a cargo dos proprietários ou possuidores dos terrenos abrangidos, os quais serão devidamente notificados da limitação a que se refere o mesmo n.º 1 através de carta registada com aviso de recepção, enviada pelo CF.
6 - É deferido ao CF o direito de assegurar a manutenção da zona de visibilidade sempre que os proprietários ou possuidores dos terrenos afectados pela servidão não executem as obras ou trabalhos necessários no prazo de 60 ou 30 dias contados da notificação a que se refere o número anterior, conforme se trate da demolição de obras ou de outros trabalhos.
..."
Neste ponto, não me afasto da delimitação do objecto do recurso feita no acórdão (cf. n.º 6, primeira parte).
2.2 - Segundo o recorrente, seriam também materialmente inconstitucionais, "por violação dos mesmos princípios e normas constitucionais ['os princípios da legalidade, da igualdade e da universalidade consignados nos artigos 12.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa'], os artigos 3.º e 29.º do Regulamento de Passagens de Nível, aprovado por aquele diploma legal (Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho), na interpretação que dele faz o douto acórdão do STJ segundo a qual a concessão de prioridade a veículos da CP exclui sempre que sobre esta recaia o dever de indemnizar com base na responsabilidade objectiva ou pelo risco" (conclusão 2.ª das alegações apresentadas neste Tribunal).
Pretende assim o recorrente que este Tribunal aprecie a inconstitucionalidade da interpretação dada às normas dos artigos 3.º e 29.º do Regulamento de Passagens de Nível, por dela resultar a exclusão da responsabilidade da CP quanto aos acidentes ocorridos em passagens de nível.
Ora, no acórdão recorrido, foi excluída a responsabilidade da CP "com base no risco e até com base em presunção de culpa", atendendo ao disposto no artigo 29.º do Regulamento.
A referência feita no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça ao artigo 3.º do mesmo Regulamento - a norma que atribui prioridade "absoluta" de passagem ao caminho-de-ferro nas passagens de nível - não constituiu a razão de decidir desse acórdão. Na verdade, diz-se aí apenas que: "os comboios não podem estar sujeitos a prioridades dos outros meios de circulação"; "pessoas e condutores de veículos (todos eles) têm de estar atentos e dar prioridade aos comboios"; "é utópico exigir que um maquinista abrande a velocidade ou apite sempre que o comboio passe por uma passagem de nível sem guarda".
Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, apenas pode incidir sobre as normas aplicadas na decisão recorrida, como seu fundamento decisivo, relativamente às quais tenha sido suscitada a questão de inconstitucionalidade.
Verificando-se que o artigo 3.º do Regulamento de Passagens de Nível não foi aplicado, como ratio decidendi, no acórdão recorrido, não deveria no âmbito do presente recurso ser apreciada a sua eventual inconstitucionalidade.
Não acompanho, portanto, quanto a este aspecto, a delimitação do objecto do recurso feita no acórdão (cf. n.º 6, último parágrafo).
3 - Depois de se ter restringido o objecto do recurso, no que se refere à norma constante do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, e de se ter afastado a possibilidade de tomar conhecimento no que diz respeito à norma constante do artigo 3.º do Regulamento de Passagens de Nível, importaria, em minha opinião, precisar o âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal quanto à matéria do fundamento da responsabilidade civil.
Como é óbvio, não compete ao Tribunal Constitucional sindicar o juízo de imputação ao agente do facto causador de danos, levado a cabo pelo tribunal a quo. Este Tribunal apenas pode, e deve, desde que verificados os pressupostos processuais do recurso interposto num caso concreto, apreciar a constitucionalidade da norma em que se fundamenta a responsabilidade do agente pelo facto causador de danos ao lesado ou a exclusão dessa responsabilidade.
No caso dos autos, as instâncias deram como provada a culpa do condutor do veículo automóvel na ocorrência do sinistro.
Por outro lado, no acórdão recorrido excluiu-se expressamente a apreciação de qualquer responsabilidade da CP "com base no risco e até com base em presunção de culpa", tendo em conta o regime constante do artigo 29.º do Regulamento de Passagens de Nível.
Excluiu-se também, no acórdão recorrido, a possibilidade de ponderação de uma eventual responsabilidade (quer subjectiva quer objectiva) da CP, por violação dos artigos 15.º, n.º 4, e 11.º, n.os 5 e 6, do Regulamento de Passagens de Nível, na medida em que se considerou terem sido estes preceitos "ressalvados de aplicação imediata", nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho. Apesar de o tribunal recorrido ter aceitado, "em princípio", a responsabilidade da CP nos termos dos artigos 483.º e seguintes do Código Civil, e de ter considerado que a CP não estava isenta do "dever geral de cuidar da existência de condições mínimas de segurança", a verdade é que não referiu qualquer dever específico de cuidar da existência dessas condições de segurança, que sobre a CP assentasse, e que pudesse, por isso, servir como ponto de partida para o apuramento da sua eventual responsabilidade - nomeadamente o dever a que alude o artigo 15.º, n.º 4, do Regulamento (colocação do sinal de stop), ou o dever de notificação dos proprietários ou possuidores dos terrenos, no sentido de providenciarem pela manutenção de uma zona de visibilidade (artigo 11.º, n.º 5, desse mesmo Regulamento).
Se atentarmos nos termos utilizados no acórdão recorrido, a norma do artigo 29.º do Regulamento aqui em análise serviu para excluir a apreciação da responsabilidade com base no risco e a presunção de culpa; a norma do artigo 2.º, n.º 1, do decreto-lei que o aprovou serviu para excluir a apreciação da responsabilidade subjectiva por violação culposa do disposto nos artigos 15.º, n.º 4, e 11.º, n.os 5 e 6 do Regulamento (estes não consagrariam também, ao que parece, deveres que pudessem ser integrados no "dever geral de cuidar da existência de condições mínimas de segurança"), bem como a responsabilidade objectiva por violação destes mesmos preceitos (repare-se que, a certo passo do acórdão, se refere que "a responsabilidade pelo risco só pode surgir se for feita a prova de que houve violação de alguma norma por parte da CP").
Na realidade - e contrariamente ao que se afirma no acórdão (parte final do n.º 8 e n.º 9) -, as normas referidas constituíram, pelo menos implicitamente, o fundamento para o total afastamento das regras gerais sobre responsabilidade civil contidas no Código Civil, e para a consequente desresponsabilização da CP.
Ora, um eventual julgamento de inconstitucionalidade a proferir por este Tribunal - se bem que não possa obviamente traduzir-se na determinação, em concreto, da responsabilidade pelo acidente questionado nos autos - poderia influir utilmente no julgamento da questão de mérito discutida no processo, já que dele resultaria, desde logo, a necessidade de tomar em consideração certos factos dados como provados no processo e que não foram tomados em conta perante as normas do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, e do artigo 29.º do Regulamento de Passagens de Nível, interpretadas no sentido de excluírem a possibilidade de, nos termos gerais, apurar a responsabilidade da CP.
Delimitado assim o âmbito do presente recurso de constitucionalidade e precisado o alcance dos poderes de cognição deste Tribunal quanto à matéria em discussão, interessaria averiguar se a exclusão da responsabilidade da CP, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, e do artigo 29.º do Regulamento de Passagens de Nível, tem um fundamento material objectivo, razoável e constitucionalmente justificado.
B) Apreciação das questões de constitucionalidade suscitadas
4 - É conhecida a evolução do direito da responsabilidade civil, no sentido de admitir, ao lado do princípio da responsabilidade fundada na culpa (responsabilidade subjectiva), uma responsabilidade independente de culpa (responsabilidade objectiva), máxime, sob a forma de responsabilidade pelo risco.
No domínio da responsabilidade civil, são particularmente nítidos os fenómenos de atribuição de relevância ao interesse colectivo e de superação dos tradicionais dogmas individualistas e voluntaristas.
Na verdade, o desenvolvimento tecnológico e a industrialização vieram aumentar os riscos da actividade humana e potenciar os factos causadores de prejuízos, frequentemente, aliás, imputáveis não a indivíduos isolados mas a conjuntos de pessoas. Esta alteração de condicionalismos levou a encarar a responsabilidade civil sob novas perspectivas. A verificação, desde o século XIX, da existência de danos originados por acidentes veio colocar o problema da sua indemnização e revelar que não eram adequados os esquemas tradicionais.
Os acidentes de circulação terrestre e os acidentes de trabalho constituíram o ponto de partida para esta análise; mas em breve se lhe juntaram outras situações relacionadas com a inovação de processos técnicos, cuja utilização é fonte de prejuízos para terceiros.
O direito alemão foi o primeiro a consagrar a responsabilidade sem culpa, por uma lei de 1838 relativa precisamente a acidentes de caminho-de-ferro (Larenz, Canaris, Lehrbuch des Schuldrechts, II, n.º 2, 13.ª ed., München, 1994, p. 600).
No direito francês, os problemas emergentes de acidentes de circulação estiveram na origem da evolução do direito da responsabilité du fait des choses. A jurisprudência, pretendendo dar satisfação aos interesses das vítimas de acidentes, ensaiou a aplicação do regime consagrado no Code Civil para os danos causados por animais (artigo 1385) aos danos causados por automóveis. Começando por afirmar a necessidade de o lesado provar a culpa do proprietário, os tribunais passaram a considerar que aquela norma consagrava uma presunção de culpa, admitindo que o proprietário ficasse desonerado mediante a prova de que não teve culpa; adoptaram depois uma solução ainda mais favorável à vítima, só aceitando a exclusão da responsabilidade do proprietário se este provasse que o acidente ficou a dever-se a uma cause étrangère que não lhe era imputável (Henri et Léon Mazeaud, Jean Mazeaud, Leçons de droit civil, II, n.º 1, Obligations. Théorie générale, 8.ª ed., por François Chabas, Paris, 1991, pp. 359 e 549).
5 - No direito português, a par da responsabilidade fundada na culpa, regulada nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil, prevêem-se hipóteses de responsabilidade pelo risco no Código Civil (artigos 500.º e seguintes) e em diplomas avulsos; admite-se ainda que a obrigação de indemnização possa resultar de intervenções lícitas na esfera jurídica alheia (cf. por todos, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9.ª ed., Coimbra, 1996, pp. 739 e segs.)
5.1 - O princípio geral da responsabilidade por factos ilícitos encontra-se consagrado no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil: "Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
Constituem pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos: o dano; a existência de um facto voluntário do agente causador do dano; a ilicitude desse facto; a imputação do facto ao lesante; o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Sublinham-se apenas alguns pontos quanto a dois desses pressupostos: a ilicitude e a imputação do facto ao agente.
A ilicitude pode revestir duas modalidades: violação de um direito de outrem (violação de direitos subjectivos, em especial, ofensa de direitos absolutos); violação de preceito legal tendente a proteger interesses alheios (ofensa de deveres impostos por lei que vise a defesa de interesses particulares, mas sem que confira quaisquer direitos subjectivos). A invocação deste segundo fundamento de responsabilidade depende da verificação dos seguintes requisitos: "que à lesão dos interesses dos particulares corresponda a ofensa de uma norma legal [...]; que se trate de interesses alheios legítimos ou juridicamente protegidos por essa norma e não de simples interesses reflexos ou por ela apenas reflexamente protegidos, enquanto tutela interesses gerais indiscriminados [...]; que a lesão se efective no próprio bem jurídico ou interesse privado que a lei tutela [...]" (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8.ª ed., Coimbra, 2000, pp. 506 e segs.).
Quanto à imputação do facto ao agente: em regra, incumbe ao lesado provar a culpa do autor da lesão, excepto se houver presunção legal de culpabilidade (artigo 487.º, n.º 1). Na realidade, a lei consagra presunções legais de culpa do responsável; tais presunções legais de culpa implicam a inversão do ónus da prova, mas são ilidíveis mediante prova em contrário (artigo 350.º, n.os 1 e 2, do Código Civil). De entre as presunções de culpa consagradas no Código Civil (artigos 491.º e seguintes), destaca-se o caso da responsabilidade pelos danos causados por actividades perigosas (artigo 493.º, n.º 2).
Ora, sendo a condução de veículos de circulação terrestre considerada uma actividade perigosa (Almeida Costa, Direito das Obrigações, p. 530), o Código estabeleceu quanto a essa actividade, como se dirá a seguir, o regime mais severo da responsabilidade pelo risco (artigos 503.º a 508.º) e o Supremo Tribunal de Justiça, no assento 1/80, decidiu que "o disposto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil [presunção de culpa] não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre" (Diário da República, 1.ª série, n.º 24, de 29 de Janeiro de 1980, pp. 72 e segs.).
5.2 - Os casos de responsabilidade pelo risco abrangem actividades que, por serem vantajosas ou necessárias, devem ser autorizadas, mas, por comportarem perigos especiais, devem ser oneradas com o encargo da reparação dos danos que vierem a causar. Entende-se que quem exerce uma actividade particularmente perigosa deve reparar os danos resultantes do especial perigo que cria.
A este propósito, interessa aqui mencionar a situação disciplinada nos artigos 503.º a 508.º do Código Civil - responsabilidade pelos danos ocasionados por veículos de circulação terrestre. Excluem-se desta disciplina os danos ocasionados por veículos de navegação fluvial ou marítima e de navegação aérea, submetidos a legislação especial (cf. Almeida Costa, Direito das Obrigações, p. 565, nota 4, 554, nota 3). Ficam abrangidos, portanto, os danos emergentes de acidentes de circulação rodoviária e ainda os acidentes ocorridos no caminho-de-ferro (cf. quanto a estes últimos, expressamente, o artigo 508.º, n.º 3, do Código Civil; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, p. 678, nota 1; no mesmo sentido, pouco tempo depois da entrada em vigor do Código Civil de 1966, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Fevereiro de 1971, publicado na Revista dos Tribunais, ano 89.º, Junho de 1971, pp. 252 e segs., e no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 204, pp. 138 e segs.; sustentando essa solução, no âmbito dos trabalhos de preparação do Código Civil, Vaz Serra, "Fundamento da responsabilidade civil (em especial, responsabilidade por acidentes de viação terrestre e por intervenções lícitas)", Boletim do Ministério da Justiça, n.º 90, pp. 5 e segs. e 100 e segs.).
Da disciplina sobre a responsabilidade pelo risco, constante do Código Civil, resulta pois, em linhas gerais, que "aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação" (artigo 503.º, n.º 1) e que "aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte" (artigo 503.º, n.º 3, primeira parte). A lei prevê como causas de exclusão da responsabilidade objectiva o facto do próprio lesado ou de terceiro e a causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (artigo 505.º do Código Civil) e uma parte da doutrina admite que, se um facto do próprio lesado ou de terceiro ou uma causa de força maior concorrerem com o risco do veículo, a responsabilidade possa ser reduzida mediante aplicação do artigo 570.º do Código Civil (neste sentido, cf. Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 102.º, 1969-1970, pp. 22, nota 1, na sequência da posição defendida no domínio do direito anterior, em Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 99.º, 1966-1967, p. 364, nota 1, e pp. 372 e segs.; "Conculpabilidade do lesado", Boletim do Ministério da Justiça, n.º 86, pp. 131 e segs., e 161 e segs., "Fundamento da responsabilidade civil ...", cit., p. 168; contra, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, pp. 699 e segs.).
O Código regula expressamente a colisão de veículos. Determina o artigo 506.º, n.º 1, que "se da colisão de dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar". E, no n.º 2, acrescenta-se que, "em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores".
Relativamente aos danos ocorridos numa situação de colisão de veículos, o Código admite portanto a repartição da responsabilidade. Não existindo culpa de nenhum dos condutores, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos tiver contribuído para os danos. Havendo concurso de culpas - ou conculpabilidade do lesado - atender-se-á, na fixação da indemnização, ao disposto no artigo 570.º do Código Civil. Em caso de dúvida, presume-se que é igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos e que é igual a contribuição da culpa de cada um dos condutores (cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de Fevereiro de 1993, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 424, pp. 636 e segs., proferido num processo em que se discutia a responsabilidade pelos danos causados por acidente de viação ocorrido numa passagem de nível - colisão entre um comboio e um veículo automóvel pesado -, em que se provou existir concurso de culpas, em proporção diferente da que corresponde à presunção legal).
Em síntese, e no que releva para o presente processo: a responsabilidade de quem utiliza veículos de circulação terrestre tanto pode basear-se no risco como na culpa; vários preceitos integrados na regulamentação da responsabilidade pelo risco que lhes é aplicável referem-se à culpa do responsável (artigos 503.º, n.º 3, 504.º, n.º 2, 506.º, n.os 1 e 2, 507.º, n.os 1 e 2, 508.º, n.os 1 e 2); em certas hipóteses, só existe responsabilidade se houver culpa (artigos 503.º, n.º 3, 504.º, n.º 2); a fundamentação da responsabilidade na culpa permite formular uma pretensão indemnizatória que ultrapassa os limites fixados para a que se baseia no risco (artigo 508.º).
6 - Como o Tribunal Constitucional reconheceu no Acórdão 153/90 (Diário da República, 1.ª série, n.º 207, de 7 de Setembro de 1990, pp. 10 022 e segs.), o sistema de responsabilidade civil consagrado no Código Civil Português "não podia ter sido esquecido pelo legislador constituinte, designadamente o princípio geral e requisitos constantes do artigo 483.º do Código Civil, e aquilo que a doutrina a tal respeito tem escrito".
Na verdade, e, designadamente, o artigo 22.º da Constituição, ao impor a responsabilidade civil ao Estado e demais entidades públicas, por acções ou omissões praticadas pelos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem, deu consagração constitucional ao princípio da responsabilidade civil, ao princípio geral da reparação dos danos causados a outrem.
Tal como afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira, "o princípio da responsabilidade do Estado é um dos princípios estruturantes do Estado de direito democrático, enquanto elemento do direito geral das pessoas à reparação dos danos causados por outrem" (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, em anotação aos artigos 22.º e 2.º, respectivamente, pp. 168 e 63).
A fórmula utilizada no texto constitucional - "Estado e demais entidades públicas" - significa que "os sujeitos de imputação são todas as administrações (estadual, local, autónoma e institucional), sem excepção". Por outro lado, no âmbito material do preceito do artigo 22.º da Constituição não podem deixar de estar abrangidas todas as hipóteses de responsabilidade por actos lícitos e de responsabilidade pelo risco. Se assim não fosse, ficaria lesado o princípio geral da reparação dos danos causados a outrem (Gomes Canotilho, Vital Moreira, ob. cit., pp. 168 e 169).
Disse este Tribunal no referido Acórdão 153/90:
"É que só dentro desta [da responsabilidade civil extracontratual] cabe a violação dos direitos subjectivos absolutos, conferidos de tutela directa aos respectivos titulares, bem como a protecção de interesses de outrem que não revistam o carácter de direito subjectivo absoluto ou, então, que estejam subjacentes a outros, não directamente titulados por esse outrem, mas que são visados pela norma protectora.
Só assim, efectivamente, se compreenderá a expressão 'violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízos para outrem'.
[...]
Mas, ainda que se conceba que no mesmo se abarcam outras formas de responsabilidade extracontratual que não só a decorrente de factos - ilícitos assim nela se reconduzindo algumas hipóteses de danos provocados por actos lícitos, ou que se insira nesse instituto unitário, não obstante outras importantes peculiaridades, a responsabilidade pelo risco [...] - o certo é que sempre nos situamos no domínio da responsabilidade civil extracontratual derivada das funções estaduais [...] e de outras entidades públicas [...].
A responsabilidade directa do Estado e demais entidades públicas, nos parâmetros atrás expostos, é que constitui garantia, consagrada no artigo 22.º da lei fundamental, de ressarcibilidade da lesão efectiva imposta pela sua intervenção."
7 - Ora, a norma do artigo 29.º do Regulamento de Passagens de Nível, ao estabelecer que, em caso de acidente ocorrido durante o atravessamento de passagens de nível públicas por peão, veículo ou animal, a CP só é obrigada a indemnizar os danos causados nos casos e condições aí previstos [n.º 1, alíneas a) a c)], consagra um regime com carácter excepcional, que tem como consequência excluir a responsabilidade civil da CP quanto aos acidentes ocorridos com veículos de circulação ferroviária em passagem de nível sem guarda ("passagem de nível sem barreiras e sem sinalização luminosa e ou sonora de aproximação de circulações ferroviárias") - desde logo, e segundo a interpretação que dela expressamente fez o tribunal recorrido, a responsabilidade civil objectiva e a presunção de culpa.
Por outro lado, a norma constante do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, ao implicar a não imperatividade das normas constantes dos artigos 15.º, n.º 4, e 11.º, n.os 5 e 6, do Regulamento de Passagens de Nível, não só exclui, do mesmo modo, segundo a interpretação que dela fez o tribunal recorrido, a responsabilidade civil do caminho de ferro fundada no risco da actividade (perigosa) desenvolvida, como afasta a responsabilidade fundada em culpa por parte da entidade a quem compete a gestão dessa actividade, quanto aos acidentes ocorridos com veículos de circulação ferroviária em passagem de nível sem guarda ("passagem de nível sem barreiras e sem sinalização luminosa e ou sonora de aproximação de circulações ferroviárias"), nos termos que ficaram acima expostos (supra, n.º 3).
No âmbito do presente recurso, apenas há que apreciar a constitucionalidade das normas questionadas no que se refere à exclusão de responsabilidade civil da CP pelos acidentes ocorridos neste tipo de passagens de nível - passagens de nível sem guarda ou "passagens de nível sem barreiras e sem sinalização luminosa e ou sonora de aproximação de circulações ferroviárias" -, dado que as instâncias qualificaram como "passagem de tipo D" a passagem de nível onde ocorreu o acidente que deu origem ao processo (cf. acórdão do STJ, a fl. 230).
Ao excluir, no que se refere aos acidentes ocorridos em passagens de nível sem guarda, a responsabilidade objectiva da CP e, bem assim, ao excluir a possibilidade de apuramento da responsabilidade fundada em culpa dessa entidade, com o fundamento na não imperatividade de normas relativas a condições de segurança - sem, além do mais, proceder à concretização do conteúdo do "dever geral de cuidar da existência de condições mínimas de segurança" que sobre a CP reconhece impender -, a decisão recorrida acaba por perfilhar uma orientação com resultados práticos idênticos aos que decorriam da solução consagrada no Decreto-Lei 39 780, de 21 de Agosto de 1954.
Dispunha o artigo 75.º, n.º 1, alínea a), do referido decreto-lei:
"Se algum veículo ou animal for atropelado, em passagem de nível, pelo material circulante, observar-se-á o seguinte:
a) Tratando-se de passagem de nível sem guarda nem sinalização apropriada, a empresa não incorre em responsabilidade;
[...]"
Por sua vez, determinava o artigo 76.º, n.º 1, alínea a), do mesmo decreto-lei:
"Se o material circulante atingir algum peão em passagem de nível, o regime de responsabilidade será o seguinte:
a) Tratando-se de passagem de nível sem guarda nem sinalização apropriada, aplica-se o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior;
[...]"
Sobre o regime constante do Decreto-Lei 39 780, de 21 de Agosto de 1954, pronunciou-se o Professor Adriano Vaz Serra, nos seguintes termos (Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 95.º, 1062-1963, n.º 3217, pp. 60 e segs. e 64, nota 2):
"[...]
Há, no referido Regulamento [o Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo Decreto-Lei 39 780, de 21 de Agosto de 1954], disposições de tal modo aberrantes dos princípios da responsabilidade por acidentes de viação e até dos princípios gerais da responsabilidade civil que custa a admitir devam prevalecer sobre eles; assim, as dos artigos 75.º, n.º 1, alínea a), e 76.º, n.º 1, alínea a), que, tratando-se de passagem de nível sem guarda nem sinalização apropriada, declaram não incorrer a empresa em responsabilidade. Ora, se houver culpa da empresa ou de empregados seus no acidente, há-de ela não incorrer em responsabilidade? Não há-de ela responder, mesmo que a falta de guarda ou de sinalização seja devida a negligência da empresa ou que esta, por outro facto culposo, tenha dado causa ao acidente? Pode haver, porventura, culpa do lesado; mas esta circunstância só poderá servir, nos termos gerais, para redução da indemnização por acidente em que a empresa ou os seus empregados sejam também culpados.
[...]
8 - Para a mencionada exclusão de responsabilidade da CP nas passagens de nível sem guarda não existe, em minha opinião, qualquer fundamento material objectivo, razoável e constitucionalmente justificado.
8.1 - Não constitui justificação razoável para tal regime a regra da prioridade de passagem dos comboios relativamente a outros veículos, nas passagens de nível (artigo 3.º do Regulamento de Passagens de Nível).
A vigência de tal regra - cuja justificação é indiscutível - não pode ter como efeito isentar a CP do cumprimento dos deveres de cuidado que lhe incumbem em consequência de gerir uma actividade considerada perigosa nem excluir a responsabilidade da mesma CP pelos riscos inerentes ao exercício dessa actividade. Designadamente, a CP não pode, com fundamento na regra de prioridade dos comboios, ficar desonerada do dever de adoptar as medidas de precaução adequadas para evitar os acidentes nas passagens de nível (medidas relacionadas com a respectiva sinalização, visibilidade, equipamento).
Pelo contrário, a circunstância de existir uma regra de prioridade de passagem dos comboios relativamente a outros veículos, nas passagens de nível, há-de constituir fundamento para uma imposição de especiais deveres de cuidado a cargo da entidade gestora do caminho de ferro sobretudo em relação às passagens de nível sem guarda.
Por essa razão se conclui que da norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, e da norma do artigo 29.º do Regulamento de Passagens de Nível, na interpretação adoptada, resulta afinal a exclusão de responsabilidade da CP quanto aos acidentes relativamente aos quais mais claramente se justificaria a imposição dessa responsabilidade, por se tratar das situações que envolvem maior risco e que, por isso mesmo, implicam deveres de cuidado acrescidos por parte da entidade a quem compete a respectiva gestão - os acidentes ocorridos em passagens de nível sem guarda.
Na decisão recorrida apenas se considerou admissível, em abstracto, quanto aos acidentes nas passagens de nível sem guarda, a prova da culpa do condutor do comboio, e a prova da violação de um dever geral de cuidar da existência de condições mínimas de segurança (que se não concretiza), tendo-se afastado de modo expresso a hipótese de responsabilidade da própria CP fundada no risco (tal como decorre do artigo 503.º do Código Civil), a hipótese de presunção de culpa (pelo exercício de actividade considerada perigosa, nos termos do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil), bem como a hipótese de responsabilidade fundada na culpa, por violação dos deveres ínsitos nos artigos 15.º, n.º 4, e 11.º, n.os 5 e 6, do Regulamento de Passagens de Nível.
A interpretação perfilhada nos autos não permite portanto que o órgão de aplicação do direito averigue os pressupostos da responsabilidade civil da CP relativamente aos acidentes ocorridos com veículos ferroviários em passagens de nível sem guarda.
Sendo a CP uma empresa pública, e integrando-se na administração estadual indirecta (Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 2.ª ed., 1994, pp. 358 segs. e 364), resulta deste modo violado o princípio da "responsabilidade do Estado e demais entidades públicas" consagrado no artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa. Tal resultado contraria também o "princípio geral da reparação dos danos causados a outrem", princípio estruturante do Estado de direito democrático, a que se refere o artigo 2.º da Constituição.
8.2 - A solução consagrada é, a meu ver, violadora do princípio da igualdade.
Afasta-se no acórdão essa violação com o fundamento de que "enquanto a PN não tiver sido reclassificada, todos os utentes estão sujeitos aos mesmos riscos e a uma responsabilidade igual para todos" (parte final do n.º 7).
Claro que os utentes estão todos sujeitos aos mesmos riscos e a um regime de desresponsabilização que a todos atinge.
O problema reside precisamente nesse regime de desresponsabilização da CP quando comparado com o regime aplicável aos detentores de outros veículos de circulação terrestre.
Na verdade, as normas questionadas conduzem a um tratamento diferente para a CP em relação aos detentores de outros veículos de circulação terrestre, quanto à responsabilidade pelos danos emergentes de acidentes causados por tais veículos, sem que para essa diferenciação exista fundamento material bastante.
De acordo com a jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal, "o princípio da igualdade funciona [...] como um limite objectivo da discricionariedade legislativa, proibindo a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional [...]" (Acórdão 400/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20.º vol., p. 137 e segs.). Em termos gerais, o princípio da igualdade proíbe o arbítrio legislativo.
No caso vertente, e contrariamente ao que pretende a CP nas suas alegações, o "interesse público" nunca poderia fundamentar um tratamento, neste domínio, a favor da CP, isentando-a da responsabilidade pelos danos causados por acidentes ocorridos nas passagens de nível. O interesse público, principalmente o interesse na reparação dos danos causados a outrem, apenas poderia ser invocado para justificar a responsabilidade do caminho-de-ferro relativamente aos acidentes sobre os quais se discute no presente processo.
Concluo assim que, quanto ao aspecto em apreço, o regime instituído pelos artigos 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 156/81, de 9 de Junho, e 29.º do Regulamento por ele aprovado, na interpretação seguida pelo tribunal recorrido, não tem fundamento material bastante e é por isso discriminatório e arbitrário. As normas em análise traduzem portanto igualmente violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
8.3 - Muito embora não possa ser utilizado como argumento para a decisão do presente recurso, recordo que a solução de excluir totalmente a responsabilidade da entidade gestora do caminho-de-ferro numa hipótese como a dos autos foi abandonada na legislação recentemente aprovada.
Na verdade, no novo diploma sobre esta matéria, as situações em que é admitida a responsabilidade da CP abrangem os acidentes ocorridos em todos os tipos de passagens de nível, sem exclusão das passagens de tipo D (cf. artigo 27.º, n.º 1, do Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei 568/99, de 23 de Dezembro).
9 - Uma observação final, para sublinhar que, de acordo com a posição que sustento, a verificação da ocorrência dos pressupostos ou requisitos da responsabilidade civil, no caso concreto, não constituiria, em caso algum, tarefa da competência deste Tribunal.
A avaliação das circunstâncias de que depende a responsabilidade do caminho-de-ferro só pode ser efectuada pelas instâncias, tendo, porém, presente que o apuramento de tal responsabilidade é, em abstracto, possível, já que a exclusão de tal verificação se fundamenta em normas que, em meu entender, são inconstitucionais.
Por outras palavras, o julgamento de inconstitucionalidade que propus, implicando a reforma da decisão recorrida, teria como consequência, neste processo, que deveriam ser apurados os factos susceptíveis de constituir pressuposto da responsabilidade da CP ou que deveriam ser tomados em consideração certos factos antes dados como provados mas aos quais as instâncias não puderam atribuir relevância face às normas legais de exclusão de tal responsabilidade. - Maria Helena Brito.