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Acórdão 458/2007, de 11 de Agosto

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 116.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a testemunha que não justifique a falta tem de ser sancionada, mesmo que o sujeito processual que a arrolou prescinda do respectivo depoimento e o juiz não determine oficiosamente a inquirição

Texto do documento

Acórdão 458/2007

Processo 62/07

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, do despacho de 19 de Setembro de 2006, proferido pelo juiz do Tribunal Judicial de Abrantes (3.º Juízo), no decurso da audiência de julgamento, em processo comum (tribunal singular), do Processo 53/05.5GCABT, do seguinte teor:

«A testemunha Maria Jacinta de Matos Ramos Carvalho Grácio está validamente convocada para comparecer nesta audiência de julgamento. Porém, faltou e não comunicou sequer ao Tribunal qualquer motivo impeditivo dessa comparência. Por isso, à luz do artigo 117.º do C.P. Penal tem tal falta de se considerar injustificada.

Esta situação reúne os pressupostos formais de aplicação da norma plasmada no artigo 116.º, n.º 1 do C.P. Penal, de onde resultaria que a testemunha faltosa teria de ser condenada no pagamento de uma soma entre 2 a 10 UCs.

Contudo a testemunha faltosa foi arrolada pelo arguido e este prescindiu da respectiva inquirição. Não se vislumbra qualquer necessidade, para o bom julgamento da causa, em proceder à inquirição oficiosa dessa testemunha.

Sendo assim, a interpretação do artigo 116.º, n.º 1 do C.P.P., no sentido de que tem o juiz obrigatoriamente de sancionar a testemunha faltosa no pagamento de soma não inferior a 2 UCs, constitui uma interpretação normativa não consentida pela Constituição da República Portuguesa, por violação do princípio da proporcionalidade acolhido no artigos. 2.º e 18.º da Constituição. De resto, este mesmo entendimento foi sufragado pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão 184/06 de 8/3 do corrente ano, proferido no processo 559/05 da 2.ª secção desse Alto Tribunal.

Pelo exposto, decido julgar validamente prescindida a inquirição da testemunha Maria Jacinta de Matos Ramos Carvalho Grácio e não a condenar no pagamento de qualquer soma prevista no n.º 1 do artigo 116.º do C. P. Penal, por a norma aí contida ser inconstitucional por violação do referido princípio da proporcionalidade quando interpretada no sentido de impor ao juiz a condenação obrigatória do faltoso, cuja inquirição foi prescindida validamente, no pagamento da soma entre 2 e 10 Ucs.»

2 - Ordenada a notificação para alegações, o Ministério Público alegou no sentido da inconstitucionalidade da norma como foi interpretada, mas salientando ser lícito questionar se, tendo presente o disposto no n.º 6 do artigo 651.º do Código de Processo Civil, não bastaria proceder a uma"decisão interpretativa" que fixasse à norma um sentido em causa em conformidade com a Constituição, concluindo do seguinte modo:

«1 - A norma constante do artigo 116º do Código de Processo Penal deve ser interpretada em conformidade com a Constituição, não comportando o sancionamento, com multa processual, da testemunha faltosa que foi válida e regularmente prescindida pela parte ou sujeito processual que a arrolou, sem que o juiz haja determinado a sua comparência para inquirição oficiosa.

2 - Na verdade, neste caso seria desproporcionada a imposição de multa a quem, com a sua falta, nenhum prejuízo determinou para o andamento do processo, constituindo justificação da falta a própria declaração de renúncia à inquirição.»

A testemunha condenada em multa, cuja notificação para alegar o relator ordenou por considerá-la directamente interessada no recurso de constitucionalidade, nada disse.

II - Fundamentos. - 3. Dispõe o artigo 116.º do Código de Processo Penal:

«Artigo 116.º

Falta injustificada de comparecimento

1 - Em caso de falta injustificada de comparecimento de pessoa regulamentarmente convocada ou notificada, no dia, hora e local designados, o juiz condena o faltoso ao pagamento de uma soma entre duas e dez UCs.

2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, o juiz pode ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a detenção de quem tiver faltado injustificadamente pelo tempo indispensável à realização da diligência e, bem assim, condenar o faltoso ao pagamento das despesas ocasionadas pela sua não comparência, nomeadamente das relacionadas com notificações, expediente e deslocação de pessoas. Tratando-se do arguido, pode anda ser-lhe aplicada medida de prisão preventiva, se esta for legalmente admissível.

3 - Se a falta for cometida pelo Ministério Público ou por advogado constituído ou nomeado no processo, dela é dado conhecimento, respectivamente, ao superior hierárquico ou à Ordem dos Advogados.

4 - É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 68.º, n.º 5.»

Sobre a justificação versa o artigo seguinte do Código que preceitua:

«Artigo 117.º

Justificação da falta de comparecimento

1 - Considera-se justificada a falta motivada por facto não imputável ao faltoso que o impeça de comparecer no acto processual para que foi convocado ou notificado.

2 - A impossibilidade de comparecimento deve ser comunicada com cinco dias de antecedência, se for previsível, e no dia e hora designados para a prática do acto, se for imprevisível. Da comunicação consta, sob pena de não justificação da falta, a indicação do respectivo motivo, do local onde o faltoso pode ser encontrado e da duração previsível do impedimento.

3 - Os elementos de prova da impossibilidade de comparecimento devem ser apresentados com a comunicação referida no número anterior, salvo tratando-se de impedimento imprevisível comunicado no próprio dia e hora, caso em que, por motivo justificado, podem ser apresentados até ao 3.º dia útil seguinte. Não podem ser indicadas mais de três testemunhas.

4 - Se for alegada doença, o faltoso apresenta atestado médico especificando a impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento e o tempo provável de duração do impedimento. A autoridade judiciária pode ordenar o comparecimento do médico que subscreveu o atestado e fazer verificar por outro médico a veracidade da alegação da doença.

5 - Se for impossível obter atestado médico, é admissível qualquer outro meio de prova.

6. Havendo impossibilidade de comparecimento, mas não de prestação de declarações ou de depoimento, esta realizar-se-á no dia, hora e local que a autoridade judiciária designar, ouvido o médico assistente, se necessário.

7 - A falsidade da justificação é punida, consoante os casos, nos termos dos artigos 260.º e 360.º do Código Penal.»

4 - O despacho recorrido recusou aplicação à norma do n.º 1 do artigo 116.º, com fundamento em violação do princípio constitucional da proporcionalidade,"quando interpretada no sentido de impor ao juiz a condenação obrigatória do faltoso cuja inquirição foi prescindida validamente". Nas alegações que apresentou neste Tribunal (cf. conclusão 1.ª), o Ministério Público introduziu um elemento mais na hipótese normativa, o que, primo conspectu, tem o efeito de restringir o âmbito (a extensão) da norma que é objecto de censura de inconstitucionalidade. A censura de desproporcionalidade é referida a uma hipótese integrada por duas condições de verificação cumulativa: (i) ter o sujeito processual que arrolou a testemunha prescindido da sua inquirição e (ii) não ter o juiz determinado oficiosamente essa inquirição. Nesta formulação, a desnecessidade de comparência da testemunha para os fins processuais, de onde se parte para o juízo de desproporcionalidade da aplicação da sanção pela falta injustificada, não é o resultado, apenas, da opção do sujeito processual que arrolou a testemunha e agora prescinda dela, mas da concorrência deste acto da «parte» com um juízo do tribunal, que também entende não ser necessário tomar depoimento à testemunha ao abrigo do poder de ordenar oficiosamente todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (cf. artigo 340.º do Código de Processo Penal).

Sucede que esta divergência entre o sentido normativo que o despacho recorrido enuncia e aquele que o Ministério Público propõe como objecto do recurso é meramente aparente. Na verdade, o despacho recorrido recusou aplicação ao n.º 1 do artigo 116.º do CPP numa situação definida por aqueles mesmos dois elementos: ter quem indicou a testemunha prescindido da inquirição e não se vislumbrar «qualquer necessidade, para o bom julgamento da causa, em proceder à inquirição oficiosa dessa testemunha».

Deste modo, considera-se que o objecto do recurso é a norma do n.º 1 do artigo116.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a testemunha que não justifique a falta tem de ser sancionada, mesmo que o sujeito processual que a arrolou prescinda do respectivo depoimento e o juiz não determine oficiosamente a inquirição.

5 - Como a decisão recorrida e as alegações do Ministério Público dão notícia, a questão que no presente recurso se discute foi objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional no acórdão 184/2006, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 17 de Abril de 2006, que concluiu pela inconstitucionalidade da norma em causa.

Entendeu-se, então, que não seria aceitável uma solução que implicasse a aplicação necessária de uma sanção a uma testemunha faltosa, mas da qual o sujeito processual que a indicou prescindiu e cujo depoimento o Tribunal não considerou necessário à descoberta da verdade. Traduzir-se-ia, tal interpretação, numa violação do princípio da proporcionalidade ínsito no princípio do Estado de direito, e colidiria ainda com os princípios de celeridade, de economia processual e de proibição da prática de actos inúteis, já que levaria a comparecer em audiência um interveniente cuja participação no processo nenhuma razão justifica. E conclui-se «pela inconstitucionalidade do artigo 116.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por violação do princípio da proporcionalidade resultante dos artigos 2.º e 18.º da Constituição, interpretado no sentido de determinar a aplicação obrigatória de uma sanção processual à testemunha faltosa da qual o sujeito processual que a apresentou veio a prescindir».

Afigura-se, porém, necessário reponderar a questão.

6 - Começa por reconhecer-se que se apresenta muito sustentável a interpretação do regime de justificação das faltas de testemunhas em processo penal proposto pelo Ministério Público e também admitido no acórdão 184/2006 - embora se tenha terminado por uma decisão positiva de inconstitucionalidade e não por uma «interpretação conforme» susceptível d se impor ao tribunal da causa ao abrigo do n.º 3 do artigo 80.º da LTC - , que procede à integração desse regime com recurso às normas que, em situações semelhantes no processo civil, dispensam a justificação da falta e, consequentemente, afastam o sancionamento do faltoso independentemente da prova da razão justificativa da não comparência (cf. n.º 6 do artigo 651.º e n.º 5 do artigo 629.º do Código de Processo Civil).

Todavia, para que o Tribunal adoptasse tal interpretação ou integração do direito ordinário, num recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, em termos de poder impor-se ao tribunal da causa na reforma da decisão (artigo 80.º, n.º 3, da LTC), mais a mais não podendo a leitura que o tribunal a quo fez da norma considerar-se jurisprudencialmente desgarrada (cf. p. ex. ac. da Relação de Évora, de 4 de Setembro de 2000, Colectânea de Jurisprudência, Ano XXV, Tomo IV, págs. 277 e segs.), necessário seria que tal sentido, ainda comportável pelos demais elementos de interpretação, se impusesse para evitar a inconstitucionalidade da norma na interpretação sujeita a apreciação.

7 - A «soma» referida no n.º 1 do artigo 116.º do CPP, embora as finalidades próprias do direito processual penal possam influir no respectivo regime, designadamente quanto aos termos da justificação da falta para que é cominada e ao seu montante, é uma sanção pecuniária com a mesma natureza das demais multas processuais.

A propósito deste tipo de sanções pecuniárias disse o Tribunal no acórdão 315/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23.º vol., pág. 323 (cf. tb. o acórdão 680/2004, in www.tribunalconstitucional. pt):

«Se a doutrina processual civil se refere a elas (às multas processuais), por vezes, como 'penas', é porque utiliza esta expressão amplamente, em sinonímia com 'sanções punitivas' (assim, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, edição revista e actualizada por Herculano Esteves, 1976, p.354, e Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed., reimpressão, 1981, p.261)

As sanções processuais são cominadas para ilícitos praticados no processo, cujo adequado desenvolvimento visam promover. Com a sua estatuição, pretende-se, conforme os casos, obter a cooperação dos particulares com os serviços judiciais, impor aos litigantes uma conduta que não prejudique a acção da justiça ou ainda assegurar o respeito pelos Tribunais.

[...]

Mas as multas processuais [...] constituem sanções indiscutivelmente estranhas ao direito disciplinar e ao direito de mera ordenação social.

O direito disciplinar caracteriza-se pela existência de um poder hierárquico que o tribunal não possui, evidentemente, quando aplica multas processuais às partes ou a outros intervenientes no processo. Tão pouco o direito de mera ordenação social, que se distingue do direito penal, tendencialmente, 'pela natureza dos respectivos bens jurídicos...(e)... pela desigual ressonância ética' e, decisivamente, através da qualificação feita pelo próprio legislador (cf. o preâmbulo do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro), pode abranger as multas processuais - sanções historicamente anteriores e não filiadas no direito penal.»

Todavia, sob esta designação comum, abrigam-se sanções pecuniárias com finalidades e pressupostos muito diversos. Assim, as multas destinadas a garantir o cumprimento do dever geral de colaboração para a descoberta da verdade, designadamente por parte daqueles que devam prestar elementos de prova ou sujeitar-se aos meios da sua obtenção, distinguem-se claramente daquelas que são aplicadas às partes para garantir a boa ordenação do processo, de que são exemplo a multa pela prática de actos fora do prazo normal (n.º 5 do artigo 145.º do CPC) e a multa pela apresentação tardia de documentos (n.º 2 do artigo 523.º do CPC). A cominação de multas para factos do primeiro tipo previne e reprime o não acatamento injustificado do dever de colaboração com os tribunais, encontrando uma justificação que não se confina à frustração imediata dos fins para que, naquele processo concreto, é solicitada a colaboração. As multas cominadas para situações do segundo tipo são um modo de suavizar o efeito do incumprimento dos prazos para a prática de actos que se traduzem em verdadeiros ónus processuais, nisso se esgotando a sua finalidade.

8 - A soma cujo pagamento é imposto ao abrigo do n.º 1 do artigo 116.º do CPP para a falta injustificada de comparecimento de pessoa regularmente notificada ou convocada para acto do processo penal sanciona um comportamento que, em extremo rigor, poderia integrar crime de desobediência, mas ao qual a lei tradicionalmente confere tratamento privilegiado, sancionando-o expeditamente com uma multa processual, aplicável mediante um incidente simplificado (Cf., a propósito de mecanismo sancionatório semelhante que já constava do artigo 91.º do Código de Processo Penal de 1929, o Parecer 98/78, da Procuradoria-Geral da República, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 284, págs. 30 e segs.)

O fim imediato desta sanção é reprimir o incumprimento do dever de colaboração para que o agente é solicitado no âmbito de um concreto processo. Dever esse a cujo cumprimento o faltoso pode, aliás, ser judicialmente coagido (n.º 2 do artigo 116.º do CPP e alínea f) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP; cf., quanto ao processo civil, n.º 2 do artigo 519.º do CPC).

Mas a sanção cumpre também um fim de prevenção geral, intimidando os potenciais infractores e contribuindo para instilar na comunidade a consciência da efectividade desse dever, minorando a perniciosa repercussão da generalização de uma atitude de desrespeito pelas convocatórias dos tribunais na tarefa fundamental do Estado de administrar justiça. Esta preocupação em atacar o que era identificado como um dos pontos críticos da morosidade da justiça penal tornou-se evidente com as novas regras de justificação das faltas em processo penal, introduzidas no artigo 117.º do CPP pela Lei 55/98, de 25 de Agosto. Avulta neste regime a imposição de que a falta seja comunicada com cinco dias de antecedência, se for previsível, ou no dia e hora designados para a prática do acto, se imprevisível, e não em momento posterior à falta, como era tradicional (Outro aspecto em que se verificou inovação, para o presente recurso irrelevante, consiste em ter deixado de se fazer referência aos critérios de justificação da falta por remissão para o regime substantivo de exclusão da ilicitude e da culpa, o que pode ser interpretado como alargando a margem de apreciação judicial das razões justificativas da não comparência).

É neste contexto que se há-de ver se o sancionamento da testemunha regularmente convocada e que não justifica a falta, mas cujo depoimento é considerado prescindível tanto pelo sujeito processual que a arrolou como pelo tribunal, viola o princípio da proibição do excesso, concretizador do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição.

9 - A colaboração dos cidadãos na administração justiça, que se desdobra nos deveres de testemunhar, de intervir como perito, de participar no tribunal do júri e intervenções ocasionais semelhantes (com ressalva dos casos de recusa legítima), corresponde a um dever fundamental dos cidadãos para com o Estado, de conteúdo cívico-político. Afigura-se lícito extrair essa fundamentalidade da expressa autorização constitucional para impor o cumprimento coercivo de tal dever (rectius, da imposição coactiva de um dever prodrómico desse dever de colaboração, que é o dever de comparência perante as autoridades judiciárias quando a pessoa é regularmente convocada - alínea f) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP), o que pressupõe o seu implícito reconhecimento constitucional. De todo modo, mesmo quem assim não entenda não negará carácter de dever legal fundamental ao dever de colaborar na administração da justiça (Parece ser esta a opinião de Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., pág. 534 e de José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, pág. 94).

Efectivamente, quanto à finalidade imediata de alguns modos de colaboração (v. gr., como perito, depositário e semelhantes), ainda seria teoricamente conjecturável uma organização pública ou contratualizada de serviços que permitisse à administração da justiça funcionar sem recurso a esses modos de colaboração ocasional do cidadão. Mas isso seria absolutamente impossível relativamente à modalidade de colaboração que é a prestação de depoimento como testemunha (artigo 131.º do CPP). Pode reduzir-se a onerosidade da intervenção na qualidade de testemunha (v. gr., mediante a prestação de depoimento por vídeo-conferência ou outros modos que não exijam a presença no tribunal da causa), mas não pode eliminar-se o dever porque não pode cumprir-se a tarefa constitucional dos tribunais sem o respectivo reconhecimento. A disciplina jurídica e os aspectos organizacionais que se dirijam a obviar ou reduzir as causas de adiamento das diligências - por exemplo, o maior rigor quanto aos termos de justificação das faltas - serão mesmo um instrumento para tornar globalmente menos oneroso o dever de colaboração. Mas não se concebe que possa prescindir-se da imposição de comparência perante as autoridades judiciárias por parte de quem deva prestar depoimento, porque esse é um meio de prova sem o qual a instrução e o julgamento das causas é, geralmente, impossível. E não pode deixar de estabelecer-se o adequado e expedito sancionamento dos faltosos, pois de outro modo a imposição do dever não teria eficácia.

10. Reentrando no caso, é exacto que, numa situação em que esteja adquirido que nenhum dos sujeitos processuais - nem aquele que a indicou, nem o tribunal por sua iniciativa - consideram necessário inquirir a testemunha arrolada, a sua falta de comparência na audiência de julgamento, apesar de regularmente convocada, não se repercute na descoberta da verdade, na boa decisão da causa, ou na marcha do processo. Se a testemunha tivesse comparecido, seria mandada embora sem prestar depoimento, pelo que a deslocação ao tribunal teria constituído um sacrifício (pelo menos de tempo ou de disponibilidade pessoal) sem qualquer utilidade para os fins endo-processuais Nestas circunstâncias, a sanção para a falta injustificada de comparência não pode encontrar fundamento na necessidade de assegurar o cumprimento do dever de colaboração com os tribunais, como testemunha, na administração da justiça penal (artigo 131.º do Código de Processo Penal: dever de testemunhar) porque essa colaboração é, em concreto e por definição, desnecessária. Assim, se identificarmos o bem jurídico tutelado mediante a cominação da multa para a falta injustificada apenas com a utilidade da comparência para os fins processuais em função da qual foi concretamente ordenada, é compreensível que se considere a imposição dessa sanção, na hipótese considerada, como violando o princípio da proporcionalidade.

Com efeito, o princípio da proibição do excesso postula que, entre o conteúdo da decisão estadual (a norma que manda sancionar a testemunha que não justificou a falta) e o fim que ela prossegue haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma justa medida. As vantagens (obtidas por todos) através da medida estadual devem ser proporcionais às desvantagens que tal medida tenha eventualmente causado a alguns membros da comunidade jurídica, de tal modo que o peso da decisão pública nunca venha a exceder o quantum requerido pela prossecução do seu fim (Maria Lúcia Amaral, A Forma da República, p. 186). Deste modo, se o fim específico da imposição do pagamento de uma soma entre duas e dez UCs fosse exclusivamente assegurar a satisfação da necessidade de comparência da testemunha no concreto processo para que foi indicada, obrigá-la a justificar a falta a um acto para que a sua presença teria sido inútil - portanto, retrospectivamente, a convocatória objectivamente injustificada - e impor-lhe uma sanção por não ter comparecido nem justificado a falta, seria impor-lhe um encargo desnecessário, incompatível com o princípio geral de limitação do poder público que se ancora no princípio do Estado de direito (artigo 2.º da CRP).

11. Todavia, a norma que manda impor ao faltoso o pagamento de uma «soma» não se destina, ou não se destina apenas, a reprimir a falta em função do resultado concreto, mas a sancionar a desobediência à ordem de comparência, enquanto conduta potencialmente lesiva da boa administração da justiça, que transcende esse resultado ou o perigo concreto.

Pretende-se, por um lado, mediante a imposição do dever de comunicação antecipada da causa impeditiva de comparência previsível, habilitar o tribunal (ou a autoridade judiciária) com informação atempada que lhe permita reorganizar o serviço e reduzir, até onde for possível, as consequências negativas da falta, seja para o serviço em geral, seja para os restantes intervenientes processuais. E visa-se, concomitantemente, criar na comunidade em geral a convicção na efectividade da norma que estabelece o dever de testemunhar e, para tanto, de comparecer no local e na data determinados pela autoridade que dirige o processo.

Perante esta plurifuncionalidade do dever de justificação das faltas e da correspondente imposição do pagamento da"soma" prevista no n.º 1 do artigo 116.º do CPP, quando a testemunha não comparece nem justifica a falta ao acto para que foi regularmente convocada, não pode afirmar-se que a norma em causa viole o princípio da proporcionalidade. A exigência de justificação para a não comparência e a correspondente sanção pecuniária quando a testemunha falta sem justificação, mesmo que, em concreto, a falta não tenha tido reflexos na prática do acto, reafirma comunitariamente a norma que estabelece o dever de comparecer perante a autoridade judiciária para prestar depoimento.

Embora a regra essencial seja a de que só devem existir os deveres necessários e na medida necessária para a salvaguarda dos direitos fundamentais ou de interesses constitucionalmente protegidos, encontrado um interesse constitucional que ainda suporta a imposição do dever de comparência ou justificação da ausência e para cujo incumprimento a sanção pecuniária se apresenta adequada e não excessiva, cabe na discricionariedade legislativa optar por exigir sempre a justificação por parte do interessado ou dispensá-la quando a falta não tenha repercussão no acto processual, consoante a maior ou menor prevalência que o legislador dê à necessidade de prevenção geral e a avaliação que faça sobre as vantagens e desvantagens para os cidadãos e para o próprio funcionamento dos tribunais (a celeridade, a economia processual, a relação custo-benefício) na imposição desse ónus de justificação.

A cominação da sanção pecuniária mesmo nas circunstâncias da hipótese normativa em apreciação - a adequação e a proporcionalidade da medida em sentido estrito não estão em dúvida - traduz uma opção do legislador por um modelo de relacionamento entre as autoridades judiciárias e os intervenientes acidentais de pendor mais autoritário ou de maior rigor dogmático (todo o cidadão convocado deve comparecer ou justificar a falta, sob pena de sanção), em contraposição a um modelo mais pragmático adoptado em processo civil (não tem utilidade justificar a falta, se esta não teve consequências), que não é manifestamente desrazoável face aos fins próprios do processo penal e que não cabe ao juiz constitucional censurar. Isto na pressuposição, relembra-se, da bondade da interpretação adoptada, que é domínio exclusivo do tribunal da causa.

Em conclusão, não pode considerar-se que a norma do n.º 1 do artigo 116.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a testemunha que não justifique a falta tem de ser condenada ao pagamento de uma soma entre duas e dez UCs, ainda que o sujeito processual que a arrolou prescinda do respectivo depoimento e o juiz não determine oficiosamente a inquirição, viole o princípio da proibição do excesso, enquanto subprincípio caracterizador do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.

12 - Decisão. - Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora decidido sobre a questão de constitucionalidade.

Sem custas.

Lisboa, 25 de Setembro de 2007. - Vítor Gomes - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral - Ana Maria Guerra Martins (vencida com os fundamentos constantes do acórdão 184/06) - Gil Galvão.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1698183.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-10-27 - Decreto-Lei 433/82 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1998-08-18 - Lei 55/98 - Assembleia da República

    Altera a Lei 7/93, de 1 de Março, que aprovou o Estatuto dos Deputados.

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Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

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