Acórdão 459/2000/T. Const. - Processo 472/99. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - UNICER - União Cervejeira, S. A., sociedade comercial com sede na Via Norte, Leça do Balio, Matosinhos, e João Manuel Jacques de Carvalho e Sousa, com os sinais identificadores dos autos, vieram interpor recurso para este Tribunal Constitucional, "nos termos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2; 72.º, n.º 1, alínea b), e 75.º, n.os 1 e 2, todos da Lei 28/82, de 15 de Novembro", do despacho do presidente do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Maio de 1999, que decidiu confirmar a não admissão de um recurso por eles interposto para aquele Tribunal e fê-lo "com base no estatuído no artigo 291.º, n.º 1, do CPC", e, assim, vêm "os recorrentes suscitar a inconstitucionalidade da interpretação implicitamente dada à referida norma por via de recurso, por violação dos seguintes preceitos fundamentais: 20.º, 29.º, 32.º, 205.º e 208.º da Const. Rep. Port." (e posteriormente vieram os recorrentes esclarecer que a questão da inconstitucionalidade "foi levantada logo que a mesma se configurou nos autos, ou seja, na motivação da reclamação dirigida ao Exmo. Sr. Dr. Desembargador Presidente do Venerando Tribunal da Relação do Porto, apresentada em 9 de Abril de 1997").
2 - Nas suas alegações adiantaram os recorrentes as seguintes conclusões:
"1.º Na interpretação que lhe é dada pelo douto despacho recorrido o artigo 291.º, n.º 1, do CPP é inconstitucional.
2.º Tal inconstitucionalidade deriva dos seguintes preceitos constitucionais: artigos 20.º, 29.º e 32.º, 205.º e 208.º
3.º A violação daqueles três primeiros preceitos constitucionais manifesta-se na impossibilidade de o recorrente requer diligência probatória relevante para a causa.
4.º O desrespeito do artigo 205.º, n.º 2 da CRP consubstancia-se na atribuição ao juiz de um poder discricionário.
5.º Por fim quanto ao disposto no artigo 208.º, n.º 1, da CRP, a contradição de tal interpretação com este preceito seria indirecta por não se considerar o julgador livre de aceitar ou rejeitar diligências probatórias que se reputaram de essenciais para a descoberta da verdade e para uma boa decisão da causa.
6.º O douto despacho recorrido violou por erro de interpretação o disposto nos citados preceitos legais, sendo inconstitucional a interpretação que faz do n.º 1 do artigo 291.º do CPP, devendo ser revogado e substituído por outro que julgue no sentido antes exposto, nomeadamente mandando admitir o recurso interposto, assim se fazendo justiça."
3 - O Ministério Público apresentou contra-alegações em que concluiu deste modo:
"1.º O princípio constitucional das garantias de defesa do arguido não implica a plena recorribilidade de todos os actos praticados pelo juiz ao longo do processo penal, apenas se devendo considerar consagrada tal garantia quanto às decisões condenatórias e às respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou outros direitos fundamentais.
2.º Não pode considerar-se como arbitrário ou totalmente discricionário o juízo prudencial realizado pelo juiz que preside à instrução acerca da necessidade de realizar diligências probatórias requeridas pelo arguido em tal fase do processo penal, adequando-as à função típica de tal fase processual - que visa um mero juízo indiciário sobre a responsabilidade imputada ao arguido pela acusação -, às exigências de celeridade e eficácia do processo penal e à necessidade de respeitar o prazo máximo de duração de tal fase processual.
3.º O regime de irrecorribilidade, consagrado no n.º 1 do artigo 291.º do Código de Processo Penal relativamente a tal juízo prudencial do juiz de instrução, está em consonância com a irrecorribilidade, estabelecida no n.º 1 do artigo 310.º do Código de Processo Penal, relativamente à decisão final do juiz nessa fase do processo, que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação pública, já que não faria sentido apreciar afinal recursos atinentes a uma fase do processo penal cuja típica funcionalidade implica que preceda necessariamente a do julgamento.
4.º As garantias de defesa do arguido nesta fase de instrução são asseguradas, em termos constitucionalmente bastantes, pela necessidade de o juiz fundamentar o despacho de rejeição de tais diligências e pela possibilidade de reclamação de tal despacho, facultando ao arguido a reiteração e concreta demonstração da essencialidade das diligências que originariamente tratou de requerer.
5.º Termos em que deverá improceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de constitucionalidade da norma que dele é objecto."
4 - Tudo visto, cumpre decidir.
Os recorrentes, arguidos em processo comum e perante tribunal singular, instaurado no Tribunal Judicial da comarca de Matosinhos, pela prática de "um crime contra a qualidade dos géneros alimentícios, previsto e punido pelo artigo 24.º, n.º 1, alínea b), com referência ao artigo 82.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro, vieram requerer a abertura da instrução, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, indicando, entre o mais, prova pericial ou subsidiariamente pericial colegial, o que foi indeferido, por despacho do Mmo. Juiz do Tribunal de Instrução Criminal do Porto de 22 de Janeiro de 1999, por se entender que os autos "contêm já os elementos necessários a esta prova processual" (e nesse despacho foi designado dia para a realização do debate instrutório).
Desse despacho vieram eles interpor recurso de agravo para o Tribunal da Relação do Porto, motivando-o, o que foi indeferido pelo mesmo Mmo. Juiz, em despacho datado de 1 de Março de 1999, por se entender que o despacho de 22 de Janeiro de 1999 é irrecorrível, à face do artigo 291.º, n.º 1, daquele Código.
Invocando o artigo 405.º do mesmo Código, vieram então os recorrentes reclamar para o presidente do Tribunal da Relação do Porto, e aí sustentaram, entre o mais e pela primeira vez, a inconstitucionalidade do citado artigo 291.º, n.º 1, em termos coincidentes com as alegações atrás transcritas.
Aquele presidente despachou, na data de 27 de Maio de 1999, neste sentido:
"Unicer - União Cervejeira S. A., e João Manuel Jacques de Sousa, arguidos nos autos de processo de instrução registados com o n.º 83/98, pendentes no 2.º Juízo B do tribunal de Instrução Criminal do Porto, inconformados com o douto despacho que não lhes admitiu o recurso por si interposto, dele vem reclamar nos termos e com os fundamentos da reclamação de fl. 3 a fl. 26, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
Vejamos o teor do despacho posto em crise:
O despacho de fl. 176 é 'irrecorrível' - artigo 291.º, n.º 1 do CPP, pelo que se indefere o requerido a fls. 178 e sgs. e, em consequência condenam-se os 'recorrentes nas custas do incidente produzido, solidariamente'.
Apreciando e decidindo:
Não obstante o douto e espesso articulado da reclamação a nosso ver, e, à luz do direito constituído o despacho posto em crise não merece censura.
Na verdade e como nele se escreve o mesmo é irrecorrível conforme o disposto no artigo 291.º do CPP, pois o Mmo. Juiz a quo entendeu não ser de ordenar atenta a fase processual mais diligências de prova requeridas pelos ora reclamantes.
Assim sendo, nesta conformidade e sem mais considerações por escusadas, acompanhamos o despacho objecto da presente reclamação, pelo que se indefere a presente reclamação."
5 - Esta a decisão ora recorrida, que aplicou a questionada norma do artigo 291.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, conquanto não se tenha debruçado sobre a matéria da (in)constitucionalidade.
A norma dispõe como se segue:
"Artigo 291.º
Ordem dos actos e repetição
1 - Os actos de instrução efectuam-se pela ordem que o juiz reputar mais conveniente para o apuramento da verdade. O juiz indefere, por despacho irrecorrível, os actos requeridos que não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo e pratica ou ordena oficiosamente aqueles que considerar úteis, sem prejuízo da possibilidade de reclamação."
Esta norma, na parte questionada quanto à irrecorribilidade do despacho do juiz que indefere "os actos requeridos que não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo", inscreve-se no título III - Da instrução, do Código de Processo Penal, onde se disciplina a fase processual que "visa a comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento" (n.º 1 do artigo 286.º).
A instrução "tem carácter facultativo" (n.º 2 do artigo 286.º), ficando no total disponibilidade do arguido ou do assistente, que dispõem de um "prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento", para o respectivo requerimento, que "não está sujeito a formalidades especiais" n.os 1 e 2 do artigo 287.º). Nesse requerimento deve constar, para além das "razões de facto e de direito de discordância", a indicação "dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar" (n.º 2).
Obrigatório e importante na dita fase da instrução é o debate instrutório, oral e contraditório, que visa permitir uma discussão perante o juiz "sobre se, no decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento" (artigos 289.º, n.º 1, e 298.º), sendo ele regulado com minúcia nos artigos 297.º a 305.º (culminando, após o seu encerramento, com o despacho de pronúncia ou não pronúncia - artigo 307.º, o que não se sabe se teve já lugar no presente caso e com que resultado).
Quer a instrução requerida pelo arguido e reduzida a auto, "ao qual são juntos os requerimentos apresentados pela acusação e pela defesa nesta fase, bem como quaisquer documentos relevantes para apreciação da causa" (artigo 296.º), quer o debate instrutório obrigatoriamente realizado, não são o julgamento da causa, são antes uma antecâmara do julgamento, se for o caso de ele ter de se efectuar, havendo "indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento". Aliás, o arguido pode mesmo obter a satisfação do seu interesse em não ser submetido a julgamento, se se chegar a um despacho de não pronúncia, após o encerramento do debate instrutório (e também não se sabe se tal resultado foi aqui alcançado).
6 - É inquestionável que os actos de instrução requeridos pelo arguido, na medida em que se podem reflectir na sequência processual instrução-julgamento, conduzindo até, na melhor das hipóteses, a um despacho de não pronúncia, são momentos relevantes para garantir a defesa do arguido. Havendo acusação deduzida contra ele, os actos de instrução podem infirmar a acusação ou enfraquecê-la, de modo que o arguido venha a confiar na prolação de um despacho de não pronúncia ou então na futura absolvição na fase de julgamento, se vier a ser, mesmo assim, pronunciado.
Nesta óptica, o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de dizer, no Acórdão 474/94, nos Acórdãos, 28.º vol., p. 402, que "a Constituição não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento, sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação de existência de razões que indiciem a sua presumível condenação. O que a Constituição determina no n.º 2 do artigo 32.º é que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, pelo que o simples facto de se ser submetido a julgamento não pode constituir, só por si, no nosso ordenamento jurídico, um atentado ao bom nome e reputação" (cf. ainda o Acórdão 54/2000, inédito).
Só que, face àquele desenho do ritualismo processual criminal, a opção legislativa da natureza irrecorrível do despacho previsto na norma questionada do n.º 1 do artigo 291.º não pode nunca brigar com as garantias de defesa de que o arguido pode lançar mão, relacionadas com a contradita e demonstração da insubsistência da prova ou da inaplicabilidade das disposições incriminatórias.
Com efeito, a instrução, quando requerida, nos termos expostos, não deixa de ser uma fase preparatória na estrutura do processo, podendo nela o juiz praticar ou ordenar oficiosamente actos que considere úteis (o mesmo n.º 1 do artigo 291.º). A instrução é, assim, uma fase processual que não visa propriamente um complemento dessa instrução, antes visa a comprovação pelo juiz do acto acusatório, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Integra, além dos actos que o juiz considera úteis e pertinentes, uma fase obrigatória - o debate instrutório - com a finalidade específica de apurar se, do decurso do inquérito e da instrução, "resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido ao julgamento" (artigo 298.º).
Esse debate está pensado pelo legislador em termos de permitir, sob o signo dos princípios dispositivo e do contraditório, e também inquisitório, uma ampla produção de prova, com a prática de todos os actos de instrução - e até novos actos de instrução - que permitam apurar os tais indícios de facto e elementos de direito, estando sempre presente o "interesse para a descoberta da verdade" n.º 1 do artigo 299.º). E não resulta do Código a proibição de se realizarem, no decurso do debate, os actos de instrução que foram requeridos na fase facultativa e o juiz indeferiu por despacho.
Sendo isto assim, e porque, no rigor das coisas, é a fase do julgamento aquela em que a defesa do arguido implica maiores garantias, incluindo o "direito de recorrer da sentença condenatória e dos actos judiciais que privem ou restrinjam a liberdade do arguido ou afectem outros direitos fundamentais seus" (citado Acórdão 474/94, p. 400) - e a sua plena operatividade, já que é aí que o arguido se vê confrontado directamente com a eventualidade de uma condenação -, tem de concluir-se que a norma questionada, eliminando a via de recurso, não incorre na violação dos artigos 20.º, 29.º e 32.º da Constituição (manifestada, segundo o recorrente, "na impossibilidade de o recorrente requerer diligência probatória relevante para a causa"). Pois que, verdadeiramente, essa impossibilidade não chega a manifestar-se, na medida em que na fase do debate instrutório pode efectivar-se essa mesma diligência probatória (e nem sequer há nos autos elementos para constatar se isso se verificou ou não).
Além de que a Constituição não consagra um princípio de plena recorribilidade de todos os actos praticados pelo juiz ao longo do processo criminal, "apenas se devendo considerar consagrada tal garantia quanto às decisões condenatórias e às respeitantes a situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou outros direitos fundamentais" (para usar a linguagem do Ministério Público).
E compreende-se, aliás, face ao que acaba de se expor, que a Constituição não exija a reapreciação, por via de um recurso, da decisão do juiz sobre os actos de instrução que considerou inúteis ou impertinentes.
Por isso, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucionais normas processuais penais que denegam a possibilidade de o arguido impugnar certos despachos interlocutórios do juiz, que se limitam a fazer prosseguir o processo (cf., entre outros, o Acórdão 353/91, nos Acórdãos, vol. 19.º) e também não julgou inconstitucional a norma do artigo 310.º, n.º 1, do citado Código, sobre a decisão instrutória que "pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público" (cf. Acórdão 266/98, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 11 de Julho de 1998).
7 - Também não se vê onde possa estar a invocada violação dos artigos 205.º, n.º 2, e 208.º, n.º 1, da Constituição, na versão anterior à última revisão constitucional de 1997, e traduzida no essencial, segundo o recorrente, "na atribuição ao juiz de um poder discricionário", escapando à exigência de fundamentação, pois não assume tal configuração o despacho previsto no artigo 291.º, n.º 1, desde logo porque não é um acto equiparável a um despacho de mero expediente, este sim, de livre e total discricionariedade, como se prevê no artigo 400.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal (cf. os artigos 156.º, n.º 4, e 679.º, do Código de Processo Civil, aquele contendo a definição).
Depois porque o poder-dever conferido ao juiz para proferir o indeferimento está balizado pelo limite do "apuramento da verdade" e pela consideração de "os actos requeridos não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo".
Não é só um "prudente arbítrio do julgador", de que fala o citado n.º 4 do artigo 156.º, mas ainda e essencialmente, como regista o Ministério Público, "nos termos e dentro dos limites da lei, de um juízo prudencial, traduzido na densificação e concretização de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, em harmonia com o fim e a função do processo (nomeadamente, a tutela dos valores da celeridade e da realização da verdade e da justiça materiais)", sendo que o juiz, com a liberdade própria para aceitar ou rejeitar diligências probatórias, tem de indicar minimamente os motivos da decisão, como se constata no Presente caso.
Com o que não procedem os vícios de inconstitucionalidade arguidos pelos recorrentes (sobre a mesma matéria e no mesmo sentido cf. os recentes Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 371/2000 e 375/2000, inéditos).
8 - Termos em que, decidindo, nega-se provimento ao recurso e condenam-se os recorrentes nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta.
Lisboa, 25 de Outubro de 2000. - Guilherme da Fonseca - Paulo Mota Pinto - Bravo Serra - Maria Fernanda Palma (vencida, nos termos da declaração de voto junta) - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
Votei vencida, por entender que a norma em apreço, o artigo 291.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi conferida pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, viola o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
1 - Com efeito, entendo que o presente acórdão inverte, em absoluto, a jurisprudência definida no Acórdão 610/96, de que fui relatora, nos termos da qual a irrecorribilidade do despacho de pronúncia, sob pena de uma inadmissível diminuição das garantias de defesa, exige ou pressupõe a recorribilidade dos despachos que indeferem a realização de diligências probatórias durante a instrução.
É este, segundo me parece, o único sentido possível daquele Acórdão, tirado por unanimidade, e em que uma tal razão não poderia ser um mero obiter dictum, pois surgia como o fundamento exclusivo da decisão. Neste ponto, consequentemente, acompanho inteiramente a declaração de voto aposta ao Acórdão 375/00 pelo Exmo. Sr. Conselheiro Luís Nunes de Almeida.
2 - Por outro lado, realço que o presente acórdão remete para uma interpretação da presunção de inocência que só, num outro contexto, é aceite por este tribunal e que nunca se poderá invocar no concreto contexto deste julgamento. Se é verdade que "todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, pelo que o simples facto de ser submetido a julgamento não pode constituir, só por si, no nosso ordenamento jurídico, um atentado ao bom nome e reputação" (cf. Acórdão 474/94), não poderá atribuir-se ao dever de o Tribunal afastar pré-juízos e evitar presunções relativamente ao arguido a função de obstáculo lógico a que se invoque um direito à disponibilidade das condições essenciais para não ser submetido a julgamento. Objectivamente, é um argumento "farisaico" o da presunção de inocência enquanto dever do juiz, utilizado para se esvaziar de conteúdo o princípio de presunção da inocência, entendido como conjunto das condições objectivas que devem ser criadas para que o arguido possa defender a sua honra e privacidade, evitando um julgamento público.
Um sentido do princípio da presunção de inocência, próximo do que subjaz à declaração de voto, esteve, aliás, patente no Acórdão 695/95, em que este Tribunal considerou inconstitucional o artigo 342.º do Código de Processo Penal.
3 - Por fim, entendo que a natureza facultativa da instrução não há-de compatibilizar-se com um domínio sobre o processo pelo Tribunal de tipo inquisitório, devendo antes ser considerada, intrinsecamente, como a manifestação de direitos processuais do arguido. Se o arguido pretende utilizar as faculdades inerentes à fase instrutória, enceta-se aí uma dialéctica processual dirigida à confirmação ou infirmação da acusação, em que a mesma acusação é submetida a uma verificação contraditória. Ora, um contraditório sem recorribilidade do indeferimento das diligências probatórias requeridas (numa fase processual cujo desfecho é uma decisão irrecorrível) é um contraditório, à partida, deficitário, pois não são dados ao arguido todos os meios processuais para influenciar a decisão final do Tribunal, nomeadamente pela possibilidade de alteração de uma decisão de indeferimento incorrecta.
Por outro lado, é óbvio que é na fase do debate instrutório que as diligências probatórias são realizadas. A possibilidade invocada no acórdão de se realizarem no decurso do debate os actos instrutórios que foram requeridos na fase facultativa da instrução e indeferidos por despacho do juiz configura-se, apenas, como manifestação do poder de investigação do juiz (artigo 299.º), não conferindo ao arguido nenhum poder acrescido quanto à configuração do contexto probatório em que se irá desenrolar o debate instrutório nem nenhum inerente direito de recurso no caso de indeferimento de não realização das diligências solicitadas.
Por isto tudo, esta solução num sistema em que é irrecorrível o próprio despacho de pronúncia parece-me inconstitucional.
4 - Eventuais argumentos de celeridade processual e de impedimento de diligências dilatórias, com que, por vezes, se tenta influenciar a opinião pública contra o excesso de garantismo penal, e que parecem ter influenciado a alteração do regime legal, só adquirem, todavia, validade à custa da aceitação, quanto a mim intolerável, de que nas sociedades contemporâneas não há um direito processual com dignidade constitucional de evitar ser submetido a julgamento, apesar da diminuição de direitos fundamentais que tal situação acarreta e ainda que seja respeitada a presunção de inocência nessa fase. - Maria Fernanda Palma.