Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
Relatório
Na sequência de participação da Direcção da Organização da Cidade do Porto (DOCP) do Partido Comunista Português (PCP), relativa à remoção pela Câmara Municipal do Porto, em Março de 2008, de cartazes com mensagens de protesto contra o aumento dos preços e as desigualdades colocados por aquela estrutura política em espaço público, a Comissão Nacional de Eleições (CNE), decidiu, por deliberação tomada em 20-5-2008, o seguinte:
"Sendo a propaganda uma forma de liberdade de expressão, só a Assembleia da República pode proceder à sua regulação considerando-se que qualquer introdução normativa nesta matéria aprovada por outro Órgão viola o disposto nos artigos 18.º e 37.º da Constituição.
Uma vez que a afixação dos cartazes de propaganda pelo PCP contra o que dispõe o regulamento municipal, não fere os princípios estabelecidos no n.º 1 do artigo 4.º da Lei 97/88, de 17 de Agosto, nem se enquadra em nenhuma das proibições previstas nos n.os 2 e 3 do mesmo artigo, deve a Câmara Municipal do Porto repor os referidos cartazes."
Esta deliberação remeteu a sua fundamentação para parecer interno da CNE junto aos autos.
O Município do Porto interpôs recurso desta deliberação para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 102.º- B, da LTC, tendo apresentado alegações com as seguintes conclusões:
"A CNE não possui, nesta matéria, quaisquer tipo de poderes de índole sancionatória ou de polícia, semelhantes àqueles que lhe cabem a respeito da propaganda eleitoral.
Nem a Lei Orgânica da CNE, nem as leis eleitorais ou a Lei 97/88, de 17 de Agosto que regula a afixação de mensagens publicitárias e propagandísticas habilitam a CNE a exercer quaisquer poderes de controlo ou de polícia administrativa fora dos procedimentos eleitorais.
Sendo totalmente inaceitável, do ponto de vista da Constituição, que este tipo de actos sancionatórios e de controlo possam ser exercidos com base num simples costume, como a CNE parece fazer crer.
O regime vigente para a propaganda eleitoral não pode, pelo seu carácter especial e excepcional, ser aplicado analogicamente à propaganda política fora dos períodos eleitorais, como faz a CNE.
É evidente a ausência de competências da CNE para fiscalizar as alegadas violações das regras de afixação de propaganda política fora de períodos eleitorais, pelo que tem forçosamente de se concluir pela revogação/invalidade da deliberação em apreço.
Sem prescindir,
Sempre se dirá que,
A remoção dos cartazes de propaganda do PCP pela Câmara Municipal do Porto, em Março de 2008, é perfeitamente conforme à lei e à Constituição e em nada belisca a igualdade de oportunidades conferida aos partidos políticos.
Tal remoção, como a própria CNE reconhece, consubstancia um acto de fiscalização do cumprimento do Regulamento de Publicidade, Propaganda Política e Eleitora e Outras Utilizações do Espaço Público, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 174, de 8 de Setembro de 2006.
A remoção pelo Município do Porto dos cartazes do PCP, nos termos do Regulamento, apenas teve lugar porque este, depois de intimado para o efeito, nada fez.
Este Regulamento pela sua natureza de norma geral e abstracta, é aplicável a todos os partidos políticos, sem excepção, pelo que é insusceptível de violar a igualdade de oportunidades dos partidos políticos.
Ao arrepio do artigo 11.º da Lei 97/88, de 17 de Agosto, a CNE não reconhece, qualquer competência regulamentar às Câmaras Municipais, nesta matéria.
No desenvolvimento da sua função "concretizadora", a Lei 97/88 - especialmente através do seu artigo 4.º, n.º 1 e n.º 2 - veio dar relevo a valores ambientais e paisagísticos, a valores patrimoniais e estéticos, a valores de segurança pessoal e rodoviária.
Todos eles, valores com protecção constitucional ao nível dos direitos fundamentais, em alguns casos, qualificáveis como autênticos direitos, liberdades e garantias.
O que significa que a liberdade de propaganda tem de ser compatibilizada com aqueles direitos e valores, sempre que eles conflituem no caso concreto.
A norma do artigo 60.º do Regulamento traduz-se numa regra geral de liberdade de afixação e inscrição de propaganda.
O Regulamento em causa respeita integralmente a lei e a Constituição, em especial os seus artigos 18.º e 37.º
A sua legalidade foi já abundantemente demonstrada, pois o Regulamento limita-se a executar, sem desvios nem originalidades, os comandos normativos da Lei 97/88.
Asserção que vale para o cumprimento da obrigação de garantir locais apropriados à afixação de propaganda.
Asserção que vale, com o mesmíssimo rigor, para a delimitação das situações em que não é permitida a afixação livre de propaganda.
Face a todo o alegado, a remoção dos cartazes em causa pelo Município do Porto respeita plenamente a lei e a Constituição, sendo a deliberação da CNE recorrida ilegal, pelo que tem forçosamente de se concluir pela revogação/inva1idade da deliberação em apreço."
Notificada para se pronunciar sobre o conteúdo do recurso interposto a DOCP do PCP, nos termos do n.º 4, do artigo 102.º-B, da LTC, nada disse.
Fundamentação
Importa apreciar, em primeiro lugar, a questão da competência da CNE para proferir a deliberação impugnada, uma vez que a decisão desta questão poderá prejudicar a apreciação do mérito dessa deliberação.
As origens da CNE remontam à Revolução de Abril de 1974 e à necessidade de afastar a sombra de um passado de descrédito dos actos eleitorais para os órgãos políticos, de forma a exercer-se uma administração e disciplina destes actos isenta, capaz de garantir a sua liberdade e autenticidade.
Em Julho de 1974 já constava da proposta de alteração às leis constitucionais revolucionárias apresentada pelo então Primeiro-Ministro Palma Carlos ao Conselho de Estado, em Julho de 1974, a criação duma Comissão Nacional de Fiscalização das Operações Eleitorais, com vista a superintender na realização dos actos eleitorais que se viessem a realizar (in Jorge Miranda, "Fontes e Trabalhos Preparatórios da Constituição", vol. II, pág. 1153 e seg., ed. de 1978).
Posteriormente, a "Comissão de elaboração do projecto da lei eleitoral para a Assembleia Constituinte" propôs "a criação de um órgão eleitoral - a Comissão Nacional de Eleições - que será nomeado pelo governo provisório", que deverá exercer "fundamentalmente funções de disciplina do acto eleitoral, nomeadamente a de assegurar condições de igualdade entre as diferentes listas de candidatos" (o relatório elaborado por esta Comissão encontra-se publicado no B.M.J. n.º 241, pág. 5 e seg.)
Na sequência do projecto apresentado por esta Comissão foi criada pela primeira vez em Portugal, pelo Decreto-Lei 621-C/74, de 15 de Novembro (a lei Eleitoral para a Assembleia Constituinte) a Comissão Nacional de Eleições, à qual foram atribuídas as referidas funções de disciplina eleitoral, entre as quais se incluía a de "assegurar a igualdade efectiva de acção e propaganda das candidaturas durante a campanha eleitoral" (artigo 16.º, c)).
Tendo este órgão sido consagrado de forma precária, pois estava prevista a sua dissolução automática 90 dias após o apuramento geral da eleição (artigo 15.º), o Decreto-Lei 93- B/76, de 29 de Janeiro, consagrou-o pela segunda vez, com vista à realização das eleições para a Assembleia da República, continuando a atribuir-lhe funções de disciplina eleitoral, onde se incluía a de "assegurar a igualdade efectiva de oportunidades de acção e propaganda das candidaturas durante as campanhas eleitorais" (artigo 4.º, d))
E apesar de ter sido pensado no preâmbulo do referido Decreto-Lei 93- B/76, de 29 de Janeiro, o seu funcionamento futuro como o de um "autêntico tribunal eleitoral", nunca o chamado contencioso eleitoral se transferiu da órbita dos tribunais para a CNE, tendo o diploma que a consagrou definitivamente - a Lei 71/87, de 27 de Dezembro que ainda hoje se encontra em vigor, com algumas alterações - mantido a sua natureza de entidade administrativa autónoma e independente, com competência relativamente a todos os actos de recenseamento e de eleições para os órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local (artigo 1.º, n.º 2 e 3).
A definição das suas competências é efectuada pelo artigo 5.º, da referida Lei 71/78, de 27 de Dezembro:
"1 - Compete à Comissão Nacional de Eleições:
a) Promover o esclarecimento objectivo dos cidadãos acerca dos actos eleitorais, designadamente através dos meios de comunicação social;
b) Assegurar a igualdade de tratamento dos cidadãos em todos os actos do recenseamento e operações eleitorais;
(...)
d) Assegurar a igualdade de oportunidades de acção e propaganda das candidaturas durante as campanhas eleitorais;
e) Registar a declaração de cada órgão de imprensa relativamente à posição que assume perante as campanhas eleitorais;
f) Proceder à distribuição dos tempos de antena na rádio e na televisão entre as diferentes candidaturas;
g) Decidir os recursos que os mandatários das listas e os partidos interpuserem das decisões do governador civil ou, no caso das regiões autónomas, do Ministro da República, relativas à utilização das salas de espectáculos e dos recintos públicos;
(...)
i) Elaborar o mapa dos resultados nacionais das eleições;
j) Desempenhar as demais funções que lhe são atribuídas pelas leis eleitorais.
(...)"
Como resulta da história da CNE e, sobretudo, da actual delimitação legal das suas competências, esta entidade tem a sua intervenção limitada à administração, disciplina e supervisão dos actos de recenseamento e de eleições para os órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local, e ainda dos referendos (por força do disposto na Lei 15-A/98, de 3 de Abril).
É a especial preocupação em assegurar que estes actos, de crucial importância para um regime democrático, sejam realizados com a maior isenção, de modo a garantir a autenticidade dos seus resultados, que justifica a existência e a intervenção da CNE, enquanto entidade administrativa independente.
Quanto à actividade política desenvolvida para além dos actos eleitorais, nomeadamente a exercida pelos partidos políticos, não se sentiu a necessidade de atribuir a qualquer entidade administrativa específica a supervisão da liberdade de concorrência partidária, pelo que a eventual lesão ou ameaça de lesão de direitos nessa matéria é exclusivamente garantida com o recurso aos tribunais, inclusive através de medidas de protecção cautelar, nos termos exigidos pelo artigo 20.º, n.os 1 e 5, e 268.º, n.º 4, da C. R. P.
Neste caso, a CNE, perante uma queixa apresentada pela DOCP do PCP, deliberou determinar a reposição de cartazes daquela estrutura partidária, com mensagens de protesto contra o aumento dos preços e as desigualdades, que haviam sido removidos pela Câmara Municipal do Porto de local público da cidade do Porto, em período fora do calendário de qualquer processo eleitoral ou referendário que abrangesse aquela área geográfica.
Na alínea d), do artigo 5.º, da Lei 71/78, incumbe-se a CNE de "assegurar a igualdade de oportunidades de acção e propaganda das candidaturas durante as campanhas eleitorais".
A referência expressa a que o objecto desta intervenção são as acções ocorridas durante as campanhas eleitorais e a de que os sujeitos destas acções são as candidaturas às respectivas eleições, delimita necessariamente a área de intervenção da CNE, neste domínio, às acções de propaganda inseridas num determinado e concreto processo eleitoral.
Se é discutível, para que seja legítima a intervenção da CNE, que essas acções se situem temporalmente no período formalmente destinado pela lei à realização da campanha eleitoral, ou que essas acções devam, pelo menos, ocorrer durante o processo eleitoral, encarado como uma sucessão de actos e formalidades de diversa natureza pré-ordenados à formação e manifestação da vontade dos eleitores, iniciado com a marcação da data para a realização das eleições, é seguro que a acção em causa deve ser inequivocamente direccionada a um concreto acto eleitoral.
Só nessas condições é que compete à CNE actuar positivamente, evitando a ocorrência de situações que possam ofender a regularidade do processo eleitoral, nomeadamente limitações intoleráveis à liberdade de realizar acções de campanha, pois só assim se sente a especial exigência de intervenção de uma entidade administrativa independente que assegure uma acção estatal isenta.
Daí que, por exemplo, os prazos de tramitação do recurso das deliberações da CNE para o Tribunal Constitucional (artigo 102.º-B, n.º 2, 3 e 5, da LTC) sejam muito curtos, dado que pressupõem que essas deliberações ocorrem no decurso de um processo eleitoral o qual obedece a um calendarização apertada e rigorosa dos múltiplos actos que o integram.
É verdade que os partidos políticos, como o PCP, desenvolvem acções de propaganda política na sua actividade corrente, nas suas diferentes formas, visando a difusão das suas ideias e posições políticas, com o objectivo de determinar o posicionamento e a opinião política dos cidadãos, independentemente de se encontrarem marcados actos eleitorais. Admite-se, por isso, que, mesmo quando essas acções ocorrem em períodos em que não se encontra em curso qualquer processo eleitoral, tal como sucede com as acções visadas pela deliberação recorrida, as mesmas possam ter uma influência longínqua no comportamento que os cidadãos venham a adoptar em actos eleitorais futuros.
Contudo, tais acções, ao não serem direccionadas para um determinado acto eleitoral, não se inserindo em qualquer processo específico de formação e manifestação da vontade eleitoral a exprimir nesse acto concreto, não estão incluídas na área de competência da CNE acima delimitada.
Conclui-se, pois, que a deliberação recorrida ao ordenar à Câmara Municipal do Porto a reposição em espaço público de cartazes com mensagens de protesto contra o aumento dos preços e as desigualdades, que haviam sido colocados por um partido político em período fora do calendário de qualquer processo eleitoral ou referendário que abrangesse aquela área geográfica, incidiu sobre matéria não compreendida nas competências da CNE, pelo que a mesma é nula, o que deve ser declarado por este Tribunal.
Esta conclusão não retira ao Tribunal Constitucional a competência para apreciar este recurso, quanto a esta questão, pois que, o acto impugnado, ao menos na sua aparência formal e configuração externa apresenta-se como recorrível nos termos previstos nos artigos 8.º, f), e 102.º-B, da LTC, e como tal foi considerado quer pela sua entidade emitente, como também pela autarquia recorrente (vide, neste sentido o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 525/89, em "Acórdãos do Tribunal Constitucional", 14.º vol., pág. 303).
Fica, sim, prejudicada a apreciação do recurso interposto quanto ao mérito do conteúdo da deliberação recorrida.
Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto pelo Município do Porto e, em consequência, declara-se nula a deliberação da Comissão Nacional de Eleições, tomada em 20-5-2008, relativa a participação da Direcção da Organização da Cidade do Porto, do Partido Comunista Português.
Lisboa, 4 de Junho de 2008. - João Cura Mariano - José Borges Soeiro - Benjamim Rodrigues - Maria Lúcia Amaral - Carlos Pamplona de Oliveira - Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Carlos Cadilha) - Carlos Fernandes Cadilha (vencido conforme declaração em anexo) - Maria João Antunes (vencida pelas razões constantes da declaração de voto do Senhor Conselheiro Carlos Cadilha) - Mário José de Araújo Torres.
Declaração de Voto
Vencido. Tendo-se concluído, como se conclui, que a acção do partido político não se enquadrava em situação de campanha eleitoral, teria declinado a competência do Tribunal Constitucional para conhecer do recurso, tendo em consideração que as competências deste órgão jurisdicional se circunscrevem aos processos eleitorais ou aos actos de administração eleitoral, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 8.º, alínea f), e 102.º-B da Lei do Tribunal Constitucional - o que justifica que se atribua a esse tipo de processo um carácter de excepcional urgência - , e atendendo também a que a competência contenciosa é um pressuposto processual de ordem pública que implica que a decisão de fundo deva sempre ser proferida pelo tribunal a que o sistema jurídico confere, para o caso concreto, o poder de julgar. - Carlos Fernandes Cadilha.