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Acórdão 274/86, de 29 de Outubro

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Sumário

Declara inconstitucional as normas do artigo 2.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º de um decreto aprovado em Conselho de Ministros e enviado ao Presidente da República para promulgação como decreto-lei, o qual se propõe disciplinar determinados aspectos do regime e isenções do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), na área das chamadas exportações indirectas e outras operações conexas, por infracção da norma da alínea i) do n.º 2 do artigo 168.º da Constituição.

Texto do documento

Acórdão 274/86
Processo 209/86
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
1 - Relatório
O Presidente da República (PR) requer ao Tribunal Constitucional (T. Const.), nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 278.º da Constituição (CRP), a apreciação preventiva da constitucionalidade de um decreto aprovado em Conselho de Ministros e enviado para promulgação como decreto-lei, o qual se propõe disciplinar determinados aspectos do regime de isenções do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), na área das chamadas exportações indirectas e outras operações conexas.

É do seguinte teor a fundamentação expendida no requerimento do PR:
O Governo não invoca qualquer autorização legislativa, vindo regular de modo inovatório um dos casos de isenção do imposto sobre o valor acrescentado.

Pode estar-se, deste modo, perante a violação dos artigos 106.º, n.º 2, e 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, a lei fundamental consagra expressamente que "os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes» (artigo 106.º, n.º 2).

Ora, como é a Assembleia da República que tem a competência quanto à "criação de impostos e sistema fiscal» (artigo 168.º, citado), estamos perante uma reserva de lei formal - que abrange não só as normas de incidência propriamente ditas, mas também todas as excepções à incidência, que são as isenções fiscais.

No caso em apreço o legislador parece não se limitar a seguir o disposto no artigo 14.º, n.º 1, alínea b), do Código do IVA (aprovado pelo Decreto-Lei 394-B/84, de 26 de Dezembro), consagrando derrogações e restrições em relação a tal normativo.

Põe-se, assim, a dúvida sobre se estamos perante um novo regime de isenções quanto à matéria em causa. Aliás, o Governo solicitou na Lei do Orçamento para 1986 autorizações legislativas específica quanto ao IVA, não tendo sido aí abrangida esta matéria.

Acresce que o n.º 1 do artigo 2.º do projecto citado parece configurar um caso de discricionariedade da Administração quanto à definição de regras de incidência ao admitir a via regulamentar em matéria relativamente à qual existe reserva absoluta de lei.

Nestes termos, e em conclusão, as normas do projecto acima identificado parecem violar o disposto nos artigos 106.º, n.º 2, e 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República.

Chamado a pronunciar-se sobre o pedido de apreciação da alegada inconstitucionalidade do mencionado decreto, o Primeiro-Ministro (PM) veio contestar tal pedido, argumentando, à uma, que o requerente não especificou as normas que pretende ver apreciadas (salvo a do n.º 1 do artigo 2.º), e, à outra, que o diploma se limita a regulamentar aspectos do regime de isenções do IVA constante do respectivo compêndio legal [Código do IVA (CIVA), aprovado pelo Decreto-Lei 394-B/84, de 26 de Dezembro].

Discorre assim o PM:
1 - Determina o n.º 1 do artigo 51.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, que o pedido de apreciação da constitucionalidade ou legalidade das normas jurídicas deverá especificar "as normas cuja apreciação se requer».

Ora na petição apresentada não se individualizam, com excepção da referência ao artigo 2.º, as normas sobre as quais S. Ex.ª o Sr. Presidente da República tem dúvidas relativamente à sua conformidade com o disposto constitucionalmente.

Assim, e dispondo a Constituição, no n.º 1 do artigo 278.º, que "o Presidente da República pode requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante de [...] decreto que lhe tenha sido enviado para promulgação como [...] decreto-lei [...]», poderá considerar-se que o pedido a que ora se responde não respeita o n.º 1 do artigo 51.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, pela ausência de especificação das normas eventualmente feridas de inconstitucionalidade.

2 - Importa, por isso, destrinçar, face ao solicitado por S. Ex.ª o Sr. Presidente da República, o conteúdo do n.º 1 do artigo 2.º do referido decreto do restante normativo do mesmo diploma.

Ora, se se admitir que - embora seja defensável que a Directiva n.º 69/169/CEE (modificada), por instrumental quanto ao artigo 15.º da Sexta Directiva do IVA, não contém elementos substancialmente inovatórios quanto ao direito comunitário fiscal derivado já recebido na ordem interna - as normas de incidências constantes do artigo 2.º podem suscitar uma reflexão quanto à conformidade ou desconformidade com os tipos tributários vigentes, não colhe, no entanto, a pretendida introdução de um elemento de discricionariedade que S. Ex.ª o Sr. Presidente da República aduz quanto ao artigo 2.º, n.º 1, não sendo aceitável a referencia à eventual violação do princípio de reserva absoluta de lei.

3 - Relativamente às restantes disposições não se julga susceptível de qualquer dúvida a sua conformidade com o disposto na lei fundamental, dado que se trata de um normativo de carácter meramente regulamentar, como a seguir se desenvolverá.

4 - Assim, da análise sucinta de cada um dos artigos resulta que:
a) O artigo 1.º limita-se a concretizar os conceitos contidos na alínea b) do artigo 14.º do Código do IVA, em estrita obediência, de resto, à tradição da construção doutrinal e legislativa desses conceitos, sendo o seu n.º 4 meramente instrumental (ao tratar um aspecto probatório);

b) As restantes disposições do projecto de decreto-lei sub judice, com a excepção do artigo 6.º, são manifestamente regulamentares de aspectos processuais internos e probatórios;

c) O artigo 6.º refere-se a transmissões de bens com carácter comercial, matéria abrangida pelas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 14.º do Código do IVA, limitando-se aquela disposição a concretizar o âmbito de aplicação dos referidos preceitos do mesmo Código.

5 - Nestes termos, e com a ressalva feita em 2, o diploma resulta do exercício das competências próprias do Governo em matéria de regulamentação da lei fiscal, pelo que não põe em causa o princípio de reserva de lei formal. Entende-se que não se põe também em causa o princípio de reserva absoluta de lei: não estabelece um novo regime de isenções; não restringe as garantias que a lei fiscal anterior sobre a matéria conferiu ao contribuinte; não ofende qualquer norma de direito comunitário fiscal derivado recebida no direito interno português; razões pelas quais, tudo visto, deverá o Tribunal Constitucional considerar improcedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade, nos termos em que é formulado por S. Ex.ª o Sr. Presidente da República.

O requerimento do PR e a resposta do PM delimitam o conjunto das questões que importa resolver. Além das questões de constitucionalidade suscitadas pelo PR, há que apreciar também a questão processual levantada pelo PM, que, pela sua natureza de questão prévia, exige se comece por ela.

2 - Fundamentação
2.1 - A questão da especificação do pedido
Com se referiu acima, o Governo começa por suscitar uma questão prévia impeditiva do conhecimento do pedido, invocando falta de especificação das normas questionadas no requerimento do PR. Torna-se necessário, naturalmente, começar por abordar este ponto, justamente porque ele condiciona decisivamente o âmbito do pedido: se houver que dar razão ao PM, então o pedido deve limitar-se ao n.º 1 do artigo 2.º do diploma em causa, pois é essa a única norma expressamente destacada no requerimento do PR.

Não existe margem para dúvidas de que o objecto dos pedidos de apreciação da constitucionalidade só pode ser uma norma ou um conjunto de normas. É expresso nesse sentido o artigo 278.º, n.º 1, da CRP quando dispõe que "o Presidente da República pode requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante [...]».

Por sua vez, o artigo 51.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional) - directamente referido pelo PM -, determina que "o pedido de declaração da constitucionalidade [...] das normas jurídicas referidas nos artigos 278.º [...] da Constituição [...] deve especificar, além das normas cuja apreciação se requer [...]».

É facilmente compreensível a razão de ser de tal requisito: trata-se de obrigar os órgãos competentes para desencadearem processos de fiscalização abstracta da constitucionalidade a delimitarem com precisão o âmbito do pedido, ou seja, as normas cuja constitucionalidade questionam.

Todavia, importa esclarecer dois pontos: por um lado, nada impede que seja pedida a apreciação da constitucionalidade de uma pluralidade de normas, incluindo todas as normas de um diploma; por outro lado, a razão de ser do requisito da especificação não exige que o pedido refira nominalmente a identificação singular (uma a uma) das disposições que se põem em causa, devendo considerar-se bastante uma fórmula que, de modo suficientemente preciso, delimite o conjunto das normas questionadas. Valem aqui as considerações produzidas a esse respeito num comentário à lei fundamental:

Sendo a fiscalização preventiva um controle sobre normas (embora ainda imperfeitas) por iniciativa do PR ou do MR, a estes cabe a obrigação de identificarem as normas cuja constitucionalidade querem ver apreciada [...] Entretanto, essa identificação não precisa de ser directa e expressa, bastando uma indicação indirecta ou implícita, desde que suficientemente clara. [J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., Coimbra, 1985, p. 512; acrescentado o itálico da expressão final.]

No caso pendente, o PR não identifica nominalmente, na primeira parte do seu pedido, as normas cuja apreciação requer e que, no seu entendimento, podem violar a reserva da competência legislativa da Assembleia da República (AR); limita-se a requerer a apreciação da constitucionalidade do "projecto de decreto-lei». Mas não são legítimas dúvidas sérias -tendo em conta essa expressão e o conjunto do pedido - de que o PR pretende ver apreciadas as normas do diploma no seu conjunto, pois, no seu entender, todas elas, por consubstanciarem um novo regime de isenções do IVA, podem estar a violar a reserva de competência legislativa da AR em matéria fiscal.

Não pode, contra isso, argumentar-se que o diploma integra normas de muito diversa natureza e de objecto distinto e que várias delas nem sequer versam matéria que de algum modo possa cair na esfera da competência legislativa da AR, tal como decorre da conjugação das normas dos artigos 106.º, n.º 2, e 168.º, n.º 1, alínea i), da CRP. Tudo indica que assim é, como se mostrará adiante. Mas isso só pode servir para entender que o pedido de inconstitucionalidade não procede em relação a essas normas, e não para entender que se não deve sequer tomar conhecimento dele. A verdade é que o PR não curou de distinguir tais normas, antes as considerando, a todas elas, como invasoras da competência legislativa reservada da AR.

Enfim, cumpre conhecer do pedido, considerando estarem preenchidos os requisitos constitucionais e legais pertinentes.

2.2 - As normas em causa e a sua relação com o CIVA
2.2.1 - Relevância da questão
No seu requerimento, o PR questiona se o decreto em causa não institui um "novo regime» das isenções nele contempladas, em vários aspectos discrepante do regime previsto no CIVA para a mesma matéria. Por sua vez, o PM argumenta que o diploma se limita a "regulamentar» e a "concretizar» o regime do CIVA, não constituindo, portanto, nenhum novo regime de isenções.

É essencial dilucidar esta questão, visto que dela depende em grande parte a própria subsistência do pedido de apreciação da constitucionalidade na sua componente principal, ou seja, no que se refere à alegada invasão da competência legislativa reservada da AR. Com efeito, se as normas em causa alteram o CIVA, então haverá que prosseguir a análise para verificar se tal matéria cai na área da competência legislativa reservada da AR e se o Governo tem credencial bastante para o fazer; ao invés, se elas em nada alteram o CIVA, antes se limitam a reproduzir as suas normas e a regulamentar a sua execução, então o problema nem se põe, pois o Governo não terá extravasado de nenhum modo das suas atribuições.

2.2.2 - Sentido e alcance das normas em apreciação
De acordo com o preâmbulo do diploma em apreço, este visa "regulamentar a aplicação» das isenções previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA. Vale a pena transcrever as passagens mais significativas desse texto:

No presente diploma regulamenta-se a aplicação destas isenções, nas duas situações típicas em que elas ocorrem - o caso das aquisições, sem carácter comercial, feitas por residentes no estrangeiro, de bens que se destinam a ser transportados para fora do País na sua bagagem pessoal e o caso das transmissões de bens com carácter comercial, transportados ou expedidos para o estrangeiro por um adquirente sem residência ou estabelecimento no território nacional ou por um terceiro por conta deste, e bem assim o das transmissões de bens que, antes daquela expedição ou transporte, sofram no interior do País certas operações efectuadas por terceiros agindo por conta do adquirente estrangeiro.

No primeiro caso, trata-se fundamentalmente de transpor para o direito interno português o estabelecido na Directiva n.º 69/169/CEE e de regulamentar os procedimentos administrativos para a efectivação da isenção.

No segundo caso, a regulamentação visa possibilitar aos sujeitos passivos implicados a comprovação das operações isentas.

É notória a insistência na ideia de que se trata de pura regulamentação das isenções já previstas na alinea b) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA. Resta saber se o conteúdo das normas do diploma corresponde efectivamente ao propósito puramente regulamentar tão enfaticamente enunciado no seu preâmbulo.

O articulado do diploma compreende onze artigos.
O artigo 1.º contempla as isenções nas transmissões de bens "para fins privados», e reza assim:

Artigo 1.º - 1 - São isentas de imposto sobre o valor acrescentado as transmissões de bens para fins privados, feitas a adquirentes sem residência no território nacional, que, no prazo de 90 dias, os transportem na sua bagagem pessoal com destino ao estrangeiro.

2 - Consideram-se feitas para fins privados as transmissões de bens que se destinem a ofertas ou a uso próprio ou familiar do adquirente que, pela sua natureza ou quantidade, não devam presumir-se adquiridos para fins comerciais.

3 - Consideram-se como não tendo residência no território nacional as pessoas que nele não permaneçam, em cada ano civil, mais de 180 dias seguidos ou interpolados.

4 - A comprovação da residência, obrigatoriamente exigida pelo vendedor e pelos serviços aduaneiros, será efectuada mediante apresentação do passaporte ou de outro documento de identidade oficialmente reconhecido como válido.

O artigo 2.º contém um conjunto de limitações e excepções às isenções previstas no preceito anterior. É o seguinte o seu texto:

Art. 2.º - 1 - Não haverá, todavia, direito à isenção do imposto sempre que as aquisições de bens não atinjam os montantes que serão estabelecidos por portaria.

2 - Os montantes a que alude o número anterior serão fixados tendo em conta o disposto nas directivas comunitárias sobre a matéria e referir-se-ão, para os adquirentes residentes fora da Comunidade Económica Europeia, ao valor das transmissões em cada estabelecimento e, para os residentes nos países da Comunidade Económica Europeia, ao valor de aquisição de cada artigo, entendendo-se como tal um bem ou um grupo de bens constituindo normalmente um conjunto.

3 - Não são isentas de imposto, não obstante terem sido ultrapassados os montantes fixados nos termos do número anterior, as transmissões dos seguintes bens:

a) Produtos alimentares, com exclusão das bebidas;
b) Tabacos;
c) Obras de arte, de colecção e antiguidades, de valor superior a 200000$00;
d) Pedras preciosas não montadas;
e) Bens de equipamento ou abastecimento de barcos desportivos e de recreio, de aviões de turismo ou de qualquer outro meio de transporte de uso privado.

4 - Não serão do mesmo modo isentas do imposto, não obstante terem sido ultrapassados os valores fixados nos termos do n.º 2, as transmissões de bens feitas por sujeitos passivos abrangidos pelo regime especial dos pequenos retalhistas.

O artigo 3.º prevê a utilização de impressos próprios para documentar as transmissões isentas do IVA, referidas no artigo 1.º

O artigo 4.º determina que o vendedor deverá liquidar o imposto se dentro de determinado prazo não tiver recebido o exemplar comprovativo da saída dos bens para o estrangeiro enviado pelo adquirente.

O artigo 5.º estipula que o vendedor poderá exigir do adquirente o valor do imposto, devendo porém devolver-lhe essa importância logo que receba o documento referido no artigo 4.º

O artigo 6.º alarga o campo das isenções do IVA a outras transmissões de bens com destino ao estrangeiro (transmissões de bens "com carácter comercial»), bem como à prestação de serviços em bens com destino ao estrangeiro. Importa transcrever o seu texto:

Art. 6.º - 1 - São ainda isentas de imposto sobre o valor acrescentado:
a) As transmissões de bens com carácter comercial, desde que os bens sejam expedidos ou transportados com destino ao estrangeiro por um adquirente sem residência ou estabelecimento no território nacional ou por um terceiro agindo por conta deste;

b) As transmissões de bens com carácter comercial que, antes da sua expedição ou transporte com destino ao estrangeiro, sofram no interior do País uma reparação, uma transformação, uma adaptação ou qualquer outro trabalho, efectuado por terceiro agindo por conta do adquirente estrangeiro.

2 - Para efeitos do número anterior, será tida como comercial a transmissão de bens que, pela sua natureza ou quantidade, revele a prossecução de objectivos de carácter empresarial ou profissional.

O artigo 7.º prescreve que as operações isentas nos termos do preceito anterior devem ser documentadas por nota de encomenda do adquirente.

O artigo 8.º determina que nas situações previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º deve ser emitida uma guia de remessa documentando a respectiva operação.

O artigo 9.º exige que o adquirente estrangeiro, quando proceda à exportação do bem, deve emitir uma declaração contendo um extenso conjunto de elementos (identificação do fornecedor e do adquirente, designação dos bens e seu destino, valor do imposto, etc.).

O artigo 10.º prevê que tal declaração será apresentada nos serviços aduaneiros para confirmação da exportação, devendo então ser remetida ao fornecedor para comprovar a exportação.

O artigo 11.º, que é paralelo ao artigo 4.º acima referido, estabelece que, se no prazo de quinze dias após a transmissão o fornecedor não estiver na posse da declaração acima referida, deve proceder à liquidação do imposto.

O artigo 12.º, finalmente, prevê igual consequência para os casos das operações previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º, se no prazo de 60 dias os respectivos sujeitos passivos não estiverem na posse do certificado exigido no n.º 3 do artigo 10.º

Uma breve análise do diploma evidencia que ele comporta duas partes bem distintas. Uma é constituída pelos primeiros cinco artigos, que regulam as isenções nas transmissões com carácter privado a residentes no estrangeiro, sendo que o artigo 1.º estabelece a regra da isenção e define os conceitos pertinentes e o artigo 2.º enuncia as limitações e as excepções, enquanto os restantes artigos são de natureza puramente adjectiva, regulando aspectos processuais daquelas isenções. A outra parte do diploma abrange os restantes sete artigos, que disciplinam a isenção das transmissões com carácter comercial, bem como certas operações conexas, sendo que o artigo 6.º enuncia a regra da isenção, enquanto os restantes preceitos se limitam a regular aspectos processuais pertinentes àquelas isenções.

2.2.3 - Confronto do diploma em causa com o CIVA
Como se referiu, o Governo pretende que com este diploma não faz mais do que regulamentar as isenções já previstas no CIVA, especificamente na alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º Há, pois, que averiguar se as coisas são assim.

O artigo 14.º do CIVA é o primeiro preceito da secção III do capítulo II, dedicado às isenções, secção que se ocupa das "isenções na exportação, operações assimiladas a exportações e transportes internacionais». É o seguinte o texto desse preceito quanto à alínea em causa:

Art. 14.º - 1 - Estão isentas do imposto:
[...]
b) As transmissões de bens expedidos ou transportados com destino ao estrangeiro por um adquirente sem residência ou estabelecimento no território nacional ou por um terceiro por conta deste, com excepção dos bens destinados ao abastecimento de barcos desportivos e de recreio, aviões de turismo ou qualquer outro meio de transporte de uso privado.

Esta alínea é a segunda de um longo elenco de isenções, o qual começa pelas "transmissões de bens expedidos ou transportados com destino ao estrangeiro pelo vendedor ou por um terceiro por conta deste» [alínea a)] e prossegue com "as prestações de serviços que consistam em trabalhos realizados sobre bens móveis, adquiridos ou importados para serem objecto de tais trabalhos em território nacional e expedidos em seguida ou transportados com destino ao estrangeiro por quem os prestou, pelo seu destinatário não estabelecido no território nacional ou por terceiro em nome e por conta deles» [alínea c)].

São três situações bastantes distintas as previstas nessas três alíneas, embora com alguma ligação entre elas.

A alínea a) contempla as exportações directas, realizadas directamente pelo vendedor (ou por terceiro por conta dele); a alínea b) - que é a que aqui sobretudo importa - isenta as chamadas exportações indirectas, ou seja, as exportações de bens adquiridos no País por um residente no estrangeiro (ou por terceiro por conta dele) e expedidas ou transportadas por este; finalmente, a alínea c) isenta as prestações de serviços efectuadas sobre bens importados ou adquiridos no País para serem (re)exportados por um residente no estrangeiro (ou por terceiro por conta dele).

É altura de confrontar os dois regimes, o do CIVA e o do diploma aqui em apreciação.

A primeira nota que salta à vista e que o diploma não se limita a regulamentar o modo de efectuar a isenção prevista no CIVA, antes se dedica a dispor sobre o próprio campo de aplicação de isenções, substituindo-se para todos os efeitos ao disposto no referido preceito do CIVA. Nada de especial haveria a assinalar se o diploma se limitasse - como ocorre frequentemente em diplomas regulamentares - a reproduzir os preceitos da lei regulamentada a fim de unificar num mesmo documento jurídico toda a disciplina da matéria em causa. Mas não é isso o que sucede na ocorrência. O diploma em apreço não se limita a reproduzir o preceito do CIVA para depois proceder à respectiva regulamentação, antes substitui o seu regime por outro, consideravelmente diferente daquele em vários pontos. É o que decorre de uma breve comparação dos artigos 1.º, 2.º e 6.º do decreto em apreciação com o acima transcrito preceito do CIVA.

Comece por se assinalar - embora isso seja só por si irrelevante para efeitos da questão de constitucionalidade - que o diploma estabelece não um regime unitário de isenção das exportações indirectas mas sim dois regimes diferentes, conforme se trate de exportações de bens "para fins privados» (artigos 1.º, 2.º e seguintes) ou de transacções "com carácter comercial» (artigos 6.º e seguintes), distinção que não possui qualquer relevo no regime do CIVA, o qual abrange as duas categorias, sem lhes conferir sequer designação própria. Em anotação feita à alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA, numa edição desse Código da responsabilidade da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos - Núcleo do IVA, pode ler-se que "estas exportações podem ter carácter não só empresarial como turístico» (Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, INCM, 1985, p. 92).

Além disso, porém, a isenção prevista no CIVA é geral e universal (com as únicas excepções aí enunciadas na parte final do preceito referido); não depende da qualidade do vendedor ou do adquirente nem do montante das transacções em causa. Ora - e é aqui que o problema começa - não é isso o que se passa com o regime proposto no decreto submetido à apreciação do Tribunal. Basta comparar.

Quanto às exportações de bens "para fins privados», (em que se contam nomeadamente as efectuadas por turistas), propõem-se três novas limitações ou excepções, a saber:

Não estão isentas as transacções que fiquem aquém de um certo montante, a estabelecer por portaria (n.º 1 do artigo 2.º);

Não são isentas, além das transmissões previstas na parte final do alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA, também as de um bom conjunto de outros bens, incluindo os produtos alimentares, os tabacos, as obras de arte, as pedras preciosas não montadas (n.º 3 do artigo 2.º);

Não são isentas as transmissões feitas por vendedores abrangidos pelo regime especial dos pequenos retalhistas (n.º 4 do artigo 2.º).

É manifesto que aqui se procede a uma considerável restrição do âmbito da isenção, tal como ela decorre do CIVA, introduzindo limitações que nele não constam e aumentando as excepções que ele prevê.

Essas limitações ou restrições não só não estão enunciadas na invocada norma da alínea p) do n.º 1 do artigo 14.º, cuja regulamentação se invoca - com excepção da enunciada na alínea e) do n.º 3, que corresponde à parte final da alínea p) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA (ainda assim com o alargamento da restrição aos "bens de equipamento», quando o CIVA menciona apenas os "bens de abastecimento») -, nem decorrem de nenhuma leitura razoável daquela norma.

Isto é assim, sem dúvida, quanto às novas restrições enunciadas no n.º 1 (e n.º 2) e no n.º 3. Mas assim sucede também - embora aqui as coisas sejam menos claras - quanto ao n.º 4, que afasta a isenção nas transmissões efectuadas por agentes sujeitos ao regime dos pequenos retalhistas; a verdade é que, embora a isenção não seja muito congruente com esse regime (previsto nos artigos 60.º e seguintes do CIVA e que se caracteriza por o imposto a pagar por esses sujeitos passivos ser calculado na base de uma presunção e de eles não estarem sujeitos a contabilizar cada operação sujeita a imposto), ainda assim não é absolutamente incompatível com ele, pelo que, não existindo nenhum elemento textual de interpretação nesse sentido, não pode concluir-se, com fundamento bastante, que a solução contida no decreto já decorria do CIVA.

Quanto às exportações indirectas "para fins comerciais» - previstas no artigo 6.º do decreto -, aí não se estabelecem restrições à isenção delas, tal como esta decorre da alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA. Ao invés, parece ter sido afastada, em relação às exportações indirectas dessa categoria, a excepção à isenção que consta da parte final daquele preceito do CIVA ("bens de abastecimento de barcos de recreio», etc.); mas, bem vistas as coisas, tal excepção só podia valer para as transmissões "com carácter privado» (que no decreto estão previstas nos artigos 1.º e 2.º, como se viu, estando a mencionada excepção reproduzida no n.º 3 do artigo 2.º). A inaplicabilidade dessa excepção às exportações indirectas "para fins comerciais» decorre não apenas da natureza e sentido dessa excepção, mas encontra directo apoio no próprio texto do referido preceito do CIVA, pois ele considera apenas os bens de abastecimento de "barcos [...], aviões ou qualquer outro meio de transporte de uso privado». As hipóteses típicas aí consignadas são claramente apenas as de aquisição de bens daquele tipo (gasolina, etc.) por não residentes que se encontrem de passagem em Portugal. Por conseguinte, ao omitir tal excepção no artigo 6.º, o decreto não procede a nenhuma ampliação efectiva da isenção prevista no CIVA.

Todavia, há que averiguar se o novo diploma não alarga a isenção a uma situação não prevista naquele preceito do CIVA, a saber, a situação descrita na alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º do decreto em análise, a qual - recorde-se - isenta de imposto as "transmissões de bens com carácter comercial que, antes da sua expedição ou transporte com destino ao estrangeiro, sofram no interior do País uma reparação, uma transformação, uma adaptação ou qualquer outro trabalho efectuado por terceiro agindo por conta do adquirente estrangeiro».

Na realidade, tais situações não estão previstas nem na alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA - que é o preceito desse Código cuja "regulamentação» o decreto se propõe fazer -, nem - ao contrário do que se poderia ser tentado a crer numa primeira leitura - nas alíneas a) ou c) desse mesmo preceito do Código.

Começando por estas, sucede que estas duas alíneas, cujo teor acima ficou reproduzido, nada têm efectivamente a ver com as situações previstas no artigo 16.º do decreto aqui em causa. Não é difícil demonstrá-lo.

As duas situações típicas previstas no artigo 6.º do decreto são as seguintes:
Isenção de IVA na transmissão dos bens que A, não residente (ou terceiro por conta dele), adquire aqui e expede ou transporta para o estrangeiro [alínea a)];

Isenção de IVA na transmissão dos bens adquiridos por A, não residente (ou terceiro por conta dele), para serem transformados, adaptados ou reparados no País e, depois, serem exportados alínea b)].

Ora as situações típicas previstas nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA são essencialmente distintas, a saber:

Isenção de IVA nas transmissões de bens que B, vendedor residente ou estabelecido em Portugal, exporta ou expede directamente para o estrangeiro alínea a)];

Isenção de IVA no serviço (transformação, reparação, etc.) que C, residente, efectua sobre os bens que A, não residente, adquiriu em Portugal para serem exportados após tal serviço.

Não é difícil notar que a hipótese da alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA é radicalmente distinta da alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º do diploma que está aqui em causa (a primeira refere-se a exportações directas, feitas pelo próprio vendedor, enquanto a segunda se refere a exportações indirectas, efectuadas pelo adquirente não residente); e são também distintas as hipóteses contempladas respectivamente na alínea c) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA e na alínea h) do n.º 1 do artigo 6.º do diploma sob exame: é que, enquanto aquele isenta de IVA o serviço prestado (transformação, reparação, etc.), a segunda isenta de IVA a própria aquisição do bem destinado a ser transformado, reparado, etc., antes de ser exportado.

O arrimo que as hipóteses do artigo 6.º reclamam no CIVA, a existir, só pode procurar-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º, que aliás é o preceito que o decreto invoca. E evidente que a hipótese da alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º do decreto cabe sem dúvida na previsão daquele preceito do CIVA. Já assim não sucede quanto à hipótese da alínea b), ou seja, aquela em que o adquirente estrangeiro, em vez de exportar o bem adquirido tal como o adquiriu, o submete entretanto a uma operação intermediária (modificação, reparação) antes da exportação. Em vez de dois momentos - aquisição, exportação -, existem aqui três - aquisição, transformação (reparação, etc.), exportação. Nesta hipótese, a questão está em saber se a aquisição originária já estava também contemplada na alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA [pois o serviço, esse, está claramente abrangido pela isenção da alínea c) desse mesmo preceito e nem sequer é posto em causa no decreto].

Nestes termos, embora exista claramente um parentesco desta nova hipótese com as previstas expressamente no CIVA, afigura-se que ela é essencialmente distinta, não se mostrando razoável admitir que por simples interpretação da norma do CIVA fosse possível vê-la já incluída no n.º 1 do artigo 14.º Isso é particularmente evidente nos casos - que são a hipótese mais vulgar - em que o bem primeiramente adquirido se limita a entrar como matéria-prima do bem afinal exportado; a alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA só prevê de isenção do IVA na aquisição do bem que é efectivamente exportado; o decreto alarga agora a isenção às aquisições dos bens cuja transformação deu origem ao bem afinal exportado. Trata-se porventura - e isso não importa aqui considerar - da solução mais congruente com o regime já previsto no CIVA para as exportações indirectas propriamente ditas. Mas tem de concluir-se que era uma solução não contemplada no CIVA, fosse no preceito invocado no decreto, fosse noutro.

Registe-se que, na resposta que enviou ao T. Const., o PM afirma que "o artigo 6.º refere-se a transmissões de bens com carácter comercial, matéria abrangida nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 14.º do Código do IVA, limitando-se aquela disposição a concretizar o âmbito de aplicação dos referidos preceitos do mesmo Código». Como se viu, tal afirmação está, por um lado, em frontal contradição com o preâmbulo do diploma em apreço, bem como com a "nota justificativa» que o acompanha, pois em ambos os textos se invoca apenas a alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA; por outro lado, como se mostrou, é uma afirmação que não enfrenta com êxito a prova dos factos. Mas ela não deixa, afinal, de revelar que o próprio PM se absteve de insistir na pretensão de que se tratava apenas de "regulamentar» a alínea b) do n.º 1 do CIVA e que todas as soluções do decreto já aí encontravam guarida.

Tudo considerado, há que concluir também aqui que o artigo 6.º do decreto amplia, através da alínea b) do seu n.º 1, o âmbito de isenção definido pelo CIVA.

2.3 - Isenções fiscais e reserva de competência legislativa da AR
2.3.1 - As questões de constitucionalidade suscitadas
O PR questiona as normas do diploma, cuja apreciação solicitou, sob um duplo ponto de vista: quanto ao conjunto das normas, em geral, por violação da reserva de competência da AR, definida na alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP; quanto ao n.º 1 do artigo 2.º, em especial, por violação da reserva de lei em matéria fiscal, estabelecida no n.º 2 do artigo 106.º da CRP.

Ao alterar o CIVA quanto ao regime das isenções fiscais, o Governo estaria a dispor sobre matéria para a qual só é competente a AR; ao remeter para regulamento a definição de um aspecto do regime material das isenções, o Governo estaria a infringir a reserva de lei em matéria fiscal, pois tal matéria só pode ser regulada por via legislativa.

A fim de avaliar o fundamento destas alegadas inconstitucionalidades importa averiguar duas questões: primeiro, o sentido e o alcance de cada uma daquelas normas constitucionais; depois, se as isenções fiscais estão abrangidas por essas duas normas.

Por comodidade de exposição, comece-se por considerar a reserva de competência legislativa da AR em matéria fiscal, o que, como se verá adiante, dispensa mesmo a abordagem da questão da garantia da reserva de lei.

Sucede, de resto, que a violação da reserva de competência legislativa da AR é o primeiro e principal problema invocado pelo PR e diz respeito a todas as normas do decreto, enquanto a violação do princípio da reserva de lei vem invocada em segundo lugar e diz respeito apenas a uma das normas em apreciação. Todo o problema gira à volta da questão de saber que matérias é que integram a reserva de competência legislativa da AR em matéria fiscal, prevista na alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP, segundo a qual "é da exclusiva competência da AR legislar [...] salvo autorização ao Governo» sobre "criação de impostos e sistema fiscal».

Pode dizer-se ser hoje pacífica a interpretação segundo a qual a reserva de competência legislativa da AR em matéria fiscal corresponde às áreas enunciadas nos n.os 1 e 2 do artigo 106.º do CRP. Existe uma evidente ligação textual entre os preceitos. Em ambos os lugares se fala em "sistema fiscal» e em "criação de impostos».

Aqui interessa sobretudo a conexão entre a alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º e o n.º 2 do artigo 106.º Com efeito, apesar de a primeira referir apenas a "criação de impostos» e não fazer qualquer referência ao artigo 106.º, n.º 2 (ao contrário do que sucedia com o preceito paralelo da Constituição de 1933, na sua última versão), é hoje indisputada a interpretação de que ela abrange todos os elementos referidos no n.º 2 do artigo 106.º e que existe uma perfeita homologia, nessa área, quanto ao âmbito dos dois preceitos. Em matéria de regime dos impostos, aquilo que é reserva de lei segundo o artigo 106.º n.º 2, é reserva de lei da AR segundo o artigo 168.º

Tal interpretação começou por vencer a nível do entendimento legislativo da AR (cf. parecer inserto nos Pareceres da Comissão dos Assuntos Constitucionais, vol. I, Lisboa, 1978, pp. 163 e segs., bem como a discussão parlamentar a propósito da ratificação de um decreto-lei de matéria fiscal, no Diário da Assembleia da República, 1.ª série, I Legislatura, 1.ª sessão legislativa, 1976-1977, n.º 56); obteve apoio decidido da doutrina, quer entre os constitucionalistas (v., por exemplo, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., 1.ª ed., Coimbra, 1978, pp. 240-241, anotação ao artigo 106.º); quer entre os fiscalistas (v., por todos, Manuel Pires, "A Constituição de 1976 e a fiscalidade», na colectânea Estudos sobre a Constituição, vol. I. Lisboa, 1978, pp. 417 e segs., e A. Sousa Franco, "Sistema financeiro e constituição financeira no texto constitucional de 1976», na colectânea Estudos sobre a Constituição, vol. III Lisboa, 1979, especialmente pp. 527 e segs.), e vingou na jurisprudência constitucional (cf. o parecer 3/79 da antiga Comissão Constitucional, em Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 7.º, pp. 203 e segs., especialmente pp. 213 e segs., e o parecer 5/81, ob. cit., vol. 14.º, especialmente p. 314).

Esta interpretação da reserva de competência legislativa da AR é, desde logo, a única que colhe apoio nos trabalhos preparatórios da Constituição, pois o texto originariamente aprovado para o preceito que veio a constituir o n.º 2 do artigo 106.º referia explicitamente que tais matérias eram da competência da Assembleia, tendo tal referência desaparecido na redacção final apenas para não impedir a autorização legislativa ao Governo (cf. Diário da Assembleia Constituinte, pp. 2641 e segs.). É também - e sobretudo - aquela que melhor corresponde, não apenas ao sentido global da CRP quanto ao alargamento das matérias reservadas à AR - sendo por isso incongruente que em matéria fiscal ela fosse menos exigente do que a própria Constituição de 1933 -, mas também às exigências que o princípio do Estado de direito democrático (cf. o artigo 2.º da CRP) faz ao tradicional princípio da legalidade tributária.

Trata-se de garantir que a criação dos impostos, bem como a definição dos seus elementos essenciais (incidência, taxa, etc.), sejam definidas pelo órgão legislativo por excelência que é a assembleia representativa.

O princípio da legalidade tributária, na sua dimensão de garantia da autotributação - i. e., definição dos impostos pelos próprios cidadãos através dos seus representantes -, pode ter hoje um significado não coincidente com o seu sentido originário, mas não assume menos relevo constitucional num Estado de direito democrático de vocação social(ista) do que no Estado de direito liberal oitocentista. Se antes assumia primacial relevo a defesa da propriedade contra as exacções do soberano, hoje sobressai a participação democrática de todos os cidadãos na definição e distribuição dos encargos públicos (aliás acrescidos pelas exigências económicas e sociais do "Estado social» contemporâneo).

Não diminui o alcance deste princípio o facto de a AR poder autorizar o Governo a legislar em tais matérias. Sempre se torna necessário que a AR defina o sentido, a extensão e a duração de tais autorizações, cuja utilização ainda pode ser controlada a posteriori, através do processo especial de não ratificação (cf. o artigo 172.º da CRP). Tais requisitos valem, aliás, tanto para as autorizações verdadeiras e próprias como para as chamadas "autorizações fiscais» do Orçamento, que integram o normalmente extenso programa fiscal anual constante da respectiva lei.

Pode mesmo dizer-se que a possibilidade de autorização legislativa ao Governo ajuda a desarmar a pressão para uma interpretação complacente do princípio da reserva legislativa da AR em matéria fiscal em homenagem a razões de tecnicidade e celeridade de muitas medidas fiscais.

Seja como for, a verdade é que o âmbito da competência legislativa reservada da AR em matéria fiscal decorre claramente delimitado, no que aqui interessa, por referência aos elementos referidos no n.º 2 do artigo 106.º da CRP.

Não se ignora que alguma doutrina - sobretudo entre os fiscalistas - amplia a reserva de competência legislativa da AR de modo a abranger também a definição das "formas de liquidação e cobrança», a que se refere o n.º 3 do artigo 106.º da CRP (v., por exemplo, Nuno Sá Gomes, Lições de Direito Fiscal, vol. 2 Lisboa, 1985, pp. 89 e segs.), o que não deixaria de ser relevante para o caso em exame, visto que há várias normas no decreto cujo objecto pode ser reconduzido aquelas figuras. Todavia, não se perfilha aqui tal tese, que realmente não encontra na alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º um mínimo de apoio textual (contra essa doutrina, v., com argumentos convincentes, A. Braz Teixeira, Princípios de Direito Fiscal, vol. I, 3.ª ed., pp. 93 e segs.).

Quanto ao alcance normativo da reserva de competência legislativa, isso não apresenta especificidade nesta área. Compete em exclusivo à AR - salvo autorização legislativa - legislar sobre as matérias referidas no n.º 2 do artigo 106.º E cumpre-lhe esgotar - naquilo que à lei cabe - a disciplina dessas matérias. A AR não pode limitar-se a estabelecer as bases gerais do regime jurídico, deixando o seu desenvolvimento legislativo ao Governo através de decretos-leis de desenvolvimento [cf. os artigos 115.º, n.º 2, e 201.º, n.º 1, alínea c), da CRP]. Nas áreas que constituem reserva de competência legislativa da AR em matéria fiscal o decreto-lei só pode intervir a título de decreto-lei autorizado [artigo 201.º, n.º 1, alínea b)], e nunca a título de decreto-lei autónomo [artigo 201.º, n.º 1, alínea a)] ou de decreto-lei de desenvolvimento [artigo 201.º, n.º 1, alínea c)].

Adquirido o sentido de reserva de competência legislativa da AR em matéria fiscal, resta saber se as isenções fiscais estão compreendidas no n.º 2 do artigo 106.º da CRP e, em consequência, no âmbito da reserva de competência legislativa da AR, definida na alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP.

2.3.2 - As isenções fiscais e o n.º 2 do artigo 106.º da CRP.
A questão resume-se a averiguar se as isenções fiscais estão compreendidas em algum dos elementos referidos no n.º 2 do artigo 106.º da CRP, a saber: a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.

No seu pedido, o PR entende que sim, argumentando que a reserva de lei formal "abrange não só as normas de incidência propriamente ditas, mas também todas as excepções à incidência, que são as isenções fiscais».

Na verdade, desde logo, numa concepção estrutural das isenções fiscais, elas podem ser vistas como regras negativas de incidência, sendo portanto ainda normas de incidência - expressamente referida no n.º 2 do artigo 106.º -, na medida em que "delimitam negativamente o respectivo âmbito real ou pessoal» (J. M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2.ª ed., Coimbra, 1972, p. 20, nota). Depois, numa perspectiva substancial, as isenções sempre hão-de considerar-se integradas na categoria dos benefícios fiscais, também expressamente mencionados no artigo 106.º, n.º 2. A integração das isenções entre os benefícios fiscais é corrente na doutrina (v., por todos, P. Soares Martinez, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 1983, p. 94, e Nuno Sá Gomes, ob. cit., p. 76). De qualquer modo, como elemento da incidência ou dos benefícios fiscais, é pacífico o entendimento de que as isenções fiscais estão abrangidas naquele preceito constitucional. Comparando esse dispositivo constitucional com a disposição correspondente da Constituição de 1933, um autor anotou:

Ao falar em benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, o n.º 2 do artigo 106.º alargou o disposto na Constituição de 1933, que se referia apenas à incidência, taxa, isenções e reclamações e recursos no interesse dos contribuintes. No primeiro caso, optou-se (à semelhança do que faz a moderna doutrina fiscalista) pela integração conceitual dos diversos benefícios fiscais (isenções, reduções de taxa, deduções, etc.). [A. Sousa Franco, ob. cit., p. 529; itálicos acrescentados.]

Considerações idênticas ou semelhantes são recorrentes na doutrina (cf., por exemplo, Carlos Pamplona Corte-Real, Curso de Direito Fiscal, Lisboa, 1981, p. 788, e A. Braz Teixeira, ob. cit., p. 92).

É certo que, aquando da 1.ª revisão constitucional, se propugnou, num estudo preparatório de um projecto de revisão, o aditamento de uma expressa menção às isenções no artigo 106.º, n.º 2 (v. A. Barbosa de Melo, J. M. Cardoso da Costa e J. C. Vieira de Andrade, Estudo e Projecto de Revisão Constitucional, Coimbra, 1981, p. 123); mas a própria fórmula que se alvitrava ("as isenções e outros benefícios fiscais»), bem como a própria justificação da alteração proposta (que se destinava apenas a "explicitar» a referência às isenções), não fazem mais que confirmar o entendimento de que as isenções já se consideravam integradas na categoria dos benefícios fiscais. De qualquer modo, na revisão constitucional não se julgou necessária sequer tal explicitação, pelo que o preceito constitucional não foi alterado.

A inclusão das isenções no âmbito da reserva de competência legislativa fiscal da AR é mais que compreensível. Com efeito, elas contam-se entre os elementos essenciais do imposto (v. J. M. Cardoso da Costa, ob. cit., pp. 20 e segs.), devendo compartilhar, ao mesmo título que os demais, das garantias que a reserva de competência legislativa da AR implica. Não surpreende, por isso, que o já mencionado parecer 3/79 da Comissão Constitucional mencione expressamente as isenções entre os elementos que integram o "princípio da legalidade tributária», na sua dupla expressão constitucional de reserva de lei e reserva de competência legislativa parlamentar (v. Pareceres ..., vol. 7.º, p. 211).

Alcançada a conclusão de que o regime das isenções integra o domínio da reserva de competência legislativa da AR, há que saber se no caso concreto o Governo, ao pretender legislar nessa área mediante decreto-lei, ofende tal domínio.

2.4 - Violação da competência da AR
2.4.1 - O Governo não estava habilitado a legislar sobre a matéria.
Para emitir o decreto-lei cujo projecto aqui se aprecia, o Governo não invoca sequer nenhuma autorização legislativa. Pelo contrário: na usual fórmula preambular reclama-se expressamente da "alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição» - que, recorde-se, habilita o Governo a "fazer decretos-leis em matérias não reservadas à AR» - e na resposta do PM insiste-se em que "o diploma resulta do exercício das competências próprias do Governo em matéria de regulamentação da lei fiscal».

Portanto, o diploma sob exame não se reivindica como decreto-lei autorizado. De resto, face ao disposto no n.º 3 do artigo 201.º da CRP, seria necessário "invocar expressamente a lei de autorização legislativa» pertinente. Ora não só não se menciona a existência de nenhuma autorização legislativa, como, ao invés, se invoca expressamente um poder legislativo próprio, que não carece de autorização legislativa.

Essa circunstância dispensa naturalmente qualquer indagação sobre saber se existia uma autorização legislativa relevante. Sempre se dirá, porém, que não se tem notícia de nenhuma autorização legislativa que de algum modo pudesse dar cobertura ao diploma aqui em causa.

No extenso programa de medidas fiscais previstas na Lei do Orçamento para 1986 (Lei 9/86, de 30 de Abril) nada consta que se relacione com o conteúdo do presente projecto de diploma nos três artigos daquela lei que se referem ao IVA (artigos 30.º, 31.º e 32.º). Nem sequer pode valer seguramente como autorização legislativa para alterar o regime de isenções do IVA o disposto no artigo 44.º da mesma Lei do Orçamento, que prevê algumas "medidas tendentes à eficácia e coerência dos benefícios fiscais existentes» e que habilita o Governo, nomeadamente, a "actualizar a redacção das disposições legais sobre benefícios fiscais», a "proceder às alterações necessárias com vista à harmonização dos benefícios fiscais previstos em diferente legislação que prossigam o mesmo objectivo» e a "rever os benefícios fiscais em vigor no sentido da sua harmonização com os compromissos internacionais assumidos».

É certo que as isenções devem ser consideradas como componente da categoria de benefícios fiscais, caindo, portanto, sob o alcance de tal preceito da Lei do Orçamento. Mas é manifesto que, qualquer que seja o valor jurídico dessas normas à luz dos requisitos constitucionais das autorizações legislativas, as alterações do regime de isenções do IVA constantes das normas do decreto aqui em exame não correspondem a nenhuma das espécies naquelas descritas.

Não se trata, obviamente, de nenhuma "actualização de redacção das disposições legais anteriores», pois, seja o que for que tal signifique, seguramente que não poderia servir de habilitação bastante para alteração do regime material; não se trata, também, de proceder à "harmonização de benefícios fiscais previstos em diferente legislação que prossigam o mesmo objectivo», pois o regime de isenções do IVA consta unitariamente do CIVA e não se invoca nenhuma discrepância com outra legislação; não se trata, finalmente, de rever os benefícios fiscais "no sentido da sua harmonização com os compromissos internacionais assumidos», pois, além de uma directiva da CEE - que, qualquer que seja o seu alcance, só poderia justificar a norma do artigo 2.º, n.º 1, e mesmo essa incompletamente -, nenhum outro compromisso internacional é invocado pelo Governo para justificar as demais alterações.

Em todo o caso - insiste-se -, mesmo que se admitisse que o artigo 44.º da Lei do Orçamento pudesse servir de habilitação suficiente a título de autorização legislativa - o que é pelo menos duvidoso, dada a formulação vaga e não especificada de tal preceito -, e mesmo que se verificasse que ele dava cobertura às alterações agora propostas no diploma em análise - o que, como acima se viu, não se verifica -, sempre restaria um obstáculo inultrapassável: é que o Governo nem sequer invoca essas eventuais autorizações legislativas, o que se tornava necessário se as quisesse utilizar validamente, nos termos do já mencionado n.º 3 do artigo 201.º da CRP.

O Governo reclama que se limitou a exercer competência própria, e que, por isso, não precisava de autorização da AR. Já se viu acima que o Governo legislou em matéria pertencente ao domínio da competência legislativa reservada da AR. Mostrou-se também que o Governo não podia valer-se de nenhuma autorização legislativa (e, de qualquer modo, não a invocou, o que seria imprescindível). Não pode, pois, deixar de concluir-se que as normas do diploma em causa que versam matéria de competência legislativa reservada da AR são inconstitucionais.

Falta saber quais são essas normas.
2.4.2 - Delimitação das normas inquinadas
Na análise do conteúdo normativo do diploma, a que atrás se procedeu (cf. supra, 2.2), concluiu-se que nem todas as suas normas têm a mesma natureza. Há, por um lado, as normas que definem o regime das isenções, ou seja, que determinam que transacções ou operações é que estão isentas de imposto; há, por outro lado, as normas qu regulam o processo e o modo de fazer valer as isenções. As normas que constituem a 1.ª categoria são apenas os artigos 1.º, 2.º e 6.º; todas as restantes pertencem à 2.ª categoria.

Ora, se é certo que a reserva de competência legislativa da AR compreende seguramente a definição dos casos que gozam de isenção do imposto, já o mesmo não sucede com a regulação do modo como tais isenções se efectivam.

Como se viu acima (2.3.3), as razões que conduzem a integrar a norma da alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP através do n.º 2 do artigo 106.º já não valem para o n.º 3 deste mesmo preceito. Por isso, ainda que as normas "adjectivas» do decreto submetido a censura tivessem a ver com as figuras da liquidação e cobrança do IVA - aspecto que não vale a pena aprofundar -, isso não seria relevante para efeitos da questão de constitucionalidade que aqui se analisa, pois tal matéria há-de considerar-se como não integrante da esfera de competência legislativa reservada da AR.

Adquirido que somente as normas dos artigos 1.º, 2.º e 6.º é que determinam isenções, definindo os casos em que elas existem, nem todas as suas normas podem considerar-se desde logo inconstitucionais. É que algumas delas em nada alteram o regime constante do CIVA, pois nem ampliam nem restringem os casos de isenção; é o que sucede com o artigo 1.º, que se limita a reproduzir (precisando os seus conceitos) uma parte do conteúdo normativo da alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA. Já o mesmo não sucede com o artigo 2.º - que introduz limitações e excepções às isenções previstas no CIVA -, nem com a alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º, que alarga a isenção a casos não previstos no CIVA.

Ambos esses preceitos infringem, por isso, os limites da competência legislativa reservada da AR.

2.5 - A violação da reserva de lei
Sob este ponto de vista são postos em causa pelo PR apenas os n.os 1 e 2 do artigo 2.º do diploma em apreciação (e não se vê que outros mais poderiam ser questionados a esse título).

Essas disposições remetem para despacho ministerial a fixação dos montantes mínimos que as transacções hão-de alcançar para poder haver isenção de IVA. A questão consiste apenas em saber se tal remissão é compatível com a reserva de lei em matéria fiscal.

Simplesmente, uma vez que tais normas já vão consideradas inconstitucionais por outro motivo, e no seguimento de uma prática corrente do Tribunal em casos semelhantes, não subsiste interesse em abordar a sua inconstitucionalidade também a outro título. Prescinde-se, por isso, de considerar o pedido nessa parte.

3 - Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, o T. Const. pronuncia-se pela inconstitucionalidade das normas do artigo 2.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º do decreto aqui submetido a controle preventivo da inconstitucionalidade por infracção da norma da alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição.

Tribunal Constitucional, 8 de Outubro de 1986. Vital Moreira (relator, com declaração de voto) - Messias Bento -Antero Alves Monteiro Diniz - Martins da Fonseca - Mário de Brito - Luís Nunes de Almeida - José Manuel Cardoso da Costa - José Magalhães Godinho - Mário Afonso - Raul Mateus (vencido em parte, nos termos da declaração de voto junta) - Armando Manuel Marques Guedes.


Declaração de voto
Pronunciei-me no sentido de o Tribunal apreciar integralmente o pedido do PR, enfrentando também a questão da violação da reserva de lei por parte do n.º 1 do artigo 2.º do decreto, que remete para portaria a fixação dos montantes mínimos que haverão de atingir as transacções a fim de poderem beneficiar de isenção do IVA.

Na verdade, julgo que não se deveria desperdiçar a oportunidade para abordar tal questão - que até agora o Tribunal não teve ocasião de tratar -, tanto mais que, no caso concreto, é de forma bem clara que se apresenta, no meu entender, a inconstitucionalidade do referido preceito.

Passarei a demonstrar isso.
Dispõe o artigo 106.º da CRP:
Artigo 106.º
(Sistema fiscal)
1 - ...
2 - Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.

3 - ...
Este preceito delimita uma das áreas que compõem a reserva de lei em matéria fiscal, abrangendo os elementos essenciais dos impostos e as garantias dos contribuintes. Nestes pontos a Constituição exige que o respectivo regime jurídico seja definido por via de lei.

A reserva de lei significa, naturalmente, exclusivo de disciplina legal, monopólio do diploma de grau legislativo na disciplina jurídica de determinada matéria. Consequência directa da reserva de lei é a impossibilidade de intervenção de diplomas infralegislativos - designadamente os de carácter regulamentar - na disciplina das matérias que gozam do privilégio da reserva de lei. Esta conclusão é pacificamente admitida na doutrina, pelo menos em relação aos regulamentos independentes ou autónomos (cf. os n.os 6 e 7 do artigo 115.º da CRP), limitando-se a admissibilidade de intervenção regulamentar aos regulamentos puramente executivos. Isto é matéria praticamente indisputada. No já referido comentário à CRP pode ler-se, em anotação ao artigo 115.º:

A Constituição não fornece qualquer critério de definição da fronteira material entre o domínio legislativo e o domínio regulamentar. Teoricamente, em cada área normativa deveria haver uma parte legislativa e uma parte regulamentar. Mas a proporção em que isso acontece depende essencialmente da lei. Ela tanto pode esgotar a regulamentação da matéria, consumindo o regulamento (pois não existe reserva de regulamento), como pode limitar-se a deferir para regulamento de certa entidade a tarefa de regulamentação material do assunto (o que não pode haver é uma área normativa preenchida apenas por via regulamentar, sem qualquer lei prévia: v., infra, n. XIX). Entre esses dois extremos existem múltiplas possibilidades. Há, porém, certos limites constitucionais, pois, nas áreas de reserva de competência legislativa, a lei deve ela mesma preencher, pelo menos num primeiro nível, todo a área, só podendo deixar para regulamento a execução das suas normas (regulamentos puramente executivos). [J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., vol. II, p. 55; acrescentado o itálico da ultima expressão.]

Referindo-se especificamente ao domínio de reserva de lei em matéria fiscal, ainda no domínio da última versão da Constituição de 1933, um autor escrevia, a propósito:

A sua [dos regulamentos] intervenção neste domínio está limitada, porém, não só pelo seu carácter de normas secundárias, mas também pelo princípio da legalidade dos impostos [...] Resulta daqui que não são de admitir regulamentos fiscais em absoluto independentes da lei, nem tão-pouco [...] regulamentos autónomos ou delegados dentro da reserva feita pelo artigo 70.º da Constituição.

Isto significa que, no que toca à incidência, isenções e taxa dos impostos, bem como no que diz respeito a definição das reclamações e recursos admitidos aos contribuintes, os regulamentos só podem intervir a título puramente executivo [...] (J. M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2.ª ed., Coimbra, 1972, p. 186; itálico acrescentado.]

Transposta para o domínio da CRP de 1976, esta doutrina vale por maioria de razão, pois não perdeu importância - pelo contrário - a reserva de lei, mesmo quando considerada autonomamente, sem conexão com a reserva de competência legislativa da AR. Na verdade, embora, tal como antes, o domínio da reserva de lei não coincida com o domínio da reserva de competência legislativa da AR, e o Governo continue a deter poderes legislativos próprios, existe sempre uma importante diferença entre a lei - mesmo quando reveste a forma de decreto-lei do Governo - e o regulamento. É que o decreto-lei tem de ser aprovado em Conselho de Ministros, carece de promulgação do PR (podendo, portanto, ser vetado), pode ser submetido a controle preventivo de constitucionalidade, está sujeito a ser expeditamente alterado ou não ratificado pela AR (cf. o artigo 172.º da CRP). Os regulamentos, esses - salvo os decretos regulamentares, que compartilham de algumas características dos decretos-leis -, não preenchem tais requisitos, nem seguem tal itinerário na sua formação. Essa diferença de regime não deixa de assumir reforçada importância para a defesa dos interesses dos cidadãos em matéria fiscal, que tal é a principal razão de ser da reserva de lei nessa área.

No caso das isenções, há ainda que registar que, ao contrário da Constituição de 1933, na sua última redacção - que reservava para a lei apenas a definição das isenções "a que houvesse lugar» -, a CRP de 1976 não contém nenhuma distinção quanto ao alcance da reserva de lei em relação aos vários elementos referidos no n.º 2 do artigo 106.º A Constituição não é menos exigente no caso das isenções do que, por exemplo, no caso da definição da incidência ou da taxa de impostos.

Retomando o que acima se deixou quanto ao alcance e âmbito objectivo da reserva de lei em matéria fiscal, seguramente que no caso das isenções ela se analisa em dois pontos: primeiro, compete à lei definir o regime das isenções fiscais; depois, nessa definição das isenções não pode haver intervenção regulamentar (salvo, eventualmente, a título puramente executivo).

Torna-se evidente que naquilo em que a lei deve ter o monopólio normativo e em que o regulamento não tem cabimento também não pode haver remissão legislativa para regulamento. Se a disciplina das isenções há-de ser um exclusivo legal, então não pode a lei abster-se de regular um aspecto material do seu regime e remeter para regulamento a sua disciplina.

Ora é manifesto que o diploma em apreço, ao criar um novo regime de isenções do IVA em matéria de exportações indirectas, não se desincumbe integralmente da tarefa, pois não é possível concluir, a partir somente das suas normas, em que casos é que existe e em que casos é que não existe isenção. Estabelecendo-se a regra de que para haver isenção se torna necessário que as transacções atinjam um certo montante, só se fica a saber em que casos existe isenção se for logo fixado tal montante. Mas é isso que o diploma não faz, deixando tal ponto para ser definido ulteriormente em regulamento.

É certo que na definição dos montantes mínimos da importância das transacções o regulamento não ficaria com mãos livres, pois o n.º 2 do mesmo artigo 2.ª dispõe algumas regras delimitadoras, a primeira das quais é a de que eles serão fixados "tendo em conta o disposto nas directivas comunitárias [i. e., as da CEE:] sobre a matéria». Todavia, para além do carácter não vinculativo dessa regra ("tendo em conta»), sempre e resta o facto de ela manter essencialmente em aberto um elemento essencial do regime das isenções do IVA nessa área. Em qualquer caso, sempre a resposta à questão - "que compras efectuadas por não residentes estão isentas de IVA?» - não se encontra directamente na lei, mas sim num regulamento. Ora é justamente isso que não é consentido pelo princípio da reserva de lei em matéria fiscal.

Em conclusão, haveria que decidir pela inconstitucionalidade da referida norma do diploma também por violação do artigo 106.º, n.º 2, da CRP. - Vital Moreira.


Declaração de voto
1 - Numa perspectiva global, assumi a linha argumentativa desenvolvida no acórdão.

Simplesmente entendi - e é esse o ponto de divergência - que a isenção de IVA expressa no artigo 6.º, n.º 1, alínea b), do decreto registado na Presidência do Conselho de Ministros sob o n.º 501/86 era apenas uma concretização, ou, melhor, uma explicitação da isenção constante do artigo 14.º, n.º 1, alínea b), do CIVA.

Neste preceito do CIVA, que alude as "transmissões de bens expedidos ou transportados com destino ao estrangeiro por um adquirente sem residência ou estabelecimento no território nacional ou por um terceiro por conta deste», a expressão bens é utilizada em termos genéricos: tanto abrange os bens em bruto como os bens que venham a ser objecto no interior do País, e antes de exportados, de reparações, transformações, adaptações ou de qualquer outro trabalho. Isto resulta desde logo do facto de aquele artigo 14.º, n.º 1, alínea b), do CIVA não fazer qualquer distinção (para além das delimitações e excepções em tal norma expressamente consignadas) entre os bens beneficiários da isenção. Ora, de acordo com o velho aforismo jurídico, "ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus».

2 - A propósito; não se quer deixar ainda de assinalar que no acórdão se não considerou passível de inclusão no grupo de bens contemplados no artigo 14.º, n.º 1, alínea b), do CIVA os bens mencionados no artigo 6.º, n.º 1, alínea b), do decreto em apreciação fundamentalmente por se considerar que os bens, alvo de uma qualquer acção mutativa, passavam a ser outros bens [nesse sentido se escreveu, aliás, que "a alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA só prevê a isenção do IVA na aquisição do bem que é efectivamente exportado; o decreto alarga agora a isenção às aquisições de bens cuja transformação deu origem ao bem afinal exportado»]. Esta análise, todavia, não se tem por correcta.

É que, na sequência do que acima - e em contrário a isto - se disse, há que sublinhar que na linguagem económico - jurídica o bem sobre o qual se incrustou o resultado de qualquer trabalho é correntemente considerado, não como um produto novo, mas meramente como o bem ou produto (inicial) transformado.

3 - Em conclusão, o Executivo, com a alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º do decreto em causa, não alargou a área da isenção do IVA, tal como o artigo 14.º, n.º 1, alínea b), do CIVA a definia, pelo que não foi infringida nessa frequência [a da alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º da CARP] a regra da competência legislativa reservada da AR. - Raul Mateus.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/174601.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1984-12-26 - Decreto-Lei 394-B/84 - Ministério das Finanças e do Plano - Secretaria de Estado do Orçamento

    Aprova o Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA).

  • Tem documento Em vigor 1986-04-30 - Lei 9/86 - Assembleia da República

    Orçamento Geral do Estado para 1986.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1989-04-20 - Acórdão 321/89 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de algumas normas do Decreto-Lei n.º 31/84, de 21 de Janeiro; limita os efeitos da inconstitucionalidade por forma a ressalvar os entretanto já produzidos.

Aviso

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