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Acórdão 581/2000/T, de 22 de Março

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Texto do documento

Acórdão 581/2000/T. Const. - Processo 1083/98. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - 1 - Na sequência de queixa apresentada pelo Procurador-Geral da República, o Ministério Público deduziu acusação contra Diogo Pinto de Freitas do Amaral, professor universitário, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de ofensa a pessoa colectiva, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 187.º e 183.º do Código Penal.

No requerimento em que pediu a abertura de instrução, o professor Diogo Freitas do Amaral invocou a ilegitimidade ou incompetência do Ministério Público para o exercício da acção penal por estar em causa no processo, nos termos da queixa apresentada, "não só a pessoa do Procurador-Geral da República como também a própria Procuradoria-Geral e o Ministério Público", e suscitou a questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 263.º, n.º 1, e 264.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, "que atribuem competência ao Ministério Público para dirigir e realizar o inquérito e deduzir acusação [por incompatibilidade] com os princípios do Estado de direito, da legalidade e da imparcialidade consagrados nos artigos 2.º e 219.º da Constituição na sua versão actual, sempre que os ofendidos sejam aquele órgão do Estado, a Procuradoria-Geral da República ou o seu presidente".

Na decisão instrutória, proferida em 25 de Março de 1998 (fls. 242 e seguintes), a juíza do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa considerou improcedente a invocada ilegitimidade ou incompetência do Ministério Público e afastou a inconstitucionalidade suscitada, nestes termos:

"O requerente não invoca [...] a interpretação que faz das normas e princípios para alcançar tal conclusão. E teria sido útil que o tivesse feito, porque o que o arguido pretende é, e salvo o devido respeito, que é muito, uma interpretação desconforme com o princípio da legalidade, com os princípios do Estado de direito e com a própria ordem constitucional, o que com simplicidade se demonstra. A tese do arguido conduziria ad absurdo a situações como a de quem ofendesse os tribunais em geral, não admitisse ser julgado por nenhum deles, a pretexto de inconstitucionalidade fundada em falta de isenção de todos os tribunais, já que todos fariam parte da mesma estrutura, como a de que o Tribunal Constitucional não teria legitimidade ou isenção para apreciar os diplomas emanados da Assembleia da República, da qual o próprio tribunal emana por eleição. Não basta, pois, que se aleguem meras suspeições abstractas e não concretizadas.

O Estado de direito consagra o princípio da legalidade. Consagra, igualmente, a separação de poderes. Na própria estrutura do poder judicial, está cometida aos juízes a função jurisdicional, que, em sentido material, é a actividade do Estado que tem por fim geral declarar e aplicar nos casos concretos o direito e a justiça e tutelar os direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir as infracções da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados através de órgãos imparciais e independentes, os tribunais. Ao lado desta função, surge a do Ministério Público, a quem a Constituição, nos termos do artigo 219.º [...] comete o exercício da acção penal.

Também o disposto no artigo 265.º do CPP, ao prever que, se for objecto de notícia do crime magistrado judicial ou do Ministério Público, é designado para a realização do inquérito magistrado de categoria igual ou superior à do visado, não ofende o princípio da legalidade e até visa tutelar a isenção e imparcialidade das investigações. Também, por esse motivo, se o visado for o Procurador-Geral da República, e por não haver magistrado do Ministério Público que lhe seja superior, a competência do inquérito pertence a um juiz. Ora, o artigo 265.º do CPP, visando a isenção e imparcialidade das investigações, só é aplicável quando os arguidos ou suspeitos sejam magistrados e, não enfermando de qualquer inconstitucionalidade, não é aplicável às situações em que a queixa seja apresentada por um magistrado contra um cidadão comum.

Ora, não pode o requerente pretender que, pelo facto de a queixa ser apresentada pelo Procurador-Geral da República, as regras do Estado de direito, consagradas na Constituição da República, sejam subvertidas e o Ministério Público não possa exercer a acção penal, passando a mesma a ser exercida pelos tribunais, a quem competirá julgar a final, o que ainda seria mais inconstitucional e apenas se justifica na situação de o arguido ser Procurador-Geral da República; nos termos e fundamentos já indicados supra. Pior seria, pois, a solução pretendida pelo requerente. Acresce, finalmente, que a improcedência das nulidades invocadas pela defesa se funda, em ultima ratio, no princípio da legalidade, com referência ao artigo 118.º do CPP. Não pretende, por certo, o requerente pôr em causa ou arguir a inconstitucionalidade do princípio da legalidade, à qual todos estamos sujeitos, incluindo o poder judicial, executivo e legislativo.

Nestes termos, improcede também a pretendida recusa da aplicação das normas contidas nos artigos 263.º e 264.º do CPP, sendo inúteis outros considerandos, que apenas pecariam por redundância, até porque o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização preventiva de constitucionalidade, nos termos do Acórdão 7/87, de 9 de Janeiro, entendeu a estrutura do actual Código de Processo Penal conforme aos preceitos constitucionais."

Nos termos da mesma decisão, o arguido foi pronunciado pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa a pessoa colectiva, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 187.º e 183.º do Código Penal.

2 - Diogo Freitas do Amaral interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, fundamentando assim o seu pedido:

"Com efeito, e por um lado, a decisão recorrida não atendeu ao pedido do arguido constante do requerimento para abertura de instrução de declaração de ilegitimidade no caso concreto do Ministério Público para exercer a acção penal e ou de verificação do impedimento do respectivo magistrado acusador, hierarquicamente dependente do queixoso, visto fazê-lo em causa própria - portanto com parcialidade e falta de isenção -, contrariamente ao disposto nos artigos 2.º e 219.º da Constituição, que, respectivamente consagram a defesa do Estado de direito e impõem àquele órgão do Estado o respeito estrito pelo princípio da legalidade.

Por outro lado, também não considerou nem admitiu que as normas contidas nos artigos 263.º, n.º 1, e 264.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que atribuem competência ao Ministério Público para dirigir e realizar o inquérito e deduzir a acusação, naqueles casos em que os ofendidos são o próprio Ministério Público, o seu órgão superior ou a pessoa do seu presidente, devessem ser desaplicadas ao abrigo do artigo 204.º da Constituição por incompatíveis com os princípios do Estado de direito, da legalidade e da imparcialidade, consagrados nos mesmos artigos 2.º e 219.º da lei fundamental, pedido que igualmente consta do requerimento para abertura de instrução."

O recurso não foi admitido, com fundamento em que, sendo recorrível a decisão tomada nos termos do artigo 308.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não estava verificado o pressuposto, exigido pelo artigo 70.º, n.º 2, da Lei 28/82, de, em relação ao tipo de recurso utilizado, haverem sido esgotados os recursos ordinários (despacho de 20 de Maio de 1998, fl. 262).

3 - O recorrente reclamou do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, e este Tribunal deferiu a reclamação através do Acórdão 585/98, junto aos presentes autos (de fl. 413 a fl. 421).

4 - Nas suas alegações de recurso apresentadas junto do Tribunal Constitucional, o recorrente formulou, entre outras, as seguintes conclusões:

"[...]

v) Os artigos 263.º, n.º 1, e 264.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de cometerem ao Ministério Público a direcção e realização do inquérito e a dedução da acusação naqueles casos em que os ofendidos são o próprio Ministério Público, a Procuradoria-Geral da República ou o Procurador-Geral da República, não asseguram as exigidas cautelas em matéria de imparcialidade do Ministério Público.

[...]

tt) Os artigos 263.º, n.º 1, e 264.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados nos termos referidos supra na alínea v) das presentes conclusões, impõem ao Ministério Público uma actuação que não oferece garantias objectivas de imparcialidade e que, como tal, não é susceptível de assegurar ao arguido, e à comunidade em geral, a confiança numa actuação do poder judicial isenta e objectiva, como é exigível numa sociedade democrática.

uu) Por isso mesmo, e nessa exacta medida, tais preceitos, na citada interpretação, violam o princípio da imparcialidade, na sua vertente objectiva.

vv) Consequentemente, e uma vez que o princípio da imparcialidade na sua referida vertente é um subprincípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da CRP, aqueles preceitos são materialmente inconstitucionais por violação deste último princípio.

xx) Os mesmos preceitos violam ainda directa e imediatamente o princípio do Estado de direito democrático, porquanto criam condições objectivas para a prepotência, o arbítrio e a injustiça;

[...]

bbb) Esta objectiva falta de condições de isenção e objectividade não garante que se investigue "à charge et à décharge" e, por conseguinte, põe em causa a justiça e a lealdade do processo, violando, desse modo, o princípio das garantias de defesa próprias de um processo justo, consagrado para o processo penal no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

ccc) A obrigatoriedade de realizar e dirigir o inquérito com a mesma falta de condições objectivas de isenção e de imparcialidade decorrente dos artigos 263.º, n.º 1, e 264.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados nos termos em análise, atenta contra a autonomia do Ministério Público consagrada no artigo 219.º, n.º 2, da CRP."

Por sua vez, o Ministério Público concluiu:

"1.º No nosso ordenamento jurídico, os impedimentos e suspeições decorrem sempre de uma particular ligação ou conexão de certo magistrado, judicial ou do Ministério Público, individualmente considerado, com o objecto da causa, com outros intervenientes processuais ou decorrente de precedente intervenção no processo, susceptível de constituir motivo, sério e grave, adequado para gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade e objectividade.

2.º Não é constitucionalmente legítimo ampliar o âmbito dos impedimentos e suspeições, de modo a estendê-los a uma pluralidade indefinida de magistrados, com fundamento num juízo global de suspeições, alicerçado exclusivamente na respectiva ligação institucional à magistratura de que fazem parte e ao facto de figurar como queixoso, em certo processo criminal, órgão superior ou de gestão dessa magistratura.

3.º Tal juízo global de suspeição, quando transposto para toda uma magistratura, institucionalmente considerada, ao implicar o impedimento em bloco de todo e qualquer magistrado nela integrado para desempenhar, no processo em causa, as funções que lhe estão constitucional e legalmente cometidas, subverte o elenco e repartição de competência entre os órgãos constitucionais, afrontando princípios estruturantes do Estado de direito democrático e do processo penal.

4.º Não é legítimo inferir da estruturação hierárquica do Ministério Público um genérico juízo de suspeição relativamente à objectividade e imparcialidade da actividade processual do magistrado titular do inquérito, originado por queixa apresentada pelo órgão superior do Ministério Público, atento o princípio da autonomia do Ministério Público e os limites aos poderes directivos, constantes dos artigos 2.º, 76.º e 79.º do respectivo Estatuto, aprovado pela Lei 60/98, de 27 de Agosto.

5.º A dedução de acusação - tendo na sua base os elementos coligidos através do inquérito dirigido pelo Ministério Público - é sempre submetida a apreciação jurisdicional e ao contraditório do arguido, que goza da faculdade de requerer instrução, podendo nela demonstrar que a mesma se revelava infundada ou resultado de uma incorrecta ou distorcida valoração dos elementos coligidos durante o inquérito.

6.º O juízo de suspeição global, expresso pelo recorrente relativamente à magistratura do Ministério Público, institucionalmente considerada, tem de haver-se por precludido e manifestamente infundado quando a acusação pública veio a ser integralmente acolhida pelo juiz, após realização de debate instrutório, que culminou na prolação de despacho de pronúncia precisamente pelos factos que constavam da acusação do Ministério Público.

[...]"

5 - Ao ser deferida a reclamação do recorrente através de acórdão transitado em julgado, e por força do artigo 77.º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, ficou definitivamente estabelecida a admissibilidade do recurso de constitucionalidade e definido o objecto desse recurso.

Diz-se a este propósito no mencionado Acórdão 585/98:

"O objecto do recurso interposto pelo reclamante é, assim, a apreciação por este Tribunal, sub specie constitutionis, dos artigos 263.º, n.º 1, e 264.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de atribuírem competência ao Ministério Público para 'dirigir e realizar o inquérito e deduzir acusação, naqueles casos em que os ofendidos são o próprio Ministério Público, o seu órgão superior, ou a pessoa do seu presidente'.

Só esta é, na verdade, uma questão de inconstitucionalidade normativa. A questão da 'ilegitimidade' do Ministério Público ou do seu 'impedimento' (suposto que tem autonomia relativamente àqueloutra questão) não a coloca o reclamante como questão de inconstitucionalidade de normas jurídicas. Apenas diz que, não se declarando a 'ilegitimidade' e ou a 'verificação do impedimento', se contraria 'o disposto nos artigos 2.º e 219.º da Constituição, que, respectivamente, consagram a defesa do Estado de direito e impõem àquele órgão do Estado o respeito estrito pelo princípio da legalidade'.

Ora, nos recursos de constitucionalidade, a competência deste Tribunal é restrita às questões de inconstitucionalidade normativa. Não lhe cumpre - tem-no dito e repetido em inúmeras ocasiões - pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade de actos do poder público de outra natureza, sejam eles actos judiciais, administrativos ou políticos."

O presente recurso de fiscalização concreta tem assim como objecto a apreciação da conformidade constitucional das normas constantes dos artigos 263.º, n.º 1, e 264.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de atribuírem competência ao Ministério Público para dirigir e realizar o inquérito e deduzir acusação, naqueles casos em que os ofendidos são o próprio Ministério Público, o seu órgão superior ou a pessoa do seu presidente, em confronto, designadamente, com os princípios do Estado de direito, da legalidade e da imparcialidade, consagrados nos artigos 2.º e 219.º da Constituição da República Portuguesa.

6 - É o seguinte o teor das normas impugnadas:

"Artigo 263.º

Direcção do inquérito

1 - A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal.

[...]

Artigo 264.º

Competência

1 - É competente para a realização do inquérito o Ministério Público que exercer funções no local em que o crime tiver sido cometido.

[...]"

7 - A questão suscitada pelo recorrente é diversa de uma outra que foi submetida ao Tribunal Constitucional, e que consistia em saber se a direcção e realização do inquérito pelo Ministério Público é inconstitucional por a Constituição, no seu artigo 32.º, n.º 4, cometer toda a instrução a um juiz.

Essa outra questão - que não cabe agora analisar - foi apreciada, em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade, no Acórdão 7/87 (Diário da República, 1.ª série, n.º 33, de 9 de Fevereiro de 1987, pp. 504 e segs.) e, em sede de fiscalização concreta, nos Acórdãos n.os 23/90, de 31 de Janeiro de 1990 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15.º vol., 1990, pp. 119 e segs.), 334/94, de 20 de Abril de 1994 (Diário da República, 2.ª série, n.º 200, de 30 de Agosto de 1994, pp. 8996 e segs.), 517/96, de 28 de Março de 1996 (inédito), 610/96, de 17 de Abril de 1996 (Diário da República, 2.ª série, n.º 155, de 6 de Julho de 1996, pp. 9117 e segs.) e 694/96, de 21 de Maio de 1996 (inédito), tendo nesses arestos o Tribunal Constitucional perfilhado a tese da não inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 263.º do Código de Processo Penal, na parte em que atribui ao Ministério Público a direcção do inquérito, por entender não existir violação do disposto no n.º 4 do artigo 32.º da Constituição.

No presente caso trata-se, antes, de verificar se, relativamente a certos crimes, e atenta a qualidade do ofendido - o próprio Ministério Público, o seu órgão superior ou a pessoa do seu presidente -, a Constituição veda a direcção e realização do inquérito, bem como a dedução de acusação, pelo Ministério Público.

Segundo o recorrente, quando o ofendido tenha a qualidade referida, ao Ministério Público faltaria a imparcialidade necessária à direcção e realização do inquérito, bem como à formulação da acusação. Essencialmente, por duas razões: porque é o titular do interesse imediatamente ofendido e porque os magistrados do Ministério Público se encontram hierarquicamente subordinados ao Procurador-Geral da República.

8 - A apreciação da questão suscitada pelo recorrente reconduz-se, portanto, tal como quando o Tribunal Constitucional apreciou a norma constante do n.º 1 do artigo 263.º do Código de Processo Penal à luz do artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, à análise do conteúdo da norma constitucional que comete ao Ministério Público o exercício da acção penal, à luz de outras normas e princípios constitucionais.

Porém, e como se referiu, agora interessa averiguar se a Constituição veda esse exercício ao Ministério Público quando, atenta a qualidade do ofendido, se possa duvidar da imparcialidade dessa magistratura.

9 - De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, ao Ministério Público compete exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade. Esse exercício é regulado pela lei e, como decorre da remissão contida neste preceito para o número seguinte, acarreta um estatuto próprio do Ministério Público e a sua autonomia (ambos também regulados pela lei).

Do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição pode retirar-se que o exercício da acção penal pelo Ministério Público comporta a direcção e a realização do inquérito por esta magistratura, não se cingindo esse exercício à sustentação da acusação em juízo [neste sentido, v., nomeadamente, o já referido Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 517/96, de 28 de Março de 1996; refira-se também J. Figueiredo Dias, "Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal", in Jornadas de Direito Processual Penal (O Novo Código de Processo Penal), 1988, pp. 8-9, quando afirma que o conceito de acção em processo penal só pode relevar se traduzir "[...] o acto de promoção da actividade tendente à realização do direito penal objectivo; vale dizer, num processo de estrutura acusatória, o poder-dever do Ministério Público de propor ao tribunal a apreciação de um tema atinente à realização de uma pretensão punitiva do Estado"; assinale-se, finalmente, do mesmo autor, Direito Processual Penal, 1.º vol., 1974, p. 396, na medida em que dá a entender que, quando a lei diz que o exercício da acção penal, ou seja, a promoção do processo penal, pertence a certa entidade, daí decorre que a lei também lhe quer atribuir a direcção da instrução preparatória].

No entanto, do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa já mais dificilmente se retira:

a) A exclusiva atribuição ao Ministério Público do exercício da acção penal (neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 830);

b) A necessidade de inquérito em todos os crimes;

c) A necessidade de, relativamente a todos os crimes, ser o Ministério Público a entidade competente para o inquérito, naqueles casos em que o processo aplicável comporte inquérito.

Quanto a estes três últimos aspectos, a norma constante do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa:

a) Não veda a existência de crimes particulares e semipúblicos, em que a legitimidade do Ministério Público está condicionada à dedução de queixa e de acusação particular, ou só à dedução de queixa [neste sentido também, face à Constituição italiana, veja-se o acórdão de 30 de Dezembro de 1993 da Corte costituzionale, na Giurisprudenza della Corte Costituzionale sul Processo Penale, vol. III (de 1 de Novembro de 1992 a 31 de Outubro de 1994), pp. 394 e segs., no qual o Tribunal Constitucional italiano considerou que a Constituição não atribuía o monopólio do exercício da acção penal ao Ministério Público, apenas estabelecendo a obrigatoriedade do exercício da acção penal; assim, a obrigação imposta ao Ministério Público de exercer a acção penal não excluía que a outros sujeitos pudesse ser conferido idêntico poder];

b) Não impõe a existência de inquérito em todos os crimes;

c) Não é clara quanto ao exercício monopolista do inquérito pelo Ministério Público. naqueles casos em que o processo aplicável comporte inquérito.

De qualquer modo, não é de admitir que a Constituição vede ou condicione o exercício da acção penal ao Ministério Público, sem atribuir os poderes que lhe são subtraídos a qualquer outra entidade, pois tal levaria a excluir a tutela de certos bens jurídicos por falta de legitimidade para o exercício da correspondente acção penal.

Assim como não é de admitir que a Constituição, nos crimes em que. exista inquérito, não atribua as inerentes funções a qualquer entidade. Tal redundaria, no fundo, na existência de crimes sem a correspondente acção penal, pois o exercício cabal desta pressupõe a prática de actos instrutórios quanto aos factos que lhe subjazem.

Isto leva a concluir que a questão suscitada pelo recorrente exige igualmente que se equacione a conformidade constitucional da atribuição do exercício da acção penal (nesta última dimensão que aqui interessa, e que é precisamente a da competência para as funções inerentes ao inquérito) a entidade diversa do Ministério Público.

Repare-se que, quanto a este aspecto, não interessa averiguar se a não atribuição ao Ministério Público da competência para as funções inerentes ao inquérito, no crime por que o recorrente vem pronunciado, gera uma lacuna ao nível do direito ordinário: isto é, não interessa ponderar a possibilidade de, face à lei processual penal actual, a outra entidade não poderem ser cometidas as funções de direcção e realização do inquérito e de sustentação da acusação quanto a esse crime. A existência de uma eventual lacuna a esse nível constituiria, de facto, um problema do legislador ordinário. No presente recurso, cabe apenas analisar qual a entidade a que a Constituição atribui competência para dirigir e conduzir o inquérito e deduzir a acusação quanto a esse crime - se ao Ministério Público ou se a outra entidade -, já que, repete-se, não é de admitir que a Constituição tenha pretendido consagrar a figura do crime despojado de acção penal.

Portanto, e em conclusão: a análise do problema suscitado pelo recorrente obriga a ponderar se existem razões que, no caso vertente, possam limitar o alcance do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, e, em caso afirmativo, a identificar as normas e princípios constitucionais que, neste mesmo caso, porventura levem a atribuir as funções próprias do inquérito a entidade diversa do Ministério Público.

10 - De acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, "todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo".

Será que o direito a um processo equitativo é violado quando, como no caso sub judice, quem conduz e realiza o inquérito e quem deduz a acusação (Ministério Público) é o próprio ofendido ou está hierarquicamente subordinado ao ofendido?

Para responder a esta questão, importa delimitar os contornos do direito a um processo equitativo, já que "a garantia de um processo equitativo é [...] consubstancial ao próprio sistema, como salvaguarda e instrumento de efectividade dos direitos fundamentais, que, sem tal garantia, se quedariam teóricos e ilusórios, e não concretos, efectivos e realizados" (H. Silva Gaspar, "O processo equitativo no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Processo Penal de Macau", in Revista Jurídica de Macau, vol. IV, n.º 1, Janeiro-Abril de 1997, pp. 9 e segs.).

O direito a um processo equitativo aparece consagrado, nomeadamente, no artigo 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e no artigo 6.º, § 1.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Segundo Ireneu Barreto ["Notas para um processo equitativo (análise do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem à luz da jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem)", Documentação e Direito Comparado, n.os 49-50, 1992, pp. 69 e segs.), "o Tribunal [Europeu dos Direitos do Homem], na sua decisão de 21 de Fevereiro de 1975, no caso Golder, utilizou a expressão 'direito a um processo equitativo' para sintetizar os diferentes elementos contidos expressa ou implicitamente no artigo 6.º".

E, de acordo com G. Cohen-Jonathan (La Convention Européenne des Droits de l'Homme, Paris, 1989, pp. 394 e segs.), do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6.º, § 1.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, decorrem explícita ou implicitamente quatro garantias gerais:

a) O direito a um tribunal independente e imparcial estabelecido pela lei;

b) A exigência de uma duração razoável do processo;

c) A publicidade no processo jurisdicional;

d) O direito geral a um processo equitativo.

Interessa, naturalmente, e em primeiro lugar, aprofundar o conceito de tribunal e o de tribunal imparcial, de modo a poder retirar do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição algum argumento no sentido da garantia constitucional da imparcialidade da entidade que conduz e realiza o inquérito e deduz a acusação.

Quanto à noção de tribunal, afirma G. Cohen-Jonathan (ob. cit., p. 415) que a jurisprudência europeia tem adoptado uma perspectiva material de tribunal, como uma entidade que exerce a função jurisdicional, decidindo vinculativamente questões da sua competência. Também J. C. Soyer e M. de Salvia ("Article 6", em La Convention Européenne des Droits de l'Homme (Commentaire article par article), Paris, 1995, pp. 239 e segs.) afirmam que a noção de tribunal constante da Convenção Europeia dos Direitos do Homem é autónoma da das jurisdições nacionais. Ainda no mesmo sentido, referem F. Tulkens e H. D. Bosly ("La notion européenne de tribunal indépendent et impartial. La situation en Belgique". Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal Comparé, n.º 4, October-Décembre, 1990, pp. 677 e segs.) que a noção de tribunal na Convenção Europeia dos Direitos do Homem atende à função jurisdicional do órgão e G. Casaroli ("La notion européenne de tribunal impartial et indépendant et le système italien", na mesma revista, pp. 707 e segs.) que a noção de tribunal na Convenção Europeia dos Direitos do Homem corresponde à de juiz - abrangendo-se também o colégio de juízes (tribunal colectivo) -, mas é mais ampla do que a noção tradicional de órgão ao qual são institucionalmente atribuídos os deveres de jurisdição contenciosa para a repressão de crimes.

Quanto à noção de tribunal imparcial, a numerosa jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre o assunto tem insistido na sua dimensão subjectiva e objectiva. Assim, na sentença de 22 de Abril de 1994 (caso Saraiva de Carvalho contra Portugal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.º 4, 1994, pp. 405 e segs., tradução e anotação por A. Henriques Gaspar), diz-se que: "Para os fins do artigo 6.º, § 1.º, o Tribunal recorda que a imparcialidade deve ser apreciada segundo uma perspectiva subjectiva, tentando determinar a convicção pessoal de um certo juiz numa dada ocasião, e também segundo uma perspectiva objectiva, que assegure que o juiz oferecia garantias suficientes para excluir a este respeito qualquer dúvida legítima". E, especificamente quanto à perspectiva objectiva, lê-se que: "Nesta matéria, mesmo as aparências podem revestir importância. Daí resulta que, para se pronunciar sobre a existência, num dado caso concreto, de uma razão legítima para recear a falta de imparcialidade de um juiz, a óptica do acusado entra em linha de conta mas não tem uma importância decisiva. O elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem ter-se por objectivamente justificadas".

Facilmente se compreende que da noção de tribunal, constante do artigo 6.º, § 1.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e densificada pela jurisprudência europeia, nada se retira acerca da inclusão, nesta noção, da entidade que conduz e dirige o inquérito e formula a acusação. A noção de tribunal coincide, aliás, apenas com a noção de julgador, reportando-se à função jurisdicional exercida por certo órgão, independentemente da sua designação legal como tribunal. Mesmo a inclusão, nessa noção, dos tribunais que procedem à instrução e não ao julgamento é problemática: assim, J. Pradel ("La notion européenne de tribunal impartial et indépendant selon le droit français", Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal Comparé, n.º 4, Octobre-Décembre de 1990, pp. 692 e segs.), para quem o termo "tribunal" incluiria apenas os tribunais de julgamento.

Do mesmo modo, o artigo 20.º, n.º 4, da Constituição - que consagra o direito a um tribunal imparcial, na medida em que esse direito emana da ideia de processo equitativo - não tem em vista o Ministério Público e não implica portanto uma necessária equiparação do Ministério Público aos tribunais quanto ao sentido da imparcialidade daquela entidade na condução do inquérito e na formulação da acusação.

11 - Se do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição não se retira um "direito à imparcialidade na condução do inquérito e na formulação da acusação", essa imparcialidade resulta porém, quando o inquérito e a acusação sejam efectuados pelo Ministério Público, do estatuto de autonomia desta entidade, constitucionalmente consagrado no artigo 219.º, n.º 2.

A imparcialidade do Ministério Público "é garantida, constitucionalmente, pela autonomia do Ministério Público: autonomia perante a magistratura judicial, por um lado, e, por outro, autonomia perante o Governo", como salienta Rui Pereira ("Ministério Público: hierarquia e autonomia", Ministério Público: Instrumento do Executivo ou Órgão do Poder Judicial?, IV Congresso do Ministério Público, Cadernos da Revista do Ministério Público, n.º 6, pp. 73 e segs). Por outro lado, e de acordo com o artigo 2.º, n.º 2, do Estatuto do Ministério Público, "a autonomia do Ministério Público caracteriza-se pela sua vinculação a critérios de legalidade e de objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados do Ministério Público às directivas, ordens e instruções previstas nesta lei".

12 - Também o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual "o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso", impõe que no processo penal seja assegurada a imparcialidade das entidades que dominam cada uma das suas várias fases, já que sem essa imparcialidade pode o arguido correr o risco de, nomeadamente, só serem coligidas provas que lhe sejam desfavoráveis e tomadas decisões que o prejudiquem.

13 - Cabe agora analisar se a Constituição formula alguma exigência quanto à imparcialidade da entidade que dirige e conduz o inquérito e formula a acusação, isto é, se estabelece algum critério que permita aferir quando é que aquela entidade pode ou não ser considerada imparcial.

Quanto a este aspecto, é fácil verificar que os contornos concretos dessa imparcialidade não vêm estabelecidos na Constituição. Nem em relação à entidade que conduz e realiza o inquérito e deduz a acusação, nem em relação ao julgador.

A lei deve, todavia, assegurar um núcleo mínimo que garanta essa imparcialidade, salvaguardando as aparências formais que relevam da dimensão objectiva da imparcialidade.

A qualidade de ofendido do magistrado que conduz e dirige aquele inquérito e formula a acusação situa-se indiscutivelmente dentro desse núcleo mínimo, aliás tutelado pelo artigo 23.º do Código de Processo Penal.

Já não se situa dentro desse núcleo mínimo o laço de dependência hierárquica do magistrado que conduz e dirige o inquérito e deduz a acusação face ao ofendido. Neste caso, as dúvidas suscitadas pelo recorrente sobre a imparcialidade do Ministério Público decorrem não da circunstância de ser ofendido o próprio Ministério Público mas da existência de uma hierarquia susceptível de gerar o acatamento de ordens ilegais e temor reverencial por parte dos respectivos magistrados.

Ora, o sistema está bem defendido contra a possibilidade de essa hierarquia gerar, enquanto tal, quebra da imparcialidade a que os magistrados do Ministério Público estão sujeitos. Tal quebra da impar cialidade seria ilegal nos termos do artigo 2.º, n.º 2, do Estatuto do Ministério Público e os magistrados do Ministério Público encontram-se legalmente obrigados a não acatar ordens ilegais dos seus superiores hierárquicos (v. o artigo 79.º, n.º 2, do Estatuto do Ministério Público, nos termos do qual "os magistrados do Ministério Público devem recusar o cumprimento de directivas, ordens e instruções ilegais e podem recusá-lo com fundamento em grave violação da sua consciência jurídica", v. ainda o artigo 79.º, n.º 5, alínea b), desse Estatuto, que reitera o dever de não cumprimento das ordens do Procurador-Geral da República que sejam ilegais). Assim sendo, a possibilidade de algum magistrado acatar ordens (seja qual for a respectiva forma) ilegais do Procurador-Geral da República, ditadas por qualquer intuito persecutório ou de favorecimento da parte deste, coloca não um problema de inconstitucionalidade - como aquele que é invocado pelo recorrente -, mas um problema de violação do Estatuto do Ministério Público.

Repare-se, aliás, que o perigo de a hierarquia gerar o acatamento de ordens ilegais, apontado pelo recorrente, levaria a estender os impedimentos, recusas e escusas a que alude o artigo 54.º do Código de Processo Penal a todos os casos em que as relações de parentesco, inimizade e outras se estabeleçam, não por referência ao magistrado ou agente do Ministério Público que seja competente para o inquérito mas por referência ao respectivo superior hierárquico. Levada ao absurdo, tal tese conduziria ainda ao impedimento do Ministério Público, em bloco, sempre que o Procurador-Geral da República se encontrasse nalguma das situações previstas nos artigos 39.º e seguintes do Código de Processo Penal.

É certo que os magistrados do Ministério Público que tenham emitido ordens, directivas ou instruções cujo cumprimento tenha sido recusado pelos seus subordinados com fundamento em ilegalidade podem, nos termos da lei, avocar o inquérito (artigo 79.º, n.º 4, do Estatuto do Ministério Público). Mas a possibilidade de o fazerem em processo penal no qual sejam ofendidos gera um problema que não é aquele que está agora em discussão: mais concretamente, gera o problema da conformidade constitucional da (hipotética) norma que permite ao Procurador-Geral da República (ou a um superior hierárquico) avocar o inquérito quando ele próprio seja o ofendido num crime, e não o problema da conformidade constitucional da norma que atribui a direcção e condução do inquérito, bem como a dedução da acusação, à magistratura do Ministério Público.

Explicando melhor: não tendo sido aplicada, no presente caso, a norma que permite ao Procurador-Geral da República avocar o inquérito, não é possível invocar-se a mera possibilidade dessa avocação para sustentar a falta de imparcialidade do Ministério Público naqueles casos em que o Procurador-Geral da República seja o ofendido.

Idênticas considerações valem quando a Procuradoria-Geral seja a ofendida.

A subordinação hierárquica exigida pelo n.º 4 do artigo 219.º da Constituição não pode, pois, em si mesma considerada, servir como fundamento de exclusão do Ministério Público do inquérito. Note-se, aliás, que seria manifestamente anómalo que a redução das competências constitucionalmente atribuídas ao Ministério Público (condução e direcção do inquérito; dedução da acusação) assentasse na configuração constitucional desta entidade (hierarquicamente subordinada).

Para rematar este ponto, parecem importantes duas considerações.

Uma é tecida por N. Gonzalez-Cuellar Serrano (Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Processo Penal, Madrid, 1990, p. 128), que refere que "[...] criar um Ministério Público independente para assim assegurar uma 'autêntica imparcialidade' seria inútil e perigoso. Inútil porque são precisamente os princípios da unidade e dependência [...] que dotam de maior eficácia a investigação penal; e perigoso porque se criaria um órgão quase jurisdicional, ao qual, precisamente por causa da sua independência, caberia atribuir competência para a adopção de medidas limitativas de direitos fundamentais e para a produção da prova, constituindo-se assim uma jurisdição paralela de impossível encaixe no nosso sistema constitucional".

Outra é tecida por Rui Pereira ("Ministério ...", cit.), para quem a existência de hierarquia no Ministério Público é "[...] não só compatível como até indispensável à salvaguarda da sua autonomia e ao imparcial exercício da acção penal".

Relativamente à possibilidade de a hierarquia gerar um temor reverencial propício à satisfação dos interesses pessoais do superior hierárquico - e, como tal, criar suspeitas de parcialidade dos agentes do Ministério Público a ele subordinados -, são de perfilhar as considerações do Sr. Procurador-Geral Adjunto a este propósito. Como nas suas contra-alegações se salienta, "[...] vistas as coisas nesta perspectiva - cumpre realçar que esta questão não é privativa da magistratura do Ministério Público, podendo perfeitamente suscitar-se também a propósito da magistratura judicial, apesar da óbvia inexistência de relações de natureza hierárquica entre juízes: bastará pensar na hipótese de figurar como ofendido o Conselho Superior da Magistratura (ou algum ou alguns dos seus membros), órgão a que está constitucionalmente cometida a tarefa de nomeação, colocação, transferência, promoção e exercício da acção disciplinar sobre os juízes em funções nos tribunais judiciais. [...] A solução propugnada pelo recorrente conduziria em última análise, à necessidade de - à margem do elenco de órgãos constitucionalmente previstos - instituir verdadeiras 'magistraturas alternativas', encarregadas de intervir nos processos em que figurassem como ofendidos os órgãos superiores das magistraturas ou aqueles a que estivesse cometida a gestão e avaliação do desempenho profissional dos magistrados - com fundamento numa genérica e global suspeita de parcialidade e falta de isenção na respectiva actuação processual, ditada por um eventual e receado 'temor reverencial' relativamente a tais órgãos superiores. [...]. Como é evidente, o sistema judiciário tem de assentar num princípio de confiança relativamente à capacidade dos magistrados - tanto judiciais como do Ministério Público - actuarem, nos casos que lhes são submetidos, com a 'independência vocacional' que tem necessariamente de caracterizar o exercício das respectivas funções [...]"

14 - Resta analisar se se verifica qualquer risco de quebra da imparcialidade do Ministério Público quando a esta entidade sejam cometidas as funções de condução e direcção do inquérito e de formulação da acusação, no caso de o próprio Ministério Público ser o ofendido.

Neste caso, a condução e direcção do inquérito, bem como a dedução da acusação, por esta entidade pode afectar de algum modo a imparcialidade, na sua dimensão objectiva?

E, ainda que a afecte, a Constituição postula a exclusão do Ministério Público e o cometimento do exercício da acção penal a outra entidade, restringindo desse modo o alcance do n.º 1 do seu artigo 219.º?

Esta última questão prende-se com uma das conclusões a que se chegou no ponto 9: a da eventual necessidade de identificar as normas e princípios constitucionais que porventura levem a atribuir o exercício da acção penal a entidade diversa do Ministério Público, por não ser concebível a figura do crime despojado de acção penal.

Sendo ofendido um magistrado do Ministério Público, o problema encontra, como ficou referido, solução legal expressa (artigos 23.º, 39.º e 54.º do Código de Processo Penal), vedando a lei a intervenção daquele magistrado no inquérito. Nos casos em que o ofendido seja o Procurador-Geral da República ou a Procuradoria-Geral, também se viu que nenhuma razão existe para afastar a intervenção do Ministério Público das investigações.

Mas, relativamente ao crime por que o recorrente foi pronunciado, em que é ofendido o Ministério Público em bloco, a lei processual penal não contempla qualquer impedimento ou suspeição, determinando, pelo contrário, no artigo 264.º, n.º 1, que a competência é do Ministério Público.

O problema central, e mais complexo, que urge analisar, coloca-se portanto quando o próprio Ministério Público seja o ofendido.

E é este o problema que, nos pontos subsequentes, se irá debater. Adiante-se, porém, que se responderá negativamente às duas questões colocadas, isto é, que nem em tal situação se verifica um risco de quebra da imparcialidade nem, independentemente desse risco, a Constituição postula a exclusão do Ministério Público.

15 - Não se verifica, em tal situação, um risco de quebra da imparcialidade, porque, sendo embora o próprio Ministério Público o ofendido, a condução e direcção do inquérito, bem como a dedução da acusação, é efectivamente cometida a um certo magistrado do Ministério Público. Não sendo esse magistrado o ofendido do crime, não existe coincidência entre o específico magistrado a quem cabe a condução e direcção do inquérito, bem como a dedução da acusação, e o titular do interesse imediatamente ofendido - o Ministério Público, como entidade.

Não existindo essa coincidência, as apreensões do arguido quanto à falta de imparcialidade do Ministério Público dificilmente se podem ter como objectivamente fundadas. O mesmo é dizer que a aparência dessa imparcialidade se mantém e que o problema suscitado pelo recorrente afinal não se coloca.

16 - Cabe agora saber se as garantias de defesa (das quais também decorre a exigência constitucional da imparcialidade do Ministério Público) postulam a exclusão da sua intervenção num processo crime quando ele próprio seja o ofendido.

16.1 - Ora, antes de mais, há que ponderar o argumento da equiparação entre o Ministério Público e os tribunais, usado na decisão recorrida.

Na verdade, tal como se os tribunais forem o ofendido de um crime de injúrias ou outro equiparado (pronunciando-se sobre esta questão, o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 19 de Abril de 1990, Actualidade Jurídica, ano 2, n.º 8, processo 40 822, cit. em M. O. Leal-Henriques e M. J. C. Simas Santos, Código Penal, 2.ª ed., Lisboa, 1996, vol. II, p. 330, considerou que os tribunais têm direito à honorabilidade e ao bom nome institucional), só os tribunais podem julgar esse crime e, dentro destes, só os juízes podem julgar, também se o Ministério Público for o ofendido de um crime da mesma natureza, só o Ministério Público pode dirigir e realizar o inquérito e deduzir a respectiva acusação.

Do mesmo modo, se o Tribunal Constitucional for ofendido num crime, isso não pode impedi-lo de apreciar alguma questão de constitucionalidade que se suscite nesse processo.

Isto é: se os tribunais julgam crimes contra eles cometidos, se o Tribunal Constitucional aprecia questões de constitucionalidade suscitadas em processos relativos a crimes de que seja o ofendido, então também o Ministério Público deve poder conduzir e dirigir o inquérito e formular a acusação quando ele próprio seja o ofendido do crime em apreciação.

De todo o modo, há que reconhecer que, em processo penal, as garantias de imparcialidade hão-de ser maiores do que noutros domínios.

16.2 - Além disso, pode sustentar-se a admissibilidade da intervenção do Ministério Público no inquérito, quando seja o ofendido, com o argumento de que o arguido não fica desprotegido porque há sempre um juiz com intervenção no processo.

Não deve obviamente exagerar-se a "subvalorização" do inquérito. Se assim fosse, não valeria a pena sequer consagrar regimes de impedimentos, recusas e escusas para o Ministério Público, ou dotá-lo constitucionalmente de autonomia e, portanto, de imparcialidade. O arguido não tem apenas direito a requerer a abertura da instrução, a ser assistido por advogado, a que um juiz controle os actos do Ministério Público, a que os actos que se prendam com os seus direitos fundamentais sejam praticados por um juiz: tem também o direito a um processo equitativo e que assegure todas as garantias de defesa e, como o inquérito é já uma fase do processo (dado que este se inicia com a notícia do crime), tem também o direito a que, nessa fase, seja assegurada a imparcialidade.

Importa, pois, demonstrar por que motivo a intervenção de um juiz justifica o não afastamento do Ministério Público. E é precisamente a esse motivo que se fará de seguida referência.

17 - Se das garantias de defesa se retira o dever de imparcialidade da entidade que conduz e dirige o inquérito e formula a acusação, delas também se retira a imparcialidade e independência da entidade que, antes do julgamento, procede à aplicação de medidas restritivas de direitos fundamentais ou autoriza a prática de actos instrutórios que se prendem directamente com direitos fundamentais.

Essa entidade é naturalmente um juiz (v., por exemplo, os artigos 28.º, n.º 3, e 32.º, n.º 4, da Constituição).

Ora, e como assinala N. Gonzalez-Cuellar Serrano (ob. cit., p. 132), "[...] ao serem estes últimos [os juízes de instrução] competentes para aplicar as medidas restritivas dos direitos fundamentais antes do julgamento, carecerão da imparcialidade que, em nossa opinião, deve também mostrar-se para a adopção de decisões dessa natureza. Pelo contrário, se aquelas medidas limitativas de direitos forem solicitadas pelo Ministério Público, o juiz, desprovido de funções de investigação e, por isso, de ânimo persecutório, alcançará a objectividade exigível para decidir sem preconceitos [...]". Refere ainda o autor que a esta conclusão chegou o Tribunal Constitucional espanhol (no Acórdão 106/89, de 8 de Junho) e que também a Comissão Europeia dos Direitos do Homem defendeu que a não atribuição de funções de investigação ao juiz assegura tal grau de imparcialidade que o conhecimento que ele possa adquirir na instrução, ao decretar medidas restritivas de direitos, não chega a ser relevante para efeitos de o impedir de intervir no tribunal de julgamento (caso Mogens Hauschildt v. Dinamarca, processo 10 486/83, decisão de 16 de Julho de 1987).

Idêntico raciocínio segue G. Casaroli ("La notion ...", cit.), para quem a abolição, em Itália, dos poderes de investigação (ou inquisitoriais) do juiz (ou seja, a abolição da figura do "Giudice Istruttore") e sua atribuição ao Ministério Público, durante a fase da recolha das provas, assegurou a imparcialidade daquele, assim circunscrito a funções de garantia e de controlo (é a nova fisionomia do "Giudice delle Indagini Preliminari").

Extrai-se daqui uma importante observação para o problema em análise: a presença do Ministério Público no inquérito visa assegurar a imparcialidade da entidade (juiz) que, antes do julgamento, procede à aplicação de certas medidas restritivas que podem colidir com direitos fundamentais do arguido. A sua exclusão do inquérito conduziria a um mal maior: a parcialidade do juiz (e só pode ser um juiz, como se disse) a quem compete decretar as tais medidas restritivas.

E, quanto a este aspecto, não vale argumentar-se que tal mal maior podia ser obviado através da atribuição, no âmbito do inquérito, a um juiz das funções que não se prendessem com direitos fundamentais e a outro juiz das funções de carácter jurisdicional, que directamente se prendessem com esses direitos. É que esta solução, além de conduzir a uma distribuição de competências entre juízes (e, quiçá, de tribunais) em função do carácter jurisdicional ou não jurisdicional dos actos a praticar - sem qualquer assento constitucional -, seria menos racional, já que obrigaria o juiz do inquérito a pedir, quanto à prática de certos actos, autorização a outro juiz.

A conclusão decorre do carácter imperativo dos artigos 202.º, n.º 1, 203.º e 222.º, n.º 5, da Constituição, que estabelecem a imparcialidade e a independência dos juízes. Sem estas características, aliás, ficaria irremediavelmente posto em crise o conceito de "tribunal" e a ideia de Estado de direito (artigo 2.º).

18 - Importa ainda verificar se de outras normas constitucionais se retiram argumentos adicionais no sentido da imposição de uma repartição de funções entre as duas magistraturas (judicial e do Ministério Público) no inquérito. Repartição que, na lei processual penal, e salvo o caso do Procurador-Geral da República, se verifica mesmo naqueles casos em que os arguidos sejam magistrados, judiciais ou do Ministério Público (artigo 265.º).

Uma dessas normas é, mais uma vez, a que se extrai do artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, que contém alguns elementos literais significativos.

Decorre dos artigos 202.º, n.º 1, e 32.º, n.º 4, da Constituição que tanto para o julgamento como para a instrução é competente um juiz.

Ora, a imparcialidade desse juiz só fica suficientemente assegurada se, no caso do juiz do julgamento, for outra a entidade a dirigir o processo até à acusação ou à pronúncia, e a tomar as correspondentes decisões de acusar ou de pronunciar, e se, no caso do juiz da instrução, for outra a entidade a dirigir o processo até à decisão de acusar ou de não acusar.

Que outra entidade pode ser essa, neste último caso, que é o que interessa? Só pode ser o Ministério Público. Com efeito, que sentido teria a previsão da 1.ª parte do n.º 4 do artigo 32.º da Constituição ("Toda a instrução é da competência de um juiz") se, antes dessa fase da instrução, também a um juiz incumbisse a condução e direcção do inquérito e a formulação da acusação?

Por outro lado, só a existência de uma outra entidade, que não um juiz, na fase do processo anterior à fase da instrução permite compreender a parte final do n.º 4 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, quando usa a expressão "outras entidades". Seria, de facto, incompreensível que, para a prática dos actos instrutórios que se prendessem com direitos fundamentais, fosse competente um juiz e, para a prática dos restantes actos, fosse também competente um juiz, mas a Constituição o designasse como uma "outra entidade".

19 - Do que ficou dito acerca do problema enunciado no ponto 14, cumpre fazer uma breve síntese.

Ao estabelecer o direito a um processo que assegure todas as garantias de defesa, e ao estabelecer a autonomia do Ministério Público, a Constituição impõe a imparcialidade desta magistratura, mas os contornos concretos dos impedimentos e suspeições incumbem ao legislador. A este, porém, não é lícito, ao desenhar tais contornos, pôr em causa as exigências mínimas de imparcialidade que hão-de caracterizar a actuação de tal magistratura.

A consagração legal desses impedimentos e suspeições não pode ir também ao ponto de desequilibrar a repartição de funções entre a magistratura do Ministério Público e a magistratura judicial - o que sucederia com a exclusão do Ministério Público do inquérito -, pois que essa repartição tem tutela constitucional, visando assegurar a imparcialidade e independência dos tribunais e a estrutura acusatória do processo penal e, por essa via, o direito a um processo que assegure todas as garantias de defesa. Significa isto que estas garantias devem compreender-se à luz daquela repartição de competências entre as duas magistraturas, não podendo por isso considerar-se restringidos quando essa repartição é levada às suas últimas consequências.

III - 20 - Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 263.º, n.º 1, e 264.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de atribuírem competência ao Ministério Público para dirigir e realizar o inquérito e deduzir acusação, naqueles casos em que os ofendidos são o próprio Ministério Público, o seu órgão superior ou a pessoa do seu presidente, em confronto com os princípios do Estado de direito, da legalidade e da imparcialidade (artigos 2.º e 219.º da Constituição da República Portuguesa), com o direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa) e com o princípio segundo o qual o processo penal deve assegurar todas as garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta.

Lisboa, 20 de Dezembro de 2000. - Maria Helena Brito - Vítor Nunes de Almeida - Artur Maurício - Luís Nunes de Almeida - José Manuel Cardoso da Costa.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1879618.dre.pdf .

Ligações deste documento

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  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1987-02-09 - Acórdão 7/87 - Tribunal Constitucional

    Declara não se pronunciar pela inconstitucionalidade dos artigos 108.º, n.º 2, alínea b); 135.º, n.os 2 e 3; 174.º, n.os 3 e 4; 177.º, n.º 2, com referência ao artigo 174.º, n.º 4, alíneas a) e b); 178.º, n.º 3; 187.º, n.º 1; 190.º; 200.º; 250.º, n.º 3; 251.º, n.º 1; 252.º, n.º 3; 263.º; 270.º, n.º 1; 281.º, n.os 3 e 5, salvo, quanto a este último número, consequencialmente, na parte em que ele remete para o n.º 4; 286.º, e 337.º n.os 1, alínea a), e 3, e pronunciar-se pela inconstitucionalidade dos artigos (...)

  • Tem documento Em vigor 1998-08-27 - Lei 60/98 - Assembleia da República

    Altera a orgânica do Ministério Público, aprovada pela Lei nº 47/86 de 15 de Outubro passando a denominar-se Estatuto, e procede à sua republicação.

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