Acordam, em sessão plenária, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça:
1 - Maria Odete Martins Diogo, já melhor identificada nos autos, recorreu, para tribunal pleno, do acórdão deste Supremo Tribunal, de 30 de Novembro de 1978, proferido, conforme fotocópias de fls. 4 a 12, na revista n.º 67081, com fundamento em que, no domínio da mesma legislação, deu esse aresto solução oposta à que foi adoptada, relativamente à mesma questão fundamental de direito, pelo acórdão também deste Supremo Tribunal, de 25 de Janeiro de 1978, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 273, a pp. 260 e seguintes.
A secção, pelo seu acórdão de fls. 23 e 24, reconheceu a existência da oposição invocada e mandou, por isso, prosseguir o recurso, que foi depois oportuna e doutamente alegado pela recorrente e em profundidade analisado pelo ilustre representante do Ministério Público no seu não menos douto parecer de fls. 31 a 46.
Não está, porém, o tribunal pleno vinculado àquela preliminar decisão da secção, conforme o n.º 3.º do artigo 766.º do Código de Processo Civil, razão por que, corridos como foram já os vistos legais, se deverá agora reexaminá-la para em definitivo se decidir da verificação ou não dos requisitos ou pressupostos que condicionam o prosseguimento do recurso (artigo 763.º do mesmo diploma).
2 - E sem embargo das dúvidas que lhe foram postas pelo digno magistrado do Ministério Público no tocante ao da oposição entre os referidos julgados sobre a mesma questão fundamental de direito, pensa-se que tal requisito se verifica.
Com efeito, no caso do acórdão recorrido, de 30 de Novembro de 1978, face ao embate de um automóvel ligeiro de passageiros com uma árvore que marginava a estrada, de que resultaram graves lesões para um dos ocupantes nele gratuitamente transportado (a recorrente), não se responsabilizaram os demandados por se entender que o caso recaía sob a alçada do n.º 2 do artigo 504.º do Código Civil, combinado com o n.º 1 do seu artigo 487.º, em virtude de se não haver apurado a culpa do condutor e se ter por inaplicável em matéria de acidentes de trânsito o preceito do n.º 2 do artigo 493.º do mesmo Código, enquanto no caso do acórdão invocado em oposição, de 25 de Janeiro de 1978, face a uma colisão entre um auto-ligeiro de carga e um ciclomotor, de que resultou, por efeito das lesões sofridas, a morte do tripulante deste, se responsabilizaram os demandados de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 506.º do mencionado diploma, em virtude de nenhum dos condutores ter demonstrado (o ciclomotorista falecido, através dos seus representantes nos autos) que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para prevenir o acidente, conforme o preceito do n.º 2 do citado artigo 493.º E sendo estas as decisões em confronto, por bem claro se tem que em ambas se encarou e que nelas explícita e diversamente se decidiu a mesma questão fundamental de direito, que consiste em saber se não tendo sido provada a culpa do ou dos condutores dos veículos intervenientes no acidente, esta se presume nos termos do n.º 2 do artigo 493.º, ou se antes terá lugar o regime de responsabilidade pelo risco fora dos casos em que, tratando-se de transporte gratuito, seja de ter em conta o estabelecido no n.º 2 do artigo 504.º, ambos do Código Civil.
É certo que, como objecta o douto magistrado do Magistério Público, e desde logo se assinalou no acórdão da secção, se não identificam perfeitamente, em toda a sua extensão, as duas já apontadas situações fácticas.
Porém, em qualquer delas - colisão com a intervenção de um só veículo e colisão entre dois veículos - é o mesmo ou idêntico o suporte factual com o qual se há-de ter como correcta ou desacertada a interpretação e aplicação da norma em causa.
Com efeito, são iguais ou idênticos os factos nucleares ou necessários à resolução do problema, e é isso o que importa por serem os não coincidentes puramente acessórios e por isso despiciendos.
Pois em ambas as situações se teve como verificada a existência de danos causados a outrem no exercício da condução automóvel sem que fosse possível o apuramento da culpa do respectivo condutor ou condutores, o que nos parece bastante para que numa e noutra pudesse surgir, como surgiu, com soluções opostas, a mencionada questão.
Este Supremo já, aliás, se pronunciou no sentido de que o artigo 763.º do Código de Processo Civil não exige, para legitimar o recurso para o tribunal pleno, que os casos sejam iguais, mas apenas que nas respectivas decisões se resolva de forma oposta a mesma questão de direito, isto é, que as bases jurídicas das decisões sejam fundamentalmente as mesmas, como no caso acontece (ver, entre outros, o Acórdão de 15 de Julho de 1960, in Boletim, n.º 99, a p. 576).
Na realidade, e a ter em conta a referida base factual comum, decidiu-se no acórdão recorrido que «no caso de acidente de viação o transportador apenas responde, nos termos gerais, pelos danos que culposamente causar a quem transporte gratuitamente (artigo 504.º, n.º 2, do Código Civil), recaindo, assim, em princípio, sobre o lesado - que não pode prevalecer-se da presunção estabelecida no n.º 2 do artigo 493.º do mesmo Código - o ónus de provar a culpa do autor da lesão, conforme o artigo 487.º, n.º 1, daquele Código», enquanto no acórdão dito em oposição, ao contrário, se entendeu «ser a presunção do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil aplicável à responsabilidade civil resultante de danos causados por veículos em circulação», o que deu motivo a que os demandados no processo em recurso fossem absolvidos e o que por certo não aconteceria se nele se tivesse seguido a orientação que anteriormente se sustentou no outro.
Em resumo, e face à questão que o citado n.º 2 do artigo 493.º suscita, de ser ou não aplicável a presunção de culpa que aí se estabelece à responsabilidade emergente de acidentes de viação, adoptou o Acórdão de 25 de Janeiro a primeira das alternativas, enquanto pela segunda se pronunciou o de 30 de Novembro, pelo que assim, um e outro, com soluções opostas sobre a mesma questão fundamental de direito. E daí que o mencionado preceito tivesse sido interpretado e aplicado diversamente a factos idênticos, o que evidência oposição justificativa do recurso previsto no artigo 763.º do Código de Processo Civil.
Pelo que se conclui pela existência da invocada oposição e, em consequência, pela admissibilidade do recurso, uma vez que e para além desse pressuposto nenhuma dúvida oferece que ambos os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação e que de presumir é, com trânsito, o que se invocou de data anterior ao recorrido.
Entraremos, por isso, na apreciação do objecto do recurso.
3 - Está ele, conforme o já anotado, na questão de saber se a regra do n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil é ou não aplicável em matéria de acidentes de viação, o que tem sido motivo de controvérsia tanto na doutrina como na jurisprudência praticamente desde a substituição do Código de Seabra pelo actual, onde tal disposição nos aparece com uma redacção muito semelhante à do artigo 2050.º do Código Civil Italiano, donde fora importada.
Em comentários que fez a vários acórdãos deste Supremo Tribunal, entendeu que sim o ilustre mestre de Coimbra Prof. Vaz Serra, como pode ver-se da Revista de Legislação e Jurisprudência, anos 102, pp. 318 e 319, 103, p. 512, 104, p. 232, e 105, p. 220, baseando-se, porém, e apenas, na circunstância de provirem de uma actividade perigosa e na existência daquele preceito a estabelecer uma presunção de culpa só ilidível pelo causador dos danos quando mostre que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir, e tal entendimento, sem outras achegas, foi também o que prevaleceu, durante alguns anos, na jurisprudência deste Supremo, como no-lo mostram, entre outros, os Acórdãos de 28 de Maio de 1974, de 22 de Julho de 1975, de 3 de Fevereiro de 1976 (este tirado em reunião de secções) e de 4 de Maio de 1976, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, n.os 237, p. 231, 249, p. 480, 254, p. 180, e 257, p. 121, respectivamente, não obstante o mesmo prestigioso mestre, que foi quem mais o influenciou, ter defendido, aquando da publicação dos seus notabilíssimos estudos de preparação do novo Código Civil, o regime, em matéria de acidentes de trânsito, aliás já adoptado nos nossos anteriores Códigos da Estrada desde a sua versão de 1930, da responsabilidade civil objectiva em vez do da responsabilidade cível baseada na culpa presumida proposta para as coisas perigosas (ver «Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades», no citado Boletim, n.º 85, p. 375, e «Fundamentos da responsabilidade civil (em especial responsabilidade por acidentes de viação terrestre e por intervenções ilícitas)», no mesmo Boletim, n.º 90, p. 59).
É certo que nos seus mais recentes comentários às decisões deste Supremo Tribunal sobre a questão em análise já toma posição menos rígida que a inicial ao referir, como no que fez ao Acórdão de 25 de Julho de 1978, a p. 92 do ano 112 da mencionada Revista de Legislação e Jurisprudência, que o n.º 2 do artigo 493.º é, mas só em princípio, aplicável à responsabilidade por acidentes de viação, uma vez que lhe não é aplicável quando, para certos efeitos, a lei estabeleça um regime diverso, exigindo a prova da culpa do causador do dano, e onde um pouco mais adiante se escreve:
«Assim, a questão de saber se o artigo 493.º, n.º 2, é aplicável em matéria de acidentes de viação não parece susceptível de uma solução uniforme; a solução tem de ser obtida mediante interpretação das disposições legais que consideram relevante a culpa do causador do dano, podendo, portanto, variar consoante o sentido de cada uma dessas disposições. Daí que o artigo 493.º, n.º 2, possa ser aplicável nuns casos e não o ser noutros.» Mas, mesmo assim, continua a admitir, em princípio, como diz, a aplicabilidade dessa norma em matéria de acidentes de trânsito.
A tese contrária, da inaplicabilidade do mencionado preceito do n.º 2 do artigo 493.º à circulação automóvel, sem negar a perigosidade desta, foi, entre outros, patrocinada pelo desembargador Vasconcelos de Carvalho na Revista dos Tribunais, ano 90, p.
435, e pelo juiz Oliveira Matos no seu Código da Estrada, a p. 327 (2.ª edição), e foi também a que por último passou a ser acolhida num maior número de arestos deste Supremo Tribunal, sobretudo a partir dos meados de 1978 e, em especial, após a publicação do já citado, de 25 de Julho desse ano, da responsabilidade das suas três secções, em sessão conjunta, nos termos do n.º 3.º do artigo 728.º do Código de Processo Civil.
E foi por esta que já então abertamente nos decidimos, por não nos parecer razoável admitir que o legislador tivesse querido dois regimes de excepção para a disciplina da actividade em causa: o dos artigos 503.º a 508.º do Código Civil, da responsabilidade objectiva, e ao mesmo tempo o da inversão do ónus da prova da culpa constante do n.º 2 do seu artigo 493.º, estabelecido para as actividades perigosas em geral, até porque, pelo uso deste, se deixaria aquele sem aplicação prática, com o consequente prejuízo de todas as incontestáveis vantagens que quis assegurar aos lesados.
Certo que a condução automóvel constitui uma actividade muito perigosa, se bem que quanto a nós o perigo resulte mais da forma como é exercida do que da própria actividade em si.
Seja, porém, como for, considerou-se causa de frequentes e gravíssimos acidentes e foi em função disso que a responsabilidade pelos danos deles decorrentes se submeteu entre nós, como em outros países, à especial e excepcional disciplina da teoria objectiva ou do risco, que fora da matéria de acidentes de trabalho se não alargou ainda aos danos derivados de outras actividades perigosas, com relação às quais se teve como bastante, dentro do sistema regra da responsabilidade subjectiva, a dita norma especial do n.º 2 do artigo 493.º, de inversão do ónus da prova quanto à culpa, pelo que também por essa razão não será a mesma de aplicar nos casos em que se trate de acidentes provocados por veículos.
O que quer dizer que a responsabilidade civil por danos causados por qualquer veículo de circulação terrestre se encontra sujeita, quer ao regime geral da responsabilidade por factos ilícitos prevista nos artigos 483.º, n.º 1, e 487.º, n.º 1, do Código Civil, quer ao regime excepcional de responsabilidade pelo risco a que se refere o seu artigo 503.º, conforme se prove ou não uma actuação dolosa ou simplesmente culposa do responsável e somente a esses.
O da presunção de culpa do n.º 2 do artigo 493.º respeita aos casos de danos causados no exercício de outras actividades perigosas que não têm para a sua disciplina, como a da viação acelerada, o regime bem mais gravoso da responsabilidade objectiva ou independente da culpa.
Pelo que há, em tais condições, como se acentuou no Acórdão de 17 de Outubro de 1978 (Boletim, n.º 280, p. 266), regimes jurídicos distintos para cada uma das referidas actividades perigosas: para as de carácter geral, o do artigo 493.º, n.º 2, ou seja o da responsabilidade com base na culpa, mas com inversão do ónus da prova; e para a decorrente da condução de veículos terrestres, o dos artigos 483.º, n.º 1, e 487.º, n.º 1, quando se prove a culpa, ou o do artigo 503.º, quando ela se não prove e se não verifique qualquer dos casos de exclusão mencionados no artigo 505.º Argumenta-se, ex adverso, que no Código Civil italiano - que o nosso de 1966 tão de perto acompanhou - vigorava para os acidentes produzidos pela circulação de veículos sem carris o princípio da inversão do ónus da prova da culpa. Porém, sem se atentar em que efectivamente assim sucedia (e sucede), não por força do disposto no seu artigo 2050.º, de que o artigo 493.º, n.º 2, é quase uma cópia, mas sim, conforme se frisou no Acórdão de 19 de Outubro de 1978 (Boletim, n.º 280, p. 272) por aplicação directa de um princípio próprio expresso em outra das suas disposições (a do artigo 2054.º), o que bem se justifica pelo facto de não existir no direito italiano, para o referido tipo de acidentes, a responsabilidade com base no risco.
Donde, e com todo o acerto, se ter escrito no predito Acórdão de 19 de Outubro «não parecer razoável admitir que o nosso legislador, depois de ter concedido aos acidentes na estrada a larga protecção que, em matéria de ressarcimento dos danos, resulta da regulamentação da responsabilidade pelo risco, ainda fosse inverter o ónus da prova no domínio da responsabilidade por culpa, e que tendo tratado a primeira em disposições especiais (artigos 503.º a 508.º), tratasse a segunda em disposição genérica (artigo 493.º, n.º 2)».
Temos, por isso, que não tinha aplicação ao caso do acórdão recorrido, como bem nele se julgou, a regra da inversão do ónus da prova da culpa ínsita do preceito do n.º 2 do artigo 493.º com destino à responsabilidade pelos danos causados no exercício das actividades perigosas em geral, desprovidas da protecção da responsabilidade objectiva, pelo que era à autora, recorrente, como lesada, que caberia, nos termos dos artigos 342.º, n.º 1, e 504.º, n.º 2, fazer a prova da culpa do lesante.
Com efeito, fala o último desses preceitos «nos termos gerais» e com isso só poderá querer aludir-se aos termos gerais da responsabilidade civil expressa nos artigos 483.º e 487.º, como correntemente tem sido entendido. Não que unicamente fica excluída da fórmula legal a responsabilidade pelo risco, como já se sustentou. De outro modo, ou seja, a admitir-se, no caso, a mencionada presunção, o próprio preceito ficaria (o do artigo 504.º, n.º 2), como com toda a visão se disse no Acórdão de 25 de Julho de 1978, «esvaziado do seu conteúdo», o que seria um contra-senso.
Diz-se, em oposição a isto, que contra-senso seria exceptuar do regime da presunção de culpa estabelecida para os danos causados por actividades perigosas precisamente aqueles que, de tão perigosas, se submeteram à responsabilidade pelo risco, mas parece-nos evidente o sem valor da objecção porque exactamente pela razão apontada é que se instituiu para essas a responsabilidade objectiva, a qual, de efeitos mais severos, nem sequer teria, nas pretendidas condições de cumulação de sistemas, campo de aplicação. Isto por ser sabido que, com a prova da culpa, real ou presumida, do lesante se afasta sempre a responsabilidade pelo risco.
Chocante, pelo menos - isso sim - seria, como se expôs no Acórdão, da Relação de Évora, de 11 de Novembro de 1976, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano I, tomo 3, a p. 729, que nos casos em que o juiz, em processo penal, tendo de absolver o réu da acusação - crime por falta de provas quanto à sua culpa - houvesse na mesma sentença de o condenar em indemnização, se provado o ilícito civil e por força do disposto no artigo 12.º do Decreto-Lei 605/75, de 3 de Novembro, a título de culpa presumida por aplicação do preceito do artigo 493.º, n.º 2.
Não se aceita, portanto, por tudo o que vem de referir-se, a tese da recorrente, mas a oposta, que vem sendo defendida na mais recente jurisprudência deste Supremo Tribunal, a merecer o aplauso do também ilustre mestre de Coimbra Prof. Antunes Varela, na nova edição que acaba de publicar-se (2.ª) do volume I do seu Código Civil Anotado, a p. 431.
Aí se diz, com efeito, citando-se essa jurisprudência (entre a qual a do Acórdão de 25 de Julho de 1978, tirado em reunião conjunta das secções, e a do ora recorrido), e a propósito da sua orientação, o seguinte, que valerá a pena transcrever:
Este entendimento é o que corresponde à interpretação correcta da lei. Atendendo à especial perigosidade inerente à circulação de veículos, o legislador admitiu neste domínio, para protecção dos lesados, a responsabilidade pelo risco (artigo 503.º). Mas não há qualquer indício de que, além desta protecção - já de si excepcional, pois não vale para o comum das actividades perigosas, onde se não foi além do regime da culpa presumida -, o legislador tenha querido afastar também o princípio segundo o qual é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão (artigo 487.º), quando a acção de indemnização se baseie na culpa e não no risco. Pelo contrário, há vários preceitos (artigos 504.º, n.º 2, 506.º, n.º 1, 507.º, n.os 1 e 2, e 508.º, n.os 1 e 2) que aludem à culpa do responsável pelos danos, não podendo deixar de entender-se que se trata de culpa provada, e não de simples culpa presumida. A única disposição em que se estabelece uma presunção de culpa é a do n.º 3 do artigo 503.º, relativa à responsabilidade do comissário. Trata-se, porém, de um caso em que não existe responsabilidade pelo risco (pelo risco responde apenas o comitente) e por isso o legislador entendeu dever agravar a situação do causador do acidente (o comissário) com uma presunção de culpa...
4 - Assim, e face ao que exposto fica, negam provimento ao recurso, com custas pela recorrente, e tiram o seguinte assento:
O disposto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre.
Lisboa, 21 de Novembro de 1979. - Manuel dos Santos Victor (relator) - Eduardo Botelho de Sousa - Costa Soares - Artur Moreira da Fonseca - Hernani de Lencastre - Alberto Alves Pinto - António Furtado dos Santos - Octávio Dias Garcia - Henrique Augusto da Rocha Ferreira - Bruto da Costa - Jacinto Rodrigues Bastos - Daniel Ferreira - António Correia de Melo Bandeira - Augusto de Azevedo Ferreira - Oliveira Carvalho (votei o assento com a declaração de que pelo facto de na circulação automóvel poderem resultar perigos e efeitos danosos isso não significa que os condutores dos veículos exerçam uma actividade perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, o que afasta a aplicação a esses acidentes do preceituado no n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil) - Aníbal Aquilino Ribeiro (concordo com a declaração de voto do colega Acácio de Carvalho, tendo a acrescentar que votei a conclusão do acórdão) - Ruy Corte Real (com a declaração de que voto o assento por melhor esclarecido e atenta a interpretação que dei ao n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil, no Acórdão deste Supremo, de 17 de Outubro de 1978, Boletim n.º 280/266, de que fui relator) - Ferreira da Costa (vencido. Votei no sentido da inexistência de oposição e no de se assentar em que o n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil é aplicável, em princípio, à condução de veículos de circulação terrestre.
Apresento a declaração de voto com as razões do meu entendimento) - Avelino da Costa Ferreira Júnior (vencido, mas apenas quanto à decisão final, pelos mesmos fundamentos da declaração de voto do Exmo. Colega Dr. Ferreira da Costa) - Manuel Alves Peixoto (vencido quanto à matéria do assento fundamentalmente pelas razões do meu Exmo. Colega Ferreira da Costa) - João Moura (vencido pelos motivos invocados pelo conselheiro Ferreira da Costa) - Abel de Campos (vencido, não só quanto à existência de oposição relevante, de harmonia com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Ferreira da Costa, mas ainda quanto ao fundo, relativamente ao qual apresento declaração de voto). Tem voto de conformidade do Exmo. Conselheiro Dr. António Miguel Caeiro, que não assina por não estar presente. - Manuel dos Santos Victor.
Eis as razões desse voto:
a) No que toca à pretensa oposição:
Os casos versados no acórdão recorrido e no 25 de Janeiro de 1978 são diferentes no substracto factual e a questão fundamental de direito que neles se decidiu não é a mesma: naquele, a da interpretação e aplicação do n.º 2 do artigo 504.º do Código Civil, e neste, a do entendimento e âmbito do n.º 2 do seu artigo 493.º b) No que respeita à doutrina do assento:
A presunção de culpa estabelecida neste n.º 2 funda-se numa regra de experiência segundo a qual os danos resultantes do exercício de actividades perigosas são, normalmente, ocasionados por quem as pratica;
Pela sua razão de ser a presunção deve, em princípio, alcançar todos os condutores de veículos de circulação terrestre, visto exercitarem uma actividade consabidamente perigosa, quer sejam proprietários deles, quer sejam simples comissários ou utentes;
A circunstância de a lei prever o regime da responsabilidade objectiva em alternativa com a culposa não justifica o afastamento daquela presunção;
Esta solução deixaria sem razão de ser plausível a presunção de culpa formulada no n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil quanto aos danos causados pela condução de comissário; efectivamente;
O preceito não se poderia restringir às relações internas entre o comitente e comissário quando o dano fosse causado por este, sob pena de privilegiar o comitente relativamente a terceiros lesados, o que seria manifestamente injusto, dado aquele ser responsável pela escolha do comissário e, muitas vezes, pelas faltas praticadas na condução;
Também é inaceitável, salvo o devido respeito, a opinião adiantada pelo Prof. Antunes Varela, o de que a presunção formulada no citado n.º 2 só funciona contra o comissário - e nenhum outro condutor -, visto estar isento de responsabilidade objectiva: é que, por um lado, os direitos de terceiros encontram-se cobertos pela responsabilidade objectiva do comitente e, por outro, seria também injusto que o comissário pagasse um preço tão desmedido por essa isenção, passando a assumir uma obrigação de indemnizar sem qualquer limite, em vez de uma responsabilidade menos grave, própria de quem responde por força do risco;
A injustiça seria tanto mais evidente quanto é certo que a isenção de responsabilidade objectiva do comissário não representa nenhum favor legal, por ser consequência do próprio fundamento dela;
Resulta do exposto que o n.º 3 do citado artigo 503.º só pode explicar-se, na parte em que formula a presunção de culpa do comissário, como afloramento da regra enunciada no n.º 2 do citado artigo 493.º;
Esta regra é que tornou necessária a formulação da excepção prevista no n.º 2 do artigo 504.º do Código Civil para o transportador a título gratuito, fazendo-o responder «apenas nos termos gerais pelos danos que culposamente causar», ou seja, sem culpa presumida;
Esta excepção, qualquer que seja a sua justificação, exprime uma tendência para favorecer o transportador a título gratuito, designadamente ao transportador por mera cortesia, para a qual propende o direito de alguns outros estados.
Ferreira da Costa.
Declaração do voto
Mantenho inteiramente o ponto de vista que largamente sustentei no voto de vencido expresso no acórdão recorrido (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 281-324), notando que o Acórdão de 19 de Outubro de 1978, nesse Boletim, n.º 280-272, apenas votei a conclusão, como se esclareceu no mesmo Boletim, n.º 282-291.Pela doutrina contrária ficam indevidamente desprotegidos os interesses que pelo estabelecimento da responsabilidade civil se procuravam acautelar - e era a isso que primordialmente importava atender.
Na verdade, a responsabilidade objectiva é mera solução subsidiária, de efeitos restritos, já que não permite a indemnização integral dos danos sofridos pelos lesados a partir de certo limite (artigo 508.º do Código Civil).
Estes, por tal doutrina, embora vítimas de uma actividade inegavelmente reconhecida como das mais perigosas (sendo até por isso mesmo que se vai ao ponto de estabelecer a seu respeito a responsabilidade pelo risco), ficam, inexplicável e injustamente, desprovidos da protecção que a lei consagra, em geral, relativamente a quaisquer actividades perigosas.
Protecção, como se disse, muito mais larga e eficaz na sua concretização indemnizatória, visto garantir sempre o ressarcimento de todos os danos sofridos.
Nem pode também deixar de se frisar a injusta incongruência que dessa doutrina resulta para o caso de colisão de veículos conduzidos um pelo seu proprietário e o outro por simples comissário: enquanto o primeiro só responderá integralmente pelos danos causados se se provar que agiu com culpa, este último (afinal, em princípio, o mais desfavorecido, por conduzir por conta de outrem) terá de responder pela totalidade dos danos, a não ser que ele mesmo prove não ter havido culpa da sua parte (artigo 503.º, n.º 3, do Código Civil).
Abel de Campos.
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 5 de Dezembro de 1979. - O Secretário, Manuel Fernandes Júnior.